por Claudio Mutti
"Resulta difícil dizer até que ponto foi para ele natural elevar-se e viver nas regiões divinas: acaso não nos havia feito notar, Basílio, como somente com esforço elas descem, enquanto que para os homens comuns e inclusive para os filósofos mais destacados o esforço consiste em separar-se do baixo para poder elevar-se? Os belos sentimentos de amor e de amizade que conhecemos nele, vem em verdade de uma das ascensões de sua alma; e foram levadas sobre sua carruagem em uma de suas viagens através das esferas celestes e das infinitudes supremas. Se algum pensamento teve asas, certamente foi o seu". - Alfred de Vigny, Dafne
Compelido a esboçar um "retrato" do Imperador Juliano, o teólogo Sérgio Quinzio fez uso de uma incomum e provocadora analogia: comparou, de fato, o "Apóstata" com João Paulo II, especificando no atuar de ambos a tentativa desesperada de manter com vida uma religião condenada a desaparecer. "Se Juliano tivesse me perguntado acerca da possibilidade da restauração da civilização pagã - escrevia o teólogo - eu teria dado a mesma resposta negativa que daria hoje se o Papa me interpelasse sobre a possibilidade da restauração da civilização cristã". Mais ainda: "precisamente, o impulso restaurador empreendido pelo jovem imperador contribuiu então a derrubar definitivamente o paganismo. E o fato me parece que se repete pontualmente, por aquilo de que a história volta a se repetir regularmente".
Um paralelismo igualmente original foi apresentado por Jacques Fontaine, professor de língua e literatura latina tardia da Sorbonne,, durante uma conversa com um jornalista que lhe pedia uma comparação entre Juliano e outros protagonistas da hitória "com projetos bastante similares" (sic!) como Hitler ou Stálin. "Eu - respondeu Fontaine - o colocaria junto, se assim me pedes, a Khomeini. Pelo fanatismo, pelo sentir-se imbuído de uma missão divina, pelo fato de considerar-se um deus. E logo pela cultura. Pela violência, pelo sectarismo. De Juliano possuímos descrições físicas muito precisas. Uma, de Ammiano de Antioquia (barba pontiaguda, olhos magnéticos, figura hierática) o faz verdadeiramente muito semelhante, inclusive nos traços, ao aiatolá iraniano".
Assim, a galeria de personagens históricos aos quais Juliano foi comparado se enriquece. Ignoramos o que Stalin teria pensado disso. De sua parte, Hitler provavelmente teria agradecido a comparação, já que não poucas vezes manifestou sua admiração pessoal pelo grande "Apóstata".
Quanto a Khomeini, deixando de lado a improcedente frivolidade de ele "considerar-se um deus", um discurso um pouco menos convencional teria sabido tomar em conta o caráter teocrático comum do projeto do Augusto como do Imã, pelo que uma resenha sobre a função restauradora do monoteísmo islâmico teria podido renovar, se fosse necessário fazê-lo já, a tentativa juliana de instaurar o que já foi denominado de "monoteísmo de Estado". Nem semelhante argumentação teria sido cientificamente abusiva, já que o aprentesco ideal entre a teologia solar antiga e o Islã já foi autorizadamente assinalada por um estudioso do calibre de Franz Altheim, para o qual "os neoplatônicos foram a vanguarda de Maomé e de seu ódio apaixonado contra toda fé que associe a Deus um 'companheiro'", enquanto um célebre estudo de Henry Corbin sobre a doutrina da unidade divina no Islã xiita se abre com uma invocação da literatura surgida nos anos vinte do século XX ao redor do 'drama religioso do Imperador Juliano'".
E não obstante, foi precisamente o próprio Jacques Fontaine o que sugeriu, em correspondência com a religião que Juliano oficiou como Pontifex Maximus, o conceito de "monoteísmo solar", ao qual tem sido feitas referências frequentes todos aqueles que investigram as manifestações religiosas da época imperial.
De fato, segundo o estudioso francês a forma que a tradição grecorromana assumiu na época de Juliano é "uma síntese de todas as religiões e de todas as teologias pagãs, sob o signo do monoteísmo solar", ou, se for preferido o sinônimo utilizado por outros estudiosos, de um "henoteísmo solar" definível com os seguintes termos: "Juliano quer demonstrar a todos que o deus Hélios é o único, verdadeiro deus e que as numerosas divindades romanas não são mais que hipóstases, quer dizer, aspectos particulares, manifestações concretas e fragmentárias da única, suprema divindade solar".
Monoteísta ou henoteísta, a doutrina defendida por Juliano fica resumida em várias inscrições contemporâneas que proclamam a unicidade de Deus, assim como a unidade e unicidade do poder imperial; epígrafes que segundo Spengler somente podem traduzir-se assim: "Há um só Deus e Juliano é seu Profeta". A reiteração neste ponto, que "tem uma importância central na concepção política de Juliano", levou Athanassiado-Fowden a falar inclusive de "uma obsessão pela unidade" e realçar o fato de que "Juliano não teria se quer concebido a possibilidade de compartilhar o poder com um associado, e ser assim considerado como o único vigário de Deus na terra". Tal concepção política encontra sua fórmula mais arcaica em Homero, que põe na boca de Odisseu: "Não é bom uma multidão de chefes, que somente haja um chefe"; Sêneca expõe o mesmo princípio para o Império Romano, dizendo que "foi a natureza que criou o Rei"; e Filón de Alexandria acrescente um corolária que estabelece uma comparação entre politeísmo e democracia: "Deus é somente um, e isso é um argumento contra os defensores da opinião politeísta, que não se envergonham em levar da terra ao céu a democracia que é a pior entre as más instituições".
Quanto ao "monoteísmo solar", Juliano não inventou nada, senão que se limitou a aperfeiçoar um processo de esclarecimento teológico que estava em marcha desde muito tempo e que Franz Altheim resume nos seguintes termos: "A história do antigo deus do sol, considerada em grandes traços, é a de um gradual refinamento. O culto, de origem beduína, se estabelece em uma cidade da Síria. Por sua peculiaridade e por seu caráter absoluto desata os comentários do mundo ocidental, provocando o rechaço mais inflamado. Porém sua expressão literária, a filosofia neoplatônica e, não em último lugar, a capacidade assimiladora da religião romana e da concepção romana de estado, conseguiram o milagre: da divindade de Heliogábalo (218-222 d.C.) infectada pelas orgias e pela superstição oriental, nasceu o mais puro dos deuses, destinado a unificar de uma vez por todas a religiosidade antiga". Em 274 d.C., sob Aureliano, o monoteísmo solar se converteu na religião oficial do Império Romano e o Sol Invictus foi reconhecido como a divindade suprema: em Roma se levantou um esplêndido templo dedicado ao Sol, em honra ao qual se instituíram festas periódicas, enquanto que se constituiu um colégio de pontífices do deus Sol, tendo sido cunhadas numerosas moedas com inscrições e símbolos solares. De tal modo o "monoteísmo, ao qual o sincretismo severiano havia orientado o paganismo romano, encontrou no culto solar patrocinado por Aureliano sua versão mais atrevida e eficaz", tanto é assim que no muro da intransigência cristão não se deixou de se constatar algumas fendas. Na época de Constantino adquiriram considerável importância "as imagens monoteistizantes da religião de Hélios: Apolo solar e o Sol Invictus se sobressaríam nos relevos do arco do triunfo e nas moedas da época". Enquanto que as figuras dos deuses desapareciam pouco a pouco das moedas de Constantino, o deus solar se impunha cada vez mais: "Sol Invictus (...) se mantém também por um longo tempo no território dominado por Constantino e em todas as sua fábricas de moeda (...) parece que o imperador em pessoa teve uma profunda devoção pelo deus Sol". Entre a burocracia e o exército, a religião solar desfrutava de máxima circulação: "o Sol Invictus e a Victoria eram os deuses militares do exército de Constantino; de igual prerrogativa gozava a divindade solar nas legiões de Licínio".
Considerada em seu contexto histórico, a formulação juliana da teologia solar se situa em uma fase de maturidade do neoplatonismo, na qual os fundamentos doutrinários desse movimento espiritual se encontram já estabelecidos e consolidados definitivamente. Se o fundador dessa escola, Plotino (204-270), havia reconhecido no Uno o princípio do ser e o centro da possibilidade universal, seu sucessor Porfírio de Tiro (233-305) havia feito do neoplatonismo uma espécie de "religião do Livro"; autor de um ensaio Sobre o Sol, Porfírio havia consagrado ao estudo da teologia solar um tratado do qual se conservam reveladores fragmentos nas Saturnais de Macróbio. "Em sua argumentação Porfírio não faz mais do que aplicar a metafísica platônica - que remete ao Uno qualquer aspecto parcial do Cosmos - às mais importantes divindades do panteão clássico, mostrando como estas não são outra coisa que atribuições particulares do Único, que desde a perspectiva teológica é caracterizado como Sol, enquanto é a essência espiritual sobre o plano cósmico se 'sustenta' no astro diurno (...) enquanto Apolo é magnificência, saúde e luminosidade (...) enquanto Mercúrio logo, 'preside a linguagem' (Saturnais I, XVIII, 70), desse modo toda atividade é reconduzida a uma presença divina 'solar'". Porém foi o herdeiro de Porfírio, o "divino Iâmblico" (250-330), o que mediante sua doutrina "converteu (...) ao último imperador pagão a sua helioatria transcendente". Depois de Juliano, é possível prosseguir a tradição "solar" até Proclo (410-485), autor entre outros de um Hino a Hélios, assim como a seu contemporâneo Marciano Capella, que com o hino-oração de Filologia ao Sol (De nuptiis, II, 185-193) nos deixou um "notável documento da 'teologia solar' do neoplatonismo tardio", sendo assim "o último testemunho do sincretismo solar no Ocidente"; de fato até 531, com a ida a Pérsia do escolarca Damáscio (474-544) e de outros neoplatônicos, a tradição solar abandonará o mundo cristão e continuará sua existência própria nos mesmos lugares desde onde se irradiou, difundindo-se por toda Europa, o culto de Mitra.