04/02/2019

John Médaille - Três Erros sobre Economia e um Erro Grave sobre o Homem

por John Medaille

(2018)



Introdução

Desde o tempo de Aristóteles, a economia tem sido considerada como estando dentro do domínio da política e da ética. Acreditava-se universalmente que fora desses âmbitos, a economia era ininteligível porque sem eles ela careceria de um telos, um sentido e um propósito. Mas no século XIX, surgiu a ideia de que a “economia política” poderia ser convertida em uma ciência “pura”, totalmente divorciada de qualquer matriz política, social ou teleológica. Tudo que era necessário era encontrar o princípio “newtoniano”. Tal como Newton havia domado os movimentos complexos dos céus com umas poucas leis simples, da mesma forma deveria haver umas poucas leis simples para explicar os movimentos inescrutáveis dos mercados. Muitos acreditavam que esta tarefa havia sido realizada por A.E. Marshall em 1891 (ano fatídico, este) com a publicação de seu “Princípios de Economia”. Como ninguém havia sido o termo “economia” daquela maneira antes, ele teve que explicar na primeira frase que por “economia” ele queria se referir ao que as pessoas haviam chamado até então de “economia política”. É graças a este livro que a economia pôde, finalmente, reivindicar com alguma plausibilidade o status de uma ciência axiologicamente livre.

O princípio “newtoniano” de Marshall era a utilidade marginal, que empurravam o utilitarismo para o centro da economia. O livro de Marshall se tornou a base da economia do século XX, e o pequeno diagrama que ele traçou no apêndice, que pretende retratar como as curvas de oferta e demanda resultam em um ponto de equilíbrio, se tornou o diagrama mais onipresente e reconhecível na história humana. E enquanto as pessoas discutiam sobre este ou aquele aspecto de suas teorias, seu objetivo principal foi alcançado: a economia, e não a economia política, havia ganho o dia; a “economia” foi resgatada dos paramos da ética e da teleologia para se tornar uma ciência pura, fosse idealista (Mises e os austríacos) ou uma empírica (os neoclassicistas).

Porém, alguns de nós, ainda bastante retrógrados em nosso pensamento, temos afirmado que havia algo não muito correto, algo não muito – se me permitirem dizer – “científico” na nova ciência, fosse em suas formas idealista ou empírica. Alguns de nós, eu inclusive, pensamos que uma ciência humana sem um telos é como um relógio sem ponteiros ou números: um mecanismo interessante, sem dúvida, mas que não serve a qualquer propósito humano discernível, e que não oferece qualquer maneira discernível de dizer se ele está funcionando adequadamente.


O que se segue é a seleção de três erros que, na opinião deste autor, tornam a “ciência” não-científica. Estes eu chamei de “O Erro sobre Liberdade”, “O Erro sobre os Mercados”, e “O Erro sobre Equidade”. Há muitos outros erros que poderiam ser mencionados, mas estes três são suficientes. Mas para além deste ponto, e na raiz de todos os erros, jaz um grave erro sobre a natureza do homem, um erro profundamente imiscuído nas pressuposições utilitaristas que subjazem a ciência, e que na verdade a arrancam do próprio domínio da ciência, e a situam firmemente no campo da ideologia pura.

O Erro sobre Liberdade

A economia pretende ser, como a física que ela macaqueira, “livre de valores”, mas há na verdade uma coisa que todos os economistas destas escolas valorizam: liberdade. De fato, a liberdade nestas teorias desloca tanto toda a ordem moral como todo o âmbito teleológico para se tornar o Santo Graal, aquilo pelo que devemos constantemente buscar e em cujo nome devemos sacrificar tudo.

O problema é que eles nunca definem efetivamente a liberdade. E a razão pela qual eles não o fazem é óbvia: tal discussão acarretaria questões filosóficas, políticas, sociais e éticas indesejadas que comprometeriam a natureza “desprovida de valores” da ciência. Melhor que seja adotada como um pressuposto implícito, um que opera mais no nível emocional do que no nível racional. Mas sem defini-la explicitamente, como saber que você a encontrou?

Apesar de eles não darem uma definição explícita, eles de fato dão uma implícita: Liberdade é tudo que ocorre na ausência de coerção. Mas isso só desloca o problema, da definição de liberdade para a definição de coerção. Novamente, a definição é implícita ao invés de explícita, o que é metodologicamente suspeito. E a definição implícita que eles parecem estar usando envolve violência aberta e regulação governamental. Em outras palavras, regras comprometem a liberdade. Daí que o neoclassicismo tem suspeitado de regulação e o austrianismo em particular tem sido claramente hostil.

Mas isso é simplesmente incorreto; liberdade e regras não são opostos, mas complementos. Liberdade irrestrita, ou licenciosidade, não é liberdade em qualquer sentido substantivo, e logo leva à perda de liberdade. O que causa isso é confundir liberdade com escolha livre. Mas liberdade irrestrita de escolha não é o mesmo que liberdade, e é na verdade seu oposto.

Pensemos assim: Ao escolher seu método preferido de ingerir cocaína, você é livre para escolher entre as formas de pó e de crack. Você pode comparar o preço e a utilidade relativos de cada um, e tomar uma decisão racional e informada. Mas enquanto esta obviamente representa uma escola livre, ela não pode ser uma escolha de liberdade, já que qualquer das escolhas leva à escravidão. A liberdade humana, para ser verdadeiramente livre, necessita de limites, necessita de regras.

Da mesma maneira, os mercados não podem existir sem regras. Nós podemos comparar os mercados a um jogo. Pense em um jogo de futebol sem regras. Ele simplesmente não poderia existir. E as regras demandam árbitros. Se não houvesse homens em listras para jogar a bandeira amarela, soprar o apito e parar o jogo quando alguém agarra uma máscara facial, poucos ousariam entrar em campo; as taxas de mortalidade simplesmente seriam muito altas. Regulações não acabam com o jogo, elas tornam o jogo possível. O mesmo é verdadeiro com mercados: ninguém vai entrar em um mercado caótico.

Isso não impede que a regulação possa ser problemática. De fato, há dois erros que são muito comuns: um é a captura regulatória, pela qual os atores mais fortes determinam as regras para a exclusão de todos os outros, e a outra é a regulação por desconfiança, pela qual todas as ações de um negócio são reguladas ao ponto de elevar os custos de transação a níveis ineficientes e até mesmo inaceitáveis e impossíveis. Mas a questão adequada sobre regulação não é quão muita ou quão pouca, mas se todas as partes interessadas estão devidamente representadas no processo de tomada de decisão. Produtores, consumidores, fornecedores, distribuidores, e o público geral deve ter um assento na mesa e voz no resultado.

Deve ser notado que enfraquecer a autoridade pública legítima não resulta em mercados “desregulados”; tal coisa simplesmente inexiste, mais do que um jogo de futebol poderia existir sem um livro de regras. Ao contrário, o que ocorre é que os atores mais fortes em um mercado, os atores com mais poder ou mais informação, determinam as regras para todas as outras partes, sejam produtores, consumidores, fornecedores, o público, etc. Deve haver regras; quem deve estabelece-las sempre será uma questão política e prudencial. Ausente um processo inclusive, as regras serão determinadas pelos poderosos para que as partes mais fracas possam ser exploradas. 

O Erro sobre Mercados

O erro sobre liberdade leva ao segundo erro. Pois se não definirmos liberdade, não podemos definir “livre-mercado”. E de fato, poucos manuais até mesmo tentam empreender a tarefa, especialmente aqueles que mais falam sobre a liberdade dos mercados. Há, obviamente, uma definição implícita nestes textos que equiparam “livre-mercado” com mercados “desregulados”. Mas como nós já vimos, tais mercados não existem e não tem como existir. Mercados sem regulação formam se tornam predatórios tanto em relação a quaisquer possíveis competidores como em relação ao público.

Como então deve a liberdade do mercado ser definida? Muito simplesmente, pelo menos em princípio: pelas barreiras para o ingresso no mercado. Mercados com poucas barreiras de entrada são mais livres do que mercados com elevadas barreiras de ingresso. Tais barreiras podem vir de custos elevados do mercado, acesso restrito a capital, falta de acesso a canais de distribuição, regulação restritiva a favor dos produtores existentes, ou do poder de firmas oligárquicas ou monopolistas que capturaram o mercado e restringiram o ingresso.

Poder-se-ia levantar a objeção de que barreiras de ingresso podem ser difíceis de mensurar, e isto é verdadeiro, pelo menos em muitos casos. Há, porém, um teste infalível para a liberdade de qualquer mercado: o número de atores dentro desse mercado. Quando há um grande número de fornecedores para uma dada commodity, de modo que nenhum tem o poder de determinar preços, podemos julgar com certeza que estamos lidando com um mercado livre. Porém, quando há poucas empresas, ou apenas uma, dominando um mercado, podemos julgar que isto é o oposto de um mercado livre.

Esta incapacidade de situar adequadamente a liberdade do mercado leva a outra confusão básica pela qual os termos “livre-mercado” e “capitalismo” são usadas como se fossem sinônimos. Mas não se tratam da mesma coisa: de fato, o capitalismo tem sido desde sempre o inimigo mortal da liberdade de mercado. Onde quer que o capitalismo avance, o livre-mercado retrocede.

As razões para isso não são difíceis de situar. Em primeiro lugar, o capitalismo demanda crescimento constante de todos os seus atores, mas em mercados saturados, isto simplesmente é impossível. Assim, por exemplo, quando todo mundo possuir a cerveja desejada, não há lugar para que a Anheuser-Busch expanda seu mercado. Ela só pode crescer por competição predatória, destruindo seus rivais (e, assim, estreitando o mercado) ou absorvendo firmas rivais por fusões e aquisições. Na verdade, foi isso que aconteceu nos EUA; duas companhias controlam 70-80% do mercado – e elas estudam uma fusão! E isto se tornou normal. Em quase todo setor importante, da cerveja à banca, dos derivados de petróleo aos produtos de escritório, da mídia ao processamento de alimentos, duopólios e oligopólios são a regra, e os mercados livres são a exceção. De fato, o capitalismo coletivizou a produção a um nível que assombraria qualquer burocrata stalinista. 

Em segundo lugar, toda a argumentação do livre-mercado contraria a argumentação do capitalismo. O capitalismo, especialmente onde ele interage com mercados de capital e de ações, demandam altas taxas de retorno. Mas toda a argumentação do livre-mercado é de “normalizar” a taxa de retorno pela competição livre. E com taxas normais de retorno, mercados livres simplesmente não tem como atrair o capital que mercados oligárquicos podem comandar. Isso significa que uma classe, operando dentro de oligarquias, pode conseguir uma taxa mais elevada de retorno, o que equivale a dizer que ela enriquece às custas de todos os outros. E isso leva ao problema da equidade.

O Erro sobre Equidade

“Equidade” não é um termo que a maioria dos economistas gostam de ouvir, despertando precisamente aquelas questões éticas e filosóficas que são antitéticas a suas posturas enquanto “cientistas”. Muitos economistas chegam ao ponto de propor que equidade e eficiência estão em uma relação de “perde-e-ganha”, ou seja, que uma economia pode ser justa ou eficiente, mas não pode ser os dois. Nessa perspectiva, justiça e ordem econômica são inimigos mortais. Mas o oposto é verdadeiro, e isto é evidente da própria natureza da oferta e da demanda.

Nós nos tornamos habituados a ver gráficos de tabela e demanda com linhas quase retas e um ponto de equilíbrio bastante organizado onde as duas variáveis independentes cruzam caminhos, um ponto que pode, em princípio, ser computado com um sistema de equações lineares. Mas o que o torna organizado também o torna um disparate. O ponto de equilíbrio – qualquer ponto de equilíbrio para qualquer gráfico sobre qualquer tema – representa um balanceamento de forças. Assim, quais são as forças envolvidas no equilíbrio econômico?

Os termos “oferta” e “demanda” são sinônimos de “produção” e “consumo”, e o gráfico começa com como as recompensas de produção são divididas entre produtores e consumidores. Os produtores devem produzir o suficiente para recompor seu capital e adquirir um sustento decente, ou haverá um problema de oferta, estagnação. Consumidores, por outro lado, devem recebe o suficiente para limpar os mercados, ou haverá um problema de demanda, recessão. Agora, o produtor que é capaz de suprimir salários, pela interferência em sindicatos, leis injustas, ou terceirização, de fato descobrirá que ele elevou seus lucros, sua fatia do resultado. Mas enquanto isso pode funcionar bem quando é apenas uma empresa que o faz, é morte econômica quando todas as empresas o fazem. Pois ao suprimir salários, também se suprime a demanda de mercado; trata-se da mesma coisa. Pois aqui nós encontramos uma verdade econômica imutável: A folha de salário de cada empresa é a curva de demanda de outra empresa.

Neste ponto, o economista neoclássico pode objetar que a divisão de recompensas não importa, já que haverá sempre a mesma quantidade de poder de compra na economia; mesmo que o capital receba mais e o trabalho menos, haverá ainda a mesma quantidade de dinheiro e, portanto, de poder de compra. Infelizmente, isso não é verdade; ricos e pobres possuem diferentes propensões marginais de gastar. O CEI pode receber 500 vezes mais o que o trabalhador de chão de fábrica recebe, mas ele não pode usar 500 vezes os sapatos, comer 500 vezes a comida, ou viver em uma mansão de 500 quartos. Tampouco pode ele investir produtivamente o excesso, porque o próprio fato de receber o excesso estreita o mercado, que é sempre mensurado pelo número de consumidores solventes naquele mercado. Daí, ao invés de investimento produtivo, o investidor não encontra uso produtivo para seu dinheiro e ele se volta, ao contrário, para instrumentos especulativos como os CDOs, MBSs, CDSs, e toda a sopa alfabética de apostas financeiras com as quais já nos tornamos familiarizados. Assim, tanto poder de compra como fundos de investimento escorrem da economia para produzir déficits estruturais. 

Ademais, há um problema na própria matemática dos organizadíssimos gráficos. Pois se oferta e demanda representam a divisão de recompensas, então elas não podem ser variáveis independentes, mas sim variáveis co-dependentes. E variáveis dependentes não podem ser solucionadas por equações lineares, mas apenas por equações diferenciais. E equações diferenciais não produzem as linhas retas e organizadas que estamos acostumados a ver, mas curvas complexas que não resultam nem no alcance de um ponto de equilíbrio, nem no de múltiplos pontos. Ademais, tais equações são altamente suscetíveis a “efeitos borboleta”, pelo que minúsculas mudanças nas variáveis levam a grandes mudanças nos resultados.

Quando uma economia não consegue alcançar equilíbrio pela equidade, ela se volta para meios não-econômicos para se balancear. O principal meio não-econômico de restaurar equilíbrio são crédito ao consumidor (isto é, usura) e gastos governamentais. Cada um desses métodos transfere poder de compra de um grupo, que possui um excesso, para outro, que possui um déficit.

O primeiro método envolve emprestar, não para aumentar produção, mas para expandir o consumo. Esta é a economia plástica, uma economia baseada em cartões de crédito. E na medida em que uma economia dependa de crédito ao consumidor, ela é, bem literalmente, um castelo de cartas, e será tão instável quanto aquelas estruturas usualmente são. Na verdade, a usura é a maneira mais destrutiva de aumentar demanda, já que um dólar emprestado usado para aumentar demanda hoje deve ser devolvido amanhã e, assim, diminui a demanda em um período futuro pelo mesmo dólar – mais juros, e usualmente uma taxa de juros devastadora. Isso demanda mais empréstimos, que obviamente só pioram o problema. Eventualmente, o sistema cai sob o próprio peso, na medida em que o crédito é estendido a um consumidor cada vez mais enfraquecido, resultando em uma crise de crédito.

O segundo método não-econômico é gasto governamental, pelo que o governo busca restabelecer condições de equilíbrio ou suplementando a renda de uma parte da população, ou simplesmente aumentando seus gastos para criar mais empregos e, assim, acrescentar mais poder de compra à economia. Essa estratégia está no coração da economia keynesiana; o governo se torna o consumidor de último recurso. Mas isso tem efeitos políticos e sociais perniciosos; quando o governo se torna o consumidor principal, a economia se adapta às coisas que este consumidor gosta de comprar. Geralmente, isso significa hardware militar, quanto mais caros melhor. Políticos parecem sempre concordar que precisamos de mais tanques, aviões e porta-aviões, o ápice das despesas gerais. E essa fascinação com militarismo se sustenta independentemente de quão triviais sejam as ameaças reais. O keynesianismo, atualmente o método padrão que os governos usam para equilibrar a demanda, tem estado geralmente associado com militarismo, o que é o oposto do que Keynes havia esperado.

Resumindo, questões de equidade e equilíbrio não podem ser divorciadas umas das outras, não podem ser postas em contradição umas com as outras; de fato, trata-se dos dois lados da mesma moeda econômica.

O Erro Grave sobre o Homem

Apesar de que os economistas tendem a se esquivar de discussões filosóficas, a verdade é que é simplesmente impossível raciocinar sobre ação humana sem uma teoria subjacente sobre o que é ser humano. Para a maioria dos economistas hoje, a filosofia subjacente é a do utilitarismo. Na base de toda a economia moderna jaz a pressuposição utilitária de que as pessoas sempre agem em seu próprio auto-interesse e que ao fazê-lo, elas inconscientemente criam uma ordem econômica e social que resulta no “maior bem para o maior número de pessoas”. Curvas de demanda, refletindo o auto-interesse de cada pessoa, se somam ao interesse total da sociedade e daí o bem comum. 

Há alguma plausibilidade aqui, no sentido de que as pessoas atuariam segundo seu auto-interesse, se elas tivessem alguma ideia do que isso é. A grande verdade sobre o auto-interesse é que ele não é algo sabido de antemão; é algo só descoberto pela experiência. Quem entre nós já não teve a experiência de conseguir precisamente o que se desejava, só para descobrir que não era aquilo que se queria? Ou de temer o pior, apenas para descobrir que tudo acabou resultando bem? O “auto-interesse” permanece sempre no futuro, aquele grande desconhecido. Daí, é a mais inútil entre todas as quantidades econômicas.

Curvas de demanda não são uma expressão de nosso auto-interesse coletivo, mas de nossos desejos coletivos. E enquanto pode haver uma certa plausibilidade em afirmar que o bem comum é apenas o somatório de bens privados (ainda que assim certamente se cometa a falácia da composição), não há cálculo moral possível que possa transformar desejos privados no bem público (irrespectivamente de Bernard de Mandeville). Ao confundir auto-interesse com desejo, os economistas cometem um erro infantil; isto é, um erro que todas as crianças cometem. Mas mesmo a mais petulante entre as crianças suspeita vagamente que sua mãe pode estar certa; que uma segunda taça de sorvete, ainda que desejável, pode não estar em seu melhor interesse, ou que correr na rua pode não conduzir à saúde e longevidade. Com o tempo e com uma educação adequada, uma criança aprende a disciplinar seus desejos; este é o processo de amadurecimento, de crescer. De fato, as crianças são utilitaristas naturais, razão pela qual elas reclamam tanto.

Em relação a desejos, as únicas coisas que podemos saber é o que desejamos e o que devemos desejar. Mas os economistas modernos tem medo dessa odiada palavra, dever. Mas sem um “dever”, não pode haver análise; os desejos estarão desordenados, e desejos desordenados levam a uma economia desordenada. Se as coisas que desejarmos forem desperdiçadoras, devastaremos o planeta; se ganância é nosso objetivo, criamos sistemas de opressão; se queremos riqueza sem trabalho, criamos sistemas de dívida que levam à falência. Desejos desordenados são sinal de imaturidade, seja para uma pessoa ou uma sociedade, e o utilitarismo é simplesmente imaturidade elevada ao nível de uma filosofia.

Mas o principal problema com o utilitarismo é que ele é uma filosofia da “utilidade” que não pode dizer nada sobre a razão pela qual as coisas nos são úteis; “O jogo do alfinete é tão bom quanto poesia”, diria Bentham, a brincadeira de criança vale tanto quanto a vocação do artista; não pode haver ordenamento de bens para além dos desejos pessoais, e a única função dos mercados é somar os desejos de maneira democrática, com base em “um homem, um voto” nos mercados políticos, e “um dólar, um voto” nos mercados de troca. Porém, sem maneira de ordenar nossos bens, é impossível dizer qual é o maior dos bens até mesmo para uma única pessoa, quanto mais para o maior número.

Mas na verdade nós podemos situar as fontes do desejo, a fonte da “utilidade”. Pois na verdade, a única razão pela qual algo nos é “útil” é o amor: compramos o CD porque amamos a música; compramos flores para ela porque a amamos; compramos comida porque amamos a nós mesmos. É o amor que organiza o bem, e daí é importante que o bem seja amado, e não só como uma questão moral, mas também por uma questão prática. Porque uma ciência das relações humanas que não seja capaz de descrever corretamente a ação humana, ou que nivela essa ação em um auto-interesse incognoscível, não será capaz de descrever adequadamente as relações humanas, muito menos as relações econômicas; ela não será ciência, mas ideologia.

O mais extremo dos utilitaristas, Ludwig von Mises, rejeitava a noção de que o amor pudesse ter algo a ver com a ordem econômica:

“Nem o amor, nem a caridade, nem quaisquer outros sentimentos simpáticos, mas o egoísmo corretamente compreendido é o que originalmente impeliu o homem a se ajustar às demandas da sociedade, a respeitar os direitos e liberdades de seu próximo e a substituir por colaboração pacífica a inimizade e o conflito”.2

E ele segue esclarecendo que não pode haver sentimento para além do egoísmo:

“O homem que dá esmolas às crianças famintas o faz, ou porque ele valoriza sua própria satisfação esperada dessa dádiva mais do que qualquer outra satisfação que ele poderia derivar por gastar essa quantidade de dinheiro, ou porque ele espera ser recompensado no além”.3

O que Mises não percebeu – e o que frequentemente esquecemos – e a habilidade divina que os homens tem de incluir o bem dos outros dentro da noção de seu próprio bem. O pai trabalha longas horas para cuidar de sua esposa e filhos porque ele é capaz de ver o respeito por si mesmo no bem daqueles que ele ama. Apesar de Mises estar certo em rejeitar o “altruísmo”, ele estava errado em equiparar o interesse próprio com o “egoísmo”. É o amor, e apenas o amor, que une os nossos interesses aos interesses dos nossos entes queridos. E quando enquanto cristãos nós refletimos que todos os homens são irmãos, que todos estão feitos na imagem de Deus e são merecedores de nosso amor, então anoção de um bem comum se torna intuitivamente óbvia. Mises rejeitava a noção de Deus, e daí foi forçado a rejeitar a noção de amor, de modo que a única coisa que sobra é o auto-interesse nu, o egoísmo puro. Mas na base do egoísmo, não podemos construir nem um reino pacífico, nem uma economia racional. 

Conclusão

Em tudo isso, eu não quero sugerir que não temos absolutamente nada a ganhar de nosso longo flerte com teorias econômicas utilitaristas. Afinal, os homens e mulheres que teorizam sobre esses temas são cientistas sérios que acrescentaram à soma total do conhecimento humano. Há-Joon Chang notou, ao revisar as 23 escolhas de pensamento econômico que ele identificou, que todas tem algo a contribuir. Em alguns casos, a análise keynesiana será melhor, e em outros, os austríacos podem ter a razão. Não obstante, permanece verdadeiro que não existe qualquer “teoria unificada” da economia. A “ciência” permanece naquele estado de caos e disputa que é típico de ciências jovens, e seu debate não se assemelha a nada além de argumentos entre ideólogos comprometidos que ainda não descobriram seu chão comum, o único chão sobre o qual suas disputas podem ser resolvidas.

Ao construirmos nosso caminho na direção desse chão comum, eu sugiro que temos que retornar ao fatídico ano de 1891. Naquele ano, Marshall publicou seus “Princípios de Economia” com um objetivo de estabelecer a profissão como uma ciência neutra. Mas em 6 meses o Papa Leão XIII publicou sua histórica encíclica, “Rerum Novarum”. Enquanto os cientistas celebravam a descoberta de um princípio “newtoniano”, um segundo o qual todos os preços, inclusive o preço do trabalho, poderiam ser resolvidos matematicamente, chega este sacerdote romano, sem conhecimento de economia, para insistir que deve haver justiça no salário. Certamente, suas palavras devem ter parecido escandalosas para alguns, ainda outra instância, como com Galileu, da Igreja interferindo em questões fora de sua competência. Ainda assim, eu diria que entre o reino da matemática e o da ética há um chão comum no qual não há apenas algum reles compromisso, mas uma maneira de ver que ambos são partes de uma mesma coisa, mas com perspectivas distintas.

Finalmente, eu concluo com o velho dito que afirma, “Se você deseja paz, você deve trabalhar pela justiça”. O equivalente econômico é, “se você deseja equilíbrio, você deve trabalhar por equidade”, pois equilíbrio é paz econômica e equidade é justiça econômica, e você nunca verá um sem o outro.