30/11/2017

Esteban Montenegro - Pampa e Estepe

por Esteban Montenegro



Comemorando o centenário da revolução russa fazemos esta contribuição ao diálogo dos povos, em face da visita de Aleksandr Dugin à Argentina.

I


Introdução



O Ano Novo do Espírito



Universalização e Filosofia da História


A tendência à unificação do globo terrestre acontece com a força de um destino. Todos sentimos, em um primeiro momento, que se trata do impulso com que a globalização liberal-capitalista atravessa a tudo. Mas o sentimento de todos, o sentido comum, nem sempre acerta. Apear desse processo ter hoje um signo negativo, isso não quer dizer que não se possa orientar seu rumo em outro sentido. Podemos ver então, neste momento crítico, uma oportunidade. Assim o fez Perón quando antecipou que o mundo caminhava rumo à universalização. Introduziu, assim, um conceito, que tentava compreender e oferecer uma orientação para o que estava no porvir. Não se resignava o General, pois não é indefectível que o mercado feche suas mãos sobre o planeta, se tivermos a inteligência e a força para disputar o rumo das grandes integrações entre povos e nações. Aqui tentaremos seguir a linha aberta por este conceito, o processo de universalização, abrindo perspectivas para o exercício de uma geopolítica consciente que responda aos desafios da hora, para que essa hora seja a hora dos povos. A existência de cada um deles depende em grande medida do que aconteça a nível global, de grandes linhas de ação que transcendem os centros de poder local. O maior grau de autonomia passará então por participar na tomada de decisões global da forma mais ativa possível. Só assim alcançará um povo a sua própria conservação.

Esta situação nos empurra ao reconhecimento mútuo. Mas longe disso pressupor outro chamado vazio à paz mundial, necessita tomar como base o conflito e a tensão. Não é esperável que este trânsito ao continentalismo e ao universalismo seja um longo período paulatino e harmonioso, sem tropeços, como pretendeu o mito do progresso no apogeu da modernidade. Ao contrário, a universalização se mostra para nós como profundamente conflituosa porque a própria história o é; ainda que isso não signifique que não alcance em algum momento um novo equilíbrio, e a isso deve apontar. Mas para alcançá-lo, deverá lutar e perseguir sua vocação - e assim a sua própria preservação e a do resto - antes que a paz. Porque o que está em jogo aqui é a própria sobrevivência de todos e cada um dos povos, ameaçada pelo atual rumo globalista. E não obstante, esta luta pela sobrevivência tampouco é uma luta agônica de todos contra todos, como imagina a modernidade liberal. Esta luta é, também, e fundamentalmente, uma luta pelo poder mundial, pelo sentido da história universal.


Este chamado pressupõe transbordar as velhas fronteiras políticas em busca de confederações de maior envergadora onde o poder comum ofereça resguardo e preservação das distintas instâncias que se oferecem como membros do todo. Instâncias que desprendidas deste destino comum, ficariam jogadas à rapina das multinacionais e do poder financeiro. Como vemos, há algo de paradoxal nisso. Os Estados-Nação são chamados a negarem a si próprios em prol da própria preservação dos povos que dizem representar. Este é um fato à margem de todo juízo de valor, desde o momento que, como bem expressou Amelia Podetti (2007) "qualquer decisão que se tome em qualquer lugar do planeta afeta à totalidade" (48). Se não perdemos de vista que Podetti era uma filósofa que ademais de nacional era hegeliana, devemos entender que na frase supracitada está pressuposto que a humanidade é a totalização sempre aberta. Isso significa que os povos lutam por fazer lugar nela, entendendo-a como acontecimento sempre retornante da história universal, ou como o Espírito na história (Hegel). Mas ademais pressupõe que, por sua vez, isso o farão encarnando eles próprios a humanidade para que ela fale através de si. Não há outra maneira. Cada povo está, pois, interpelado pela história a se tornar universal concreto, representante do autenticamente humano, se é que está à altura de abandonar a comodidade do fatalismo, da queixa e das lamentações. Quando um povo responde ao chamado da história, quer dizer, quando assume sua própria vocação humana, começa a ser protagonista da história universal e não mero objeto da mesma, afetado e preocupado por seus vaivéns.

Cabe assim afirmar que "neste processo de universalização necessariamente se enfrentam e entrecruzam projetos, linhas e tendências distintas, assume formas e direções distintas" (Podetti, 2007: 48-49). Isso quer dizer que a história está aberta ou, melhor dito, é essencialmente abertura para receber o chamado do próprio destino. Só por isso consiste em uma tarefa para os homens, tal como Heidegger intuiu. Graças a este caráter aberto e agonal são muitas as interpretações possíveis. O certo é que sem participar dessa guerra pelas interpretações do processo histórico resulta impossível poder ter um projeto para nosso futuro. O que quer dizer, que sem filosofia não há uma verdadeira alternativa a oferecer frente ao estabelecido. Caberia hoje, à luz do que foi dito, inverter a mais famosa das teses de Marx sobre Feuerbach em relação a que interpretar o mundo não implica transformar o mundo. Consideramos aqui que é impossível transformar o presente sem uma interpretação. E posto que sempre nos movemos em uma, é melhor ter trabalhado nela e a esclarecido se quisermos realmente vencer. Mais ainda, a interpretação por si só já é a metade da ação transformadora se ela for tomada como uma tarefa séria e profunda. O resto é energia e aço, que acompanha a atividade do Espírito, como signo de poder, ali onde verdadeiramente Ele está. O labor hermenêutico multiplica a potência dos canhões, pois faz uso de outras armas, mais sutis que convocam a matéria ao seu redor como uma armadura. Por isso, a filosofia, a teoria não acontece à margem da história quando é verdadeiramente tal; é parte integrante e fundamental da mesma; é o lavrado às vezes tortuoso de seu solo, que permite descobri-lo aberto para receber uma fecundação de sentido por parte dos que estão dispostos a verter seu sangue nela. Nessa transfiguração mística do virtualmente humano em avatar da história, em símbolo sagrado de entranhas terrenas e vergo sangrante, se dá a única figuração possível do acontecer mesmo do Ser.

Autointerpretação Existencial

"A autointerpretação do homem é um elemento essencial da situação. Frente ao problema da unidade do mundo - que é um problema da história universal - o mais frio calculador tampouco pode contar somente com os fatos nus, tomados em bruto. Ele tem que interpretá-los e sua interpretação é também um fator da história". (Carl Schmitt, 2012: 78)

Por que filosofia? Porque não se trata, em nenhum caso, de dar conta de todos e cada um dos fatos. Porque tampouco se trata de ordená-los e classificá-los. Só o pensamento filosófico se permite rebelar-se contra eles, transcendê-los em função de um sentido que se dirija ao essencial do que está em jogo. Não se trata de um problema teórico. O sentido em jogo, profundamente histórico, é um sentido para a vida. É o sentido mesmo da existência. A necessidade de compreender o presente, de compreender a história em seu devir, faz a forma em que nos resolvemos existencialmente. Sabemos com Heidegger que em toda interpretação - e ampliando poderíamos dizer, em toda concepção do mundo - compreendemos já de algum modo nossa própria existência. A forma em que vemos, interpretamos o mundo tem a ver radicalmente com o modo em que o habitamos e com o modo em que nos projetamos nele. Renunciar à compreensão neste sentido é somente outra forma de inserir-se no processo, mas como objeto; porque a história não é algo suspenso por cima do existente, com um rumo fixo de antemão. A história está fundada na abertura mesma da existência temporal e finita do homem à sua própria transcendência, na qual sua singularidade se sacrifica mediante uma decisão intransferível. Por ação ou por omissão vivemos um projeto que abarca aos outros, quer dizer, somos, queiramos ou não, seres históricos. Mas somente quando pensamos e fazemos realmente a época, somos na medma medida o universal concreto, somos o verdadeiramente humano. Aqui morre a cisão liberal entre vida privada e vida pública, quando entra em cena o homem total. Mas também a cisão quotidiana e socialmente determinada do tempo em passado, presente e futuro. Por isso mesmo os gestos históricos autênticos não perdem significação com a passagem do tempo em sua Verdade, porque o tempo só "passa" para o que ainda não se fez uno com ele. Ao contrário, os verdadeiros gestos radicais e absolutos dizem respeito ao essencial, à vida, não do indivíduo, mas do Espírito e por isso são tão universais como concretos, são o tempo do tempo.

Cada forma de existência que faça ancoragem em uma decisão essencial por assumir sua vocação histórica enquanto povo implica uma forma determinada de compreender o tempo histórico e de dar-se um ordenamento espacial. Nesse sentido, consideramos que não existe um espaço e um tempo absolutos, como acreditava Newton, onde se venham a assentar circunstancialmente estas ou aquelas coisas. O tempo e o espaço são modalidades do humano que acontecem sempre encarnadas pela vontade de um povo determinado. Mas o mais decisivo aqui é que só no terreno de uma lógica formal e abstrata se possa separar o universal do singular. Em cada caso já está em jogo dentro de nós mesmos a universalidade específica, o ser mesmo da humanidade como deve ser, como vocação, como chamado. Isso é importante porque o relativismo cultural é impotente - no mundo atual - frente ao problema da universalização, e tampouco uma realpolitik que grude o nariz aos fatos pode extrair da conjuntura mais do que termos mais favoráveis na vil negociação econômico-política. Cada povo é uma via de acesso à universalidade e, portanto, o verdadeiro humanismo não é senão a realização de cada povo e de cada homem em sua própria essência. Essência que nunca está dada como um objeto ancorado em um passado remoto, mas como compromisso de responder ao chamado singularíssimo do coração oculto da história: a eternidade.

A potência, a humanidade do homem é seu próprio ser possível. No essencial de suas possibilidades, no modo como dá a si mesmo a sua humanidade, cada projeto histórico é universalizável. Sobre esta base temos uma das interpretações possíveis do processo da história universal: como o desenvolvimento historicamente situado das potências mesmas do homem, que movido livremente pela transcendência, está chamado a recuperar para si sua existência íntegra das urgências e mesquinharias do inautêntico. Este é o projeto de um humanismo existencial da liberdade que retomamos de Carlos Astrada (1952), que soube tirar as devidas consequências revolucionárias da filosofia existencial alemã e chamar à realizar a revolução existencialista. A pergunta por nossa missão na encruzilhada histórica mundial é, pelo dito anteriormente, tarefa primeira do pensamento que é ação. Porque a verdade dessa interpretação não será verdadeira pela coerência lógica de seus enunciados, nem pela maneira em que reflita fatos empíricos, mas pela autenticidade e pela plena consciência com que conquiste para si o seu lugar na história. E nisso a ação não é um momento posterior, porque a Ideia não é já mero conceito, mas força e alento violento do Espírito.

Compreender o Inimigo Geopolítico-Existencial

Em seu texto A Unidade do Mundo Schmitt (1951) expressa a visão que a revolução conservadora se faz da unipolaridade, do processo que hoje chamamos globalização. Os irmãos Jünger, junto a Schmitt e ao próprio Heidegger viam o Ocidente marcado pelo destino planetário da técnica, pela centralização e unificação do poder em um mecanismo impessoal e totalitário. Fora da logística tecnificada do comércio internacional, os distintos entraves burocráticos apresentados pelos Estados parecem obstáculos do passado. Toda intenção de assinalar outro horizonte alternativo à acumulação capitalista parece impossível pela natureza totalitária da ordem global unipolar.

Desde a perspectiva dos povos a técnica se apresenta como imperativo de modernização, de desenvolvimento tecnológico e industrial, aos efeitos de garantir competitividade para a produção e para o trabalho nativo. Por dentro, a técnica opera perfurando formas de vida e produção tradicionais promovendo um tipo de vida orientada para a maximização do rendimento individual em termos de produção e gozo. Certa disputa superficial entre a URSS e os EUA por ver quem dava, em algum momento, mais comodidades ao povo responde a este mesmo sinal; ao destino planetário da técnica que se corresponde a nível social com a forma de vida das massas urbanas ocidentalizadas, que encontram no avanço tecnológico uma religião de substituição. Homem-massa e complexo técnico global, são fenômenos que se correspondem. Aqui vemos em um exemplo como uma problemática filosófico-histórica de alcance geopolítico implica um paradigma existencial próprio, o que é evidente.

Os autores conservadores alemães anteciparam com esta caracterização a naturalização do liberalismo, que passou de teoria e causa política a sentido comum de súbito. Confunde-se assim com a própria vida quotidiana dos habitantes das grandes cidades. Estes não poderiam viver nem se reproduzir sem as inúmeras necessidades fictícias que supostamente tornam a vida mais tolerável. Com convicção de fé acreditam que ajudam alguém se propiciam seu desenvolvimento. "Ninguém renunciaria ao avanço tecnológico por uma questão ideológica", diz a si mesmo o liberal contemporâneo. Considera, portanto, que seu modo de vida é o único concebível como desejável. Schmitt advertiu tudo isso poucos anos depois da Segunda Guerra Mundial (ainda que muito já venha esboçado pelo menos desde Catolicismo Romano e Forma Política). O inimigo geopolítico coincide ali com o inimigo político e com o inimigo existencial. Por essa razão conceitualizou naquele momento o trânsito rumo a um mundo multipolar e a possibilidade de um novo equilíbrio global como momento de transição, prévio à unidade do mundo que não considerava já decidida de antemão (recordemos que todavia a luta ideológica entre Ocidente e a URSS tampouco estava resolvida).

A atualização desse paradigma integral expressado na revolução conservadora alemã chega ao século XXI das mãos do filósofo vivo mais importante do momento: Aleksandr Dugin. Nele se faz carne a teorização de Carl Schmitt em relação ao quarto nomos da terra em uma Teoria do Mundo Multipolar. Sua militância ativa tão intelectual quanto político-estratégica em prol de plasmar sua visão cumpre um papel efetivo com a política externa russa. E esta política externa vem cumprindo um papel essencial na repartição do poder global, com saldo favorável para os povos do mundo, como rascunharemos mais adiante. Ainda assim expressa uma apropriação original da política existencial, depurada por sua recepção russa do tradicionalismo integral de Evola e Guénon. Quer dizer, a corrente filosófica-política existencialista de inspiração heideggeriana (e em boa medida, também hegeliana), de importante presença na Argentina, recebeu por parte de Dugin uma contribuição fundamental com a Quarta Teoria Política. Defende ali o distanciamento em relação às alternativas totalitárias ao liberalismo - comunismo e fascismo - superadas ambas pela história e, portanto, completamente ineficazes e condenáveis. Mas ao mesmo tempo chama a concentrar todas as forças e as ideias em dar luz a uma nova teoria política que se oponha ao liberalismo atualmente materializado na vida quotidiana dos indivíduos ocidentalizados do planeta inteiro. Neste sentido, a luta contra as três teorias políticas clássicas da modernidade implica uma desconstrução de seus respectivos círculos hermenêuticos. Uma vez rechaçadas enquanto conjuntos cada uma delas, seus distintos componentes podem adquirur uma nova significação à luz da nascente Quarta Teoria Política. Assim, concebe que esta teoria política está tão aberta quanto a história, para receber por parte dos distintos povos seu conteúdo específico, longe de qualquer imposição unilateral de conceitos abstratamente universais. A isso apontamos aqui. Alheio a qualquer dogmatismo, o filósofo conservador é o mais original e criativo dos últimos tempos. Como este embaralhar e redistribuir Dugin abre um marco epistêmico de alcance revolucionário e traça qual símbolo arcano a runa da nova aurora à qual estamos cominados a saudar. Sem medo de nos equivocarmos, podemos dizer que temos em Dugin e em Putin o Aristóteles e o Alexandre da nova hora humana e na causa eurasiática a causa do mundo inteiro.

Se algo podemos acrescentar aqui, a partir do espírito historicista e universalista da filosofia de nossa América ao novo ecumenismo - em sentido positivo - que inaugura o pensador russo, é reconsiderar o sentido do universal. E fazê-lo por fora de sua contraposição com o particular e próprio de cada povo, que é como o entende o falso internacionalismo ocidentalista que não é mais que um projeto colonialista bem concreto. Se a Europa foi a aurora da universalidade e da ciência, podemos dizer que a única distância entre América e Europa, é a mesma que entre Rússia e Europa: o oceano atlantista. Mas a Europa autêntica não é mais que ruínas gregas, romanas e germânicas, segundo o caso. Ruínas onde o Espírito clama por se reintegar na diferença de duas novas civilizações chamadas a guardar a tocha da universalização: Eurásia e América Ibérica são os novos grandes espaços chamados a dar resguardo e relevo às conquistas culturais do mundo indo-europeu. Cada repetição do legado grego é, assim, uma nova diferença, a segunda é Roma, o mundo latino; a terceira é Germânia, o mundo faustiano. Por último, a quarta, coincidente com o Quarto Nomos da Terra é a eslava, eco distante de Bizâncio; e fica por ver se estamos à altura de que este quarto momento seja também iberoamericano. Só apropriando-se dessas raízes espirituais comuns poderão estes dois grandes espaços configurar uma verdadeira alternativa à hegemonia globalista do neoliberalismo, recuperando na ordem simbólica o europeu enquanto centro extático e fundamento comum. Em suma, isso se trata de uma forma de preservar a identidade na diferença e a diferença na identidade e, mesmo assim, de responder à pergunta reitora da filosofia política nietzscheana: quem será o dominador do mundo? Com um sim cego e entusiasmado; com uma resposta de aço a partir do Sul e do Leste, desde as entranhas mais profundas dos dois grandes espaços telúricos, seremos capazes de reconduzir o extravio ocidental à sua fonte essencial em um novo início, em uma nova girada da roda cósmica, em um Ano Novo sagrado.

II


Rússia como Acontecimento da História Universal



O Fenômeno Russo


O século XXI assiste em sua segunda década a uma crescente consolidação da multipolaridade nas relações internacionais. Dentro do novo panorama da repartição de poder global, o papel protagônico no novo equilíbrio tem pertencido à Rússia com seu papel ativo no teatro de operações bélico do Oriente Médio. Deixou assim para trás a passividade com que em um primeiro momento assistiu à suposta "guerra contra o terror" dos EUA em suas distintas etapas (Afeganistão, Iraque, Líbia). Ademais, ao redor do golpe de Estado pró-ocidental ocorrido na Ucrânia em 2014, curiosa entente de serviços de inteligência europeus, liberais e neonazis, a posição rígida e ativa no que concerne a recuperação da Crimeia impulsionou a liderança de Putin entre os russos mais além das fronteiras. É que as fronteiras políticas formais de um Estado autônomo raramente correspondem às verdadeiras fronteiras geopolíticas, que chegam tão longe quanto chegue a unidade do povo ao redor de sua tradição e da consciência estratégia de seus dirigentes. Nesse sentido, os países com uma política externa firme são aqueles que reafirmam cada um desses elementos de maneira repetida em um exercício permanente. Tal como pensava Aristóteles o caráter é fruto do exercício efetivo de virtudes ou vícios. A Rússia neste sentido chegou a ser o que é pela tenacidade com que agarrou seu próprio destino, do que são manifestação exterior seus signos de poder. Na base dos mesmos não há outra coisa além da fortaleza e vontade de seu povo. Graças à iteração de sua essência, que persegue a si mesma através dos esforços criadores de seus poetas, seus filósofos, seus místicos, seus esportistas e seus técnicos, a Rússia não só recuperou sua influência principalmente no velho espaço de influência soviética como inclusive se projeta como um fantasma por trás de todas as grandes crises políticas ocidentais. Um sintoma. A acusação de receber financiamento ou apoio logístico de hackers russos recai sobre todas as forças populistas de esquerda ou direita que tenham ou possam ter ameaçado o establishment político. Que nos EUA se tenha acusado Putin de ter falsificado os resultados de uma eleição mostra que o tigre da modernidade está ferido e cansado. No Ocidente se agita, então, em vão, o regresso da Guerra Fria e dos apetites imperialistas russos. Tanto pela direita como pela esquerda, civilizados de todas as cores sentem o espreitar de uma nova invasão bárbara, que fecha seu punho sobre os direitos civis e a tolerância do indivíduo. Mas isso não é mais que a sempre renovada propaganda liberal. Apesar dela, em poucos anos no que concerne os grandes processos históricos, a Rússia recuperou a sua aura de poder, mistério e suspeita que invoca seu nome no resto do mundo. É o anúncio de que a revolução russa, 100 anos depois, não só vinha de longe, mas acabou de começar.

O Renascimento do Mito

"A Rússia é algo mais do que uma categoria geogr´fica ou nacional; é o grande mito que fecundou a alma dos povos e a consciência de cada homem". (Carlos Astrada, 1921)

Assim saudava nosso filósofo nacional a alvorada da revolução russa em seus anos de mocidade, condenando o materialismo inglês dos que viajavam à Rússia, como Bertrand Russel e H.G. Wells, para comprovar como observadores imparciais se o mito correspondia com a realidade, se na Rússia reinava o bem-estar, se a revolta havia tradizo benefícios para os homens. Mas para Astrada, "a Rússia não é bem-estar, mas tragédia e luta heroica", é a aventura de um ideal que marca uma descontinuidade na história e, portanto, "não se ajusta com o dogma putrefato do evolucionismo" nem com as aspirações hedonistas. Com assombro assistem pois as almas belas do socialismo europeu ao fato de que não existia nem rastro do "sufrágio universal", "parlamento" e toda a parafernália institucional da "superstição democrática"; em seu lugar, diz Astrada, se encontraram com que impera "férrea e eficaz a ditadura de Lênin, do reformador inspirado, do místico do Kremlin" (Idem).

O filósofo argentino não parecia preocupado, em suma, por nenhum dos indicadores progressistas com os quais a civilização ocidental moderna avalia a realidade para julgar conveniente ou inconveniente a assunção de um ideal, de uma verdade. Carlos Astrada não tremia perante o suposto ateísmo vermelho, nem perante a ameaça à propriedade privada; nem mesmo se deteve na fachada externa da ideologia que professava o novo Estado soviético, o marxismo, nem se perguntou pela adequação de suas instituições, nem pela justiça de seus primeiros atos de governo. Carlos Astrada viu como ninguém o mito russo em ação, fecundando a missão histórica de uma humanidade nova e deu a ele a saudação saturada de ímpeto báquico e sonhos apolíneos. Nele se expressou então, ademais, o humanismo historicista tão próprio da América Hispânica, herdeiro de Herder, Hegel e Vico; cuja essência oculta permanece todavia subtraída a olhos profanos e iluministas, à espera de um novo broto que se nutra de sua seiva.

No encerramento de seu canto encontramos uma clareza espantosa, alheia ao tom comedido e pacato que caracteriza as opiniões civilizadas da filosofia profissional. Possuído de um extravagante fervor esotérico põe o grito nos céus com estas palavras:

"A Rússia não é aquilo que querem que seja os crentes nessa civilização material que entra pelos olhos. A Rússia, ao contrário, é um mito criador da História; é o mito que fecundou a consciência do mundo, essa consciência que jazia sepultada sob os escombros de valores inumanos. A partir dela nos chega como uma ressonância de lenda a voz de seus profetas máximos: Dostoievski, Tolstoi, Gorki, Lênin, Lunatcharsky - voz que diz o evangelho eterno do Homem.

O mito surgiu e a partir da estepe chega reconfortante uma aura humanista que rejuvenesce a velha vida".


A Face Dupla da Revolução Russa? Ou a Máscara que Exterioriza a Diferença?


O entusiasmo de Carlos Astrada não se deteve diante de nada, porque sabe que a paixão é que move a história e sacode as cristalizações fixas que asfixiam a liberdade criadora dos povos. O mesmo opinava o eurasianista Lev Gumilev. Mas até onde sabemos os primeiros eurasianistas viam, em boa medida, o fenômeno a partir de fora e não interpelavam sua paixão com a paixão. Não encarnavam a dimensão do mito vivente, do sagrado, ainda que bem pudessem ser representantes fieis de uma tradição. Por essa razão viam em lugar de apenas o mito na terra, um fenômeno duplo e ambíguo que gerava tanta simpatia como rechaço. Emigrados de sua terra, recebiam os envios telúricos dessa que com a força do símbolo os perseguia e os atava ao destino de seu povo. Mas Astrada não fez uma análise nem uma descrição, repetiu, por sua vez, o caráter religioso do bolchevismo que Lev Karsavin reconhecia como uma loucura característica do povo russo. Se deixou levar por ele, convencido como dizia Sócrates no Fedro de que "os maiores entre os bens nos chegam por intermédio da loucura, que se concede por um dom divino". Segundo Berdyaev (1997), outro eurasianista, "na cultura russa sempre dominou, e ainda permanece, o elemento dionisíaco e extático. Quando a revolução russa se encontrava em seu apogeu teve ocasião de dizer a um polaco: 'Dionísio passou pela terra russa'." (220) Por isso, na paixão, o argentino parece ter ido mais longe que os nacional-bolcheviques alemães ou russos e que os próprios eurasianistas, todavia demasiado lúcidos. Razão pela qual podemos reconhecer nele o nacional-bolchevique mais autêntico de todos, pois no transbordar de seu pathos já se perdem até os rastros do elemento nacional e do elemento bolchevique em uma maré de um elemento difícil de reconhecer sob os parâmetros da filosofia política moderna. A natureza ama se ocultar. Neste canto de Astrada se cifra um enigma não revelado que apesar de não se mostrar assinala sua proveniência transcendente. Por isso, ainda assistimos absortos a seu entusiasmo, que está longe de ser mera retórica, e o qual para se desvelar demanda uma imitatio de igual porte sacro. Terá Astrada ido mais longe que os próprios russos em sua repetição do acontecimento sagrado da revolução ou é apenas nossa loucura que nos empurra a dizê-lo? Na repetição ritual do mito russo, a palavra poética do cordobês convida os homens a se deixarem arrastar pelo maremoto da "inquietude criadora", inquietude do Espírito, que anos depois dirá permitiu aos russos "decantar em seus próprios copos as essências clássicas e impor nelas o selo e estilo de uma cultura original" (Astrada 1945, 152).

Uma vez capturada pela palavra, a dimensão mítica do acontecimento cridor, este mostra que sua unidade se subtrai ao homem profano, para o qual não resta mais que divinizar-se ele mesmo repetindo-o e neste sentido, diferindo infinitamente do original primeiro. Mas os tempos do Espírito não são os dos homens, que prontamente se perdem na análise da concreção objetiva do acontecimento. Nessa tarefa, não obstante, não deixa de ser útil encontrar que o conhecimento filosófico-histórico sério lança luz sobre importantes aspectos da irrupção histórica do mito. Este mostra em sua base uma tensão fundamental e constitutiva. Por trás dos iniciados, arrebatados de ímpeto inumano, vem pois os pensadores de alcance ecumênico - contagiados pelo próprio Espírito - para tentar retirar os homens da caverna onde todas as coisas parecem exteriores umas das outras. Tal foi o labor de Oswald Spengler, autor de A Decadência do Ocidente, quando em 1922 ofereceu uma conferência diante de um grupo de empresários industriais alemães chamada As Duas Faces da Rússia. Contra o que se podia esperar, este representante dos círculos dos jovens conservadores e amigo da burguesia alemã manifestou que o fenômeno da revolução russa albergou em seu seio dois elementos contrapostos, em guerra tanto como em unidade. "Um desses foi o antigo impulso instintivo, difuso inconsciente e subliminar que está presente na alma de cada russo, independentemente de quão ocidentalizada possa estar sua vida consciente"; sobreposto a ele se dava a orientação oficial da política externa russa, prolongação das pretensões fundacionais de Pedro o Grande de estar à altura das grandes potências europeias em termos de poder e de imagem, disputando o sentido das ideias estrangeiras. Este aspecto exterior dá conta de uma admiração tanto como uma animadversão e uma competição com a Europa, com o efeito de a Rússia se constituir também como um Estado moderno mais em igualdade de direitos com os demais e inclusive mais avançado.

Vemos assim que Spengler advertiu não só a alma russa, mas também seu impulso e propulsão histórica de grande estilo, que em um primeiro momento se quis refletida na Europa, partindo de uma imitação vulgar até chegar à proposta do socialismo em um só país e o chamado à grande guerra pátria com que a diferença começou a se exteriorizar à margem da pretensão de seguir todas as regras do jogo civilizado europeu. É isso que Dugin chamou de modernização sem ocidentalização ou modernização defensiva e que seria a fórmula adequada para interpretar as formas institucionais e ideológicas com as quais a Rússia, para se realizar, tentou imitar em princípio o destino da Europa. Nelas, a medida que se concretizavam aflorava uma pobreza constitutiva que as distanciava da repetição ansiada do europeu. Foi justamente nessa pobreza de sua repetição que a Rússia descobriu a si mesma. A modernização russa não acontece senão como defeito e diferença em relação aos parâmetros ocidentais. O fantasma da barbárie que o moderno chama a exorcizar, retorna sempre em cada tentativa de retirá-lo de cima. Quando a Rússia tentou se concentrar nesse outro que retorna em todo projeto desenvolvimentista moderno em que se embarca, encontrou em si mesma uma fortaleza interior indestrutível. Como diz Heidegger em algum lugar, com clara inspiração hegeliana: no começo, o espírito não está em casa, não está na fonte. Tanto é assim que a Rússia adquiriu autoconsciência cabal das mãos de um grupo de emigrados.

O Eurasianismo como Autoconsciência do Povo Russo

Os primeiros eurasianistas russos tiveram uma leitura semelhante à de Spengler. Neles, por outra parte, a Ideia russa alcançou pela primeira vez sua própria autoconsciência. No exílio, constrangidos pela nostalgia da origem e pelas luzes agoniantes das urbes europeias, estes pensadores e intelectuais tramaram a consciência do povo eslavo para sempre. Transbordaram assim o mero rechaço instintivo ao mundo e formas de vida ocidentais que sustentavam os eslavófilos do século XIX e deram palavra à própria especificidade que o caracteriza. A dimensão da tarefa que estes homens fizeram por seu povo chega até nossos dias e entronca com o próprio sentido do fenômeno russo tal como o encontramos hoje. Segundo o testemunho de Aleksandr Dugin (2014) os eurasianistas "assentaram as bases" da filosofia política russa (31).

A pergunta fundamental que os guiou foi a mesma com a qual se abrem os Cadernos Negros de Heidegger: quem somos nós? No intento titânico de responder pelo povo russo eles identificaram pois: a) em primeiro lugar, uma origem étnica múltipla de forte marca asiática: túrquicos, eslávicos, mongoloides; b) em segundo lugar, uma forte unidade e continuidade do território eurasiático em sua totalidade, a um lado e ao outro dos Urais, com extático coração de estepe; c) em terceiro lugar, a reabilitação de Gengis Khan visto como encarnação de um princípio dinâmico, móvel, aristocrático e nômade contraposto ao servilismo sedentário como forma política própria dessa terra; quer dizer, encarnando o segredo da estepe. Quem domina a estepe, domina o espaço eurasiático e quem domina este espaço, domina o mundo; d) em quarto lugar, o princípio espiritual do povo russo foi identificado no sul, em Bizâncio, com o credo ortodoxo que se sabe herdeiro de Roma em via direta. Este credo se opõe com um gesto de soberania nacional e espírito ecumênico ao internacionalismo latino e burocrático das igrejas cristãs ocidentais.

De tudo isso os eurasianistas tiraram a conclusão de que a Rússia não é um país, nem mesmo um Estado, mas fundamentalmente um tipo histórico-cultural peculiar, uma civilização que responde a uma lógica distinta da que segue a Europa ocidental moderna e que se sintetiza na fórmula que Dostoievski põe na boca de um dos personagens de O Idiota: "quem renunciou a sua terra também renunciou a seu Deus" (Dugin 2014, p. 34).

O Comunismo do Espírito: A Luz de Hagia Sophia

"Aquilo que hoje, com visão estreita e um pensamento limitado, se considera como 'político' e até grosseiramente político - o que chamam comunismo russo - provém de um mundo espiritual do qual não sabemos quase nada (...) o próprio materialismo grosseiro, a simples fachada do comunismo, não é nada 'material' mas uma coisa 'espiritual', e um mundo espiritual do qual não se pode ter a experiência nem decidir sobre sua verdade ou sua não-verdade, se não for no espírito e a partir do espírito" (Heidegger 2006, 97-99)

Com a Rússia reintegrada em si mesma, consciente de sua especificidade, devemos pois remontar o problema filosófico-histórico de sua identidade a uma nova contraposição com a Europa. E assim aconteceu no contexto da Segunda Guerra Mundial, quando Stálin encarnou a Ideia russa com a brutalidade de todo poder histórico, tirando de cima os elementos internacionalistas e cosmopolitas do trotskismo, que nasceram impotentes e assim continuam todavia, gravitando ao redor da partitura democrática qual castrati sem vocação sinfônica. Mas o famoso picador de gelo foi a menos cruel dessas exteriorizações violentas da alma russa. Quiçá em sua vocação de exagerar, o novo Czar, inspirado pelo fervor místico da adquirida autoconsciência russa, foi mais longe que o necessário. Não cabem dúvidas de que seu excesso redundou em benefício do povo russo ao enfrentar nada mais, nada menos que as SS de Hitler, não menos inspirada por visões terríveis de uma Ideia de autoafirmação e domínio. Os expurgos stalinistas não são nada ao lado da desolação e da destruição que semearam as hordas soviéticas quando violaram a integridade da Europa até seu centro, desatando um verdadeiro inferno na terra. Como vencer o regueiro de morte que semeavam os Einsatzgruppen se não com uma morte maior? A guerra é terrível e o sofrimento, incalculável. Mas ambos são a própria essência do devir histórico tal como o via Walter Benjamin, o Anjo da Destruição.

Diante de tamanho espetáculo, impossível de voltar a representar, surpreende a meditação heideggeriana, tão distanciada da denúncia moral e do ressentimento nacionalista que ainda impede que muitos vizinhos da Rússia se abram à compreensão. Sob o título de A Pobreza, Heidegger oficiou no ano de 1945 um breve sermão em um castelo alemão onde funcionava neste então a Universidade. Enquanto isso o Leste alemão que Spengler havia querido resguardar mediante um entendimento com a Rússia, havia caído sob as botas nevadas de seus soldados, provocados pela estupidez da Operação Barbarossa. Heidegger leu em tal ocasião uma homilia de seu peculiar credo poético, onde saudava os eventos acontecidos como envios do próprio Espírito, enfiava sem sutilezas, mas com o maior dos estilos - o trágico - os destinos de ambos os povos. Aquilo que se voltava sobre a Alemanha não era outra coisa que o fervor visionário de seus místicos, a luz de Hagia Sophia que na Alemanha havia iluminado nas mãos do sapateiro Jacob Böhme e ao qual a Rússia havia sido especialmente receptiva. Por intermédio dessas mediações os velhos ventos gregos ainda sobrevoavam a dura visita russa aos bosques. A pegada sangrenta do passo das estepes viria a devolver assim, em 1945, como seu fruto mais estimado, o mistério da pobreza essencial, a doutrina sagrada do comunismo do espírito que havia esgrimido a letra sagrada de Hölderlin:

"O ser-pobre, enquanto não-carecer-de-nada, salvo do não-necessário, é em si também o ser-rico (...) A pobreza é o tom fundamental da essência ainda silenciada dos povos ocidentais e de seu destino (...) No ser-pobre o comunismo não é nem evitado, nem eludido, mas superado em sua essência. Somente assim somos capazes de dar um fim a ele verdadeiramente" (Heidegger 2006, 115-117).

Este era o segredo que permitia para Heidegger superar o comunismo realmente existente, que penetrou na metade da Europa de forma traumática. Ainda que não menos suave foi para os próprios russos. Mas o que o gesto de Heidegger habilita a nosso entender é a recepção dialógica da história, de povo a povo. Porque o destino do Ocidente e da técnica, como Heidegger pensava, já nã oera só um problema para a identidade dos russos, nem tampouco unicamente para a dos alemães. O Ocidente em seu início por retomar vem a ser para Heidegger o anúncio da hora dos povos (lit. Jahre des Völkers, anos dos povos) que teriam de - retrocedendo sobre sua própria essência - descobrir em seu interior o diálogo com que o próprio Espírito tece seu destino com os demais. Só partindo desde esse espaço hermenêutico habilitado pela voz de místicos e poetas se poderia superar alguma vez a essência da técnica. Hoje, que o neoliberalismo condena à miséria e à fome milhões de seres e ameaça sempre com novos ajustes, a palavra de Heidegger tem mais vigência do que nunca. Em lugar de reclamar ao inimigo que ele não nos torna ricos, ou que nos torna pobres, deveríamos assinalar que ele nos oculta a essência da verdadeira riqueza que é justamente a de poder prescindir de todo o supérfluo. O liberalismo ganha a batalha decisiva, a existencial, ali onde cremos que da pobreza há que fugir como se de uma peste se tratasse e que o nível de vida que ostentam as grandes urbes ocidentais é a forma de vida mais desejável de todas. Se bem a grande narrativa do progresso histórico desapareceu, o neoliberalismo finca pé em uma micronarrativa onde a lógica do desenvolvimento e do progresso se impõe como o sentido mesmo com que o indivíduo se valoriza na medida em que cresce o gozo que faça das mercadorias. Em suma, deve estar completamente alienado na realidade consensual do das Man, e seu mandato: "você tem que aproveitar". Ou, segundo prega uma octogenária apresentadora televisiva argentina, que não esconde seu liberalismo recalcitante ("como te veem, te tratam"). Assim fala o inimigo, sua linguagem interior é a da heteronomia e da inautenticidade.

III

Panorama Ontológico da Humanidade Telúrica

O Numen da Paisagem: Potência e Destino

"A religião da terra é também muito intensa no povo russo, é algo que se oculta nas profundezas da alma russa. A Terra é vista como a última intercessora, e sua categoria mais importante é a maternidade" (Berdyaev)

Se prestamos atenção em tudo a que aludimos, vemos que a gravitação telúrica do solo é determinante para a alma do povo russo. A origem étnica é diversa, não obstante o modo de vida dos distintos povos das estepes é um diálogo em que a estepe, único interlocutor permanente do grande espaço eurasiático, é quem toma as rédeas. Por isso, o único centro do deslocamento nomádico é a estepe, não como chão delimitado do lar (genius loci; домовoй; Heimat) mas como planície infinita que se funde no horizonte com o céu e que como recorda Astrada, no dizer de Rilke, "limita com Deus" (Astrada 1945, 152). Isso é assim porque a planície é plana somente se a consideramos em abstrato. Se a vemos da perspectiva situada do homem, a terra e o céu se amarram no horizonte, como os dois lados de uma mesma flecha.

Não outro é o aspecto ontológico do pampa, tal qual Astrada o expõe em O Mito Gaúcho. Sobre seu solo o homem é duplamente excêntrico, pois sua existência se perde, melancólica, na distância. Nessa dificuldade para se reintegrar e encontrar seu centro, o homem vaga exposto à inquisição dos elementos da natureza, que imprimem em seu ânimo o caráter trágico que cantarão suas canções. Como acabamos de dizer, aqui o plano horizontal é tão infinito que se confunde com a verticalidade da transcendência, razão que, afirma Astrada, faz do pampa a estrutura ontológica do homem argentino. Sua realidade é o pampa. Ela configura humor anímico. Frente a ela toda concreção, toda essência, toda categoria parece inessencial, e o homem não parece preocupado por criá-las, a não ser que estas brotem naturalmente de seu canto, que é o canto do próprio pampa. Canto fundador que não aponta para estabelecer uma metafísica, mas para dizer um sim trágico - às vezes fatalista - para sua circunstância. Resulta assombroso notar a semelhança desse aporte de Carlos Astrada com o eruasianismo russo. Compare-se com estas palavras de Berdyaev: "há uma correspondência entre o imenso, o infinito, o limitado da terra e da alma russas, entre a geografia física e a espiritual. A alma russa possui a mesma imensidão, a mesma ausência de limites, a mesma aspiração ao infinito que a planície russa. Como consequência disso, o povo russo teve dificuldades para dominar este vasto espaço e organizá-lo". 

Sem dúvida assistimos nessa tomada de consciência ao destino da humanidade telúrica, que sacode de si uma modernidade que em relação a sua existência não é mais que uma superestrutura artificial. Ambas estão chamadas a acolher em si mesmas a humanitas. Como ressalta Carlos Astrada, ambas culturas superaram o zelo com que os povos europeus se preservavam do outro. A realidade do pampa e da estepe são tão forte que ninguém pode ocupá-la sem ser assaltado e ocupado por ela. Nessa capacidade telúrica de absorção e assimilação "está quiçá a raiz da aptidão do argentino para compreender outras culturas, para penetrar em outras formas de vida. Ninguém mais apto e disposto para transmigrar compreensivamente através de culturas estranhas, de outros destinos anímicos, que o argentino, e também o russo, almas das estepes em eterna peregrinação além dos últimos limites da própria alma; mas onde quer que eles vão os segue, como fantasmas subjacentes a seu ser, o pampa, para um, e a estepe, para o outro" (Astrada 1948, 16).

Isso foi conceitualizado entre os primeiros eurasianistas por Gumilev e Savitsky, que assinalavam como um fator decisivo para a etnogênese o substrato telúrico, cunhando o conceito de lugar como deslocamento (месторазвитие) que sustenta que "o lugar leva em si mesmo a essência do que se desenvolveu, do que se desenvolve ali ou vai se desenvolver no futuro" (Dugin 2014, 40). Ideia de profundas reverberações na primeira camada da geopolítica alemã, que considerou o espaço como destino para um povo histórico. Ambos aspectos ressoam também em uma obra posterior do autor argentino em Terra e Figura de 1963. Ali sustenta, por um lado, que o numen da paisagem evoca "aos seres que o habitam ou habitaram; [enquanto que] estes - principalmente, o homem que o sugere e até o transmite em sua estampa pessoal e em seu estilo de vida - evocam sua paisagem inteira" (13); e, pelo outro, apropriando-se de um conceito de Hans Freyer, considera que o pampa é o âmbito de destino da humanidade argentina. "Sem o imponente bloco andino e o mar terroso da extensão unindo-se à líquida pampa atlântida não é possível dilucidar enraizadamente o sentido dos empreendimentos da humanidade argentina" (Idem, 10).

Cabe a nós aqui precisar que um lugar que contém potencialmente o sido como semente de todo porvir e um lugar como destino, pode soar contraditório para a lógica bivalente ocidental. Não é acaso o destino algo que acontece mais além do indivíduo e que se impõe a ele como algo arbitrário e alheio a suas possibilidades? Não cabe, ademais, ler ambas acepções de lugar com um sentido igualmente determinista, contraditório com qualquer ideia de liberdade?

A Liberdade Correspondida: Vontade de (Eterno) Retorno

"Com base na teoria liberal de que o homem é livre, se depreende que ele sempre pode dizer 'não' a quem seja. Isso, de fato, constitui o momento mais perigoso da filosofia da liberdade, que sob a égide da liberdade absoluta começa a retirar a liberdade de dizer 'não' à liberdade mesma" (Dugin 2014, 109)

O que a ideia de lugar como destino e de lugar como potencial de desdobramento afeta em sua liberdade é unicamente ao indivíduo, abstração sobre a qual o liberalismo constroi suas instituições como castelos no ar. É este elemento aéreo e vaporoso, substancialidade esquiva do elemento puramente intelectual, a quintessência da subjetividade carente de raízes da modernidade ocidental. Definitivamente é uma pura negatividade simples e nesse sentido sua vontade equivale a resignar todos os laços que sente como amarras e cadeias que coercionam sua singularidade. Tal é assim que para o liberal, o indivíduo nunca está suficientemente liberado. E que a palavra "liberação" é, contra o que usualmente se crê, profundamente reacionária. Fora de sua contraposição negativa a todo passado, a toda história ou a toda opressão - a que se situa sempre vindo de fora - o indivíduo abstrato não tem direção alguma, e ainda assim crê estar fazendo algo quando persegue sua identidade na negação do outro moralmente mau. Sua vontade, sua lei individual é um mero capricho de autosubtração. Quer dizer que foge de todo fim que possa lhe propor metas, sacrifícios e transcendência, de toda liberdade autêntica, com conteúdo, de todo "para que". Posto que não admite nenhuma lei por cima dele que possa dar sentido a seu próprio ser, seu livre arbítrio não produz mais que vazio e tédio, repetição do sintoma que o constitui, em suma alienação autodestrutiva, vício. Pelo contrário,

"O telúrico...vem determinando desde seu humus originário o homem em seu ser e seus empreendimentos...a cultura quechua...concebe e define [o homem] como 'terra que anda' ou 'terra animada'. Ninguém pode ser algo a partir do topos uranos. Se é sempre a partir de sua terra, seu tempo e sua paisagem historizada" (Carlos Astrada 1963, 10).

Desde uma perspectiva telúrica como a que aqui propomos e que acreditamos deve ser a base comum sobre a qual propor um horizonte de coordenação existencial e estratégica entre a Rússia e nossa América - grandes espaços continentais os dois - a liberdade individual, a liberdade como exceção a toda lei da terra, seja a de um Deus, a de um povo ou de um homem é uma liberdade meramente negativa, posto que só se sustenta na negação do herdado, de toda determinação e de toda identidade, seja própria ou alheia. Contra o que pretende o discurso racista do progressismo, a abertura ao Outro só é possível reconhecendo que cada um tem seu lugar e portanto, aceitando as diferenças realmente existentes. Se suprimimos todo direito à autodeterminação, que pressupõe, como o próprio termo indica, uma autopreservação na diferença específica que nos fazer ser o que somos e não outra coisa, se liquefazem uns e outros povos na massa informe do mercado capitalista, única verdade concreta por trás dos direitos humanos abstratos. É fácil ver que por trás dos anátemas morais que se lançam contra os povos que preservam a si mesmos não vem outra coisa que o reforço da nova ordem mundial unipolar liberal com suas instituições e suas lógicas decadentes.

Então, qual é o nomos da terra, a lei da terra? Claramente é a gravitação que encarna todo ideal na energia, o alento que o impulsiona em sua realização, a matriz de todo o possível: que como Heidegger bem esclarece, é o ser. Nada vem do próprio nada daí o sentido da tradição, bem entendida. Não entendemos por possível, então, qualquer coisa imaginável. Antes o verdadeiramente possível corresponde sempre ao solo fático da existência que abre ou oculta seu espaço em maior ou menor medida para o que advém. Nem tudo é possível. Nesse sentido, a existência, abandonada como está à sua circunstância delimitada histórica e espiritualmente, não pode fazer outra coisa que corresponder à possibilidade mais própria de seu âmbito de destino - o solo - ou bem escolher o caminho da deserção e da impersonalidade. A personalidade, justamente, a possibilidade mais própria do existente do caso não é algo individual, é uma configuração determinada pelas possibilidades do próprio lugar que se ocupa, o  do ser, o Dasein, no qual retornam herois tutelares e cantos triunfais, o mistério e o assombro que causa a própria existência histórica: a interrogação mais inicial que tem peso de mandato. Na boca do Pai da Pátria: Serás o que devas ser ou não serás nada. Desideratum pindárico que nos comina aos argentinos a devir quem somos no mesmo sentido em que Dugin faz um chamado a que cada povo se reencontre consigo mesmo e solidifique este mandato. Este é o sentido da história propriamente dito. Nela acontece algo por inteiro diferente em relação ao que a modernidade quis ver, uma linha de tempo na qual se situam um momento novo junto a outro ou uma sucessã ode fatos balizados por um motor imóvel utopista. Ao contrário, o que acontece verdadeiramente é o Ser, que é sempre um novo retornar ao início. Neste retorno se acusa sempre um passado e um futuro tão presentes quanto o projeto que os articula, pois não se retorna ao passado mas ao próprio fundo do Ser. Tudo que este movimento histórico do acontecimento do Ser em um solo fático determinado traz consigo não é mais que a interiorização de sua possibilidade real plena. Tudo que verdadeiramente pode ser, não se pergunta por sua identidade, não persegue uma cauxa exterior que motive sua própria manifestação: é a ação pura, a inopinável queda do raio, a soberania de um elemento da natureza que retorna - como acreditava Aristóteles - a seu lugar natural. Neste acontecer, o tempo já não conta, pois não há nada que contar. É o Deus que conta o tempo e brinca fazendo caretas, como a criança com seus dados. Com a atenta indiferença com que a criança trata seus brinquedos, o Deus joga a história com os homens e ali não obstante encontra também nele seu sentido.

Tradicionalismo, Conservadorismos e Mais Além: Revolução e Nada Mais

No lançar-se ao jogo de Deus com o homem e os tempos se interpreta um destino, ao qual o homem se corresponde como ator quando pode ouvi-lo - sendo poeta - ou querê-lo - sendo guerreiro; de uma forma ou outra, quando pretende alcançar altura histórica e profundidade espiritual. Não é sagrado o fruto do entendimento, ao qual não resta mais que cair ao solo e apodrecer para pelo menos servir de nutriente à árvore da vida indestrutível, o axis mundi que se erige no báthos do abismo. Contra ele, não só se rebelaram outromundistas e liberais de toda estirpe mas também os tradicionalistas ocidentais. O que temos para nos opormos ao tradicionalismo integral de Guénon e Evola? Não outra coisa senão o fato de que "descreveram a sociedade tradicional como um ideal atemporal" (Dugin 4TP, 114). Nós consideramos que a Ideia sempre é histórica e se nutre de influxos telúricos e da tração que lhe aporta o sangue e a energia dos homens. Mais ainda, a Ideia costuma se encarnar nos grandes homens da história. Evola sabia disso, evidentemente, e no início e ao fim de sua obra dava vazão a sua tendência afirmativa e revolucionária, de inspiração dionisíaca e nietzscheana, e inclusive romântica. Não obstante, a cristalização que encalhou sua potência nas redes da metafísica teve seu epicentro em sua obra principal, Revolta contra o Mundo Moderno, com a qual legou à posteridade traços muito fáceis de serem convertidos em dogma. Ali entende em uma má repetiçã ode Platão que a tradição é o mundo do Ser oposto ao mundo do Devir, que ao primeiro corresponde o solar, o espiritual, o viril e ao outro o telúrico, o feminino, o material. Não obstante, esta é uma descrição abstrata que nenhuma Tradição história precisou nem precisará realizar, independentemente do valor que tenha no diálogo ecumênico entre distintas tradições. Temos que dizer, de todo modo, que dita obra foi um fracasso genial, como todos os naufrágios da metafísica, mas um fracasso no fim, pois a Tradição não tem outro lugar que o da terra e da comunidade que a habita, não tem outras formas que as dos herois, místicos e poetas de um povo histórico. Estas formas respondem sempre a um estilo anímico determinado pelas coordenadas terrenas de sua aparição que não é conjuntural como pensa a internacional tradicionalista. Quando eles afirmam que todo o manifesto é um mero símbolo de uma realidade transcendente, espiritual, ficam atrás de Hegel, que desfundou o topos uranos no capítulo três da Fenomenologia do Espírito, ao dizer que a verdade da manifestação, do mero fenômeno é ser mero fenômeno e nada mais. Fenômeno e Ideia não são duas coisas distintas, senão para o que não tem outro remédio que divorciar a realidade em categorias lógicas abstratas por falta de enraizamento real. Contra as superstições teóricas já se levantava o gesto sarcástico de Heráclito, quando perante outros dois fetichistas, mas de seu tempo, lhes enfiou na cara a dura e crua realidade: aqui também habitam os Deuses, junto ao fogo onde se cozinham as tiras assadas do festim e se chocam as taças do vinho mais embriagante, no fragor da batalha e na oficina do artesão, nos sonhos do poeta e na decisão do político. Pela boca de Tales: Tudo está repleto de deuses. O Espírito não é patrimônio exclusivo da casta sapiencial que os tradicionalistas creem encarnar. Era esperável que seu rechaço redundasse em um fracasso histórico, pois a recepção de Guénon e Evola não projetou nenhum saldo revolucionário, com uma exceção, que vem - não casualmente - da Rússia. Trata-se do neoeurasianismo encabeçado por Aleksandr Dugin, que se erigiu como a mais digna e original aplicação do tradicionalismo radical. Sau recepção de tudo que há de valioso nas contribuições dos autores mencionados, se dá imbuída de afetos caológicos, de costas para as pretensões edificantes da metafísica ocidental, pois se articula em uma tradição real e não em uma configuração conceitual abstrata. Os dogmáticos que só gravitam ao redor da letra morta sem deduzir as devidas consequências e decisões do que o espírito da mesma porta, assistem com assombro às contorções conceituais de Aleksandr Dugin, que enreda a pureza etérea dos tradicionalistas com a fé ortodoxa, o eurasianismo, o nacional-bolchevismo, a filosofia heideggeriana e pós-moderna, e outras contribuições plurais.

Neste sentido não podemos deixar de ver que o solo russo é responsável pela originalidade e riqueza do pensamento duginiano, floração fértil de um renovado ponto de vista que hoje se expande em todas as direções, como a estrela do Caos, em um chamado a transbordar os esquemas caducos da modernidade ocidental e a recuperar as próprias raízes de cada povo. As peculiaridades da idiossincrasia russa se uniram na pretensão sistemática de Evola e Guénon. Na obra de Dugin, a acentuação do messianismo apocalíptico russo radicaliza a melhor pulsão destrutiva de Cavalgar o Tigre - aquilo de que "nada merece ser conservado" - em um sentido ofensivo de profunda espiritualidade, onde não fica claro se o fim que trará o fogo é só o fim ou um novo começo. Em paralelo a isso, o lugar existencial que a Rússia ocupa é visto por Dugin como um katechon marcado por um paradoxo que transborda sua delimitação clássica: enquanto mais resiste ao assédio globalista, imóvel na estepe de sua interioridade, mais longe chega em comparação com os demais. Com o que chegamos a uma contradição constitutiva da profecia duginiana. Contradição que não objetamos por reconhecer nela o caráter formal de tudo que é vivo, como já o tinha visto o "Obscuro de Éfeso". Enquanto a Rússia mais adia o inevitável em sua distância e desinteresse pelo destino do mundo moderno ocidental, enquanto mais adia o advento do juízo final, a guerra total contra a ordem mundial unipolar, mais se consubstancia com o fogo que transbordará no fim dos tempos e terminará com tudo que conhecemos. Enquanto mais conservadora parece, é em realidade mais revolucionária. Isso significa que o fino xadrez estratégico de Putin está convocado pelas próprias circunstâncias - mais cedo ou mais tarde - a convocar à mobilização total - ou ser arrastado por ela - para chutar o tabuleiro global e submergir o mundo em um maremoto redentor. Desse modo, Dugin soube afirmar a verdade dialética e histórica que se segue da Aufhebung do tradicionalismo: a revolução permanente, o eterno retorno do mesmo que, não obstante, é distinto, fonte inesgotável e indestrutível de vitalidade. Os termos "conservadorismo" e "tradicionalismo" são para esta sempre nova eternidade demasiado pesados, demasiado toscos, demasiado nostálgicos e carregados de passado. Revolutio é o arcano, o signo dos tempos.