Muitos livros em nosso séculos foram escritos sobre a visão do mundo feminino, sobre a psicologia feminina e sobre o erotismo feminino. Muitos poucos foram escritos sobre os homens. E estes poucos estudos deixam uma impressão bastante desoladora. Dois deles, escritos por conhecidos sociólogos são especialmente sombrios: Paul Duval - "Homens. O Sexo em Vias de Extinção", David Riseman - "O Mito do Homem na América". A multidão masculina de faces diversas não inspira otimismo. Ao contemplar a multidão masculina nos entristecemos: "ele", "eles"...com seus trajes discretos, gravatas mal amarradas...seus movimentos estereotipados e gestos estão submetidos à fatal estratégia do mais pulcro pesadelo. Tem pressa porque "estão ocupados". Ocupados em quê? Em conseguir o dinheiro para suas fêmeas e para os pequenos vampiros que estão crescendo.
São covardes e por isso gostam de se juntar em manadas. Se prescindimos das refinadas divagações, a covardia não é mais que uma tendência centrípeta, desejo de encontrar um centro seguro e estável. Os homens tem medo de suas próprias idéias, dos bandidos, dos chefes, da "opinião pública", das aranhas que sugam seu dinheiro. Porém as mulheres são as que mais medo lhes causam. "Ela" caminha colorida e bem centrada, seu peito vibra tentadoramente... e os olhos ansiosos seguem suas curvas, e a carne se rebela dolorosamente. Sua frieza - que desgraça, sua compaixão erótica - que felicidade! "Ela" é a matéria formada de maneira atraente nesse mundo material, em que vivemos somente uma vez, "ela" é uma idéia, um ídolo, seus emergentes encantos saltam dos outdoors, capas de revistas e telas. "Ela" é uma bem concreto. O corpo feminino bonito custa caro, talvez mais barato que "A maja nua" de Goya, mas há que pagar. Uma prostituta cobra por horas, a amante ou esposa, naturalmente, pedem muito mais. O lema do matrimônio estadounidense é sex for support. As portas do paraíso sexual se abrem com a chave de ouro. O corpo masculino sem qualificar e sem se tornar musculoso não vale nada.
A Realidade da Civilização Burguesa
Ainda que nos acusem de exagerar, a situação segue sendo triste. A igualdade, emancipação, o feminismo são os sintomas do crescente domínio feminino, porque a "igualdade dos sexos" não é mais que outro fantasma demagógico da vez. O homem e a mulher devido à marcada diferença de sua orientação estão lutando permanentemente de forma aberta ou encoberta, e o caráter do ciclo histórico-social depende do domínio de um ou outro sexo. O homem por natureza é centrípeto, se move da esquerda para a direita, para a frente, de baixo para cima. Na mulher é tudo ao contrário. O impulso "puramente masculino" é entregar e apartar, o impulso "puramente feminino" é retirar e conservar. Claro que se tratam de impulsos muito esquemáticos, porque cada ser em maior ou menor medida é andrógeno, porém está claro que da ordenação e harmonização desses impulsos depende o bem-estar do indivíduo em particular e da sociedade em seu conjunto, porém semelhante harmonia é impossível sem a irracionalidade ativa do eixo do ser, convencimento intuitivo da certeza do sistema de valores próprios, a instintiva fé no acertado do caminho próprio. De outro modo a energia centrípeta ou destroçará o homem, ou lhe obrigará a buscar algum centro e ponto de aplicação de suas forças no mundo exterior. O que leva à destruição da individualidade e à perda total de controle do princípio masculino próprio. A energia erótica ao invés de ativar e temperar o corpo, como ocorre em um organismo normal, começa a ditar ao corpo suas próprias condições vitais.
A androgenia do ser está provocada pela presença feminina na estrutura psicossomática masculina. A "mulher oculta" se manifesta no nível anímico e espiritual como o princípio regulador que sujeita o ideal estrelado do "céu interior". O homem deve manter a fidelidade a essa "bela dama", a aventura amorosa é a busca da sua equivalente terrena. No caso contrário estará cometendo uma infidelidade cardinal, existencial.
Porém do que estamos falando?
Do amor.
A maioria dos homens atuais pensarão que se trata de besteirol romântico, que só vale quando se fala dos trovadores e cavaleiros. Ouçam, nos dirão, todos nós - mulheres e homens - vivemos em um mundo cruel e tecnificado em condições de luta e competição. Todos por igual dependemos dessas duras realidades, e nesse sentido se pode falar da igualdade dos sexos. Quanto à dependência do sexo, saberá que em todos os tempos houve obcecados e erotômanos. Em efeito, as mulheres agora desempenham um papel maior, mas não é suficiente para falar de um tal "matriarcado".
Certamente, não se pode falar do "matriarcado" na atualidade em sentido estrito. Segundo Bachofen, o matriarcado é mais exatamente um conceito jurídico, relacionado com o "direito das mães". Porém perfeitamente podemos nos ocupar da ginecocracia, do domínio da mulher, devido à orientação eminentemente feminina da História Moderna. Aqui está a definição de Bachofen:
"O ser ginecocrático é o naturalismo ordenado, o predomínio do material, a supremacia do desenvolvimento físico". - J.J. Bachofen. Mutterrecht, 1926, p.118
Ninguém poderá negar o êxito da Época Moderna nesse sentido. Ao longo dos últimos dois séculos na psicologia humana se produziu uma mudança fundamental. De cara à natureza masculina lhe são antipáticas as categorias existenciais tais como "a propriedade" e o tempo no sentido de "duração". O caráter centrípeto, explosivo do falicismo exige instantes e "segundos" que estão fora da "duração", que não se compõem em "duração". O destino ideal do homem é avançar para a frente, superar o peso terreno, buscar e conquistar novos horizontes do ser, desprezando sua vida, se por vida se entende a existência homogênea, rotineira, prolongada no tempo. Os valores masculinos são o desinteresse, a bondade, a honra, a interpretação celestial da beleza. Desde este ponto de vista, "Lorde Jim" de Joseph Conrad é quase o último romance europeu sobre um "homem de verdade". Jim, simples marinheiro, ofendido em sua honra, não o pode perdoar ou superar. Por isso o autor lhe concedeu o título, porque a honra é o privilégio e o valor da nobreza. O justo e o cavaleiro errante são os homens autênticos.
Poderão responder: se todos se põem a se fingir de Quixote ou a falar com os pássaros, em que se converterá a sociedade humana? É difícil responder a essa pergunta, porém é fácil observar em que se converteria dita sociedade sem São Francisco e sem Dom Quixote. Dom Quixote é muito mais necessário para a sociedade que uma dezena de consórcios automobilísticos.
A civilização burguesa é semi-civilização, é um sem-sentido. Para criar a civilização fazem falta os esforços conjuntos dos quatro estamentos.
Falamos: centralização, centrípeto. Não obstante não é nada fácil definir o conceito "centro". O centro pode ser estático ou errante, manifesto ou não, se pode amá-lo ou odiá-lo, se pode saber dele, ou suspeitar, ou pressenti-lo, com a sutilíssima e enganosa antena da intuição. É possível ter vivido a vida sem ter nem idéia acerca do centro da existência própria. Se trata do paradoxal e imóvel móvel de Aristóteles. No centro coincidem as forças centrífugas e as centrípetas. Quando uma delas apaga à outra o sistema ou explora ou se paralisa em uma morte gélida. É evidente: o incognoscível do centro garante sua centralidade, porque o contro percebido e explicado sempre se arrisca a se trasladar à periferia. Daí a conclusão: o centro permanente não se pode conhecer, há que crer nele. Por isso Deus, honra, bem, beleza são centros permanentes. É a condição principal da atividade masculina dirigida, radial.
Nos dois primeiros estamentos - o sacerdotal e o da nobreza - a atividade masculina, entendida dessa forma, domina sobre a feminina. E unicamente com a posição normal, quer dizer alta, desses estamentos se cria a civilização, em todo caso a civilização patriarcal. O burguês reconhece os valores ideais nominalmente, porém prefere as virtudes mais práticas: a honra se substitui pela honradez, a justiça pela decência, o valor pelo risco razoável. No burguês a energia centrífuga está submetida à centrípeta, porém o centro não se encontra dentro da esfera de sua individualidade, o centro há que se afirmar em algum lugar do mundo exterior para se converter em seu satélite. A tendência de "entregar e apartar" nesse caso é possível como uma manobra tática da tendência de "retirar, conservar, adquirir, aumentar".
Depois da revolução burguesa francesa e da fundação dos Estados Unidos da América do Norte veio a derrubada definitiva da civilização patriarcal. A rebelião da Vendéia, seguramente, foi a última labareda do fogo sagrado. No século XIX o princípio masculino se dispersou pelo mundo orientado ao material, fazendo-se notar no dandismo, nas correntes artísticas, no pensamento filosófico independente, nas aventuras dos exploradores dos países desconhecidos. Porém seus representantes, naturalmente, não podiam deter o progresso positivista. A sociedade expressava a admiração por seus livros, quadros e façanhas, mas os via com bastante suspeita. Marx e Freud contribuíram bastante para o triunfo da ginecocracia materialista. O primeiro proclamou a tendência ao bem estar econômico como a principal força motriz da história, enquanto que o segundo expressou a dúvida global acerca da saúde psíquica daquelas pessoas cujos interesses espirituais não servem ao "bem comum". Os portadores do autêntico princípio masculino paulatinamente se converteram nos "homens sobrantes" ao estilo de alguns protagonistas da literatura russa. "Wozu ein Dichter?" (Para quê o poeta?) - perguntava Hölderlin com ironia todavia a princípios do século XIX. Certamente para que fazem falta em uma sociedade pragmática os sonhadores, os inventores de miragens, das doutrinas perigosas e demais mestres da presença inquietantes? Gottfried Benn refletiu a situação com exatidão em seu maravilhoso ensaio "Palas Atenea":
"...representantes de um sexo que está morrendo, úteis tão somente em sua qualidade de copartícipes na abertura das portas do nascimento... Eles tentam conquistar a autonomia com seus sistemas, suas ilusões negativas ou contraditórias - todos esses lamas, budas, reis divinos, santos e salvadores, que em realidade nunca salvaram ninguém, nem a nada - todos esses homens trágicos, solitários, alheios ao material, surdos perante o chamado secreto da mãe-terra, lúgubres caminhantes... Nos estados de alta organização social, onde tudo acaba na normalidade com o acasalamento, os odeiam e toleram tão só até que chegue o momento".
Os estados dos insetos, sociedades de abelhas e cupins, estão perfeitamente organizados para os seres que "só vivem uma vez". A civilização ocidental muito exitosamente se dirige a semelhante ordem ideal e nesse sentido representa um episódio bastante raro na história. É difícil encontrar no passado abarcável uma formação humana, afiançada sobre as bases do ateísmo e uma construção estritamente material do universo. Aqui não importa o que é que se coloca exatamente como a pedra angular: o materialismo vulgar ou o materialismo dialético ou os processos microfísicos paradoxais. Quando a religião se reduz ao moralismo, quando a alegria do ser se reduz a uma dezena de "prazeres" primitivos, pelos quais ademais há que pagar não se sabe quanto, quando a morte física aparece como "o final do todo" acaso se pode falar do impulso racional e de sua sublimação? Por isso nos anos vinte Max Scheler desenvolveu sua conhecida tese sobre a "ressublimação" como uma das principais tendências do século. Segundo Scheler a jovem geração já não deseja, à maneira de seus pais e avós, gastar as forças nas buscas improdutivas do absoluto: contínuas especulações intelectuais exigem demasiada energia vital, que é muito mais prático utilizar para a melhora das condições concretas corporais, financeiras e outras. Os homens atuais anseiam pela ingenuidade, pela despreocupação, pelo esporte, desejam prolongar a juventude. O famoso filósofo Scheler, ao parecer, saudava semelhante tendência. Se visse no que se converteu esse jovem empenhado em se rejuvenescer e contemplasse também no que se converteu o esporte e outros entretenimentos saudáveis!
E ademais.
Acaso a sublimação se reduz às especulações intelectuais? Acaso o impulso para a frente e para o alto se reduz aos saltos de longitude e altitude? A sublimação não se realiza nos minutos de bom estado de humor e não se acaba com a leseira. Tampouco é o êxtase. É um trabalho permanente e dinâmico da alma para ampliar a percepção e transformar o corpo, é o conhecimento do mundo e dos mundos, atormentado aprendizado do alpinismo celestial. E ademais se trata de um processo natural.
Se um homem tem medo, foge ou nem mesmo reconhece o chamado da sublimação, é que, propriamente, não pode se chamar homem, quer dizer um ser com um sistema irracional de valores marcadamente pronunciado. Inclusive com a barba farta ou bíceps imponentes seguirá sendo uma criança, que depende totalmente dos caprichos da "grande mãe". Obrigando o espírito a resolver os problemas pragmáticos, esgotando a alma com a vaidade e a lascívia, sempre se arrastará de joelhos buscando o consolo, os ânimos e o carinho.
Porém a "grande mãe" não é em absoluto a amorosa Eva patriarcal, carne da carne do homem, é a sinistra criação da eterna escuridão, parente próxima do caos primordial, não-criado: sob o nome de Afrodite Pandemos envenena o sangue masculino com o pesadelo sexual, com o nome de Cibele lhe ameaça com castração, a loucura e o leva ao suicídio. Alguns se perguntarão que relação tem toda essa mitologia com o conhecimento racional e ateísta? A mais direta. O ateísmo não é mais que uma forma de teologia negativa, assimilada de maneira pouco crítica ou inclusive inconsciente. O ateu crê ingenuamente no poder total da razão como instrumento fálico, capaz de penetrar até onde se queira nas profundezas da "mãe-natureza". Sucessivamente admirando a "harmonia surpreendente que reina na natureza" e indignando-se ante as "forças elementais, cegas da natureza" é como uma criança mimada que quer receber dela tudo sem dar nada em troca. Ainda que ultimamente, assustado perante as catástrofes ecológicas e a perspectiva de ser trasladado em um futuro próximo às hospitaleiras superfícies de outros planetas, apela à compaixão e ao humanismo.
Porém o "sol da razão" não é mais que o fogo fátuo do pântano e o instrumento fálico não é mais que um brinquedo nas mãos depredadoras da "grande mãe". Não se deve aproximar ao princípio feminino que cria e que também mata com a mesma intensidade. "Dama Natura" exige manter a distância e a veneração. O entendiam bem nossos patriarcais antepassados, tendo cuidado de não inventar o automóvel, nem a bomba atômica, que punham nos caminhos a imagem do deus Término e escreviam nas colunas de Hércules "non plus ultra".
O espírito se desperta no homem bruscamente e esse processo é duro - essa é a tese principal de Erich Neumann, um seguidor original de Jung, em sua "História do Aparecimento da Consciência". O mundo orientado ginecocraticamente odeia essas manifestações e procura acabar com elas utilizando diferentes métodos. O que na época moderna se entende por "espiritualidade", se destaca por suas características especificamente femininas: fazem falta memória, erudição, conhecimentos sérios, profundos, um estudo pormenorizado do material - em uma palavra, tudo o que se pode conseguir nas bibliotecas, arquivos, museus, onde, qual se fora o baú da velha, se guardam todas as bagatelas. Se alguém se rebela contra semelhante espiritualidade, sempre poderão acusá-lo de superficialidade, diletantismo, aventureirismo - características essencialmente masculinas. Daí os compromissos degradantes e o medo do indivíduo perante as leis ginecocráticas do mundo exterior, que a psicologia profunda em geral e Erich Neumann em particular denominam o "medo da castração". "Tendência a resistir - escreve Erich Neumann - o medo da 'grande mãe', medo da castração, são os primeiros sintomas do rumo centrípeto tomado e da autoformação". E continua:
"A superação do medo da castração é o primeiro êxito na superação do domínio da matéria" - Erich Neumann. Urspruggeschichte des Bewusstseins, Munchen, 1975, p.83
Agora, na era da ginecocracia, semelhante concepção constitui em verdade um ato heróico. Porém, o "homem autêntico" não tem outro caminho. Vamos ler umas linhas de Gottfried Benn do já citado ensaio:
"Dos processos históricos e materiais sem sentido surge a nova realidade, criada pela exigência do paradigma eidético, segunda realidade, elaborada pela ação da decisão intelectual. Não existe o caminho de retorno. Orações a Ishtar, retornos à grande mãe, invocações ao reino da mãe, entronização de Gretchen sobre Nietzsche - tudo é inútil: não voltaremos ao estado natural".
É assim?
Por um lado: conhecimento doce, embriagador: suas vibrações, movimentos graciosos, zonas erógenas...paraíso sexual.
Pelo outro:
"Atena, nascida do sêmen de Zeus, de olhos azuis, resplandescente armadura, deusa nascida sem mãe. Palas - a alegria do combate e da destruição, cabeça de Medusa em seu escudo, sobre sua cabeça o lúgubre pássaro noturno; retrocede um pouco e de golpe levante a gigantesca pedra que servia de linde - contra Marte, que está do lado de Tróia, de Helena... Palas, sempre com seu elmo, não fecundada, deusa sem filhos, fria e solitária".
Certamente, não se pode falar do "matriarcado" na atualidade em sentido estrito. Segundo Bachofen, o matriarcado é mais exatamente um conceito jurídico, relacionado com o "direito das mães". Porém perfeitamente podemos nos ocupar da ginecocracia, do domínio da mulher, devido à orientação eminentemente feminina da História Moderna. Aqui está a definição de Bachofen:
"O ser ginecocrático é o naturalismo ordenado, o predomínio do material, a supremacia do desenvolvimento físico". - J.J. Bachofen. Mutterrecht, 1926, p.118
Ninguém poderá negar o êxito da Época Moderna nesse sentido. Ao longo dos últimos dois séculos na psicologia humana se produziu uma mudança fundamental. De cara à natureza masculina lhe são antipáticas as categorias existenciais tais como "a propriedade" e o tempo no sentido de "duração". O caráter centrípeto, explosivo do falicismo exige instantes e "segundos" que estão fora da "duração", que não se compõem em "duração". O destino ideal do homem é avançar para a frente, superar o peso terreno, buscar e conquistar novos horizontes do ser, desprezando sua vida, se por vida se entende a existência homogênea, rotineira, prolongada no tempo. Os valores masculinos são o desinteresse, a bondade, a honra, a interpretação celestial da beleza. Desde este ponto de vista, "Lorde Jim" de Joseph Conrad é quase o último romance europeu sobre um "homem de verdade". Jim, simples marinheiro, ofendido em sua honra, não o pode perdoar ou superar. Por isso o autor lhe concedeu o título, porque a honra é o privilégio e o valor da nobreza. O justo e o cavaleiro errante são os homens autênticos.
Poderão responder: se todos se põem a se fingir de Quixote ou a falar com os pássaros, em que se converterá a sociedade humana? É difícil responder a essa pergunta, porém é fácil observar em que se converteria dita sociedade sem São Francisco e sem Dom Quixote. Dom Quixote é muito mais necessário para a sociedade que uma dezena de consórcios automobilísticos.
A civilização burguesa é semi-civilização, é um sem-sentido. Para criar a civilização fazem falta os esforços conjuntos dos quatro estamentos.
Falamos: centralização, centrípeto. Não obstante não é nada fácil definir o conceito "centro". O centro pode ser estático ou errante, manifesto ou não, se pode amá-lo ou odiá-lo, se pode saber dele, ou suspeitar, ou pressenti-lo, com a sutilíssima e enganosa antena da intuição. É possível ter vivido a vida sem ter nem idéia acerca do centro da existência própria. Se trata do paradoxal e imóvel móvel de Aristóteles. No centro coincidem as forças centrífugas e as centrípetas. Quando uma delas apaga à outra o sistema ou explora ou se paralisa em uma morte gélida. É evidente: o incognoscível do centro garante sua centralidade, porque o contro percebido e explicado sempre se arrisca a se trasladar à periferia. Daí a conclusão: o centro permanente não se pode conhecer, há que crer nele. Por isso Deus, honra, bem, beleza são centros permanentes. É a condição principal da atividade masculina dirigida, radial.
Nos dois primeiros estamentos - o sacerdotal e o da nobreza - a atividade masculina, entendida dessa forma, domina sobre a feminina. E unicamente com a posição normal, quer dizer alta, desses estamentos se cria a civilização, em todo caso a civilização patriarcal. O burguês reconhece os valores ideais nominalmente, porém prefere as virtudes mais práticas: a honra se substitui pela honradez, a justiça pela decência, o valor pelo risco razoável. No burguês a energia centrífuga está submetida à centrípeta, porém o centro não se encontra dentro da esfera de sua individualidade, o centro há que se afirmar em algum lugar do mundo exterior para se converter em seu satélite. A tendência de "entregar e apartar" nesse caso é possível como uma manobra tática da tendência de "retirar, conservar, adquirir, aumentar".
Depois da revolução burguesa francesa e da fundação dos Estados Unidos da América do Norte veio a derrubada definitiva da civilização patriarcal. A rebelião da Vendéia, seguramente, foi a última labareda do fogo sagrado. No século XIX o princípio masculino se dispersou pelo mundo orientado ao material, fazendo-se notar no dandismo, nas correntes artísticas, no pensamento filosófico independente, nas aventuras dos exploradores dos países desconhecidos. Porém seus representantes, naturalmente, não podiam deter o progresso positivista. A sociedade expressava a admiração por seus livros, quadros e façanhas, mas os via com bastante suspeita. Marx e Freud contribuíram bastante para o triunfo da ginecocracia materialista. O primeiro proclamou a tendência ao bem estar econômico como a principal força motriz da história, enquanto que o segundo expressou a dúvida global acerca da saúde psíquica daquelas pessoas cujos interesses espirituais não servem ao "bem comum". Os portadores do autêntico princípio masculino paulatinamente se converteram nos "homens sobrantes" ao estilo de alguns protagonistas da literatura russa. "Wozu ein Dichter?" (Para quê o poeta?) - perguntava Hölderlin com ironia todavia a princípios do século XIX. Certamente para que fazem falta em uma sociedade pragmática os sonhadores, os inventores de miragens, das doutrinas perigosas e demais mestres da presença inquietantes? Gottfried Benn refletiu a situação com exatidão em seu maravilhoso ensaio "Palas Atenea":
"...representantes de um sexo que está morrendo, úteis tão somente em sua qualidade de copartícipes na abertura das portas do nascimento... Eles tentam conquistar a autonomia com seus sistemas, suas ilusões negativas ou contraditórias - todos esses lamas, budas, reis divinos, santos e salvadores, que em realidade nunca salvaram ninguém, nem a nada - todos esses homens trágicos, solitários, alheios ao material, surdos perante o chamado secreto da mãe-terra, lúgubres caminhantes... Nos estados de alta organização social, onde tudo acaba na normalidade com o acasalamento, os odeiam e toleram tão só até que chegue o momento".
Os estados dos insetos, sociedades de abelhas e cupins, estão perfeitamente organizados para os seres que "só vivem uma vez". A civilização ocidental muito exitosamente se dirige a semelhante ordem ideal e nesse sentido representa um episódio bastante raro na história. É difícil encontrar no passado abarcável uma formação humana, afiançada sobre as bases do ateísmo e uma construção estritamente material do universo. Aqui não importa o que é que se coloca exatamente como a pedra angular: o materialismo vulgar ou o materialismo dialético ou os processos microfísicos paradoxais. Quando a religião se reduz ao moralismo, quando a alegria do ser se reduz a uma dezena de "prazeres" primitivos, pelos quais ademais há que pagar não se sabe quanto, quando a morte física aparece como "o final do todo" acaso se pode falar do impulso racional e de sua sublimação? Por isso nos anos vinte Max Scheler desenvolveu sua conhecida tese sobre a "ressublimação" como uma das principais tendências do século. Segundo Scheler a jovem geração já não deseja, à maneira de seus pais e avós, gastar as forças nas buscas improdutivas do absoluto: contínuas especulações intelectuais exigem demasiada energia vital, que é muito mais prático utilizar para a melhora das condições concretas corporais, financeiras e outras. Os homens atuais anseiam pela ingenuidade, pela despreocupação, pelo esporte, desejam prolongar a juventude. O famoso filósofo Scheler, ao parecer, saudava semelhante tendência. Se visse no que se converteu esse jovem empenhado em se rejuvenescer e contemplasse também no que se converteu o esporte e outros entretenimentos saudáveis!
E ademais.
Acaso a sublimação se reduz às especulações intelectuais? Acaso o impulso para a frente e para o alto se reduz aos saltos de longitude e altitude? A sublimação não se realiza nos minutos de bom estado de humor e não se acaba com a leseira. Tampouco é o êxtase. É um trabalho permanente e dinâmico da alma para ampliar a percepção e transformar o corpo, é o conhecimento do mundo e dos mundos, atormentado aprendizado do alpinismo celestial. E ademais se trata de um processo natural.
Se um homem tem medo, foge ou nem mesmo reconhece o chamado da sublimação, é que, propriamente, não pode se chamar homem, quer dizer um ser com um sistema irracional de valores marcadamente pronunciado. Inclusive com a barba farta ou bíceps imponentes seguirá sendo uma criança, que depende totalmente dos caprichos da "grande mãe". Obrigando o espírito a resolver os problemas pragmáticos, esgotando a alma com a vaidade e a lascívia, sempre se arrastará de joelhos buscando o consolo, os ânimos e o carinho.
Porém a "grande mãe" não é em absoluto a amorosa Eva patriarcal, carne da carne do homem, é a sinistra criação da eterna escuridão, parente próxima do caos primordial, não-criado: sob o nome de Afrodite Pandemos envenena o sangue masculino com o pesadelo sexual, com o nome de Cibele lhe ameaça com castração, a loucura e o leva ao suicídio. Alguns se perguntarão que relação tem toda essa mitologia com o conhecimento racional e ateísta? A mais direta. O ateísmo não é mais que uma forma de teologia negativa, assimilada de maneira pouco crítica ou inclusive inconsciente. O ateu crê ingenuamente no poder total da razão como instrumento fálico, capaz de penetrar até onde se queira nas profundezas da "mãe-natureza". Sucessivamente admirando a "harmonia surpreendente que reina na natureza" e indignando-se ante as "forças elementais, cegas da natureza" é como uma criança mimada que quer receber dela tudo sem dar nada em troca. Ainda que ultimamente, assustado perante as catástrofes ecológicas e a perspectiva de ser trasladado em um futuro próximo às hospitaleiras superfícies de outros planetas, apela à compaixão e ao humanismo.
Porém o "sol da razão" não é mais que o fogo fátuo do pântano e o instrumento fálico não é mais que um brinquedo nas mãos depredadoras da "grande mãe". Não se deve aproximar ao princípio feminino que cria e que também mata com a mesma intensidade. "Dama Natura" exige manter a distância e a veneração. O entendiam bem nossos patriarcais antepassados, tendo cuidado de não inventar o automóvel, nem a bomba atômica, que punham nos caminhos a imagem do deus Término e escreviam nas colunas de Hércules "non plus ultra".
O espírito se desperta no homem bruscamente e esse processo é duro - essa é a tese principal de Erich Neumann, um seguidor original de Jung, em sua "História do Aparecimento da Consciência". O mundo orientado ginecocraticamente odeia essas manifestações e procura acabar com elas utilizando diferentes métodos. O que na época moderna se entende por "espiritualidade", se destaca por suas características especificamente femininas: fazem falta memória, erudição, conhecimentos sérios, profundos, um estudo pormenorizado do material - em uma palavra, tudo o que se pode conseguir nas bibliotecas, arquivos, museus, onde, qual se fora o baú da velha, se guardam todas as bagatelas. Se alguém se rebela contra semelhante espiritualidade, sempre poderão acusá-lo de superficialidade, diletantismo, aventureirismo - características essencialmente masculinas. Daí os compromissos degradantes e o medo do indivíduo perante as leis ginecocráticas do mundo exterior, que a psicologia profunda em geral e Erich Neumann em particular denominam o "medo da castração". "Tendência a resistir - escreve Erich Neumann - o medo da 'grande mãe', medo da castração, são os primeiros sintomas do rumo centrípeto tomado e da autoformação". E continua:
"A superação do medo da castração é o primeiro êxito na superação do domínio da matéria" - Erich Neumann. Urspruggeschichte des Bewusstseins, Munchen, 1975, p.83
Agora, na era da ginecocracia, semelhante concepção constitui em verdade um ato heróico. Porém, o "homem autêntico" não tem outro caminho. Vamos ler umas linhas de Gottfried Benn do já citado ensaio:
"Dos processos históricos e materiais sem sentido surge a nova realidade, criada pela exigência do paradigma eidético, segunda realidade, elaborada pela ação da decisão intelectual. Não existe o caminho de retorno. Orações a Ishtar, retornos à grande mãe, invocações ao reino da mãe, entronização de Gretchen sobre Nietzsche - tudo é inútil: não voltaremos ao estado natural".
É assim?
Por um lado: conhecimento doce, embriagador: suas vibrações, movimentos graciosos, zonas erógenas...paraíso sexual.
Pelo outro:
"Atena, nascida do sêmen de Zeus, de olhos azuis, resplandescente armadura, deusa nascida sem mãe. Palas - a alegria do combate e da destruição, cabeça de Medusa em seu escudo, sobre sua cabeça o lúgubre pássaro noturno; retrocede um pouco e de golpe levante a gigantesca pedra que servia de linde - contra Marte, que está do lado de Tróia, de Helena... Palas, sempre com seu elmo, não fecundada, deusa sem filhos, fria e solitária".