22/02/2014

Mark Hackard - Ucrânia à Beira da Guerra Civil: Sangue no Maidan

por Mark Hackard



A Ucrânia cambaleia à beira de uma guerra civil, e como de costume a mídia ocidental não tem sido de ajuda em lançar luz sobre a situação conforme ela se desenrola. À parte de fotos evocativos de confrontos entre formações legionárias da polícia Berkut e seus duros oponentes nacionalistas na Maidan Nezalezhnosti (Praça da Independência), tudo que podemos esperar da mídia hegemônica é a seguinte narrativa fantasiosa:

* Quando o corrupto presidente ucraniano Viktor Yanukovych rasgou o Acordo de Associação à União Européia que ele deveria assinar em novembro de 2013, "protestos pacíficos" foram lançados por kievenses pró-ocidentais ávidos por um futuro europeu.

* A ira popular apenas se intensificou após Yanukovych concordou com um tratado de cooperação econômica com a Rússia de Vladimir Putin em 17 de dezembro. A oprimida e libertária Ucrânia estava sendo sugada para a órbita sombria de Moscou. Apenas os galantes manifestantes poderiam deter esse processo.

* A batalha por Kiev continua já que o instável regime promulgou leis draconianas limitando a liberdade de reunião em uma tentativa de se manter no poder. A Ucrânia é a nova linha de frente na luta pela democracia, Big Macs geneticamente modificados, e guerra psicológica via Disney e MTV.

Realidades estratégicas, porém, raramente se encaixam no roteiro de um conto moral feito para a TV. A história por trás das cenas concerne um impulso pelos EUA de cortar uma ressurgimento da Rússia onde realmente importa: na Ucrânia.

Comentaristas de política externa americana prefeririam desviar o foco dos fatos que desacreditam sua narrativa preferida; a primeira dessas é a ativação por Washington de um modelo atualizado para pôr em prática um golpe de estado em Kiev. Por mais de uma década agora, o público americano tem sido levado a acreditar que ondas sucessivas de "poder popular" tem emergido para derrubar governantes opressores por toda Eurásia e Oriente Médio, todos os quais apenas por acaso estavam em contradição com interesses americanos. Nada disso foi acidental; de Belgrado e Tblisi a Minsk e Kishinev, a CIA e o Departamento de Estado tem organizado operações de mudança de regime com graus de sucesso variáveis. A "Revolução Laranja" de 2004 do queridinho ocidental Viktor Yuschchenko murchou ignominiosamente, mas a valiosa posição geográfica da Ucrânia e suas fissuras étnicas e culturais a tornaram novamente o alvo de ações de sabotagem americana.

A questão da integração européia somente forneceu um pretexto necessário para iniciar esse último round do Grande Jogo. O que porta-vozes e colunistas de Nova Iorque também omitem em dizer a suas audiências é a natureza da potencial "associação" de Kiev com a União Européia - o país teria se tornado uma colônia econômica de interesses corporativos ocidentais, completa com o esquartejamento da capacidade industrial ucraniana e uma austeridade esmagadora, ordenada pelos bancos, já familiar aos atuais residentes da União Européia. O acordo em si foi originalmente promovido pela elite oligárquica da nação, o verdadeiro poder por trás de qualquer presidência em Kiev. Bruxelas buscava adquirir a Ucrânia barato, oferecendo menos de 1 bilhão de dólares para cobrir suas suas dívidas de mais de 17 bilhões mais os enormes danos que seriam causados à economia ucraniana com a assinatura. A Rússia, em contraste, aprofundou a parceria com seu vizinho designando 15 bilhões de dólares para a dívida ucraniana, formando empresas conjuntas em indústrias pesadas estratégicas e estabelecendo os preços do gás abaixo do valor de mercado.



Desde a declaração oficial de soberania da Ucrânia em 1991, a corrupção de qualquer administração presidencial nunca foi uma questão digna de se debater. Ainda assim Yanukovych e apoiadores fundamentais como Rinat Akhmetov finalmente começaram a compreender que o Acordo de Associação em si seria uma receita garantida de ruína econômica e catástrofe política, mesmo enquanto os oficiais europeus publicamente apresentaram o acordo como a Ucrânia "escolhendo a Europa" ao invés da Rússia. Vendo poucos benefícios tangíveis nesse arranjo obviamente desigual, o regime em Kiev encontrou parceiros de negociação mais amistosos no Kremlin de Putin do que entre tipos como a Chanceler Angela Merkel e a Baronesa Catherine Ashton.

Os principais instrumentos do Ocidente em abalar uma reação russo-ucraniana mais próxima são os grupos de oposição que tomaram Kiev e estão atualmente engajados em combate urbano com a polícia além de tomar capitais regionais. Mas muitos desses "manifestantes", causa célebre hoje entre os tomadores de decisão nos EUA, são na verdade nacionalistas extremos que vem primariamente da Galícia, composta das três províncias no extremo ocidente da Ucrânia. Muitas vezes católicos e previamente sob séculos de governo poloneses e austro-húngaro, os galicianos nutrem uma forte animosidade contra o leste ortodoxo e russófilo e a Criméia.

Os antepassados recentes dos atuais combatentes no Maidan outrora preenchiam as fileiras de toda uma Divisão Waffen-SS, e grupos majoritariamente galicianos como Batkivschyna, "Pátria", e Svoboda, "Liberdade", se veem como promovendo a causa de seus ancestrais por independência nacional do odiado jugo moscovita. É uma quase certeza que Washington está não apenas fornecendo à oposição ucraniana cobertura diplomática vocal (incluindo ameaçar com sanções) e coordenação extensiva e ajuda logística através de um conjunto de ONGs como Freedom House e o NED. Redes de inteligência americana, junto de aliados do MI6, BND e o serviço polonês, muito provavelmente tem estado ativamente apoiando os nacionalistas revoltosos, que são chamados de "manifestantes pacíficos" da mesma maneira que os mercenários jihadistas que destruíram a Líbia e a Síria são "combatentes da liberdade" e partidários do caos são celebrados como "ativistas de direitos". Quaisquer sejam suas aspirações, os ultras são efetivamente tropas de choque em um jogo geopolítico mais amplo.

As terras ao longo do Dnepr e do Don não são apenas o coração histórico da civilização eslava oriental; elas formam o pilar de uma postura de segurança viável da Rússia em relação a Europa. Para uma compreensão adequada dos objetivos da política externa americana na Ucrânia, é válido relembrar a análise de Zbigniew Brzezinski, estrategista emérito das elites financistas internacionais:

"Sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um Império Eurasiano... Porém, se Moscou retomar controle sobre a Ucrânia, com seus 46 milhões de pessoas e grandes recursos bem como seu acesso ao Mar Negro, a Rússia automaticamente recupera os meios necessários para se tornar um poderoso Estado imperial, abarcando Europa e Ásia".

Brzezisnki também fala bastante de suas esperanças para a imposição da democracia liberal sobre a Rússia - indubitavelmente devido a seu afeto filantrópico tremendo pelo povo russo. As únicas coisas que ele consistentemente detesta sobre aquela nação são sua soberania, sua identidade e o Cristianismo Ortodoxo.

É uma Rússia soberana que impede a América governada por banqueiros de realizar plenamente o sonho inumano de um panopticon planetário; portanto Brzezinski e seus acólitos no aparato de segurança nacional dos EUA prepararam seu inimigo para subversão e desmembramento. Comparada ao financiamento extraoficial contínuo pelos EUA de movimentos islâmicos separatistas no Cáucaso, a coreografia de uma revolução na Ucrânia é um método um tanto quanto barato de desestabilizar a periferia sulista da Rússia. Não apenas isso lançaria sombra sobre as Olimpíadas de Sochi, como também causaria caos sobre grandes projetos energéticos como o South Stream. Como em Kosovo, lançar o caos acompanhado de retórica liberal-humanitária pode fornecer uma desculpa pronta para a introdução de forças da OTAN na região.

Após o sucesso de Putin em 2013 de impedir um ataque contra a Síria e fortalecer a posição do Kremlin no Mediterrâneo Oriental, Washington está agora canalizando seus esforços para solapar qualquer consolidação do poder russo na Eurásia. Sua grande oportunidade está em explorar os cismas que abalam a sociedade ucraniana para instalar outro governo pró-ocidental em Kiev e preparar o palco para uma presença militar americana apenas centenas de quilômetros de Moscou. Porém a Rússia parece apreciar as lições que aprendeu da Revolução Laranja da década passada e não está no humor para tolerar certas noções.

Com a esperança de evitar uma guerra civil, existe na Ucrânia a distinta possibilidade de uma partição futura que veria o leste industrial e o litoral do Mar Negro sob proteção russa enquanto os ocidentais preencheriam seu destino europeu. Então que os ultras galicianos sejam festejados por seus benfeitores com paradas em Paris, Londres e Berlim; diplomatas americanos e os eurocratas dificilmente saberão o que os atingiu.