02/10/2013

Eduard Alcántara - O Homem da Tradição e a Morte

por Eduard Alcántara



Para o homem moderno a morte significa o fim. Para ele não há outro estado de existência que não seja o da vida terrena. O materialismo de que está impregnado não lhe permite conceber outras realidades para além da meramente física. Mas apesar da brutal materialização sofrida no seio da modernidade e da pós-modernidade, há indivíduos que ainda aderem a uma certa religiosidade nas suas vidas, embora, como as vias exclusivamente devocionais que seguem não concebem nenhuma via de transubstanciação interna (de desapego) do ser humano, o apego à vida destes indivíduos com inquietudes religiosas acaba por ser muito semelhante ao que é próprio dos seus congêneres ateus ou agnósticos. Assim, também para os crentes, enfrentar a morte torna-se algo traumático. 

Para quem aspira à sua transformação em Homem da Tradição, o tema da morte deve ter conotações bem diferentes, pois se tiver conseguido (graças a uma disciplina iniciática) superar em vidas estados autotransformadores sem ter chegado a culminá-los pode, após o momento da morte, coroar as últimas etapas que levem a sua Alma já totalmente Espiritualizada a tornar-se una com o Princípio Supremo que se encontra na origem, e além, de toda a manifestação.

A morte pode representar, vistas assim as coisas, uma oportunidade excelente para o Homem da Tradição finalizar o que não pôde ser finalizado em vida. É neste sentido que Julius Evola comentava que "a libertação consiste em atingir um estado de unidade com a suprema realidade metafísica. Aquele que, ainda que aspirando a tal, não foi capaz de realizá-lo em vida de homem, tem a possibilidade de o fazer no momento da sua morte ou nos estados que imediatamente se lhe seguem".




O desprezo pela morte, não lhe ter medo, acelerará também o processo descondicionador do homem diferenciado que se tenha aventurado pelos caminhos que levam à metanóia (ou segundo nascimento: às Realidades Metafísicas) pois a chamada nigredo alquímica supõe a superação de paixões, impulsos ,medos, fobias, ódios e sentimentos condicionantes. Assim, num filactério situado no frontispício da cidade grega de Esparta podia-se ler que "só o desprezo pela morte dá a liberdade"; liberdade em relação a tudo aquilo que condiciona, limita e escraviza o homem. 

O que pode representar a morte (e/ou o seu processo posterior post mortem: consultar o Bardo Thodol ou "Livro Tibetano dos Mortos") para o Iniciado que em vida atingiu uma grande substanciação interior pode ser a Libertação. Deste modo encarará sem medo a possibilidade de morrer e compreenderá estas palavras, presentes no Bhagavad Gita, do deus Krishna ao príncipe Arjuna: "Morto terás o paraíso, vitorioso terás a terra; lança-te por isso resoluto à batalha".

Uma boa maneira de não temer a morte é - em vez de afastá-la do pensamento tal como faz o medroso homem moderno - enfrentar cada novo dia das nossas vidas como se fosse o último da nossa existência terrena, pois deste modo vamos nos familiarizando com ela e saberemos, quando chegar o momento, enfrentá-la com naturalidade. Noutras épocas em que o vírus do mundo moderno não estava presente, educava-se e preparava-se as pessoas de forma a terem sempre presente a possibilidade de morrer e evitar, deste modo, o medo de se deparar com ela. Assim, o historiador galo-romano Pompeu Trogo escrevia, no século I a.C., acerca dos habitantes da Hispânia e em relação ao seu espírito guerreiro, que estes tinham "o corpo bem adaptado à fadiga e à privação, e a alma habituada ao desprezo pela morte".

A tomada de consciência da efemeridade da vida e da insignificância que esta representa no que respeita a uma série de forças sutis (numens) e no que respeita ao Princípio Superior e Eterno que se "ligou" a ela também deve ajudar a convencer o homem diferenciado que este não pode considerar trágica a extinção de algo tão passageiro e caduco. Bem nos explicava Evola esta realidade dizendo-nos que "o estado humano de existência é apenas uma fase de um ritmo que vem desde o infinito e prossegue em direção ao infinito. Assim, a morte não tem nada de trágico: é uma simples alteração de estado, uma das muitas pelas quais um princípio essencialmente suprapessoal passa" (note-se que o mestre italiano está a fazer referência à doutrina dos "estados múltiplos do Ser" tão excelentemente exposta por René Guénon).

A efemeridade da vida é sinônimo da sua caducidade e da sua subordinada relevância pelo que a existência terrena terá sentido se for aplicada no desenvolvimento do Eterno - o Atman - que o ser humano possui no seu interior; se se conceber a vida como uma empresa transformadora em que se embarca, tal como se pode deduzir do lema da medieval Liga Hanseática: "Navigare necesse est, vivere non necesse" ("navegar é necessário, viver não o é").

Falávamos acima do Bardo Thodol, do qual Evola fez um magistral resumo como epílogo da sua obra "Yoga della potenza". Nele descreve-se como a alma do falecido se deparará, no post mortem, com diversos planos da realidade perante os quais pode sentir pavor e, por este motivo, não se identificar nem se integrar ontologicamente em nenhum deles; e pode sentir pavor por não ter aplicado processos descondicionadores e palingenésicos em vida ou por tê-lo feito de forma insuficiente, o que impedirá que a sua alma se una ao Eterno não manifestado e mesmo às forças sutis que formam a estrutura cósmica.

O homem diferenciado que tenha decidido percorrer o caminho que o pode transformar em autêntico Homem da Tradição (em Homem Absoluto) deverá ter presente que são de dois tipos diferentes (quanto a sua natureza) os medos com os quais pode ter de se enfrentar e que, nesse caso, terá de dominar: os propriamente humanos (psíquicos) do homem comum e os de tipo metafísico com os quais se pode deparar no seu percurso Iniciático ou após a morte. Medos diferentes para os quais Evola adverte neste par de citações esclarecedoras: "A destruição do medo é um princípio da ascese a seguir não só no plano humano mas também no do mundo superior" e "Seja frente às forças inferiores ou às forças 'divinas', o homem asceticamente integrado e imperturbável não cede a movimentos irracionais da alma: desespero ou terror".

O sentido que a existência terrena deve ter para o homem que aspire a sê-lo da Tradição terá de ser o de a encarar como um teste (um campo de batalha) no qual pode Espiritualizar a sua alma e deve, igualmente, ter a certeza de que caso não se cumpra em vida este objetivo na sua totalidade, restam-lhes as experiências depois da morte, morte esta que não temerá em absoluto porque pode abrir as portas à Libertação Absoluta.