31/07/2019

Daniele Perra – Ernst Niekisch e o “Reino dos Demônios”

por Daniele Perra

(2018)



Para muitos, o nome de Ernst Niekisch não dirá nada. Não obstante, junto a Karl Otto Paetel ele é considerado o pai de uma corrente política particular, a do nacional-bolchevismo, a qual, a partir dos anos 90 do século passado, graças aos seus intérpretes pelo menos um pouco hiperbólicos como o filósofo Aleksandr Dugin e o controverso escritor Eduard Limonov, conheceu um razoável sucesso na Rússia da deplorável Era Iéltsin. A Niekisch, ademais, o pensador francês Alain de Benoist dedicou toda uma seção do seu livro “Quatro Figuras da Revolução Conservadora Alemã”.

O esquecimento a que o homem e seu pensamento foram relegados tanto em vida como post mortem possui uma razão bastante precisa. Niekisch e seu pensamento eram e são ainda perigosos. Este original pensador alemão, de fato, no curso da sua vida, conseguiu viver em primeira pessoa e se opôr vigorosamente a todas as três principais ideologias políticas do século XX: liberalismo, fascismo-nacional-socialismo e comunismo (ainda que, no último caso, a oposição surgiu de algumas divergências com o líder da República Democrática Alemã, Walter Ulbricht). E diferentemente do dissidente soviético bem mais famoso Aleksandr Solzhenitsyn (que dardejava contra a URSS e o Ocidente capitalista de sua casa norte-americana, lamentando que Hitler não tivesse matado o seu próprio povo), depois de ter passado alguns anos em um campo de prisioneiros nazista e reconhecendo o feitiço psicológico de que seu povo havia caído vítima, nunca chegou a desejar a destruição da sua pátria. 


“Ou somos um povo revolucionário, ou deixamos definitivamente de ser um povo livre”.

Assim está escrito na placa colocada em sua velha casa de Berlim onde morreu em total solidão e abandono em 1967. Um aforismo que em poucas palavras sintetiza o empenho de uma vida inteira. E Ernst Niekisch, de fato, gastou cada momento da sua existência na tentativa de restituir à Alemanha e ao seu povo aquele papel de centro e guia continental que, na sua perspectiva, geograficamente e filosoficamente, lhe cabia de direito. Goste-se ou não, a verdade é que a Europa não pode prescindir da Alemanha, a qual, ao contrário da Grã-Bretanha, historicamente anti-europeia, para o bem e para o mal, sempre desempenhou um papel ativo no interior do continente tendo sido, por causa de sua posição particular, o campo de batalha preferido para as potências que disputavam entre si a hegemonia continental.

Profundamente anti-ocidental e hostil à ideologia demo-liberal, Niekisch interpretou a Primeira Guerra Mundial como uma verdadeira cruzada para fazer com que a Alemanha se convertesse ao Ocidente. Uma interpretação não muito diferente daquela de outros protagonistas da chamada Revolução Conservadora: Werner Sombart, por exemplo, leu a Grande Guerra como um tipo de conflito religioso-cultural em que se confrontaram duas diferentes cosmovisões, a mercantilista anglossaxã e a heroica/militar/socialista prussiana.

Precisamente à Grande Guerra e ao infausto Tratado de Versalhes, do qual a Alemanha sai humilhada sem ter sofrido uma verdadeira derrota militar, Niekisch atribui a ruína e decadência definitivas que atinge o ápice com o reino dos demônios nazista. Hitler, na visão de Niekisch, era um produto de Versalhes: um demagogo (variante do homem democrático) que teria inevitavelmente conduzido a democracia ao seu suicídio natural, aproveitando e canalizando as genuínas aspirações revolucionárias do povo alemão a um caminho inofensivo para o “grande capital”. No Mein Kampf hitleriano, Niekisch não reconhece a visão de um homem que acreditava, mas a visão de um homem cujo objetivo era levar os outros a acreditarem. 

“Ele é o maligno ao qual a burguesia alemã vendeu a alma, e o qual, em compensação, com a ajuda dos seus espíritos servis e demônios, a mantém em posse dos tesouros desta terra, até que toque a meia-noite e ela seja irrevogavelmente atraída ao inferno”.

De fato, Niekisch, apesar de reconhecer no nacional-socialismo um instinto primordial puramente germânico, foi capaz de precisar como isso, em seus resultados finais, e independentemente de seus múltiplos ânimos (às vezes até claramente anti-modernos), não pode senão ser reduzido a um instrumento dos grandes grupos industriais alemães para subjugar as aspirações revolucionárias do proletariado dotado de real consciência de classe.

Na visão de Niekisch, o nacional-socialismo foi reduzido ao que mais distante poderia haver em relação ao espírito alemão. Nele, o pensador de Trebnitz, a partir do falido putsch de Munique de 1923, reconhece impulsos claramente latinos que determinariam a sucessiva evolução política do Terceiro Reich como monstruosa síntese entre Roma e Potsdam. Niekisch indicou também nos detalhes quais foram as instituições católicas tomadas como exemplo pelo Estado nacional-socialista: a preeminência episcopal do Papa e o clero enquanto arquétipo da liderança psicologicamente adaptada ao povo por meio da direção política do NSDAP. E Hitler, especificamente, substitui a democracia parlamentar de tipo anglossaxão por uma democracia cesarista de natureza belicosa fundada em um método propagandístico preciso, capaz de criar uma verdadeira sugestão coletiva.

Sugestão que não ignorou, de fato, boa parte da intelectualidade alemã. Niekisch, em relação a isso, não economizou nas críticas aos principais expoentes da cultura alemã do período que apoiaram de modo mais ou menos explícito a ascensão do nazismo: de Martin Heidegger a Arthur Moeller van den Bruck, passando por Oswald Spengler.

Todavia, se as críticas ao ontologismo heideggeriano enquanto filosofia do ativismo fascista se fundavam sobre uma evidente incompreensão (ou, no mínimo, sobre um conhecimento limitado) do pensamento do filósofo de Messkirch, é outro o discurso que vale para aquele que teorizou, de modo pouco original em relação ao que é a opinião difusa, a Decadência do Ocidente. De fato, o cesarismo hitleriano, na perspectiva de Niekisch, ainda que o próprio teórico do socialismo prussiano nutrisse uma consideração pouco positiva sobre o Führer, era verdadeiramente uma contribuição do pensamento spengleriano que havia individuado no homem forte no comando a única via de salvação para recuperar o mundo ocidental do seu declínio inexorável. E, ao mesmo tempo, o nacionalismo racial spengleriano voltado a uma aliança imperialista entre a Alemanha e o Ocidente “branco” contra os povos da Eurásia representava um fator ulterior de contraste com a visão filosófica e geopolítica de Niekisch.

Desnecessário dizer que, por causa dessa abordagem filosófica, Spengler foi bastante criticado também por muitos expoentes importantes do nacional-socialismo: um acima de tudo, Johann von Leers que, não por acaso, poucos anos depois da destruição do Reich, convertido ao Islã, encontrou refúgio no Egito onde colaborou com o governo dos oficiais livres guiado por Gamal Nasser.

Niekisch era bem consciente de que o nacional-socialismo era composto por diversos ânimos e que muitos dos seus membros eram revolucionários convictos. Todavia, esta energia positiva que teria podido destruir o Ocidente foi dispersa no nada. O mito da raça ariana, por exemplo, seria uma mera ilusão dirigida para instilar nas massas uma consciência uma falsa consciência de dominadores, mesmo sem que elas pudessem tirar disso qualquer vantagem.

Precisamente sobre este “mito” Niekisch concentra a maior parte das suas críticas ao regime. De fato, deixando de lado o fato de que foi o próprio Terceiro Reich que rendeu ao judeu um serviço e uma honra que nunca antes lhe haviam sido atribuídos (ao ponto de considera-lo como antítese da sua própria existência), é sobre a construção do mito da “raça nórdica” e sobre o pertencimento do povo alemão a esta raça que Niekisch conseguiu situar parte da sua oposição à ideologia oficial.

Alfred Rosenberg, um dos principais ideólogos do nazismo, no seu livro O Mito do Século XX, tentou reconstruir uma verdadeira e própria gênese ideológico-racial do povo ariano. Este, um alemão do Báltico de discutível preparação cultural que conseguiu arruinar o trabalho de um grande estudioso como Herman Wirth, construiu a sua obra com o objetivo de forjar um eixo geopolítico entre os povos do norte da Europa (Grã-Bretanha inclusa) voltado para frear o expansionismo “russo-mongólico”.

Niekisch, apesar de apreciar uma certa rejeição da cultura românico-latina que Rosenberg fez sua, não pode deixar de se opôr com todas as suas forças a um projeto semelhante. Este pensador particular era, de fato, consciente de que o povo alemão não era outra coisa que um emaranhado de pessoas de origem eurasiática. Assim, ele organizou a sua visão geopolítica voltada para uma unificação com o Oriente para defender a “especificidade alemã” contra o Ocidente. Uma proposição que recorda proximamente a de alguns outros pensadores, como o romeno Ion Ghica e o russo Konstantin Leontiev, que, no curso da segunda metade do século XIX, sugeriram às elites políticas das respectivas nações se unirem ao Império Otomano, bastião anti-ocidental, para poder combate-lo.

Tal como seu amigo Karl Haushofer, outro pensador que teve sorte variada no Reich hitleriano, elaborou a ideia de que a criação de um bloco continental russo-alemão, capaz de se expandir rumo ao Extremo Oriente, teria sido capaz de colocar definitivamente em crise a hegemonia talassocrática anglossaxã sobre o mundo. Niekisch, de fato, considerava a revolução bolchevique na Rússia como uma autêntica revolta contra o mundo ocidental. Na Rússia, depois do caos revolucionário dos primeiros anos, Stálin conseguiu restabelecer a ordem e a hierarquia dando vida a uma autêntica síntese eurasiática capaz de beber simultaneamente da tradição marxista, da ortodoxia bizantina, dos mitos pagãos arcaicos da Rússia pré-cristã e da poderosa influência que a epopeia de Genghis Khan exerceu sobre o imenso espaço que vai da Europa Oriental ao Oceano Pacífico.

Assim, o antibolchevismo hitleriano era a mais emblemática demonstração do fato de que este, apesar do conflito com a França e a Grã-Bretanha e do boicote hebreu ao Terceiro Reich, estava aliado ao Ocidente, ainda que em uma posição radical, e que o seu verdadeiro objetivo era de expandir o “mundo ocidental” até os Urais. Ao mesmo tempo, Niekisch, admirador da ordem staliniana e do “Estado Total” criado pelo líder soviético, em contraste aberto com outro pensador alemão do período como Carl Schmitt, criticou duramente a construção estatal nacional-socialista como “Estado do arbítrio” onde um indivíduo (o Führer), longe de constituir o vértice da estrutura política, fez a si mesmo de Estado substituindo-se a ele. O Estado, precisamente, na doutrina nacional-socialista, devendo necessariamente impregnar-se da ideologia do Partido, representava, às expensas deste, o momento estático da política. Enquanto o próprio Partido, devendo vigiar todo o aparato estatal, constituía o momento dinâmico.

O pensamento de Ernst Niekisch, para além dos já citados nacional-bolcheviques russos dos anos 90, inspirou inúmeros pensadores europeus. Jean Thiriart, por exemplo, traduziu o pensamento de Niekisch em chaves essencialmente geopolíticas. Assim, a ideia de um bloco continental de Vlissingen a Vladivostok é reapresentada nos termos de “império euro-soviético de Vladivostok a Dublin na consciência de que apenas o Ocidente Atlântico representaria uma fronteira defensável para a Eurásia agredida pela nova talassocracia norte-americana.

Em uma Europa dominada por elites políticas e intelectuais impregnadas de sentimentos filo-atlantistas que protegem Washington como a uma Meca de onde pedir ajuda e inspiração mesmo quando esta os despreza descaradamente, redescobrir o sadio anti-ocidentalismo de Ernst Niekisch é um autêntico sobro de ar fresco. Eis porque não podemos deixar de aplaudir a iniciativa editorial da casa editorial NovaEuropa que, no encorpado volume, inseriu também outro escrito de Niekisch, “Uma Fatalidade Alemã”, enriquecido pelas fascinantes ilustrações de Andreas Paul Weber que recordam os sombrios pesadelos metafísicos do pintor e escritor austríaco Alfred Kubin.