Por René Guénon
Não pretendo neste estudo
prender-me especialmente ao ponto de vista social, que só nos interessa muito
indiretamente, porque representa apenas uma aplicação bastante longínqua dos
princípios fundamentais e, por conseqüência, não é nesse domínio que poderia
começar uma recuperação do Mundo Moderno. Efetivamente, se essa recuperação
fosse feita assim, começada ao contrário, quer dizer, partindo das
conseqüências em vez de partir dos princípios, faltar-lhe-ia forçosamente uma base
séria e ela seria ilusória. Nada de estável poderia jamais resultar daí e tudo teria
de recomeçar incessantemente, porque as pessoas teriam esquecido o entendimento
inicial acerca das verdades essenciais. É por esse motivo que só nos é possível
atribuir às contingências políticas, mesmo dando a esta palavra o seu sentido
mais lato, o valor de simples sinais exteriores da mentalidade de uma época; mas
mesmo sob esse aspecto não podemos deixar passar inteiramente em silêncio as
manifestações da desordem moderna no domínio social propriamente dito.
Como foi dito há pouco, já
ninguém se encontra, no presente estado do Mundo ocidental, no lugar que lhe
convém normalmente em virtude da sua própria natureza. É isso que exprimimos ao
dizer que as castas já não existem, porque a casta, entendida no seu verdadeiro
sentido tradicional, é simplesmente a própria natureza individual, com todo o
conjunto das aptidões especiais que ela comporta e que predispõem cada homem ao
cumprimento desta ou daquela função determinada. Como o acesso a certas funções
já não se encontra submetido a qualquer regra legítima, daí resulta,
inevitavelmente, que cada um será levado a fazer seja o que for e, muitas
vezes, precisamente aquilo para o que se encontra menos qualificado. O papel que
desempenhará na sociedade será determinado não pelo acaso, que na realidade não
existe [1], mas pelo que pode dar a ilusão do acaso, ou seja, pela confusão de
todas as espécies de circunstâncias acidentais. O que intervirá menos aí será
precisamente o único fator que deveria contar em semelhante caso, isto é, as
diferenças de natureza que existem entre os homens. A causa de toda esta
desordem é a negação dessas mesmas diferenças, arrastando consigo a de toda a
hierarquia social. Tal negação foi, a princípio, talvez pouco consciente e mais
prática que teórica, porque a confusão das castas precedeu a sua supressão
completa ou, por outras palavras, desprezou-se a natureza dos indivíduos antes
de se chegar a ponto de não fazer qualquer caso dela. Mais tarde, no entanto,
ela foi erigida pelos modernos em pseudo-princípio sob nome de “igualdade”.
Seria muito fácil mostrar que
a igualdade não pode existir em lugar nenhum, pela simples razão de que não
poderia haver dois seres que fossem ao mesmo tempo realmente distintos e
inteiramente semelhantes entre si sob todos os aspectos. Seria fácil também
salientar todas as conseqüências absurdas que decorrem dessa idéia quimérica,
em nome da qual se pretende impor por toda parte uma completa uniformidade, por
exemplo distribuindo a todos ensino idêntico, como se todos fossem igualmente
aptos a compreender as mesmas coisas e como se para as fazer compreender os
mesmos métodos conviessem a todos indistintamente. Pode-se, aliás, perguntar se
não se trata mais de “aprender” do que de “compreender” realmente, ou seja, se
a memória não é substituta da inteligência na concepção inteiramente verbal e “livresca”
do ensino atual, em que se visa apenas a acumulação de noções rudimentares e
heteróclitas, e em que a qualidade é inteiramente sacrificada à quantidade, tal
como se produz por toda a parte, no Mundo Moderno, por razões que explicarei
mais completamente a seguir: é sempre a dispersão na multiplicidade.
Haveria, a este respeito,
muitas coisas a dizer acerca dos malefícios do “ensino obrigatório”; mas este
não é o lugar para insistir nesse aspecto, e, para não sair do quadro traçado,
contento-me em assinalar de passagem essa conseqüência especial das teorias
“igualitárias”, como um dos numerosos elementos de desordem atuais.
Naturalmente, quando nos
encontramos em presença de uma idéia como a de “igualdade” ou como a de
“progresso”, ou como os outros “dogmas laicos” que quase todos os nossos
contemporâneos aceitam cegamente, e a maior parte dos quais começou a se formular
claramente no decorrer do século 18, não nos é possível admitir que tais idéias
tenham nascido espontaneamente. Trata-se de verdadeiras “sugestões” no sentido
mais estrito desta palavra, que, aliás, não podiam produzir o seu efeito senão
num meio já preparado para recebê-las; elas não criaram inteiramente o estado
de espírito que caracteriza a época moderna, mas contribuíram largamente para o
criar e desenvolver até um ponto que sem dúvida não teria alcançado sem elas.
Se estas sugestões desaparecessem, a mentalidade geral estaria muito perto de mudar
de orientação; é por isso que elas são tão cuidadosamente sustentadas por todos
aqueles que têm qualquer interesse em manter a desordem, senão em agravá-la
ainda mais, e é também a razão pela qual, numa época em que se pretende
submeter tudo à discussão, elas são as únicas coisas que nunca é permitido
discutir. É, aliás, difícil determinar exatamente o grau de sinceridade daqueles
que se fazem propagadores de semelhantes idéias, saber em que medida certos
homens chegam a agarrar-se às suas próprias mentiras e a sugestionar-se a si
próprios sugestionando os outros; e mesmo numa propaganda deste tipo aqueles
que desempenham um papel de enganados são muitas vezes os melhores instrumentos,
porque lhe dão uma convicção que os outros teriam alguma dificuldade em simular
e que é facilmente contagiosa. Mas por detrás de tudo isso, e pelo menos na
origem, é necessária uma ação muito mais consciente, uma direção que só pode
provir de homens que sabem perfeitamente a que se referem as idéias que eles
assim põem a circular.
Falo de “idéias”, mas tal
palavra só impropriamente pode ser aplicada neste caso, porque é bem evidente
que não se trata de modo algum de idéias puras, nem mesmo de algo que pertença
de perto ou de longe à ordem intelectual. Pode-se dizer que são idéias falsas,
mas mais valeria ainda chamar-lhes “pseudo-idéias” destinadas principalmente a
provocar reações sentimentais, o que é efetivamente o meio mais eficaz e mais
fácil para agir sobre as massas.
Neste aspecto, a palavra tem,
aliás, uma importância maior do que a noção que supostamente representa e, na
sua maior parte, os “ídolos” modernos não passam de palavras, porque se produz neste
caso esse singular fenômeno conhecido pelo nome de “verbalismo”, em que a sonoridade
das palavras basta para dar a ilusão do pensamento. A influência que os
oradores exercem sobre as multidões é particularmente característica sob este
aspecto, e não há necessidade de estudá-la de muito perto para se dar conta que
se trata de um processo de sugestão comparável ao dos hipnotizadores.
Mas, sem estender mais estas
considerações, voltemos às conseqüências que traz consigo a negação de toda
verdadeira hierarquia e notemos que, no estado atual das coisas, não apenas um
homem só cumpre a sua função própria em casos excepcionais e como por acidente
– enquanto é o contrário que deveria normalmente ser a exceção –, mas ainda
acontece que o mesmo homem seja chamado a exercer sucessivamente funções todas
elas diferentes, como se ele pudesse mudar de aptidões à sua vontade. Isso pode
parecer paradoxal numa época de "especialização” levada ao extremo, e, no
entanto, é o que ocorre, sobretudo na ordem política. Se a competência dos
“especialistas” é muitas vezes ilusória e, em todo o caso, limitada a um
domínio muito estreito, a crença nessa competência é, todavia, um fato e
podemos perguntar como é possível que essa crença não desempenhe qualquer papel
quando se trata da carreira dos homens políticos, em que a incompetência mais
completa raramente é obstáculo. No entanto, se refletimos nesse fato percebemos
facilmente que não há nisso nada de que nos devamos espantar, pois trata-se, em
suma, apenas do resultado muito natural da concepção “democrática”, em virtude
da qual o poder vem de baixo e apóia-se essencialmente sobre a maioria, o que
tem necessariamente por corolário a exclusão de toda verdadeira competência,
porque a competência é sempre uma superioridade pelo menos relativa e só pode
ser o apanágio de uma minoria.
Neste ponto serão úteis algumas
explicações para fazer sobressair, por um lado, os sofismas que se escondem sob
a idéia “democrática” e, por outro lado, os laços que ligam essa mesma idéia a
todo o conjunto da mentalidade moderna. Dado o ponto de vista em que me coloco,
é quase supérfluo fazer notar que essas observações serão formuladas fora de
todas as questões de partidos e de todas as querelas políticas, às quais não
pretendo me misturar nem de perto nem de longe.
Encaro essas coisas de modo
absolutamente desinteressado, como o poderia fazer em relação a qualquer outro
objeto de estudo, e procurando somente dar-me conta, tão nitidamente quanto
possível, de tudo o que está no fundo disto, o que é a condição necessária e
suficiente para que se dissipem todas as ilusões que os nossos contemporâneos
criam a este respeito. Também aí se trata verdadeiramente de uma “sugestão”,
como afirmei há pouco em relação a idéias um pouco diferentes, mas pelo menos conexas;
e desde que se saiba que se trata apenas de uma sugestão, desde que se compreenda
como atua, então ela já não se pode exercer. Contra coisas deste gênero, um
exame um tanto aprofundado e puramente “objetivo”, como se diz hoje na
linguagem especial emprestada dos filósofos alemães, é bem mais eficaz do que
todas as declamações sentimentais e todas as polêmicas de partido, que nada
provam e nada mais são do que a expressão de simples preferências individuais.
O argumento mais decisivo
contra a “democracia” resume-se em poucas palavras: o superior não pode emanar
do inferior, porque o “mais” não pode sair do “menos”; isto é de um rigor
matemático absoluto, contra o qual nada poderia prevalecer. Importa notar que é
precisamente o mesmo argumento que, aplicado numa outra ordem, vale também
contra o “materialismo”; nada há de fortuito nesta concordância e as duas
coisas são muito mais estreitamente solidárias do que poderia parecer à
primeira vista. É demasiado evidente que o povo não pode conferir um poder que
ele próprio não possui; o verdadeiro poder só pode vir do alto, e é por isso,
diga-se de passagem, que só pode ser legitimado pela sanção de alguma coisa
superior à ordem social, ou seja, uma autoridade espiritual. Se for de outra
maneira, será apenas uma contrafação de poder, um estado de fato que é
injustificável por defeito de princípio, e em que não pode haver senão desordem
e confusão.
Esta inversão de toda
hierarquia começa no momento em que o poder temporal se quer tornar
independente da autoridade espiritual e, a seguir, subordiná-la, pretendendo
que sirva fins políticos. Há uma primeira usurpação que abre caminho a todas as
outras, e pode-se mostrar que, por exemplo, a realeza francesa, desde o século
14, trabalhou inconscientemente ela mesma na preparação da Revolução que a
devia derrubar. Talvez eu tenha algum dia ocasião de desenvolver como merecido
este ponto de vista, que, de momento, só posso indicar de modo secundário.
Se se define a “democracia”
como o governo do povo por si mesmo, trata-se de uma verdadeira
impossibilidade, uma coisa que nem mesmo pode ter simples existência de fato, e
não mais na nossa época do que em qualquer outra. Não devemos nos deixar enganar
pelas palavras, e é contraditório admitir que os mesmos homens possam ser
simultaneamente governantes e governados, visto que, para utilizar a linguagem
aristotélica, um mesmo ser não pode ser “em ato” e “em potência” ao mesmo tempo
e sob o mesmo aspecto. Há uma relação que supõe necessariamente dois termos em
presença; não poderia haver governados se não houvesse também governantes,
ainda que ilegítimos e sem outro direito ao poder que aquele que atribuíram a
si mesmos; mas a grande habilidade dos dirigentes, no Mundo Moderno, é a de
fazer crer ao povo que ele se governa a si próprio. E o povo deixa-se persuadir
de boa vontade, tanto mais porque se sente lisonjeado com isso e é incapaz de
refletir bastante para ver o que há aí de impossível.
Foi para criar essa ilusão
que se inventou o “sufrágio universal”: é a opinião da maioria que supostamente
faz a lei, mas falta perceber que a opinião é algo que se pode facilmente
dirigir e modificar. Pode-se sempre, com o auxílio de sugestões apropriadas, provocar
nela correntes dirigidas neste ou naquele sentido determinado; já não me lembro
quem falou em “fabricar a opinião” e esta expressão é completamente justa, embora
se deva dizer que não são sempre os dirigentes visíveis que têm realmente à sua
disposição os meios necessários para obter esse resultado.
Esta última observação dá-nos
certamente a razão pela qual a incompetência dos políticos mais destacados parece
ter apenas uma importância muito relativa; mas como não se trata aqui de desmontar
as engrenagens do que se poderia chamar de “máquina governativa”. Limito-me a
assinalar que essa mesma incompetência oferece a vantagem de manter a ilusão
que acabo de mencionar: é somente nessas condições, efetivamente, que os políticos
em questão podem aparecer como a emanação da maioria, sendo assim feitos à sua
imagem, porque a maioria, seja qual for o assunto acerca do qual for chamada a
dar a sua opinião, é sempre constituída pelos incompetentes, cujo número é
incomparavelmente maior do que o dos homens que são capazes de se pronunciar
com perfeito conhecimento de causa.
Isto leva-nos imediatamente a
perceber em que é que está essencialmente errada a idéia segundo a qual a
maioria deve fazer a lei – porque, mesmo se essa idéia, pela força das coisas,
é sobretudo teórica e não pode corresponder a uma realidade efetiva, resta, no
entanto, explicar como é que ela pôde se implantar no espírito moderno, quais
são as tendências deste às quais ela corresponde e que ela satisfaz, pelo menos
aparentemente. Pois bem, seu defeito mais visível é exatamente aquele indicado
há instantes: a opinião da maioria só pode ser a expressão da incompetência, quer
esta resulte da falta de inteligência, ou da ignorância pura e simples. Pode-se
fazer intervir, a este respeito, certas observações de “psicologia coletiva” e
lembrar notadamente o fato bastante conhecido de que, numa multidão, o conjunto
das reações mentais que se produzem entre os indivíduos que a compõem leva à
formação de uma espécie de resultante que não está nem sequer no nível da
média, mas no nível dos elementos mais inferiores.
Haveria aqui lugar para fazer
notar, por outro lado, como certos filósofos modernos quiseram transportar para
a ordem intelectual a teoria “democrática” que faz prevalecer a opinião da maioria,
fazendo do que chamam de “consenso universal” um pretenso “critério da
verdade”. Mesmo supondo que haja
efetivamente uma questão acerca da qual todos os homens estejam de acordo, esse
acordo não provaria nada em si mesmo; mas, além disso, se essa unanimidade
existisse realmente, o que é tanto mais duvidoso quanto há sempre muitos homens
que não têm nenhuma opinião sobre qualquer questão e que nunca a definiram, seria
em todo caso impossível verificá-la de fato, pelo que, o que se invoca a favor
de uma opinião e como sinal da sua verdade reduz-se a ser apenas o
consentimento do maior número, e ainda restringindo-se a um meio forçosamente
muito limitado no espaço e no tempo. Neste domínio aparece ainda mais
claramente que a teoria carece de bases, porque é mais fácil subtrair-se à
influência do sentimento que, pelo contrário, entra em jogo quase
inevitavelmente quanto se trata do domínio político, e essa influência é um dos
principais obstáculos à compreensão de certas coisas, mesmo entre aqueles que
teriam capacidade intelectual largamente suficiente para alcançar sem
dificuldade essa compreensão. Os impulsos emotivos impedem a reflexão, e uma
das mais vulgares habilidades da política é a que consiste em tirar partido dessa
incompatibilidade.
Mas vamos mais ao fundo da
questão: o que é exatamente essa lei do maior número que invocam os governos
modernos e da qual pretendem extrair a sua única justificação? É simplesmente a
lei da matéria e da força bruta, a lei em virtude da qual uma massa, arrastada
pelo seu peso, esmaga tudo o que se encontra no seu caminho; é aí que se
encontra precisamente o ponto de junção entre a concepção “democrática” e o
“materialismo” e é também o que faz que essa mesma concepção esteja tão
estreitamente ligada à mentalidade atual. É a inversão completa da ordem
normal, visto que é a proclamação da supremacia da multiplicidade como tal,
supremacia que, de fato, só existe no mundo material [2]. Pelo contrário, no
mundo espiritual e mais simplesmente ainda na ordem universal, é a unidade que
está no cimo da hierarquia, porque é ela o princípio de onde parte toda a
multiplicidade [3]; mas quando o princípio é negado ou perdido de vista, só
resta a multiplicidade pura, que se identifica com a própria matéria. Por outro
lado, a alusão que acabo de fazer à gravidade dos corpos implica mais do que
uma simples comparação, porque a gravidade representa efetivamente, no domínio
das forças físicas, no sentido mais vulgar desta palavra, a tendência
descendente e compressiva, que traz para o ser uma limitação cada vez mais estreita
e que vai ao mesmo tempo no sentido da multiplicidade, representada aqui por
uma densidade cada vez maior [4]. Essa atividade humana se desenvolveu desde o
começo da época moderna. Além disso, é caso para notar que a matéria, pelo seu poder
de divisão e de limitação, simultaneamente, é o que a doutrina escolástica
chama de “princípio de individuação”, e isso liga as considerações que expus
agora ao que foi dito anteriormente a respeito do individualismo: essa
tendência referida por último é também, poder-se-ia dizer, a tendência
“individualizante”, aquela segundo a qual se efetua o que a tradição
judaico-cristã designa como a “queda” dos seres que se separam da unidade [5].
A multiplicidade vista fora
do seu princípio, e que desse modo não pode mais ser remetida à unidade, é, na
ordem social, a coletividade concebida como sendo simplesmente a soma
aritmética dos indivíduos que a compõem, e que com efeito é apenas isso mesmo,
quando não se encontra ligada a qualquer princípio superior aos indivíduos. E a
lei da coletividade, sob este aspecto, é bem essa lei do maior número sobre a
qual se funda a idéia “democrática”.
Nesta altura devemos parar um
instante para dissipar uma confusão possível: falando do individualismo
moderno, consideramos quase exclusivamente as suas manifestações na ordem intelectual;
poder-se-ia crer que, no que respeita à ordem social, o caso é diferente. Com
efeito, se tomamos esta palavra “individualismo” na sua acepção mais estreita,
poderíamos ser tentados a opor a coletividade ao indivíduo e a pensar que fatos
tais como o do papel cada vez mais invasor do Estado e o da complexidade crescente
das instituições sociais são a marca de uma tendência contrária ao
individualismo. Na realidade não é assim, porque a coletividade, não sendo
outra coisa senão a soma dos indivíduos, não pode ser oposta a estes, aliás
como o próprio Estado concebido à maneira moderna, ou seja, como simples
representação da massa, onde não se reflete qualquer princípio superior. Ora, é
precisamente na negação de todo princípio supra-individual que consiste
verdadeiramente o individualismo tal como o definimos. Portanto, se há no
domínio social conflitos entre diversas tendências todas elas pertencentes
igualmente ao espírito moderno, esses conflitos não existem entre o
individualismo e outra coisa, mas simplesmente entre as múltiplas variedades de
que o próprio individualismo é suscetível; e é fácil dar-se conta de que, na
falta de um princípio capaz de unificar realmente a multiplicidade, tais conflitos
devem ser mais numerosos e mais graves na nossa época do que jamais o foram,
porque quem diz individualismo diz necessariamente divisão. E essa divisão, com
o estado caótico que origina, é a conseqüência fatal de uma civilização
totalmente material, visto que é a própria matéria que é a raiz da divisão e da
multiplicidade.
Dito isto, devo ainda
insistir numa conseqüência imediata da idéia "democrática", que é a
negação da elite entendida na sua única acepção legítima; não é propriamente
“por acaso” que “democracia” se opõe a “aristocracia”, esta última palavra
designando precisamente, pelo menos quando é tomada no seu sentido etimológico,
o poder da elite. A elite, de qualquer modo, por definição só pode ser um
pequeno número, e o seu poder, ou antes, a sua autoridade, que vem apenas da
sua superioridade intelectual, nada tem em comum com a força numérica sobre a
qual repousa a “democracia”, cujo caráter essencial é o de sacrificar a minoria
à maioria, e também por isso mesmo, como dizíamos mais acima, a qualidade à
quantidade, e, portanto, a elite à massa. Assim, o papel diretor de uma
verdadeira elite e a sua própria existência, porque ela desempenha forçosamente
esse papel desde que exista, são radicalmente incompatíveis com a “democracia”,
que está inteiramente ligada à concepção “igualitária”, quer dizer, à negação
de toda a hierarquia. O próprio fundo da idéia “democrática” é o de que qualquer
indivíduo vale tanto como outro porque são iguais numericamente, e embora só o
possam ser numericamente.
Uma autêntica elite, como já
disse, só pode ser intelectual; é por isso que a “democracia” apenas se pode
instaurar onde a pura intelectualidade já não existe, o que é efetivamente o
caso do Mundo Moderno. Somente, como a igualdade é impossível de fato, e como
não se podem suprimir praticamente todas as diferenças entre os homens, apesar
de todos os esforços de nivelamento, chega-se, por um curioso ilogismo, a ponto
de inventar falsas elites, aliás, múltiplas, que pretendem substituir a única
elite real. Essas falsas elites são baseadas na consideração de quaisquer superioridades,
eminentemente relativas e contingentes, e sempre de ordem puramente material.
Podemo-nos aperceber facilmente disso notando que a distinção social que mais
conta no atual estado de coisas é a que se baseia na fortuna, isto é, sobre uma
superioridade toda ela exterior e de ordem exclusivamente quantitativa – a
única, em suma, que é conciliável com a “democracia”, porque procede do mesmo
ponto de vista. Acrescente-se, de resto, que aqueles mesmos que se colocam
atualmente como adversários deste estado de coisas, não fazendo intervir
qualquer princípio de ordem superior, são incapazes de remediar eficazmente uma
tal desordem, se é que não se arriscam mesmo a agravá-la ainda mais, indo
sempre mais longe no mesmo sentido. A luta é apenas travada entre variedades da
“democracia”, acentuando mais ou menos a tendência “igualitária”, que se
encontra, como foi dito, entre as variedades do individualismo, o que aliás vem
dar exatamente ao mesmo.
Parece-me que estas curtas
reflexões são suficientes para caracterizar o estado social do mundo
contemporâneo e, ao mesmo tempo, para mostrar que nesse domínio, como em todos os
outros, só há um único meio de sair do caos: a restauração da intelectualidade
e, por conseqüência, a reconstituição de uma elite que atualmente deve ser
encarada como inexistente no Ocidente, porque não se pode dar esse nome a
alguns elementos isolados e sem coesão que representam apenas, de certo modo,
possibilidades não desenvolvidas. Com efeito, esses elementos, em geral, têm
apenas tendências ou aspirações, que os levam sem dúvida a reagir contra o
espírito moderno, mas sem que a sua influência se possa exercer de maneira
efetiva. O que lhes falta é o verdadeiro conhecimento, são os dados
tradicionais que não se improvisam, e que uma inteligência entregue a si
própria, sobretudo em circunstâncias tão desfavoráveis em todos os aspectos, não
pode substituir senão muito imperfeitamente e em fraca medida. Não há, então,
senão esforços dispersos e que muitas vezes se perdem por falta de princípios e
de direção doutrinal; poder-se-ia dizer que o Mundo Moderno se defende pela sua
própria dispersão, à qual os seus próprios adversários não conseguem subtrair-se.
Será assim enquanto estes se
mantiverem no terreno “profano”, em que o espírito moderno tem vantagem
evidente, visto que é esse o seu campo próprio e exclusivo. Aliás, se eles se mantêm
aí é porque esse espírito tem ainda sobre eles, apesar de tudo, forte domínio.
É por isso que tantas pessoas, embora animadas de incontestável boa vontade,
são incapazes de compreender que se deve necessariamente começar pelos
princípios, e obstinam-se em gastar as suas forças neste ou naquele domínio relativo,
social ou de outro tipo, embora nada de real ou de duradouro possa ser feito
nessas condições. A verdadeira elite, pelo contrário, não teria que intervir
diretamente nesses domínios nem que se misturar com a ação exterior; ela
dirigiria tudo por uma influência inapreensível para o homem comum e tanto mais
profunda quanto menos visível fosse. Se pensarmos no poder das sugestões de que
falei há pouco, e que, no entanto, não supõem qualquer verdadeira
intelectualidade, podemos suspeitar o que seria, com muito mais razão, o poder
de uma influência como essa, exercendo-se de maneira ainda mais escondida em
virtude da sua própria natureza, e buscando a sua origem na intelectualidade pura.
Um poder que, aliás, em lugar de ser diminuído pela divisão inerente à
multiplicidade e pela fraqueza que comporta tudo o que é mentira ou ilusão,
seria, pelo contrário, intensificado pela concentração na unidade principal e
identificar-se-ia com a própria força na verdade.
[1] O que os homens chamam
“acaso” é simplesmente a sua ignorância das causas; se o que se pretende, ao
dizer que uma coisa acontece por acaso, é afirmar que não existe causa, então a
suposição é contraditória em si mesma.
[2] Basta ler S. Tomás de Aquino para ver que
“numerus stat ex parte materiae”.
[3]De uma ordem de realidade
à outra, a analogia, aqui como em todos os casos similares, aplica-se
estritamente em sentido inverso.
[4] Essa tendência é a que a
doutrina hindu chama tamas e que ela assimila à ignorância e à
obscuridade: notar-se-á que, segundo o que foi dito acerca da aplicação da
analogia, a compressão ou condensação de que se trata é o oposto da concentração
encarada na ordem espiritual ou intelectual, pelo que, por muito singular que
isso possa inicialmente parecer, é, na realidade, correlativa da divisão e da
dispersão na multiplicidade. O mesmo se passa com a uniformidade realizada por
baixo, ao nível mais inferior, segundo a concepção “igualitária”, e que está no
extremo oposto da unidade superior e principal.
[5] É por isso que Dante
coloca a residência simbólica de Lúcifer no centro da Terra, isto é, no ponto
onde convergem de todas as partes as forças da gravidade; é, por esse ponto de
vista, o inverso do centro da atração espiritual ou “celeste” que é simbolizada
pelo Sol na maior parte das doutrinas tradicionais.