Por Martin Heidegger
“Que é metafísica?” — A pergunta nos dá esperanças de que
falará sobre a metafísica. Não o faremos. Em vez disso, discutiremos uma
determinada questão metafísica. Parece-nos que, desta maneira, nos situaremos
imediatamente dentro da metafísica. Somente assim lhe damos a melhor
possibilidade de se apresentar a nós em si mesma.
Nossa tarefa inicia -se com o desenvolvimento de uma
interrogação metafísica, procura, logo a seguir, a elaboração da questão, para
encerrar-se com sua resposta .
O DESENVOLVIMENTO DE UMA INTERROGAÇÃO
METAFÍSICA
METAFÍSICA
Considerada sob o ponto de vista do são entendimento humano,
é a filosofia, nas palavras de Hegel, o “mundo às avessas’. É por isso que a
peculiaridade do que empreendemos requer uma caracterização prévia. Esta surge
de uma dupla característica da pergunta metafísica.
De um lado, toda questão metafísica abarca sempre a
totalidade da problemática metafísica. Ela é a própria totalidade. De outro,
toda questão metafísica somente pode ser formulada de tal modo que aquele que
interroga, enquanto tal, esteja implicado na questão, isto é, seja
problematizado. Daí tomamos a indicação seguinte: a interrogação metafísica
deve desenvolver-se na totalidade e na situação fundamental da existência que
interroga. Nossa existência — na comunidade de pesquisadores, professores e
estudantes — é determinada pela ciência. O que acontece de essencial nas raízes
da nossa existência na medida em que a ciência se tornou nossa paixão? Os
domínios das ciências distam muito entre si. Radicalmente diversa é a maneira
de tratarem seus objetos. Esta dispersa multiplicidade de disciplinas é hoje
ainda apenas mantida numa unidade pela organização técnica de universidades e
faculdades e conserva um significado pela fixação das finalidades práticas das
especialidades. Em contraste, o enraizamento das ciências, em seu fundamento
essencial, desapareceu completamente.
Contudo, em todas as ciências nós nos relacionamos, dóceis a
seus propósitos mais autênticos com o próprio ente. Justamente, sob o ponto de
vista das ciências, nenhum domínio possui hegemonia sobre o outro, nem a
natureza sobre a história, nem esta sobre aquela. Nenhum modo de tratamento dos
objetos supera os outros. Conhecimentos matemáticos não são mais rigorosos que
os filológico-históricos. A matemática possui apenas o caráter de ‘exatidão” e
este não coincide com o rigor. Exigir da história exatidão seria chocar-se
contra a idéia do rigor específico das ciências do espírito. A referência ao
mundo, que importa através de todas as ciências enquanto tais, faz com que elas
procurem o próprio ente para, conforme seu conteúdo essencial e seu modo de
ser, transformá-lo em objeto de investigação e determinação fundante. Nas
ciências se realiza — no plano das idéias — uma aproximação daquilo que é
essencial em todas as coisas.
Esta privilegiada referência de mundo ao próprio ente é
sustentada e conduzida por um comportamento da existência humana livremente
escolhido. Também a atividade pré e extracientífica do homem possui um
determinado comportamento para com o ente. A ciência, porém, se caracteriza
pelo fato de dar, de um modo que lhe é próprio, expressa e unicamente, à
própria coisa a primeira e última palavra. Em tão objetiva maneira de
perguntar, determinar e fundar o ente, se realiza uma submissão peculiarmente
limitada ao próprio ente, para que este realmente se manifeste. Este pôr -se a
serviço da pesquisa e do ensino se constitui em fundamento da possibilidade de
um comando próprio, ainda que delimitado, na totalidade da existência humana. A
particular referência ao mundo que caracteriza a ciência e o comportamento do
homem que a rege, os entendemos, evidentemente apenas então plenamente, quando
vemos e compreendemos o que acontece na referência ao mundo, assim sustentada.
O homem — um ente entre outros — “faz ciência”. Neste “fazer” ocorre nada menos
que a irrupção de um ente, chamado homem, na totalidade do ente, mas de tal
maneira que, na e através desta irrupção, se descobre o ente naquilo que é em
seu modo de ser. Esta irrupção reveladora é o que, em primeiro lugar, colabora,
a seu modo, para que o ente chegue a si mesmo.
Estas três dimensões — referência ao mundo, comportamento,
irrupção — trazem, em sua radical unidade, uma clara simplicidade e severidade
do ser-aí, na existência científica. Se quisermos apoderar-nos expressamente da
existência científica, assim esclarecida, então devemos dizer:
Aquilo para onde se dirige a referência ao mundo é o próprio
ente — e nada mais.
Aquilo de onde todo o comportamento recebe sua orientação é
o próprio ente — e além dele nada.
Aquilo com que a discussão investigadora acontece na
irrupção é o próprio ente — e além dele nada.
Mas o estranho é que precisamente, no modo como o cientista
se assegura o que lhe é mais próprio, ele fala de outra coisa. Pesquisado deve
ser apenas o ente e mais — nada; somente o ente e além dele — nada; unicamente
o ente e além disso — nada.
Que acontece com este nada? E, por acaso, que
espontaneamente falamos assim? E apenas um modo de falar — e mais nada? Mas,
por que nos preocupamos com este nada? O nada é justamente rejeitado pela
ciência e abandonado como o elemento nadificante. E quando, assim, abandonamos
o nada, não o admitimos precisamente então? Mas podemos nós falar de que
admitimos algo, se nada admitimos? Talvez já se perca tal insegurança da
linguagem numa vazia querela de palavras. Contra isto deve agora a ciência
afirmar novamente sua seriedade e sobriedade: ela se ocupa unicamente do ente.
O nada — que outra coisa poderá ser para a ciência que horror e fantasmagoria?
Se a ciência tem razão, então uma coisa é indiscutível: a ciência nada quer
saber do nada. Esta é, afinal, a rigorosa concepção científica do nada. Dele
sabemos, enquanto dele, do nada, nada queremos saber.
A ciência nada quer saber do nada. Mas não é menos certo
também que, justamente, ali, onde ela procura expressar sua própria essência,
ela recorre ao nada. Aquilo que ela rejeita, ela leva em consideração. Que
essência ambivalente se revela ali?
Ao refletirmos sobre nossa e xistência presente — enquanto
uma existência determinada pela ciência —, desembocamos num paradoxo. Através
deste paradoxo já se desenvolveu uma interrogação. A questão exige apenas uma formulação
adequada: Que acontece com este nada?
A ELABORAÇÃO DA QUESTÃO
A elaboração da questão do nada deve colocar-nos na situação
na qual se torne possível a resposta ou em que então se patenteie sua
impossibilidade. O nada é admitido. A ciência, na sua sobranceira indiferença
com relação a ele, rejeita-o como aquilo que ‘não existe”.
Nós contudo procuramos perguntar pelo nada. Que é o nada? Já
a primeira abordagem desta questão mostra algo insólito. No nosso interrogar já
supomos antecipadamente o nada como algo que “é” assim e assim — como um ente. Mas,
precisamente, é dele que se distingue absolutamente, O perguntar pelo nada —
pela sua essência e seu modo de ser — converte o interrogado em seu contrário.
A questão priva-se a si mesma de seu objeto específico.
Se for assim, também toda resposta a esta questão é, desde o
inicio, impossível. Pois ela se desenvolve necessariamente nesta forma: o nada
“é” isto ou aquilo. Tanto a pergunta como a resposta são, no que diz respeito
ao nada, igualmente contraditórias em si mesmas.
Assim, não é preciso; pois, que a ciência primeiro rejeite o
nada. A regra fundamental do pensamento a que comumente se recorre, o princípio
da nãocontradição, a “lógica” universal, arrasa esta pergunta. Pois o
pensamento, que essencialmente sempre é pensado de alguma coisa, deveria,
enquanto pensamento do nada, agir contra sua própria essência.
Pelo fato de assim nos ficar vedado converter, de algum
modo, o nada em objeto, chegamos já ao fim com nossa interrogação pelo nada —
isto, pressuposto que nesta questão a ‘lógica’ seja a última instância, que o entendimento
seja o meio e o pensamento o caminho para compreender originariamente o nada e
para decidir seu possível desvelamento.
Mas é por acaso possível tocar no império da ‘lógica’? Não é
o entendimento realmente o senhor nesta pergunta pelo nada? Efetivamente, é somente
com seu auxílio que podemos determinar o nada e colocá-lo como um problema,
ainda que fosse como um problema que se devora a si mesmo. Pois o nada é a
negação da totalidade do ente, o absolutamente não-ente. Com tal procedimento
subsumimos o nada sob a determinação mais alta do negativo e, assim, do negado.
A negação é, entretanto, conforme a doutrina dominante e intata da “lógica”, um
ato específico do entendimento. Como podemos nós, pois, pretender rejeitar o
entendimento na pergunta pelo nada e até na questão da possibilidade de sua
formulação? Mas será que é tão seguro aquilo que aqui pressupomos? Representa o
“não”, a negatividade e com isto a negação, a determinação suprema a que se
subordina o nada como uma espécie particular de negado? “Existe” o nada apenas
porque existe o “não”, isto é, a negação? Ou não acontece o contrário? Existe a
negação e o “não” apenas porque “existe” o nada? Isto não está decidido; nem
mesmo chegou a ser formulado expressamente como questão. Nós afirmamos: o nada
é mais originário que o “não” e a negação.
Se esta tese é justa, então a possibilidade da negação, como
atividade do entendimento, e, com isso, o próprio entendimento, dependem, de
algum modo, do nada. Como poderá então o entendimento querer decidir sobre
este? Não se baseia afinal o aparente contra-senso de pergunta e resposta, no
que diz respeito ao nada, na cega obstinação de um entendimento que se pretende
sem fronteiras?
Se, entretanto, não nos deixarmos enganar pela formal
impossibilidade da questão do nada e se, apesar dela, ainda a formularmos,
então devemos satisfazer ao menos àquilo que permanece válido como exigência
fundamental para a possível formulação de qualquer questão. Se o nada deve ser
questionado — o nada mesmo —, então deverá estar primeiramente dado. Devemos
poder encontrá-lo.
Onde procuramos o nada? Onde encontramos o nada? Para que
algo encontremos não precisamos, por acaso, já saber que existe? Realmente! Primeiramente
e o mais das vezes o homem somente então é capaz de buscar se antecipou a
presença do que busca. Agora, porém, aquilo que se busca é o nada. Existe
afinal um buscar sem aquela antecipação, um buscar ao qual pertence um puro
encontrar?
Seja como for, nós conhecemos o nada, mesmo que seja apenas
aquilo sobre o que cotidianamente falamos inadvertidamente. Podemos até, sem hesitar,
ordenar numa definição este nada vulgar, em toda palidez do óbvio, que tão
discretamente ronda em nossa conversa:
O nada é a plena negação da totalidade do ente. Não nos
dará, por acaso, esta característica do nada uma indicação da direção na qual
unicamente teremos possibilidade de encontrá-lo?
A totalidade do ente deve ser previamente dada para que
possa ser submetida enquanto tal simplesmente à negação, na qual, então, o
próprio nada se deverá manifestar.
Mesmo, porém, que prescindamos da problematicidade da
relação entre a negação e o nada, como deveremos nós — enquanto seres finitos —
tornar acessível para nós, em si e particularmente, a totalidade do ente em sua
omnitude? Podemos, em todo caso, pensar a totalidade do ente imaginando-a, e então
negar, em pensamento, o assim figurado e “pensá-lo” enquanto negado. Por esta
via obteremos, certamente, o conceito formal do nada figurado, mas jamais o
próprio nada. Porém, entre o nada figurado e o nada “autêntico” não pode
imperar uma diferença, caso o nada represente realmente a absoluta indistinção.
Não é, entretanto, o próprio nada “autêntico” aquele conceito oculto, mas
absurdo, de um nada com características de ente? Mas paremos aqui com as
perguntas. Que tenha sido este o momento derradeiro em que as objeções do
entendimento retiveram nossa busca que somente pode ser legitimada por uma
experiência fundamental do nada.
Tão certo como é que nós nunca podemos compreender a
totalidade do ente em si e absolutamente, tão evidente é, contudo, que nos
encontramos postados em meio ao ente de algum modo desvelado em sua totalidade.
E está fora de dúvida que subsiste uma diferença essencial entre o compreender
a totalidade do ente em si e o encontrar-se em meio ao ente em sua totalidade. Aquilo
é fundamentalmente impossível. Isto, no entanto, acontece constantemente em
nossa existência.
Parece, sem dúvida, que, em nossa rotina cotidiana, estamos
presos sempre apenas a este ou àquele ente, como se estivéssemos perdidos neste
ou naquele domínio do ente. Mas, por mais disperso que possa parecer o
cotidiano, ele retém, mesmo que vagamente, o ente numa unidade de “totalidade”.
Mesmo então e justamente então, quando não estamos propriamente ocupados com as
coisas e com nós mesmos, sobrevém-nos este em totalidade”, por exemplo, no tédio
propriamente dito. Este tédio ainda está muito longe de nossa experiência quando
nos entedia exclusivamente este livro ou aquele espetáculo, aquela ocupação ou
este ócio. Ele desabrocha se “a gente está entediado”. O profundo tédio, que
como névoa silenciosa desliza para cá e para lá nos abismos da existência,
nivela todas as coisas, os homens e a gente mesmo com elas, numa estranha
indiferença. Esse tédio manifesta o ente em sua totalidade.
Uma outra possibilidade de tal manifestação se revela na
alegria pela presença — não da pura pessoa —, mas da existência de um ser
querido.
Semelhante disposição de humor em que a gente se sente desta
ou daquela maneira situa-nos — perpassados por esta disposição de humor — em
meio ao ente em sua totalidade. O sentimento de situação da dis posição de
humor não revela apenas, sempre à sua maneira, o ente em sua totalidade. Mas
este revelar é simultaneamente — longe de ser um simples episódio — um acontecimento
fundamental de nosso ser-aí.
O que assim chamamos ‘sentimentos não é um fenômeno
secundário de nosso comportamento pensante e volitivo, nem um simples impulso
causador dele nem um estado atual com o qual nos temos que haver de uma ou
outra maneira.
Contudo, precisamente quando as disposições de humor nos
levam, deste modo, diante do ente em sua totalidade, ocultam-nos o nada que
buscamos. Muito menos seremos agora de opinião de que a negação do ente em sua totalidade,
manifesta na disposição de humor, nos ponha diante do nada. Tal somente poderia
acontecer, com a adequada originariedade, numa disposição de humor que revele o
nada, de acordo com seu próprio sentido revelador.
Acontece no ser-aí do homem semelhante disposição de humor
na qual ele seja levado à presença do próprio nada?
Este acontecer é possível e também real — ainda que bastante
raro — apenas por instantes, na disposição de humor fundamental da angústia.
Por esta angústia não entendemos a assaz freqüente ansiedade que, em última análise,
pertence aos fenômenos do temor que com tanta facilidade se mostram. A angústia
é radicalmente diferente do temor. Nós nos atemorizamos sempre diante deste ou
daquele ente determinado que, sob um ou outro aspecto determinado, nos ameaça.
O temor de... sempre teme por algo determinado. Pelo fato de o temor ter como
propriedade a limitação de seu “de’ (Wovor) e de seu “por” ( Worum), o temeroso
e o medroso são retidos por aquilo que nos amedronta. Ao esforçar-se por se
libertar disto — de algo determinado —, toma-se, quem sente o temor, inseguro
com relação às outras coisas, isto é, perde literalmente a cabeça.
A angústia não deixa mais surgir uma tal confusão. Muito
antes, perpassa-a uma estranha tranqüilidade. Sem dúvida, a angústia é sempre
angústia diante de..., mas não angústia diante disto ou daquilo. A angústia
diante de... é sempre angústia por..., mas não por isto ou aquilo. O caráter de
indeterminação daquilo diante de e por que nos angustiamos, contudo, não é
apenas uma simples falta de determinação, mas a essencial impossibilidade de
determinação. Um exemplo conhecido nos pode revelar esta impossibilidade.
Na angústia — dizemos nós — “a gente sente-se estranho”. O
que suscita tal estranheza e quem é por ela afetado? Não podemos dizer diante
de que a gente se sente estranho. A gente se sente totalmente assim. Todas as
coisas e nós mesmos afundamo-nos numa indiferença. Isto, entretanto, não no
sentido de um simples desaparecer, mas em se afastando elas se voltam para nós.
Este afastar-se do ente em sua totalidade, que nos assedia na angústia, nos
oprime. Não resta nenhum apoio. Só resta e nos sobrevém — na fuga do ente —
este nenhum’. A angústia manifesta o nada.
‘Estamos suspensos” na angústia. Melhor dito: a angústia nos
suspende porque ela põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato
de nós próprios — os homens que somos — refugiarmo-nos no seio dos entes. E por
isso que, em última análise, não sou “eu” ou não és “tu” que te sentes
estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí
no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que apoiar-se.
A angústia nos corta a palavra. Pelo fato de o ente em sua
totalidade fugir, e assim, justamente, nos acossa o nada, em sua presença,
emudece qualquer dicção do “é”. O fato de nós procurarmos muitas vezes, na
estranheza da angústia, romper o vazio silêncio com palavras sem nexo é apenas
o testemunho da presença do nada. Que a angústia revela o nada é confirmado
imediatamente pelo próprio homem quando a angústia se afastou. Na posse da
claridade do olhar, a lembrança recente nos leva a dizer: Diante de que e por
que nós nos angustiávamos era “propriamente” — nada. Efetivamente: o nada mesmo
— enquanto tal — estava aí.
Com a determinação da disposição de humor fundamental da
angústia atingimos o acontecer do ser-aí no qual o nada está manifesto e a
partir do qual deve ser questionado.
Que acontece com o nada?
A RESPOSTA À QUESTÃO
A resposta, primeiramente a única essencial para nosso
propósito, já foi alcançada se tivermos a precaução de manter realmente
formulada a questão do nada. Para isto se exige que reproduzamos a
transformação do homem em seu ser-aí que toda angústia em nós realiza. Então
captamos o nada que nela se manifesta, assim como se revela. Com isto se impõe,
ao mesmo tempo, a exigência de mantermos expressamente longe a determinação do
nada que não se desenvolveu na abordagem do mesmo.
O nada se revela na angústia — mas não enquanto ente.
Tampouco nos é dado como objeto. A angústia não é uma apreensão do nada.
Entretanto, o nada se torna manifesto por ela e nela, ainda que não da maneira
como se o nada se mostrasse separado, “ao lado” do ente, em sua totalidade, o
qual caiu na estranheza. Muito antes, e isto já o dissemos: na angústia deparamos
com o nada juntamente com o ente em sua totalidade. Que significa este
“juntamente com”?
Na angústia o ente em sua totalidade se torna caduco. Em que
sentido acontece isto? Pois, certamente, o ente não é destruído pela a ngústia
para assim deixar como sobra o nada. Como é que ela poderia fazê-lo quando
justamente a angústia se encontra na absoluta impotência em face do ente em sua
totalidade? Bem antes, revela -se propriamente o nada com o e no ente como algo
que foge em sua totalidade.
Na angústia não acontece nenhuma destruição de todo o ente
em si mesmo, mas tampouco realizamos nós uma negação do ente em sua totalidade
para, somente então, atingirmos o nada. Mesmo não considerando o fato de que é alheio
à angústia enquanto tal, a formulação expressa de uma enunciação negativa,
chegaríamos, mesmo com uma tal negação, que deveria ter por resultado o nada,
sempre tarde. Já antes disto o nada nos visita. Dizíamos que nos visitava
juntamente com a fuga do ente em sua totalidade.
Na angústia se manifesta um retroceder diante de... que, sem
dúvida, não é mais uma fuga, mas uma quietude fascinada. Este retroceder diante
de... recebe seu impulso inicial do nada. Este não atrai para si, mas se
caracteriza fundamentalmente pela rejeição. Mas tal rejeição que afasta de si
é, enquanto tal, um remeter (que faz fugir) ao ente em sua totalidade que
desaparece. Esta remissão que rejeita em sua totalidade, remetendo ao ente em
sua totalidade em fuga — tal é o modo de o nada assediar, na angústia, o ser-aí
—, é a essência do nada: a nadificação. Ela não é nem uma destruição do ente,
nem se origina de uma negação. A nadificação também não se deixa compensar com
a destruição e a negação. O próprio nada nadifica.
O nadificar do nada não é um epis ódio casual, mas, como remissão
(que rejeita) ao ente em sua totalidade em fuga, ele revela este ente em sua
plena, até então oculta, estranheza como o absolutamente outro —em face do
nada.
Somente na clara noite do nada da angústia surge a
originária abertura do ente enquanto tal: o fato de que é ente — e não nada.
Mas este “e não nada”, acrescentado em nosso discurso, não é uma clarificação
tardia e secundária, mas a possibilidade prévia da revelação do ente em geral. A essência do nada
originariamente n adificante consiste em: conduzir primeiramente o ser-aí
diante do ente enquanto tal.
Somente à base da originária revelação do nada pode o ser-aí
do homem chegar ao ente e nele entrar. Na medida em que o ser-aí se refere, de
acordo com sua essência, ao ente que ele próprio é, procede já sempre, como tal
ser-aí, do nada revelado.
Ser-aí quer dizer: estar suspenso dentro do nada.
Suspendendo-se dentro do nada o ser aí já sempre está além
do ente em sua totalidade. Este estar além do ente designamos a transcendência.
Se o ser-aí, nas raízes de sua essência, não exercesse o ato de transcender, e
isto expressamos agora dizendo: se o ser-aí não estivesse suspenso previamente
dentro do nada, ele jamais poderia entrar em relação com o ente e, portanto,
também não consigo mesmo.
Sem a originária revelação do nada não há ser-si-mesmo, nem
liberdade.
Com isto obtivemos a resposta à questão do nada. O nada não
é nem um objeto nem um ente. O nada não acontece nem para si mesmo nem ao lado
do ente ao qual, por assim dizer, aderiria, O nada é a possibilidade da
revelação do ente enquanto tal para o ser-aí humano. O nada não é um conceito
oposto ao ente, mas pertence originariamente à essência mesma (do ser). No ser
do ente acontece o nadificar do nada.
Mas agora devemos dar finalmente a palavra a uma objeção já
por tempo demasiado reprimida. Se o ser-aí somente pode entrar em relação com o
ente enquanto está suspenso no nada, se, portanto, somente assim pode existir e
se o nada somente se revela originalmente na angústia, não devemos nós então pairar
constantemente nesta angústia para, afinal, podermos existir? Não reconhecemos
nós mesmos que esta angústia originária é rara? Mas, antes disso, está fora de
dúvida que todos nós existimos e nos relacionamos com o ente — tanto aquele
ente que somos como aquele que não somos — sem esta angústia. Não é ela uma
invenção arbitrária e o nada a ela atribuído um exagero?
Entretanto, o que quer dizer: esta angústia originária
somente acontece em raros momentos? Não outra coisa que: o nada nos é
primeiramente e o mais das vezes dissimulado em sua originariedade. E por quê?
Pelo fato de nos perdemos, de determinada maneira, absolutamente junto ao ente.
Quanto mais nos voltamos para o ente em nossas ocupações, tanto menos nós o
deixamos enquanto tal, e tanto mais nos afastamos do nada. E tanto mais
seguramente nos jogamos na pública superfície do ser-aí.
E, contudo, é este constante, ainda que ambíguo desvio do
nada, em certos limites, seu mais próprio sentido. Ele, o nada em seu
nadificar, nos remete justamente ao ente. O nada modificada ininterruptamente
sem que nós propriamente saibamos algo desta nadificação pelo conhecimento no
qual nos movemos cotidianamente.
O que testemunha, de modo mais convincente, a constante e
difundida, ainda que dissimulada, revelação do nada em nosso ser-aí, que a
negação? Mas, de nenhum modo, esta aproxima o ‘não”, como meio de distinção e
oposição do que é dado, para, por assim dizer, colocá-lo entre ambos. Como
poderia a negação também produzir por si o ‘não” se ela somente pode negar se
lhe foi previamente dado algo que pode ser negado? Como pode, entretanto, ser descoberto
algo que pode ser negado e que deve sê-lo enquanto afetado pelo “não” se não
fosse realidade que todo o pensamento enquanto tal, já de antemão, tem visado ao
‘não”? Mas o “não” somente pode revelar-se quando sua origem, o nadifícar do
nada em geral e com isto o próprio nada foram arrancados de seu velamento. O
“não” não surge pela negação, mas a negação se funda no “não” que, por sua vez,
se origina do nadificar do nada. Mas a negação é também apenas um modo de uma
revelação nadificadora, isto quer dizer, previa mente fundado no nadificar do
nada.
Com isto está demonstrada, em seus elementos básicos, a tese
acima: o nada é a origem da negação e não vice-versa, a negação a origem do
nada. Se assim se rompe o poder do entendimento no campo da interrogação pelo
nada e pelo ser, então se decide também, com isto, o destino do domínio da
“lógica” no seio da filosofia. A idéia da “lógica” mesma se dissolve no redemoinho
de uma interrogação mais originária.
Por muito e diversamente que a negação — expressamente ou
não — atravesse todo o pensamento, ela, de nenhum modo, por si só, é o
testemunho válido para a revelação do nada pertencente essencialmente ao
ser-aí. Pois a negação não pode ser proclamada nem o único, nem mesmo o
comportamento nadificador condutor, pelo qual o ser-aí é sacudido pelo
nadificar do nada. Mais abissal que a pura conveniência da negação pensante é a
dureza da contraatividade e a agudeza da execração. Mais esponsável é a dor da
frustração e a inclemência do proibir. Mais importuna é a aspereza da privação.
Estas possibilidades do comportamento nadificador — forças
em que o ser-aí sustenta seu estar-jogado, ainda que não o domine — não são
modos de pura negação. Mas isto não as impede de se expressar no “não e na
negação. Através delas é que se trai, sem dúvida, de modo mais radical, o vazio
e a amplidão da negação. Este estar o ser-aí totalmente perpassado pelo comportamento
nadificador testemunha a constante e, sem dúvida, obscurecida revelação do
nada, que somente a angústia originariamente desvela. Nisto, porém, está: esta
originária angústia é o mais das vezes sufocada no ser-aí. A angústia está aí.
Ela apenas dorme. Seu hálito palpita sem cessar através do seraí: mas raramente
seu tremor perpassa a medrosa e imperceptível atitude do seraí agitado
envolvido pelo “sim, sim” e pelo “não, não”; bem mais cedo perpassa o ser-aí
senhor de si mesmo; com maior certeza surpreende, com seu estremecimento, o
ser-aí radicalmente audaz. Mas, no último caso, somente acontece originado por
aquilo por que o ser-aí se prodigaliza, para assim conservar-lhe a derradeira
grandeza.
A angústia do audaz não tolera nenhuma contraposição à
alegria ou mesmo à agradável diversão do tranqüilo abandonar-se à deriva. Ela
situa-se — aquém de tais posições — na secreta aliança da serenidade e doçura
do anelo criador. A angústia originária pode despertar a qualquer momento no
ser-aí. Para isto ela não necessita ser despertada por um acontecimento
inusitado. À profundidade de seu imperar corresponde paradoxalmente a
insignificância do elemento que pode provocá-la. Ela está continuamente à
espreita e, contudo, apenas raramente salta sobre nós para arrastar-nos à
situação em que nos sentimos suspensos.
O estar suspenso do ser-aí no nada originado pela angústia
escondida transforma o homem no lugar-tenente do nada. Tão finitos somos nós
que precisamente não somos capazes de nos colocarmos originaria mente diante do
nada por decisão e vontade próprias. Tão insondavelmente a finitização escava as
raízes do ser-aí que a mais genuína e profunda finitude escapa à nossa liberdade.
O estar suspenso do ser-aí dentro do nada originado pela
angústia escondida é o ultrapassar do ente em sua totalidade: a transcendência.
Nossa interrogação pelo nada tem por meta apresentar-nos a
própria metafísica. O nome metafísica vem do grego: tà metà physiká. Esta
surpreendente expressão foi mais tarde interpretada como caracterização da interrogação
que vai meta —trans “além do ente enquanto tal.
Metafísica é o perguntar além do ente para recuperá-lo,
enquanto tal e em sua totalidade, para a compreensão.
Na pergunta pelo nada acontece um tal ir para fora além do
ente enquanto ente em sua totalidade. Com isto prova-se que ela é uma questão
“metafísica”. De questões deste tipo dávamos, no início, uma dupla
característica: cada questão metafísica compreende, de um lado, sempre toda a
metafísica. Em cada questão metafísica, de outro lado, sempre vem envolvido o
ser-aí que interroga.
Em que medida perpassa e compreende a questão do nada a tota
lidade da metafísica?
Sobre o nada a metafísica se expressa desde a Antiguidade
numa enunciação, sem dúvida, multívoca: ex nihilo nihil fit, do nada nada vem.
Ainda que, na discussão do enunciado, o nada, em si mesmo, nunca se torne
problema, expressa ele, contudo, a partir do respectivo ponto de vista sobre o
nada, a concepção fundamental do ente que aqui é condutora. A metafísica antiga
concebe o nada no sentido do não-ente, quer dizer, da matéria informe, que a si
mesma não pode dar forma de um ente com caráter de figura, que, desta maneira,
oferece um aspecto (eidos). Ente é a figura que se forma a si mesma, que
enquanto tal se apresenta como imagem, origem, justificação e limites desta concepção
de ser são tão pouco discutimos como o é o próprio nada. A dogmática cristã,
pelo contrário, nega a verdade do enunciado: ex nihilo nihil fit e dá, com
isto, uma significação modificada ao nada, que então passa a significar a absoluta
ausência de ente fora de Deus: ex nihilo fit —ens creatum. O nada toma-se agora
o conceito oposto ao ente verdadeiro, ao summum ens, a Deus enquanto ens
increatum. Também a explicação do nada indica a concepção fundamental do ente.
A discussão metafísica do ente mantém-se, porém, ao mesmo nível que a questão
do nada. As questões do ser e do nada enquanto tais não têm lugar. E por isso
que nem mesmo preocupa a dificuldade de que, se Deus cria do nada, justamente
precis a poder entrar em relação com o nada. Se, porém, Deus é Deus, não pode
ele conhecer o nada, se é certo que o “absoluto” exclui de si tudo o que tem
caráter de nada.
A superficial recordação histórica mostra o nada com o
conceito oposto ao ente verdadeiro, quer dizer, como sua negação. Se, porém, o
nada de algum modo se torna problema, então esta contraposição não experimenta
apenas uma determinação mais clara, mas então primeiramente se suscita a
verdadeira questão metafísica a respeito do ser do ente. O nada não permanece o
indeterminado oposto do ente, mas se desvela como pertencente ao ser do ente.
“O puro ser e o puro nada são, portanto, o mesmo.” Esta
frase de Hegel (Ciência da Lógica, Livro 1 WW III, p. 74) enuncia algo certo.
Ser e nada copertencem, mas não porque ambos — vistos a partir da concepção
hegeliana do pensamento — coincidem em sua determinação e imediatidade, mas
porque o ser mesmo é finito em sua manifestação no ente (Wesen), e somente se manifesta
na transcendência do ser-aí suspenso dentro do nada.
Se, de outro lado, a questão do ser enquanto tal é a questão
que envolve a metafísica, então está demonstrado que a questão do nada é uma
questão do tipo que compreende a totalidade da metafísica. A questão do nada
pervade, porém, ao mesmo tempo, a totalidade da metafísica, na medida em que
nos força a enfrentar o problema da origem da negação, isto quer dizer, nos
coloca fundamentalmente diante da decisão sobre a legitimidade com que a
‘lógica impera na metafísica.
A velha frase ex nihilo nihil fit contém então um outro sentido
que atinge o próprio problema do ser e diz: ex nihilo omne ens qua ens fit.
Somente no nada do ser-aí o ente em sua totalidade chega a si mesmo, conforme
sua mais própria possibilidade, isto é, de modo finito. Em que medida então a
questão do nada, se for uma questão metafísica, já envolveu em si mesma nossa
existência interrogante? Nós caracterizamos nossa existência, aqui e agora
experimentada, como essencialmente determinada pela ciência. Se nossa
existência assim determinada está colocada na questão do nada, deve então
ter-se tornado problemática por causa desta questão.
A existência científica recebe sua simplicidade e acribia do
fato de se relacionar com o ente e unicamente com ele de modo especialíssimo. A
ciência quisera abandonar, com um gesto sobranceiro, o nada. Agora, porém, se
torna patente, na interrogação, que esta existência científica somente é
possível se se suspende previamente dentro do nada. Apenas então compreende ela
realmente o que é quando não abandona o nada. A aparente sobriedade e
superioridade da ciência se transforma em ridículo, se não leva a sério o nada.
Somente porque o nada se revelou, pode a ciência transformar o próprio ente em
objeto de pesquisa. Somente se a ciência existe graças à metafísica, é ela
capaz de conquistar sempre novamente sua tarefa essencial que não consiste primeiramente
em recolher e ordenar conhecimentos, mas na descoberta de todo o espaço da
verdade da natureza e da história, cuja realização sempre se deve renovar.
Somente porque o nada está manifesto nas raízes do ser-aí
pode sobrevirnos a absoluta estranheza do ente. Somente quando a estranheza do
ente nos acossa, desperta e atrai ele a admiração. Somente baseado na admiração
— quer dizer, fundado na revelação do nada — surge o “porquê’. Somente porque é
possível o “porquê” enquanto tal, podemos nós perguntar, de maneira determinada,
pelas razões e fundamentar. Somente porque podemos perguntar e fundamentar foi
entregue à nossa existência o destino do pesquisador.
A questão do nada põe a nós mesmos que perguntamos — em questão. Ela é uma
questão metafísica.
O ser-aí humano somente pode entrar em relação com o ente se
se suspende dentro do nada. O ultrapassar o ente acontece na essência do
ser-aí. Este ultrapassar, porém, é a própria metafísica. Nisto reside o fato de
que a metafísica pertence à ‘natureza do homem”. Ela não é uma disciplina da filosofia
“acadêmica”, nem um campo de idéias arbitrariamente excogitadas. A metafísica é
o acontecimento essencial no âmbito de ser-aí. Ela é o próprio ser aí. Pelo
fato de a verdade da metafísica residir neste fundamento abissal possui ela,
como vizinhança mais próxima, sempre à espreita, a possibilidade do erro mais
profundo. E por isso que nenhum rigor de qualquer ciência alcança a seriedade
da metafísica. A filosofia jamais pode ser medida pelo padrão da idéia da
ciência.
Se realmente acompanhamos, com nossa interrogação, a questão
desenvolvida em torno do nada, então não nos teremos representado a metafísica apenas
do exterior. Nem nos transportamos também simplesmente para dentro dela. Nem
somos disso capazes porque — na medida em que existimos — já sempre estamos
colocados dentro dela. Physei gár, o phíle, énestí tis philosophía te tou
andrós diánoia (Platão, Fedro 279a). Na medida em que o homem existe, acontece,
de certa maneira, o filosofar. Filosofia — o que nós assim designamos — é
apenas o pôr em marcha a metafísica, na qual a filosofia toma consciência de si
e conquista seus temas expressos. A filosofia somente se põe em movimento por
um peculiar salto da própria existência nas possibilidades fundamentais do
ser-aí, em sua totalidade. Para este salto são decisivos: primeiro, o dar
espaço para o ente em sua totalidade; segundo, o abandonar-se para dentro do
nada, quer dizer, o libertar-se dos ídolos que cada qual possui e para onde
costuma refugiar-se sub-repticiamente; e, por último, permitir que se
desenvolva este estar suspenso para que constantemente retorne à questão
fundamental da metafísica que domina o próprio nada:
Por que existe afinal ente e não antes Nada?