28/11/2013

François Duprat - O Ba'ath: Ideologia e História

por François Duprat



O único partido nacionalista árabe restante digno desse nome é o Ba'ath já que os diversos movimentos de tipo nasserista foram incapazes de conduzir à criação de uma força ideológica e política nos diversos países árabes. O Ba'ath deve ser estudado portanto como o único representante da ideologia unionista árabe, organizada em um partido e não limitada a um movimento de opinião, ainda que seja de grande magnitude (ontem o nasserismo, hoje em dia o gadaffismo).

A Ideologia do Ba'ath

O Ba'ath oferece a particularidade de ser o único partido político pan-árabe (o único se deixarmos de lado o caso original do Partido Sício Social-Nacionalista) a ter tentado elaborar uma doutrina nacional-revolucionária razoavelmente coerente graças às análises políticas e históricas de seu fundador e líder, Michel Aflaq (um sírio grego-ortodoxo) primeiro em seus inúmeros artigos dispersos e acima de tudo em sua obra de síntese Fi sabîl al-Ba'ath (Na Via da Ressurreição), publicada em Damasco em 1959, nos tempos da União Sírio-Egípcia, no seio da República Árabe Unida.

Aflaq analisa tanto seu nacionalismo como sua oposição à filosofia marxista:

"A Nação Árabe tem uma história independente da história do Ocidente e da Europa; as teorias e as formas de organização que surgem da civilização ocidental nascem de condições próprias do Ocidente e não correspondem às necessidades dos países árabes pelo que estas não encontram um entorno favorável.

A Nação Árabe não é uma pequena nação de importância secundária que pode adotar uma mensagem distinta ao que lhe é próprio, marchar sobre os passos de outra nação e se alimentar de seus restos...

A doutrina marxista é uma ameaça para os países árabes porque ameaça com fazer desaparecer sua personalidade nacional e porque impõe ao pensamento árabe moderno um ponto de vista partidário, tendencioso e artificial destruindo a liberdade e a integralidade desse pensamento".

Para Aflaq, não-muçulmano, o nacionalismo árabe não obstante se encontra "inspirado" pelo Islã, porém de uma forma bem distinta daquela pela qual advogam a Irmandade Muçulmana ou o Coronel Gaddafi:

"Toda nação...possui uma força motriz essencial...essa força motriz foi a religião ao momento da aparição do Islã. Em efeito, somente a religião era capaz de revelar as forças latentes dos árabes, de realizar sua unidade... Hoje... a primeira força motriz dos árabes...é o nacionalismo... Os árabes estão como mutilados em sua liberdade, sua soberania e sua unidade que não podem compreender outra linguagem que a de seu nacionalismo".

O Ba'ath, no reconhecimento do papel positivo da religião islâmica na tomada de consciência da unidade árabe (nos termos da Umma, a comunidade dos crentes), é portanto um partido nacionalista laico.

Porém o Ba'ath se apresenta também como um partido socialista:

"O socialismo do Ba'ath está em perfeito acordo com a vida da sociedade da nação árabe...

Ele se limita a organizar a economia em vistas a redistribuir a riqueza no mundo árabe, de assentar as bases de uma economia que garante a justiça e a igualdade dos cidadãos e de promover uma revolução na produção e nos meios de produção...

Nosso socialismo está impregnado por uma filosofia que emana entre os árabes de suas necessidades próprias, suas condições históricas e suas particularidades. A filosofia do Ba'ath não aprova a concepção materialista da filosofia marxista... Nosso socialismo se apóia no indivíduo e sua livre personalidade. O socialismo do Ba'ath considera que a força principal de uma nação reside nos motivos individuais que levam aos homens a atuar, o partido se abstém portanto de abolir a propriedade privada, busca limitá-la...de maneira que se evite qualquer abuso...

Nosso socialismo não poderá prosperar definitivamente senão no marco do Estado Árabe Unitário, quer dizer quando todo o povo árabe seja liberado, quando desapareçam os grilhões tais como o imperialismo, o feudalismo e as fronteiras geográficas impostas pela política, que se opõem ao êxito do socialismo".

Em uma entrevista com Benoist-Méchin (em "Uma Primavera Árabe"), Michel Aflaq apresentou de forma particularmente potente sua definição da Nação e das relações que ligam o indivíduo à comunidade histórica: "...Nós somos os nacionalistas árabes. Nós devemos elevar o homem a sua dignidade suprema. Este objetivo não é realizável mais que em um marco nacional. Um homem não é plenamente ele mesmo mais que no seio de suanação. A nação é o teatro em cujo interior o homem desempenha um papel para realizar seu destino individual. Ao suprimir o teatro já não existirá dito papel. De repente o homem se desaba sem sentido..." (p.340)

A tomada de posição soviética em favor da causa árabe e em particular no tema palestino, os importantes interesses da URSS no seio do mundo árabe, muitas vezes nos levam a pensar que o nacionalismo árabe chegou a um acordo com o comunismo internacional, ou se viu convertido em uma filial. O problema se encontra, em particular no caso do Ba'ath, em razão das muito boas relações entre os dois regimes baathistas do Iraque e da Síria com Moscou.

A realidade resulta bem diferente dada a hostilidade permanente do Islã contra o materialismo marxista, os árabes por sua vez descobriram no imperialismo soviético algo tão pungente quanto o que lhes havia precedido.

Inclusive no momento da primeira reunião entre os nacionalistas árabes e a União Soviética, os primeiros foram marcando uma clara distinção entre a URSS e os partidos comunistas árabes.



Assim, o manifesto de criação do Ba'ath (escrito por Aflaq) declarava em 1944:

"Nós não estamos contra a União Soviética, nós fazemos uma distinção bem clara entre a URSS e o Partido Comunista Sírio local. Nós árabes não temos razão alguma para nos opormos a um grande Estado como a URSS que depois de sua formação demonstrou simpatia pelos países que lutam por sua independência. Nosso objetivo é estabelecer relações amigáveis com a URSS para ter relações normais de tratados oficiais e intergovernamentais e não através do partido comunista local. Os triunfos do comunismo se dão aqui pela debilidade dos espíritos. Porém um árabe bem informado não pode ser um comunista sem abandonar o arabismo, os dois são incompatíveis, o comunismo é estrangeiro a tudo que é árabe. Ele será o perigo maior para o nacionalismo árabe já que será incapaz de dar uma definição sistemática de seus objetivos".

Nessa época, o Ba'ath lucidamente julga que o comunismo na terra árabe jogava a carta do chauvinismo e do anti-imperialismo; nessa ótica, se o nacionalismo árabe não se converte em uma estrutura ideológica, será literalmente absorvido pelo comunismo. Daí se dão os esforços de Aflaq para dotar seu partido de um aparato ideológico coerente capaz de ser um responsável do desafio ao marxismo. Por este logro, a ação ba'athista a favor do "socialismo árabe" está planejada para socavar a hera sob os pés dos propagandistas marxistas. Porém este "socialismo árabe" (comum também a todos os movimentos unionistas) não tem nenhum ponto em comum com o marxismo-leninismo. Ele é uma simples projeção do nacionalismo, um meio para tornar factível o nacionalismo, assim é que Aflaq reconhece explicitamente:

"Os nacionalismos árabes compreendem que o socialismo é um meio mais seguro para logar o renascimento do nacionalismo e da nação porque sabem que o combate dos árabes na época atual repousa na união dos árabes e que não é possível que eles participem unidos neste combate, se estão divididos entre senhores e escravos.

Portanto nós pensamos que os árabes não poderão realizar seu renascimento se não estão convictos de que o nacionalismo implica em justiça, igualdade e vida digna em sociedade".

Este "socialismo árabe", só pode atrair a clássica resposta marxista: "Populismo pequeno-burguês!", "Demagogia social-fascista!"

De todo modo, o socialismo ba'athista é idêntico ao de todos os movimentos de tipo fascista e Aflaq se limita a demarcar os pensadores fascistas ocidentais (apesar de sua hostilidade de princípio aos "ideólogos estrangeiros ao mundo árabe" de que faz uso contínuo para repelir o comunismo), tudo contra as divisões marxistas da luta de classes.

Resenha História do Ba'ath

O Ba'ath se constituiu em 1944 na Síria, depois de se estender a vários países árabes; é necessário estudar país por país (ou melhor ainda, segundo a terminologia baathista, região por região).

Síria



O Ba'ath de 1944-45, foi implementado unicamente em Damasco, não constitui mais que um pequeno movimento de intelectuais, ao redor de Michel Aflaq e outros de seus amigos. O papel limitado que desempenhou não impediu que fosse proibido pela ditadura do Coronel Chichakly em abril de 1952 e será novamente autorizado em setembro de 1953, levando a cabo um processo de unificação com um pequeno partido próximo: o Partido Socialista Árabe (al-Hizb al-Ifritayets al-Arabi), criado em 1950 por Akram Haurani. Os dois movimentos se fundiriam um pouco mais tarde sob o nome definitivo de Ifrikayets al Ba'as al-Arabi: Partido Socialista do Renascimento Árabe.

Nas eleições de 1949, o pequeno partido ba'athista só obteve quatro assentos, ao contrário do partido unificado que se asseguraria uma posição muito sólida nas eleições de 1954, depois da queda do ditador ganharam dezessete assentos.

Sob a direção de Chukri al-Kouatly, Presidente da República depois de agosto de 1955, a Síria se move à esquerda e nas eleições de maio de 1957, a Frente Nacional Progressista (formado pelo Partido Comunista, pelo Ba'ath, pelo Partido Cooperativo Socialista e pelo Partido Nacional, de al-Kouatly) prevalece sobre os partidos de direita (Partido do Povo, Movimento de Liberação Árabe, do ex-ditador Chichakly, e Fraternidade Muçulmana). Rapidamente o Partido Comunista, que havia desenvolvido uma grande influência e infiltrado o Partido Nacional se enfrenta aos ba'athistas, hostis ao marxismo e em novembro de 1957 para salvar a Síria do comunismo, a Assembléia Nacional vota, sob a direção do Partido Ba'ath e do Partido Nacional (sob controla da ala de direita) uma resolução em favor da união com o Egito, união que será realizada em 1 de fevereiro de 1958, sob o nome de República Árabe Unida. O Partido Comunista é declarado ilegal pelo novo regime unionista, porém o Ba'ath será rapidamente "absorvido" pelos nasseristas (em particular pelo onipotente Coronel Serraj, chefe dos serviços de segurança e posterior ministro do interior da "província síria" da RAU).

Em dezembro de 1959, os ministros ba'athistas caem e seu partido se torna clandestino até o putsch militar de 28 de setembro de 1961, causando o fracasso da RAU e que leva ao nascimento de um regime liberal reautorizando os partidos (salvo o Partido Comunista, que será proscrito até fevereiro de 1966 e o PPS que se mantém como ilegal). As eleições de dezembro de 1961, logo do colapso do regime unionista, resultam em um êxito muito limitado para o Ba'ath, os partidos conservadores asseguram uma ampla maioria no Parlamento:

Partido do Povo: trinta e dois assentos (grande ganhador das eleições), Partido Nacional (purgado de seus elementos de esquerda) vinte e dois assentos, Fraternidade Muçulmana: seis assentos, Ba'ath: vinte e quatro assentos.

Os outros assentos são atribuídos aos independentes ou aos partidos minoritários; quanto ao Movimento de Liberação Árabe e ao Partido Cooperativo Socialista, não sobrevivem à morte de seus fundadores.

No período seguinte, o governo moderado (o Ba'ath se encontra na oposição) se expõe às ações inconsideradas dos oficiais ambiciosos. Os ba'athistas preparam um golpe de Estado com os oficiais pró-nasserianos, putsch que ocorre bruscamente em 8 de março de 1963.

O êxito do golpe se dá rapidamente e se constitui um Conselho Nacional da Revolução sob o comando do General Atassi, enquanto que o chefe da ala de direita do Ba'ath Salah al-Din Bitar, forma o novo governo, com uma grande maioria ba'athista. As personalidades conservadores são levadas ao isolamento cívico, entre elas Akram Haurani, que havia rompido com seus antigos amigos do Ba'ath e recriou seu próprio movimento se aliando às forças da direita.

Uma nova República Árabe Unida nasce em 17 de abril de 1963, porém, menos de quinze dias da criação da federação sírio-egípcia-iraquiana (o Ba'ath vem a tomar o poder no Iraque) ba'athistas e nasserianos começam a se opor abertamente.

Em 13 de maio de 1963, Bitar constitui um novo ministério, puramente ba'athista, que provoca a passagem à oposição dos nasserianos. Estes últimos tentam um golpe de Estado em 18 de julho de 1963 que fracassa lamentavelmente. Nasser rompe totalmente com o Ba'ath, enquanto que o General Amin al-Hafez se converte no Presidente do Conselho Nacional da Revolução. O CNR promulga uma Constituição provisória em 25 de abril de 1964 que insiste na vocação unitária da Síria ba'athista.



Hafez busca em seguida se aproximar aos unionistas nasserianos e libera os prisioneiros de julho de 1963. Convertendo-se no chefe de governo em 3 de outubro de 1964, ele proclama em 22 de dezembro do mesmo ano a nacionalização dos recursos energéticos e minerais do país, estas primeiras medidas são seguidas no início de 1965 por toda uma série de novas nacionalizações.

As lutas violentas de poder se travam no seio do Ba'ath debilitado pela queda de seu ramo iraquiano. A influência de Aflaq diminui progressivamente e é nomeado em um posto puramente honorífico de Chefe de Partido, enquanto que o doutor al-Razza o sucede no posto vital de Secretário Geral do Ba'ath. Quanto aos "esquerdistas" ba'athistas, como Zouayyen e o General Salh Djedid, ganham terreno substancial no seio de um partido dividido.

Em setembro de 1965, Zouayyen forma o novo governo, enquanto que o Comando Nacional (quer dizer inter-árabe, a Síria faz parte de uma nação árabe que existia para o Ba'ath) dirigido por Hafez e Aflaq se opõem ao Comando Regional da Síria, animado por Djedid.

O General Hafez, em dezembro de 1965, dissolve o Comando Regional e substitui o esquerdista Zouayyen pelo direitista Bitar. Porém, em 23 de fevereiro de 1966, Djedid, por um golpe de Estado, prende Hafez, enquanto que Aflaq foge para o Líbano (eterno terreno de asilo para os políticos árabes que tem o suficiente azar de ter que abandonar seu país).

Zouayyen volta ao governo e se aproxima às URSS autorizando o líder comunista Khaled Baggdache a voltar à Síria.

A inícios de setembro de 1966, o Comando Nacional ba'athista monta um contragolpe de Estado que se apóia nas Forças Especiais do Coronel Salim Hatoum, porém o putsch é abortado.

Todas essas querelas tomam lugar no seio de um partido minúsculo: quatrocentos membros (!) segundo Flory e Mantran, em sua excelente obra: Os Regimes Políticos dos Países Árabes, cifra que nos parece ainda assim muito baixa.

Por outro lado, a de seis a sete mil militantes, dada na Síria por Simon Jargy (no início dos anos 70) que é provavelmente muito exagerada.

Pode-se pensar razoavelmente que uma cifra de mil e quinhentos a dois mil ba'athistas (para uma população total de cinco milhões) é mais próxima à realidade. As divergências religiosas desempenharam um papel importante nessas contendas, os sunitas são mais moderados, enquanto que a seita dissidente alauíta se encontra mais bem no meio favorável aos extremistas de esquerda.

O desastre militar de junho de 1967 golpeou terrivelmente aos "esquerdistas" do Ba'ath, que haviam custodiado em sua reserva as duas melhores brigadas blindadas (nº 10 e 50) para fazer frente a um possível putsch interior da direita e que por razões políticas prepararam mal a armada para este caso, apesar das declarações sensacionalistas: "Quase sete mil oficiais (80% dos corpos de oficiais) foram eliminados depois de 28 de setembro de 1961 e acima de tudo depois de 8 de março de 1963. Dois dos generais mais enérgicos da armada estavam na prisão: Amin al-Hafez (ex-chefe de governo) e Omrane (ex-ministro de defesa) (François Duprat, "A Agressão Israelense", número especial de Défense de l'Occident, julho-agosto de 1967, página 45).

Igualmente, o Coronel Hatoum, especialista das operações comando, regressa de seu exílio jordaniano para combater a armada israelense, será imediatamente preso e executado sob o pretexto de complôs.

Progressivamente, os elementos moderados do Ba'ath se reagrupam em torno ao General Assad, ministro da defesa, que utiliza os defeitos da esquerda para tomar vantagem sobre ela. Assad vai chegar ao poder supremo utilizando o desastre de setembro de 1970, enquanto que as unidades sírias e da Saïka - ramo ba'athista da resistência palestina - são destruídas pela aviação jordaniana, a aviação síria (que se encontra sob a obediência de seu antigo chefe Assad) não lhes dá apoio. Djedid e Zouayyen são dados como responsáveis do fracasso que lamentavelmente se sofreu, são destituídos do governo e Assad controla daí para a frente a situação.

Em um esforço para democratizar o regime, Assad organiza eleições mais ou menos livres, logo de ter concluído um acordo com o Partido Comunista e os elementos nasserianos. Os resultados não desafiam a supremacia do Ba'ath, que se assegura a supremacia no seio da Frente Nacional Progressista: Ba'ath: cento e onze cadeiras, União Socialista Árabe (nasserianos): seis cadeiras, Socialistas Árabes: três cadeiras, independentes: trinta e três cadeiras. A oposição se limita a quatro Irmãos Muçulmanos disfarçados.

Paralelamente, Assad deve enfrentar uma agitação violenta dirigida contra "o ateísmo" e o "socialismo" do Ba'ath, animada pelos Irmãos Muçulmanos clandestinos, que mantém seu poder na Síria.

A maior provação para o regime ba'athista é indiscutivelmente a guerra de outubro, quando as tropas sírias e egípcias tomam de surpresa os israelitas, para a estupefação geral. Os sírios, energicamente conduzidos, são os que obtém o resultados mais perigosos para a entidade sionista, tomando em três dias uma boa parte das Colinas de Golam. Se os poderosos contra-ataques israelitas terminam por destruir a armada síria, esta se redimiu gloriosamente de seu fracasso de 1967. Seu novo prestígio reforça a posição de Assad que cumpriu a tarefa que a extrema-esquerda falava todo o tempo, sem jamais tratar de concretizá-la.

Depois do fim das hostilidades, Assad pratica uma política dinâmica a fim de evitar se separar do Egito, porém deve fazer frente a uma renovada oposição de parte de seus inimigos de esquerda que realizam esforços para se beneficiarem do Iraque, onde se organiza um movimento de resistência, encarregado de reagrupar os árabes hostis aos compromissos de paz com Israel.

O destino de Assad e de sua tendência estão ligados diretamente ao êxito ou fracasso do Plano Kissinger para o Oriente Médio.

Iraque



O Ba'ath clandestino só havia desempenhado um papel ínfimo sob a monarquia Hachemita e não chega a se realmente visível senão até quando o General Kassem toma o poder em 14 de julho de 1958.

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Entrou em luta desde o advento do novo regime contra os três partidos que representam o apoio popular de então de Kassem: o Partido Nacional-Democrático (socialista de esquerda), o Partido Comunista Iraquiano e o Partido da Independência, fascista e ligado a Rachid Ali el-Gailani, chefe da revolta pró-alemã de 19441 dos oficiais do "Palácio de Ouro".

Não obstante, rapidamente se cria uma nova divisão política quando Kassem começa a se situar como rival de Nasser. Os ba'athistas, e por sua vez os unionistas terminam por fazer frente comum com o Coronel Aref (verdadeiro organizador do levante de 14 de julho de 1958), o Partido da Independência e Ali el-Galiani, porém Kassem dissolve o complô e esmaga com sangue o levante unionista do General Chawaf em Mossul, em março de 1959.

As Milícias Populares e o Partido Comunista (que tinham nesse momento seu congresso na mesma cidade) desempenharam um importante papel na supressão do golpe unionista e desenvolvem assim sua influência. Kassem é forçado a manobrar e aceitar em 2 de janeiro de 1960 a autorizar os partidos, ele favorece o nascente PC dissidente (enquanto que o Ba'ath e o verdadeiro Partido Comunista se mantém como ilegais).

O Zaïm (Chefe) Kassem acumula fracassos, não podem se apoderar de Kuwait em junho de 1961, depois de ter feito frente à revolta de Mollah Barzani, no Curdistão, onde sua armada se encalha sem lograr resultados.

Ba'athistas e nasserianos se beneficiam dos fracassos de Kassem, buscam conspirar contra o Zaïm e em 8 de fevereiro passam à ação. Dispõem de escasso apoio: um batalhão blindado, algumas centenas de militantes ba'athistas, quatro aviões MIG 17; porém atual com selvagem determinação, massacram Kassem (diante das câmeras de televisão) e formam uma Guarda Nacional, dirigida pelo General Hassan al-Bakr. Essa Guarda Nacional, composta de jovens massacrando comunistas e progressistas que logo de um momento de hesitação (que lhes será fatal) acudem ajudar o Zaïm. Trinta mil militantes de esquerda foram vítimas da repressão desencadeada pelos ba'athistas após a vitória do levante, o massacre é a obra de Ali Saad al-Saadi, chefe da ala direitista dos ba'athistas no Iraque.

O nasserista Aref forma o Conselho Nacional de Comando da Revolução, porém o Ba'ath parece o mestre e resulta o anfitrião com grande pompa de Michel Aflaq, pouco depois da vitória ba'athista de Damasco em 8 de março de 196.

Porém os ba'athistas estão divididos entre aqueles da Direção Regional Iraquiana, ultradireitista de Saad al-Saadi e de Kazzar, entram em conflito com a Direção Nacional de Aflaq, que busca limitar suas ambições em vistas de evitar um conflito aberto com Aref.

Aref se beneficia das dissenções ba'athistas e em 18 de novembro de 1963 dissolve a Direção Regional do partido e seu braço secular, a Guarda Nacional, cujos membros jovens são pouco tendentes a querer continuar suas operações de polícia e não cessam de enfrentar o exército regular. Por outra parte a ruptura entre Nasser e os ba'athistas provoca a cólera dos unionistas cujos membros apoiaram Aref em sua luta contra o Ba'ath.

Em 18 de dezembro de 1963, Aref proíbe todos os partidos, depois de ter acabado coma mal-coordenada resistência da Guarda Nacional (que os ba'athistas moderados não apoiam) e se afirma abertamente sobre o Egito.

Em 14 de julho de 1964 ele forma a União Socialista Árabe do Iraque, destinado a ser o partido único do país, sob o modelo da União Socialista Árabe do Egito e cria em outubro de 1964 um Comando político único com o Egito que não terá resultados concretos. Por sua vez Aref não logra resolver o problema curdo, vacilando entre a guerra e as negociações.

Aref morre em um misterioso acidente de helicóptero (muito provavelmente uma sabotagem) em 13 de abril de 1966. Seu irmão o sucede porém ele não tem todas as suas qualidades e o regime rapidamente se torna incapaz de fazer frente ao descontentamento crescente.

Em julho de 1968, um golpe dos oficiais descontentes, sem grande coloração política, permite ao Ba'ath se aproximar ao poder. Rapidamente os ba'athistas logram eliminar seus associados e aproveitam para tomar a totalidade do poder, enquanto que o antigo chefe da Guerda Nacional, o General al-Bakr se converte em Chefe de Estado. Os ba'athistas do Iraque, membros da ala direitista do partido se enfrentam aos responsáveis sírios e dão as boas vindas a Aflaq que abandona Beirute para se instalar em Bagdá.

A polícia política dirigida por Nazem Kazzar (que vimos no papel da liquidação da esquerda iraquiana em 1963) e o ramo militar do Ba'ath (dirigido por Mohammed Fadel e pelo agrupamento dos oficiais membros do partido) organizam um regime de terror que elimina a família Takriti, particularmente influente no exército. É também pelo terror que se mantém no poder um partido minúsculo, de algumas centenas de membros (ainda menos que os da Síria), e podemos crer legitimamente que estavam absolutamente desconectados das massas. O regime, inicialmente contrário aos comunistas e às URSS, termina por liquidar a disputa com o tratado russo-iraquiano, e com a entrada de dois ministros comunistas no governo da coalizão de maio de 1972.

O golpe falido de Kazzar (termina com trinta e cinco execuções após a morte do Ministro de Defesa o General Chahab que havia sido tomado como refém e é capturado pela polícia comandados por Saddam Hussein, durante sua fuga para o Irã). Em 30 de junho de 1973, em vistas de deter essa evolução e encomendar o governo do Iraque à Direção Nacional do Ba'ath e portanto a Michel Aflaq, cada vez mais direitizado.

Apesar da conclusão do Pacto de Ação Nacional em 17 de julho de 1973 entre o Ba'ath e o Partido Comunista, que buscava a constituição de uma Frente Nacional, a ala direitista ba'athista não resulta afetada pelo fracasso sangrento de Kazzar. Como dirá o escritor Eric Roulleau, em um artigo chamado "Iraque à Sombra das Intrigas", no Le Monde de 20 de julho de 1973:

"Paradoxalmente a eliminação de Nazem Kazzar contribuiu para reforçar a ala direitista do partido ainda quando o antigo chefe da segurança reflete todavia a ideologia. Em efeito, os conservadores, incluídos os militares, recarregaram sobre a esquerda - particularmente sobre Saddam Hussein - a responsabilidade pelos últimos eventos. Argumentando que todos aqueles que estiveram vinculados ao complô são considerados, mais ou menos, como os homens de sua devoção...

Foram utilizados para reforçar os poderes da facção civil e radical do Ba'ath em detrimento do exército.

Este último...exigirá manter uma participação efetiva no exercício do poder, uma reorientação da política interior no sentido de firmeza contra os comunistas e os autonomistas curdos e na política exterior, considerada muito favorável à URSS".

Um novo enfrentamento de forças parece provável no Iraque entre a tendência nacionalistas do Ba'ath e a esquerda à sombra de Hussein, Bakr, centristas moderados que podem desempenhar um papel decisivo no conflito. Porém a guerra de outubro provocou, de novo, mudanças profundas. O Iraque anima o movimento de resistência e aparece como o centro da resistência às negociações com Israel. Ademais, a ruptura parece a ponto de conduzir a uma nova guerra, sob o plano das relações entre os curdos e o Ba'ath, tudo permite à ala direitista ba'athista reforçar rapidamente sua posição. Aflaq e seus amigos claramente não deram sua última palavra no Iraque.

Os outros países árabes:



Existem núcleos ba'athistas, muitas vezes clandestinos, em certo número de outros países árabes. Um grupo ba'athista foi desmantelado pela polícia de Túnis em 1970. Os ba'athistas foram altamente ativos na Jordânia, inclusive no plano parlamentar, antes de sua proscrição pelo governo monárquico. Uma ação clandestina não obstante persiste ali. Existe por sua vez pequenos grupos clandestinos no Egito.

No Líbano, em 1958, durante a guerra civil o Ba'ath desempenha um papel importante sob a direção de Abdel Medjid Rafi, que buscará em diversas ocasiões constituir um governo revolucionário contra o governo legal. Não obstante, a importância do partido se mantém limitada apesar de que pela primeira vez, ela se preparou para obter um eleito nas últimas eleições, estes últimos são favoráveis ao ramo iraquiano do Ba'ath libanês, que por sua vez estão divididos em duas facções rivais.

Não se dá durante a formação da Resistência Palestina a divisão por essa rivalidade, pelo menos entre duas delas:

- A Saïka, a segunda formação em importância da Organização de Liberação Palestina (depois do Fatah), e está sob o controle completo dos ba'athistas de Damasco. Até a tomada de poder por Assad, a Saïka constituía o apoio essencial militar da ala esquerdista do Ba'ath sírio.

- A Frente de Liberação Árabe foi criada por Bagdá para ser um contrapeso à Saïka e demonstrar o interesse de Bagdá pela luta palestina. Sua importância se encontra muito limitada, porém nós podemos pensar que rapidamente podem aumentar seus efetivos, em razão de sua posição oposicional determinada nos processos de negociação em curso. A Frente já obteve o apoio da Frente Popular para a Liberação da Palestina do Doutor Habbasch.

27/11/2013

Dominique Venner - A Tríade Homérica

Por Dominique Venner


Para os antigos, Homero era “o começo, o meio e o fim.” Uma visão do mundo e até mesmo uma filosofia estão implicitamente contidas em seus poemas. Heráclito resumiu seu alicerce cósmico com uma frase bem colocada: O universo, o mesmo para todos os seres, não foi criado por nenhum deus ou homem qualquer; mas sempre foi, é, e será eternamente fogo vivo...”


1. Natureza como Base


Em Homero, a percepção de um cosmos ordenado e incriado é acompanhada por uma visão mágica transmitida por mitos antigos. Os mitos não são crenças, mas sim a manifestação do divino no mundo. As florestas, as rochas, os animais selvagens têm uma alma que Ártemis (Diana para os romanos) protege. Toda natureza funde-se com o sagrado, e os homens não são excluídos disso. Mas a natureza não está destinada a satisfazer os nossos caprichos.

Por outro lado, na natureza em sua imanência, aqui e agora, encontramos respostas para nossa angústia: “As gerações dos mortais assemelham-se às folhas das árvores, que, umas, os ventos atiram no solo, sem vida; outras, brotam na primavera, de novo, por toda floresta viçosa. Desaparecem ou nascem os homens da mesma maneira.”(Ilíada, VI, 146-149). A roda das estações e da vida, cada uma transmitindo algo de si para aqueles que seguirão, garantindo assim uma certa eternidade.

A certeza fortalecida pela consciência de deixar uma lembrança na mentalidade futura, como Helena diz na Ilíada: “Triste destino Zeus grande nos deu, para que nos celebrem nas gerações porvindoiras, os cantos excelsos dos vates” (VI, 357-358). Talvez, mas a glória de um nome nobre é esquecida como o resto.

O que não morre é interior, dentro de si mesmo, na verdade da própria consciência: ter vivido nobremente, sem abjeções, ter-se mantido de acordo com o modelo estabelecido.


2. Excelência como Objetivo


Na imagem dos heróis, os homens verdadeiros, nobres e talentosos (kalos kai agathos) buscam na coragem da ação a medida de sua excelência (arete), assim como as mulheres procuram no amor ou na doação de si a luz que as torna reais . A única coisa que importa é o que é bonito e forte. 

“Seja sempre o melhor,” Peleu diz ao seu filho Aquiles, “melhor do que todos os outros” (Ilíada, VI, 215).

Quando Penelope é atormentada pelo pensamento de que seu filho Telêmaco poderia ser morto pelos “pretendentes” (usurpadores), o que ela teme é que ele poderia morrer “sem glória”, antes de fazer o que é preciso para se tornar um herói igual a seu pai (Odisséia, IV, 539).

Ela sabe que os homens não devem esperar pelos deuses e ter esperanças de qualquer ajuda além deles próprios, como Heitor disse ao rejeitar um mau presságio: “Há um presságio melhor: a luta por sua pátria” (Ilíada, XII, 250).

Na batalha final da Ilíada, compreendendo que é condenado pelos deuses ou pelo destino, Heitor dilacera-se longe do desespero por uma onda de heroísmo trágico: “Ah, bem! Não, eu não pretendo morrer sem luta nem glória, nem sem algum grande feito que será recontado pelos homens que estão por vir”(XXII, 330-333).


3. Beleza como Horizonte


A Ilíada começa com a ira de Aquiles e termina com ele acalmando a dor de Príamo. Os heróis de Homero não são modelos de perfeição. Eles são propensos a erros e excessos na proporção de sua vitalidade. Por essa razão, eles caem sob os golpes de uma lei imanente que constitui a fonte do mito e da tragédia Grega. Cada falha traz punição, tanto a de Agamenon quanto a de Aquiles. Mas para Homero, inocentes também podem ser subitamente atingidos pelo destino, como Heitor e tantos outros, porque ninguém está a salvo do trágico destino.

Essa visão de vida é estranha à ideia de uma justiça transcendente punir mal ou pecado. Em Homero, nem o prazer, nem o gosto pela batalha, nem a sexualidade são comparados ao mal. Helena não é culpada por uma guerra desejada pelos deuses (Ilíada, III, 170-175). Somente os deuses são culpados pelos destinos que se abatem sobre os homens.

As virtudes consagradas por Homero não são morais, mas estéticas. Ele acredita na unidade do ser humano definida por seu estilo e seus atos. Então, os homens definem-se com referência ao belo e o feio, o nobre e o vil, não bem ou mal. Ou, dito de outra forma, o esforço pelo belo é a condição de bem.

Mas a beleza não é nada sem lealdade ou bravura. Sendo assim, Paris não pode ser realmente belo, porque é um covarde. Ele é apenas um vaidoso que engana o seu irmão Heitor e até mesmo Helena, a quem ele seduziu por magia. Por outro lado, Nestor, apesar da idade, mantém a beleza de sua coragem.

Uma vida bela, o objetivo final de excelência na filosofia Grega, da qual Homero foi a expressão suprema, supõe a adoração da natureza, o respeito da modéstia (Nausicaa ou Penélope), a benevolência do forte para os fracos (exceto em combate), o desprezo pela baixeza e a feiúra, a admiração pelo herói condenado.

Se a observação da natureza ensinou os gregos a moderar suas paixões, para limitar seus desejos, então não há nada de idiota na ideia de que eles eram sábios antes de Platão. Eles sabiam que a sabedoria era associada com as harmonias fundamentais surgidas a partir de oposições: masculino e feminino, violência e gentileza, instinto e razão. Heráclito tinha ido à escola de Homero quando ele disse: “A natureza gosta de opostos: através deles, produz harmonia.”

21/11/2013

David Landot - Francisco Franco: Camarada?

por David Landot



Muita gente de fora da Espanha nos pergunta: Seria Francisco Franco um camarada? Eu creio que não, e mais, me atrevo a dizer que nem mesmo nunca foi um fascista. Por que? Vamos vê-lo em seguida. Franco ainda que possua algumas conquistas econômicas e sociais inegáveis, tais como algumas prestações sociais de amplitude, uma melhora notável nas condições laborais, nacionalização dos bens e empresas estratégicas da nação, etc (realizações que sistematicamente os governos democráticos posteriores trataram de desmantelar progressivamente), no aspecto ideológico e no aspecto geopolítico ele deixa bastante a desejar. 

Franco é a encarnação da reação conservadora hispânica: amigo de latifundiários, clericalista ao extremo, centralista e monárquico convicto; nada mais distante, portanto, dos princípios retores do fascismo espanhol encarnado pela Falange e pelas JONS, que desde seus postulados ardentemente nacionalistas exigia vastas reformas sociais incluindo por exemplo uma profunda reforma agrária que acabasse com o problema dos latifúndios y levasse a cabo uma distribuição justa e racional da terra para os camponeses. É óbvio o incômodo que essas idéias geravam nas oligarquias da época, as quais Franco tinham um empenho pessoal em manter ao seu lado, tanto por afinidade pessoal como por puro oportunismo. Desse modo Franco leva a cabo uma instrumentalização da Falange, se bem a empregue como suporte militar e álibi ideológico para o levante nacional uma vez ganha a guerra e começado o processo de construção do novo Estado se desprende totalmente dela. 

O primeiro marco neste processo de defascistização tem lugar em 1937, com a promulgação do decreto de unificação, que busca a criação de um partido único sob a sigla da Falange que aglutinara elementos fascistas, carlistas (tradicionalistas) e monárquicos conservadores; de certo isso não caiu especialmente bem entre os setores fascistas com Manuel Hedilla à cabeça, líder da Falange e herdeiro do legado de José Antonio, que por causa de sua oposição ao projeto unificador será condenado à morte (ainda que logo sua sentença será comutada à pena de prisão) e afastado de maneira permanente e forçosa da política, substituído por Raimundo Fernandez Cuesta, deixando como legado uma Falange domesticada e pusilânime a serviço do conservadorismo franquista, situação que muitos antigos falangistas não tolerarão, protagonizando revoltas revidadas pelo regime com mais repressão ou optando pela morte heróica e se oferecendo para lutar como voluntários contra o comunismo na Divisão Azul. Tampouco os tradicionalistas carlistas e requetés se verão satisfeitos o que explicará a adoção de posturas nacionalistas bascas por muitos deles, perante a impossibilidade de conseguir seus objetivos dentro do Estado espanhol... porém isso seria motivo para outro artigo.

Único aspecto positivo desse fato e que se manterá ao longo de todo o regime é a criação da comissão de auxílio social, entregue a falangistas puros como Pilar Primo de Rivera ou Mercedes de Bachiller por causa de sua sensibilidade social e que levará a cabo una admirável tarefa em aspectos como a ajuda aos deserdados e aos órfãos de guerra . 

Pese a isso, Franco manterá a ficção fascista (ao menos em seu fator estético: uniformes, saudação romana, desfiles, etc.) no que se chama na história de “etapa azul”, buscando desse modo ganhar para si as simpatias dos governos do Eixo. De certo quando os fascismo caem na Europa isso resultará um empecilho para o governo de Franco, de modo que se desembaraçará sem o menor problema dando início a uma nova etapa etapa (etapa desenvolvimentista), baseada na aproximação aos EUA, a primazia política dos tecnocratas do Opus Dei (em detrimento dos últimos falangistas), o capitalismo liberal e a sociedade de consumo como modo de vida e a adoção de um discurso anticomunista liberal, muito em consonância com el existente nos EUA em tempos de Guerra Fria. 

Certamente esse discurso deu resultados entre os EUA necessitados de aliados, levando-se a cabo a visita do presidente Eisenhower a Franco, a entrada da Espanha na ONU (uma vez mais se demonstra a arbitrariedade dessa organização controlada pelo Grande Irmão e que apesar de defender a democracia não tem problemas em abrir as portas a Estados ditatoriais se são aliados) e a ratificação de sucessivos acordos econômicos e militares de “colaboração” que incluem a cessão de território nacional para a construção de bases militares ianques em um regime jurídico quase colonial, dando guarida ainda a material bélico nuclear perigoso. O incidente da bomba de Palomares, manipulado e ocultado pelo regime é prova de sobra da atitude vassala e servil de Franco, totalmente oposta às tendencias nacionalistas e europeístas que caracterizam a alma fascista.

15/11/2013

Craig FitzGerald e Jamie O'Hara - Subcomandante Marcos e Movimento Zapatista: Terra, Nação e Autonomia

por Jamie O'Hara e Craig FitzGerald



Para que a autonomia descentralizada floresça, comunidades independentes devem ser internamente coesas. Essa unidade tribal é a essência do nacionalismo, e grupos indígenas tem vivido em acordo com esse princípio por milênios. Porém, povos que são produtos de um Estado corporativo globalizado não compreendem esse nacionalismo orgânico e portanto o atacam. Mas isso emerge da confusão de Nações com Estados. A distinção entre essas duas entidades não pode deixar de ser enfatizada. Ward Churchill expressa com muito sucesso essa diferença, e a perspectiva indígena em que ele contextualiza seu ponto serve para elucidar as coisas ainda mais:

“Uma confusão de termos que...ainda parece assolar o discurso, é a confusão do termo ‘nação’ e do termo ‘Estado’. ...Muitos anarquistas correm por aí pensando serem antinacionalistas, que a nacionalidade, o nacionalismo em todas as suas formas, é necessariamente algum tipo de mal a ser combatido, quando é exatamente isso que eles querem criar. Há quatro ou cinco mil nações no planeta; há duzentos Estados. Eles estão usando ‘antinacionalista’ como código para antiestatista. Com povos indígenas, a nacionalidade é um ideal afirmativo, e ela não possui qualquer tipo de similaridade a estruturas estatais” [1].

Algo que tem sido intuitivo para tribos indígenas através da história é bloqueado da consciência do resto do mundo por construtos mentais cismáticos que exaltam conceitos e linguagem acima das nuances da realidade prática. Mas nem todos os radicais caem nesse campo. Comunidades autônomas que tem sido influenciadas por métodos indígenas de organização social são os melhores exemplos de independência sustentável. Um dos exemplos atuais de maior sucesso disso é o movimento zapatista no México, que sincretiza tradições indígenas e teoria política revolucionária.

Chiapas era o lugar ideal para o nascimento do movimento zapatista. Os grupos étnicos maias que vivem ali já tinham por anos experimentado uma autonomia de facto derivada da negligência do governo [2]. Eles também se auto-organizavam conforme seus valores culturais e costumes. Em 1983, três mestiços com formação no grupo guerrilheiro mexicano Forças de Liberação Nacional chegaram à região e uniram três povos indígenas para fundar o Exército Zapatista de Liberação Nacional. Um desses mestiços, conhecido como Subcomandante Insurgente Marcos, tinha uma abordagem bastante autoritária para organizar o movimento. Porém, ele logo percebeu a necessidade de incluir as aldeias indígenas que viviam onde ele e seus companheiros planejavam desafiar o Estado mexicano [3]. Marcos explicou a um grupo de jovens anarquistas que ele chegou se sentindo como a vanguarda revolucionária, mas depois reconheceu a importância de todos os indivíduos terem uma voz nas questões de suas terras natais [4]. Em outra entrevista, Marcos descreve sua evolução filosófica:

“...nós aprendemos que não dá para impor uma forma de política sobre o povo porque mais cedo ou mais tarde você acaba fazendo o mesmo que você criticou. Você critica um sistema totalitário e então oferece outro sistema totalitário. Você não pode impor um sistema político pela força. Antes, eles diziam ‘vamos nos livrar desse sistema de governo e colocar esse outro tipo de sistema no lugar’. Nós dizemos, ‘não, o sistema político não pode ser produto da guerra’. A guerra deve servir apenas para abrir o espaço na arena política para que o povo possa realmente ter uma escolha. Não importa quem vença, não importa se é a extrema-direita ou a extrema-esquerda, desde que eles conquistem a confiança do povo” [5].

Marcos aprendeu que os métodos de organização social usados nessas comunidades indígenas, incluindo um processo de tomada de decisões horizontal, são elementos antigos da cultura maia. [6] Ao harmonizar seus objetivos e métodos com valores e costumes locais, Marcos evoluiu a partir de seu dogmatismo esquerdista totalitário e aprofundou sua compreensão da relação entre terra, cultura, nação e autodeterminação.

Desde o levante zapatista em janeiro de 1994, [7] o Subcomandante Marcos tem sido objeto de uma quantidade desproporcional de atenção midiática. Em certa medida, isso faz sentido – ele é o porta-voz do grupo, e ele possui diversos traços (incluindo uma educação universitária e eloquência linguística) que o tornam o representante de relações públicas ideal. Mas ao mesmo tempo, veículos de mídia no México e no exterior se encantaram com Marcos e tenderam a negligenciar a maioria dos soldados do EZLN, os “humildes e simples” [8] homens e mulheres indígenas que tornaram o movimento possível. Apesar de se tornar algo como uma celebridade, Marcos consistentemente rejeitou uma posição de liderança unilateral [9].

Um exemplo dessa rejeição é a submissão voluntária do Subcomandante à hierarquia militar do CCRI-CG (Comitê Clandestino Revolucionário Indígena – Comando Geral). Similarmente, na contraparte desarmada do EZLN, a Outra Campanha, [10] o título de Marcos é “Delegado Zero”. O nome, que foi introduzido no contexto das eleições presidenciais mexicanas de 2006, alcança várias coisas: ele satiriza os candidatos em destaque no país à época, comunica um senso de transcendência em relação a conflitos políticos partidários, e implica a própria insignificância relativa de Marcos. Essa humildade não é tão comumente vista em pessoas políticas tão influentes. Isso é importante desde uma perspectiva anarquista porque demonstra que a liderança pode ser uma entidade fluida, e não é necessariamente uma questão de poder absoluto. Ao invés de ser inerentemente opressiva, a verdadeira liderança é meramente uma manifestação de associação voluntária. Em um contexto anarquista, as pessoas podem tomar decisões conscientes de “seguir” ou apoiar um certo indivíduo por razões particulares. Inversamente, o “líder” também escolhe conscientemente assumir ou não responsabilidade perante esses apoiadores. Cada lado da relação é soberana e não pode escolher se retirar da situação subitamente por qualquer razão. Esse é o tipo de liderança assumida por Marcos. Os zapatistas proclamam que eles “comandam obedecendo”.

Tais relações recíprocas entre cocriadores de comunidades (incluindo dentro de hierarquias voluntárias como o EZLN) são um reflexo da cultura e cosmovisão espiritual maias. Essa correspondência de necessidades políticas e valores religiosos também explica por que a terra é tão importante desde uma perspectiva indígenas. “Tierra y Libertad!” era o slogan do movimento zapatista original, e continua a ser um valor nuclear dos neozapatistas. Para povos indígenas no México e por todo o mundo, a terra é mais do que uma necessidade prática. Ela é não apenas a fonte da própria sustentação tangível; ela é também a fonte da conexão espiritual com o universo como um todo. A autossuficiência que utiliza os recursos naturais em harmonia com o ecossistema como um todo é parte do processo de realização do destino da humanidade. Ser indígena ou nativo a um pedaço de terra em particular acrescenta uma dimensão de significado a sua própria relação com a terra e ressalta a importância da autodeterminação local. As pessoas contribuem para a natureza simbiótica do ambiente desempenhando papéis únicos e cruciais em biorregiões microcósmicas. Como Neyra P. Alvarado Solis explica em “Terra e Cosmovisão Indígena”,

“No México hoje, há oficialmente cinquenta e seis grupos étnicos; dentre desses é possível encontrar uma variedade linguística e cultural que excede em muito a esse número. A cosmovisão de cada grupo expressa uma realidade regional e comunal, elaborada ao longo da história. Essas são culturas agrárias onde terra é vida, sustentadas por relações com forças sobrenaturais e nutridas em ritos comunais e familiares...” [11].

A diversidade étnica, linguística e cultural estão intrinsecamente conectada à diversidade biológica e natural. Há valor na preservação de cada forma de vida, mas há também valor no sincretismo e difusão, que são aspectos igualmente naturais da existência. Apesar do fato de que os povos habitam diferentes áreas geográficas com diferentes flora, fauna, topografia e sistemas aquáticos, todos possuem a mesma relação interdependente com a terra, da qual todos precisamos para sobrevivência. Consistente com o símbolo religioso e mito maia, os zapatistas usam metáforas agrárias para descrever sua visão da condução política. Em seu discurso final ao Fórum Nacional Indígena em 9 de janeiro de 1996, Marcos diz:

"Irmãos e irmãs:

Cada um possui seu próprio campo, seu próprio plantio, mas todos temos a mesma aldeia, ainda que algumas vezes falamos línguas diferentes e trajemos roupas diferentes. Convidamos a cada um de vocês a plantar sua própria horta e a sua própria maneira. Os convidamos a fazer desse fórum um bom arado e garantir que todos tenham semente e que a terra esteja bem preparada" [12].

Essas palavras ilustram a relação cooperativa entre diversas localidades individuais e a realidade geral da terra que partilhamos. Tal relação não é uma de homogeneidade ou universalismo, mas de complementariedade no sentido de que as formas infinitas de matéria no universo cocriam nossa experiência. A identidade zapatista se estende externamente em direção ao macrocosmo; sua organização de encontros "intergaláticos" de ativistas reflete este caráter.

Para o movimento zapatista hoje (como o do século XIX), nacionalidade é um conceito flexível e multifacetado. A sua própria identificação com a nação do México não preclui a sua identificação como indígena, maia, chiapaneca, tzotzil, mulher, idoso, e daí em diante até os níveis mais microcósmicos. Em verdade, essas múltiplas nações são compreendidas como constituindo a essência de um mundo autônomo. Como resultado dessa perspectiva, os direitos de autodeterminação étnica e preservação cultural são defendidos. Todos são bem vindos, mas os caracoles [13] não possuem política de portas abertas. Visitantes devem aquiescer a processos de formulários ou ter conexões existentes a indivíduos ou grupos com "passaportes zapatistas" [14]. Essa é uma necessidade óbvia de segurança; o EZLN e a Outra Campanha são agressivamente atacados pelo governo e forças armadas do México.

Segundo Marcos, os zapatistas acreditam que "o México deve reconstruir o conceito de nação" [15]. Apesar do caráter predominantemente indígena do movimento zapatista, e apesar da oposição do EZLN ao Estado mexicano, a identidade nacional dos zapatistas como mexicanos é sustentada. Isso é criticado por muitos radicais. Por que os zapatistas hasteiam a bandeira mexicana acima da vermelha e negra? Por que eles empregam argumentos constitucionais? Por que eles se predispõem a dialogar com o governo? Por que eles fazem comentários nacional-chauvinistas como, "de modo algum o Sexto Comitê do EZLN aceitará quaisquer pessoas em sua equipe de segurança que sejam de qualquer outra nacionalidade além de mexicana" [16]? A resposta é porque, novamente, a concepção zapatista de nacionalidade é fluida. Ela é maleável nas mãos de cada indivíduo. Promover uma diversidade de táticas na luta contra tal opressão onipresente é não apenas pragmático, como também indica que a recusa a ser limitado por cismas ideológicos é o futuro de um movimento de liberação autônomo e descentralizado.

Apesar de algumas críticas anarquistas e socialistas irrelevantes, [17] os zapatistas tem tido grande apelo por causa de seu próprio rechaço a caixas ideológicas. Estudiosos tem ressaltado essa qualidade [18], mas o próprio Marcos captura a dinâmica da melhor forma admitindo culpa a uma série de acusações de todo ângulo possível. É válido citar:

"Os brancos o acusam de ser escuro. Culpado.

Os escuros o acusam de ser branco. Culpado.

Os autênticos o acusam de ser indígena. Culpado.

Os indígenas o acusam de ser mestiço. Culpado.

Os machistas o acusam de ser feminista. Culpado.

As feministas o acusam de ser machista. Culpado.

Os comunistas o acusam de ser anarquista. Culpado.

Os anarquistas o acusam de ser ortodoxo. Culpado.

Os anglos o acusam de ser chicano. Culpado.

Os antissemitas o acusam de ser filossemita. Culpado.

Os judeus o acusam de ser pró-árabe. Culpado.

Os europeus o acusam de ser asiático. Culpado.

Os funcionários do governo o acusam de ser um oposicionista. Culpado.

Os reformistas o acusam de ser um extremista. Culpado.

Os radicais o acusam de ser reformista. Culpado.

A 'vanguarda histórica' o acusa de apelar à sociedade civil e não ao proletariado. Culpado.

A sociedade civil o acusa de perturbar sua tranquilidade. Culpado.

A Bolsa de Valores o acusa de arruinar seu café-da-manhã. Culpado.

O governo o acusa de aumentar o consumo de anti-ácidos por agências do governo. Culpado.

Os sérios o acusam de ser um piadista. Culpado.

Os adultos o acusam de ser uma criança. Culpado.

As crianças o acusam de ser um adulto. Culpado.

Os esquerdistas ortodoxos o acusam por não condenar homossexuais e lésbicas. Culpado.

Os teóricos o acusam de ser um prático. Culpado.

Os práticos o acusam de ser um teórico. Culpado.

Todos o acusam de tudo de ruim que já aconteceu. Culpado" [19].

Esse sentimento expressa uma transcendência de dogmas que é necessária para tempos modernos. Também comunica um tipo de leveza que beneficiaria o milieu político radical. Essas acusações, por mais "verdadeiras" que possam ser, não podem ser levadas a sério. Quando as pessoas que acreditam em liberdade e autonomia deixarem de discutir umas com as outras, elas terão tempo de efetivamente realizar coisas importantes em suas comunidades. É importante estar consciente de como nos comunicamos e interagimos porque a dinâmico entre ativistas e tribos diversas prenuncia o futuro sem o Estado. Isso não significa que todos tem que concordar. A visão zapatista encoraja uma amplitude infinita de autonomias diferentes. A idéia é criar "um mundo em que caibam muitos mundos" [20].

1 - Churchill, Ward. Upping the Anti, No. 1.

2 - Mattiace, Shannan L. “Mayan Utopias: Rethinking the State,” 188.

3 - Higgins, Nicholas. “The Zapatista Uprising and the Poetics of Cultural Resistance.”

4 - Weinberg, Bill. Homage to Chiapas, 197.

5 - Subcomandante Marcos. Interview with Medea Benjamin, 61.

6 - Subcomandante Marcos. “A Storm and a Prophecy: Chiapas: The Southeast in Two Winds,” 33. Aubry, Andres. “Autonomy in the San Andres Accords: Expression and Fulfillment of a New Federal Pact,” 225.

7 - At midnight on New Years Day, the EZLN released the First Declaration of the Lacandon Jungle, in which they expressed their reasons for declaring war on the Mexican state. The EZLN seized several Chiapas locations, destroying military structures and liberating prisoners in San Cristobal de las Casas. Many books and articles have detailed these events, and Zapatista communiques were consistently issued. The
First Declaration of the Lacandon Jungle is a good place to start.

8 - EZLN. Sixth Declaration of the Lacandon Jungle.

9 - Marcos has never appeared in public without wearing his mask. He explains that the mask is like a mirror. All individuals can look at his face and see themselves.

10 - The EZLN is the miltary wing of the Zapatista movement. The Other Campaign, created in 2006, is a strictly civilian-oriented project aimed at facilitating autonomy for many different groups.

11 - Alvarado Solis, Neyra P. “Land and Indigenous Cosmovision,” 127-8.

12 - Subcomandante Marcos. Closing Words to the National Indigenous Forum (1996), 93.

13 - Caracol, the Spanish word for snail shell, is a term the Zapatistas adopted to refer to their autonomous communities.

14 - Aubry, Andres. “Autonomy in the San Andres Accords: Expression and Fulfillment of a New Federal Pact,” 229.

15 - Subcomandante Marcos. “La entrevista insólita.” Proceso.

16 - Subcomandante Marcos. “Subdelegado Zero on Security Issues.”

17 -  “The EZLN is not Anarchist: Or Struggles at the Margins and Revolutionary Solidarity.” Willful Disobedience.

18 - Churchill, Ward. “A North American Indigenist View,” 154.

19 - Subcomandante Marcos. “The Retreat is Making Us Almost Scratch the Sky,” 231.

20 - EZLN. Fourth Declaration of the Lacandon Jungle.

11/11/2013

Alain de Benoist - Geopolítica Hoje

por Alain de Benoist



A geopolítica há muito tempo tem sido rejeitada pela opinião pública. Após a Segunda Guerra Mundial, ela se tornou a mais impopular das ciências sociais. Ela tem sido acusada de ser uma "ciência alemã" que não significava muito, exceto que devia seu ímpeto inicial aos princípios de geografia política enunciados pelo geógrafo alemão Friedrich Ratzel - o termo "geopolítica" tendo sido usado pela primeira vez pelo geógrafo sueco Rudolf Kjéllen em 1889. Em seu livro "Politische Geographie oder die Geographie der Staaten, des Verkehrs und des Krieges (1897)" Ratzel analisou as interações do Estado, considerado como corpo vivo, em termos de sua geografia e seu espaço. Um de seus discípulos foi o general bávaro Karl Haushofer, fundador da "Zeitschrift für Geopolitik". Foi apenas por uma óbvia confusão entre espaço no sentido geopolítico e "Lebensraum" que uma conexão/proximidade entre Karl Haushofer e o Nacional-Socialismo foi posta em questão. E isso de forma equivocada, e não apenas porque Haushofer nunca foi um ideólogo do Terceiro Reich. Mais importantemente, Hitler tinha muito mais simpatia pelos anglo-saxões do que ele tinha pelos eslavos. Ele travou uma guerra contra a Rússia, uma potência continental, e teria preferido se aliar à Grã-Bretanha, uma potência marítima. Se ele tivesse se subscrito à tese da geopolítica ele teria feito exatamente o oposto.

Ademais, a definição do campo de estudo dessa disciplina ou de seu status jamais deixou de ser um problema. A geopolítica estuda a influência da geografia sobre a política e a história, isto é, a relação entre espaço e poder (político, econômico ou outro). Ainda assim a definição permanece pouco clara, o que explica que a realidade tanto do conceito como da relação com seu objetivo foram disputadas. Ela, portanto, tem sido descrita como uma disciplina objetivando legitimar retrospectivamente eventos históricos ou decisões políticas.

Essas críticas, porém, não chegam ao âmago das coisas: Que podemos identificar através da história, constantes geográficas de ação política é, de fato, indisputável. A geopolítica permanece assim, uma disciplina de grande valor e grande importância. É até mesmo essencial se referir a ela em um mundo em transição, onde todas as cartas estão sendo redistribuídas ao redor do mundo. A geopolítica põe em perspectiva o peso de fatores meramente ideológicos, instáveis por definição, e relembra a existência de grandes constantes que transcendem regimes políticos bem como debates intelectuais.

De todos os conceitos específicos à Geopolítica, um dos mais significativos é indubitavelmente a oposição dialética entre Mar e Terra. "A história mundial", disse Carl Schmitt, "é a história do conflito entre potências marítimas contra potências continentais e de potências continentais contra potências marítimas". Era também a opinião do Almirante Castex bem como o de muitos outros geopolíticos. Halford Mackinder, por exemplo, define o poder da Grã-Bretanha pela dominação dos oceanos e mares. Ele percebe o planeta como uma totalidade composta de um "Oceano Global" e uma "Ilha Global", correspondendo a todo o espaço eurasiano bem como a África, e "ilhas periféricas", América e Austrália. Para dominar o mundo, devemos tomar a ilha global e primariamente o seu "coração", o Coração Continental, o pivô geográfico do mundo real se estendendo da Europa Central à Sibéria Ocidental e na direção do Mediterrâneo, do Oriente Médio e Sul Asiático. Um dos primeiros grandes navegadores ingleses, Sir Walter Raleigh, costumava dizer: "Quem controla os mares controla o comércio mundial; quem controla o comércio mundial tem todos os tesouros do mundo em sua posse, e de fato, todo o mundo".

Na história da humanidade, o confronto entre Terra e Mar é um conflito milenar entre a lógica continental européia e a lógica "insular" representada atualmente pelos EUA. Mas a oposição entre Terra e Mar vai muito além das perspectivas oferecidas pela Geopolítica. A Terra é um espaço formado por territórios diferenciados por fronteiras. Sua lógica é baseada em distinções claras entre guerra e paz, combatentes e não-combatentes, ação política e comércio. É portanto o lugar da política e da história por excelência. "A existência política é pura natureza telúrica" (Adriano Scianca). O mar é uma área/extensão homogênea, a negação de diferenças, limites e fronteiras. É um espaço de indiferenciação, o equivalente líquido do deserto. Sendo desprovido de centro, ele conhece apenas fluxos e refluxos e é assim que ele se relaciona à globalização pós-moderna. O mundo efetivo é de fato um mundo "líquido" (Zygmunt Bauman), que tende a eliminar tudo que é "terreno", estável, sólido, consistente, sustentável e diferenciado. É um mundo de fluxo operado por redes. O comércio em si, bem como sua lógica, é formado à maneira de fluxos e refluxos.

A geopolítica recuperou sua legitimidade com os vários conflitos que emergiram desde a década de 70. A maioria desses conflitos foram iniciados pelos EUA. Marcados desde suas origens puritanas pela convicção de serem "o novo povo eleito", os americanos tem tentado se estabelecer como um modelo universal, que traria ao mundo os benefícios do "american way of life" isto é, um modelo de civilização comercial, baseado na primazia do valor de troca e da lógica do lucro. Essa missão planetária seria seu "Destino Manifesto". A geopolítica é precisamente a disciplina que ajuda a explicar as constantes de sua política externa.

O desmonte da União Soviética, ao mesmo tempo tornou a globalização possível e marcou o desaparecimento de um tremendo competidor para a potência americana que então teve a tentação de moldar um mundo unipolar sob sua hegemonia. (O que tem sido chamado "Nova Ordem Mundial") Após o desmonte soviético os EUA se encontraram como um "Império sem sombra" (Eric Hobsbawm). Confiantes em sua superioridade tecnológica, em seu poderio militar, nos benefícios dados pelo sistema do dólar, eles pensaram que um "século americano" estava por vir. Convencidos a serem desse ponto em diante a única superpotência mundial, eles pretenderam desempenhar o papel de "polícia mundial". Os neoconservadores estiveram na vanguarda desse projeto. Essa foi a época em que Francis Fukuyama pensou que poderia anunciar o "Fim da História", nomeadamente o triunfo do capitalismo liberal e da democracia dos direitos humanos como o horizonte insuperável de nosso tempo.

Ao fim da década de 90, Arbatov, assessor de Gorbachev, declarou aos americanos: "Nós estamos dando a vocês o pior golpe: os estamos privando de seu inimigo". Palavras significativas. O desaparecimento do "Império Maligno" soviético ameaçou erradicar toda legitimidade da hegemonia americana sobre seus aliados. Isso significaria que, daí em diante, os americanos precisavam encontrar um inimigo alternativo, que representasse uma ameaça, real ou imaginária, que lhes permitiria se estabelecerem como mestres da "Nova Ordem Mundial". É o Islã radical, algo que eles constantemente encorajaram em décadas anteriores, que representará esse papel. Mas na realidade, seu objetivo fundamental permanece imutável. E este é impedir, em qualquer lugar do mundo, a emergência de um rival capaz de competir com eles e mais importante controlar o Coração Continental, a "ilha global".

Em seu livro O Grande Tabuleiro de Xadrez, publicado em 1997, Zbigniew Brzezinski enumera explicitamente os "imperativos geoestratégicos" que o EUA devem preencher para preservar sua hegemonia global. Descrevendo um projeto de "gerenciamento global" do mundo, ele alerta contra a "criação ou emergência de uma coalizão eurasiana" que "poderia buscar desafiar a supremacia americana". Em 2001, Henry Kissinger já dizia: "A América deve manter uma presença na Ásia, e seu objetivo geopolítico deve ser continuar a impedir que a Ásia se organize em um bloco não amistoso". Brzezinski relembrou por sua vez: "Quem controla a Eurásia, controla o mundo".

Controlar a Eurásia, significa, em primeiro lugar, adotar uma estratégia de cerco da Rússia e da China. A estratégia do cerco à Rússia inclui a instalação de novas bases militares na Europa Oriental, o estabelecimento de sistemas de defesa anti-mísseis na Polônia, República Tcheca e Romênia, apoiar o ingresso da Ucrânia e da Geórgia na OTAN, e perseguir uma política agressiva objetivando deslocar a influência russa em regiões importantes ao redor do Mar Negro, do Mar Cáspio e do Cáucaso. Em termos de fornecimento de energia, essa estratégia leva ao controle dos dutos da Ásia Central - a Ásia Central sendo transformada em um protetorado americano - encorajando o desenvolvimento de dutos no Mar Cáspio para circundar a Rússia e chegar à Turquia, bem como limitar o máximo possível o acesso de petroleiros russos aos estreitos do Bósforo e dos Dardanelos. É dentro desse contexto que devemos situar as "revoluções coloridas" na Sérvia (2000), Geórgia (2003), Ucrânica (2004) e Quirguizistão. Longe de serem movimentos espontâneos, estes foram organizados e apoiados desde fora com o incentivo do Fundo Nacional para a Democracia, uma fachada conveniente para a CIA.

O estabelecimento de um "arco de crise" para desestabilizar a esfera de influência tradicional russa no Cáucaso, Afeganistão e Ásia Central só pode ser compreendido nesse contexto. Usando a suposta "Guerra ao Terror": no Afeganistão os EUA e seus aliados estabeleceram bases militares nas antigas repúblicas soviéticas, incluindo, Tadjiquistão e Quirguizistão. O objetivo pode ser resumido em três palavras: cercar, desestabilizar, balcanizar.

Em paralelo e simultaneamente, eles tomaram a iniciativa de expandir maciçamente a OTAN na Europa Oriental e nos Balcãs até a fronteira russa, mesmo dentro da antiga URSS. Em 11 de Setembro de 2001, o Presidente George Bush tomou posição em favor de "uma grande OTAN do Mar Báltico ao Mar Negro" para pavimentar o caminho do Mar Cáspio e do Mar Negro. Isso é partir de uma estrutura relativamente estática a um modelo expedicionário de intervenções neocoloniais em todas as direções, centros geoestratégicos globais de gravidade escorregando, assim, na direção do Oriente Médio e da Ásia.

Manter a OTAN possui dois outros objetivos. O primeiro é continuar a dissuadir a União Européia de construir uma força de defesa européia comum e autônoma. Os americanos sempre consideraram que defesa européia significava para eles "o estabelecimento do pilar europeu da OTAN". O segundo objetivo é enfraquecer as relações entre Rússia e Europa Ocidental. A Alemanha é um alvo principal, dada a extensão de suas trocas tecnológicas, energéticas e econômicas com a Rússia. Nesse projeto, a União Européia se torna uma reles cabeça-de-ponte americana na Eurásia.

No Oriente Médio, onde eles confrontam sérios desafios devido a instabilidade da região, o insucesso de suas intervenções militares e o isolamento crescente de seu aliado israelense, os EUA estão desenvolvendo uma estratégia agressiva para responder à ascensão do Irã, que os preocupa por causa de seus recursos energéticos, sua relação privilegiada com China e Rússia, e sua influência crescente no Iraque e nos países do Golfo onde há minorias xiitas significativas. Finalmente, eles estão atualmente engajados em um retorno espetacular à África, por duas razões, para contrabalançear a influência da China e levar em consideração a importância crescente da África em termos de suprimentos energéticos globais.

Para desenvolver essa política agressiva, os EUA não carecem de meios tecnológicos e financeiros. Apesar de suas dificuldades financeiras e seus déficits excepcionais, seu orçamento militar, que cresce cada vez mais, está agora próximo dos 700 bilhões de dólares, uma quantia colossal, e equivalente a mais de 40% de todos os orçamentos militares combinados no mundo.

Porém, levanta-se a questão sobre se os EUA não alcançaram os limites de sua capacidade de expansão imperial. Suas questões domésticas pioram. O sistema do dólar, sobe o qual eles capitalizam, está à beira do colapso. A crise financeira global que começou lá em 2008 os atingiu com força. A sua balança comercial negativa e a dívida pública ultrapassam recordes.

Enquanto isso, na Rússia, Vladimir Putin, que claramente percebeu suas intenções, rompeu claramente com a era catastrófica sob Bóris Yeltsin, que havia santificado a onipotência dos "oligarcas".

Os eventos mais recentes relacionados à guerra civil na Síria ressaltaram novamente a importância da geopolítica. A perspicácia extrema de Vladimir Putin e seu Ministro do Exterior, Sergei Lavrov contra a indecisão de Barack Obama e a ingenuidade de François Hollande foram sintomáticas. Com sua intervenção na questão síria, a Rússia resgatou o seu papel como potência global importante e assim mostrou que ela não é uma parte negligenciável nas questões internacionais, e sim que ela deve ser considerada no futuro.

O "momento unipolar" portanto não durou nem 10 anos. Os americanos, que agora representam apenas 5% da população mundial, superestimaram sua força. O cerco a suas tropas no Iraque e Afeganistão, suas questões domésticas, seus déficits abissais, a instabilidade do sistema dólar e a crise financeira global lhes impôs limites. Torna-se rapidamente aparentem que eles não governarão o mundo inconteste. A História, cujo fim foi anunciado por Fukuyama, já retornou.

Um mundo multipolar está emergindo no esteio da rápida ascensão da China, seguida por Índia, Brasil e até mesmo Irã. Economias emergentes estão crescendo dramaticamente. Sua parte no PIB mundial em termos de paridade de poder de compra foi de 36% para 45% em 2008 e deve alcançar 51% em 2014.

A estratégia eurasiana levou, como reação, a uma reaproximação significativa entre Rússia e China, a qual se materializou na Organização de Cooperação de Xangai, fundada em junho de 2001, que também inclui quatro países da Ásia Central (Cazaquistão, Quirguizistão, Tadjiquistão e Uzbequistão) enquanto Irã, Mongólia, Índia e Afeganistão participam como observadores.

Nós sabemos que em anos recentes, o Irã fortaleceu seus laços com China e Rússia. Essa aliança pragmática se materializa hoje utilizando apoios geopolíticos mútuos que tem levado alguns observadores a considerar a possibilidade de testemunhar, nos anos vindouros, a ascensão de um tipo de "novo Império Mongol". Entre 1206 e 1294, o Império Turco-Mongol de Gengis Khan se estendeu pela Ásia Central antes de se dividir em quatro blocos. Hoje , a OCX, cujo principal objetivo é combater a influência americana na Ásia Central, está associada novamente com Rússia, China e Irã, três diferentes países, que ainda assim formam uma comunidade real de interesses que representam 1.5 bilhões de pessoas. A grande diferença em relação ao antigo Império Mongol, porém, é que o Irã de hoje vê a Turquia como uma potência regional rival.

Desde o fim do sistema soviético, nós entramos em um interregnum - uma Zwischenzeit. O antigo Nomos da Terra já se foi, mas só se pode especular sobre os contornos de um novo Nomos. O atual grande conflito global é um que opõe o poder continental eurasiano à talassocracia americana. A principal questão é se estamos nos dirigindo a um mundo unipolar, um universum, ou a um mundo multipolar, um pluriversum.

O problema é que os europeus raramente tem consciência disso. Os americanos podem ter muitos defeitos, mas há algo que não lhes pode ser negado, e é o fato de que eles tem consciência do que está em jogo no âmbito global e tentam pensar o mundo vindouro. Na Rússia e na China também, eles pensam o mundo vindouro. Os europeus não. Eles se importam apenas com o momento presente. Eles vivem sob um horizonte de destino, com instituições que os condenam à impotência e à paralisia. A Europa vive em um estado de ausência de peso. Encarando uma crise moral sem precedentes, o problema da imigração, uma população cada vez mais velha, offshoring econômico e competição global. Parece que a Europa não pode defender sua posição em um mundo globalizado. Portando uma identidade que ela (Europa) não pode mais definir, assombrada pelo desejo secreto de se retirar da História - assim correndo o risco de se tornar o objeto da história do Outro - os homens pensantes por todo lado são da mesma disposição. A Europa está agora "pobre-no-mundo" (Heidegger). Ela (Europa) parece exausta, acometida pela lassidão que leva a não querer nada. A geopolítica da impotência? A ascensão da insignificância? As notas de euro são como seu reflexo: elas representam apenas o vazio.

No passado, a geopolítica aplicou seus limites principalmente a nível estatal, os mesmos Estados que parecem ter adentrado uma crise irreversível, pelo menos no hemisfério ocidental. Agora, depende da lógica dos continentes que há muito tem estado ocultos sob as condutas desordenadas dos Estados, mas que agora são mais fundamentais do que nunca. Ela (a geopolítica) ajuda a pensar em termos não apenas de países, mas também de continentes (Jordis von Lohausen). O Mar contra a Terra, agora são os EUA contra o "resto do mundo", e primeiro contra o bloco continental eurasiano e europeu. Nesse sentido, o colapso do sistema soviético clarificou as coisas. Há agora apenas duas posições possíveis: ou se está ao lado do poder marítimo americano ou se está ao lado do poder continental europeu. Eu estou com este último.