22/01/2020

Carlos Salazar – A Quarta Teoria Política ou um Pensamento para a América Latina

por Carlos Salazar

(2019)



A quarta teoria política, cuja gênese devemos atribuir ao grande Martin Heidegger, e que posteriormente foi habilmente desenvolvida e interpretada por Alain de Benoist e Aleksandr Dugin, nos apresenta uma superação teórica da primeira (liberalismo), segunda (comunismo) e terceira teorias políticas (fascismo). A quarta teoria política é taxante ao apontar a morte da terceira e segunda teoria na Europa. A única teoria vigente é a primeira, que já está mudando do liberalismo para o pós-liberalismo, um estágio de primazia do poder econômico sobre o político e, conseqüentemente, a perda de relevância do fenômeno político-institucional frente a nova política dirigida pelas empresas transnacionais.

Precisamente, o projeto da quarta teoria é propor uma alternativa contrária ao liberalismo e ao pós-liberalismo. Sua impressão anti-individualista se traduz no que Dugin chamou, de uma maneira muito sábia, Populismo Integral. Este propõe como sujeito político o "Ser-aí" (Dasein) em oposição ao "indivíduo" do liberalismo: "O homem é tudo, menos indivíduo". Em outras palavras, o atomismo uniformizador globalista se opõe e se contrapõe a todos os tipos de identidades coletivas que o liberalismo constantemente negou: “O homem é sua classe, sua nação, sua tribo, seus costumes, sua comunidade, sua história, sua espiritualidade, etc”. Não existe interesse individual para a Quarta Teoria (doravante 4TP), pelo contrário, o interesse do homem em particular é o de suas identidades coletivas, sem que isso signifique contradição, uma vez que o antagonismo entre o individual e o coletivo é novamente uma conceituação própria do liberalismo.


A 4TP, como proposta política em desenvolvimento, apresenta algumas fragilidades, bastante bem explicadas por Luis Bozzo em artigo anterior da revista "Herejía", entre as quais vale destacar o que, na minha opinião, tem mais relevância para nós: a 4TP tentou se aplicar como uma derivação de suas manifestações européias e eurasianas, sem se aprofundar no "Ser-aí" da nossa América Latina. A 4TP não é sinônimo de eurasianismo ou Revolução Conservadora Alemã, pelo contrário, a base fundamental do 4TP é contrapor a diversidade ou a multipolaridade (étnica, nacional, cultural, política, religiosa, geográfica, lingüística), ao unipolarismo anglossaxão da globalização. Isso permite uma aliança entre nacional-materialistas norte-coreanos, social-islâmicos persas, nacional-conservadores russos, bolivarianos venezuelanos, socialistas chineses, etc.

Mas e a América Latina? É possível propor um "Ser-aí" continental que transcenda as identidades localistas de nossos nacionalismos provinciais?

Aqui devemos reconhecer que aqueles que deram mais passos nesse sentido foram os venezuelanos a partir do bolivarianismo de Chávez: a reivindicação do conceito perdido da Pátria Grande, a criação da (infelizmente hoje inoperante) UNASUL etc.

No entanto, existem aspectos do bolivariaismo de Chávez que são exclusivamente venezuelanos e, portanto, pouco aplicáveis a realidades tão diversas quanto Peru ou Chile, por exemplo.

Um pensador, que procurou propor uma espécie de 4TP na América Latina, é talvez sem saber, o argentino José Pablo Feinmann. Seu trabalho "Uma Filosofia para a América Latina" é bastante decisiva a esse respeito: "Existe um ser autêntico e autonomamente americano, e que para isso é distinto de outros seres, o europeu, o oriental? Acho que não, que não há uma ontologia americana. O que existe, e vimos, são projetos políticos, humilhações, respostas, guerras. A América Latina que se busca, as classes dominantes que sempre buscam a união com o império e a luta de todas as pessoas desafortunadas que habitaram a América Latina.”(Feinmann, Filosofia para a América Latina, página 200)

Sendo um homem do peronismo, Feinmann compartilha as ideias da integração latino-americana e as críticas do movimento contra o imperialismo e o capitalismo anglossaxões. Curiosamente, suas críticas partem de uma avaliação de Heidegger e de uma visão bastante relutante de Marx, que foi lido, talvez muito mal, como eurocentrista: “Heidegger escreve ‘Ser e Tempo’ em 1927 e depois dá uma cambalhota e começa com outro trabalho, que consiste na crítica à modernidade capitalista. Mas não no estilo de Marx, que afirma que a modernidade capitalista é injusta porque é espoliadora, porque é exploradora, devido à luta de classes. Heidegger não se importa com isso. Heidegger diz que a modernidade capitalista está destruindo a Terra, que a está varrendo através da técnica. Todo o ‘segundo Heidegger’ é uma crítica à técnica como devastadora do mundo em que vivemos (...) O capitalismo e o colonialismo não param porque, quando um país precisa de tantos recursos energéticos, deve procurá-los do lado de fora"(Feinmann, p. 18 -19) Isso o torna tangencialmente próximo a uma concepção latino-americana da 4TP.

Não é minha intenção reproduzir neste artigo todo o trabalho de Feinmann, que considero leitura obrigatória para qualquer seguidor da 4TP. O objetivo de apresentá-lo é mostrar que existe um importante desenvolvimento intelectual em nosso continente que nos permitiria avançar em direção a uma proposta abrangente para a América Latina. Não há necessidade de procurar manuscritos obscuros moscovitas medievais ou imitar visões de mundo fora de nossa realidade efetiva. Eu me preocupo com a existência de seguidores dessa corrente que ainda pensam que a 4TP é uma nova forma de conservadorismo ou fascismo, quando é o contrário. As condições de nosso continente são muito diferentes da Europa, aqui nunca houve o desenvolvimento de um marxismo no sentido tradicional, a terceira teoria teve apenas manifestações efêmeras - exceto na Argentina, onde se modificou adaptando-se a novas realidades - e o liberalismo foi imposto pela força de balas, mísseis, tortura e desaparecimentos.

A América Latina é única, até agora não fomos uma parte central da história universal (disciplina eminentemente eurocêntrica), a partir da periferia temos sido vistos como um "continente mágico", um lugar onde o suprarracional e o supranatural convivem perfeitamente com a vida cotidiana (é por isso que o "realismo mágico" é tão popular entre os leitores ianques e europeus). Nós mesmos nos vimos como filhos do "mundo ocidental", que queremos desesperadamente imitar e ter como objetivo referencial.

Uma 4TP latino-americano precisa se livrar desses laços e fetiches que servem apenas como lastro inútil. O culto absurdo e anacrônico da pureza racial, o amor tóxico e masoquista por um "Ocidente" que nos vê como lixo humano (um obstáculo ao avanço da "civilização") ou como vítimas pobres (bons selvagens), o anticomunismo ou antimarxismo histérico, etc.

O gênio de Feinmann é sua proposta de desenvolver uma filosofia para o nosso continente, não uma filosofia em sentido formal, nascida nas academias onde Hegel ou Aristóteles são estudados e aprendidos com inúmeras categorias e classificações em grego, latim e alemão. Não, uma filosofia latino-americana nascida diretamente da práxis. Um pensamento que surge das experiências, dos conflitos históricos, dos mártires patrióticos.

Bolivar, Mariátegui, John William Cooke, Allende, entre outros, são os arquitetos de nosso pensamento original, de nosso próprio modo de ver, pensar e fazer as coisas. Com todos os seus pontos fortes, bem como seus defeitos e fraquezas, refletem a característica do homem latino-americano, que não é dado à minúcia dos detalhes conceituais, mas se lança à ação. Isso nos aproxima do conhecimento do "Dasein" que nos é próprio.

A característica de nossa história é a constante luta pela libertação, libertação nacional - como no Vietnã - mas, diferentemente dos vietnamitas, a nossa tem que andar de mãos dadas com a libertação continental. Uma oposição ao império ianque, que nos vê como um quintal e qualquer outro império que apareça no futuro: “O que temos que opôr?” - pergunta nosso pensador argentino: “O que o homem livre sempre opôs à tirania: sua afirmação de um sujeito livre, sua capacidade de dizer: não, eles não me sujeitarão. Não vou aceitar passivamente que me digam como estão as coisas (...) porque eles realmente estão mentindo para nós. E para saber que eles estão mentindo para nós, temos que elaborar nossa própria verdade, que é nossa própria visão de mundo, nossa própria consciência crítica. Aquilo que nos torna um ser humano. Alguém que fala e não é falado. Que pensa e não é pensado. Que interpreta e não é interpretado.”(Feinmann, pp. 204-205)

Por isso, valorizemos nosso próprio conhecimento alternativo à filosofia formal das academias europeias: nossa teologia da libertação, nossa sabedoria popular-ancestral-indígena, nossa poesia que muitas vezes consegue tocar os mistérios insondáveis que o pensador racionalista nem conhece. Especialmente a nossa maneira de nos determos diante do destino.

Como um bom heideggeriano, Feinmann volta à pergunta do ser: “O que é o ser? E se eu disser que o Ser é práxis? Que o Ser é ação? Que o próprio do homem é agir? Que o próprio do homem é fazer história? (...) Se o Ser é práxis, haveria uma práxis política claramente diferenciada na América Latina”. (Feinmann, p. 202)