26/04/2024

Julien Freund - O Que é a Política?

 por Julien Freund

(1965)


Prefácio


Em nossos dias, todos conspiram para mascarar a verdadeira natureza da política. A tradição platônica, o prestígio da ciência, a autoridade aparente dos intelectuais, o domínio onipresente e cotidiano dos tecnocratas ou até mesmo as modas de certas escolas de ciência política e sociologia política que tendem a acreditar que a política agora se tornou um objeto puro de conhecimento e que seu desenvolvimento futuro depende da análise e da pesquisa científica. Ninguém contesta que o aumento e a difusão do conhecimento, tanto nas ciências físicas quanto nas ciências econômicas e sociais, produziram modificações consideráveis no universo político. Essas transformações não alteraram fundamentalmente a política. Pelo contrário, a política foi impulsionada, assim como a religião, a arte ou a moral, pela agitação geral que mudou fundamentalmente o mundo e o cenário dos homens comuns. Para cumprir sua tarefa e respeitar o mais fielmente possível seu próprio campo de atividade, a política é obrigada a medir essas transformações e deve se aventurar a dominar a ciência, a autoridade dos intelectuais e o governo dos tecnocratas para colocá-los a serviço do bem comum, em termos simples: a política deve garantir a segurança contra ameaças externas e a harmonia interior de várias unidades políticas. Dessa forma, o objetivo da política não pode ser o conhecimento puro. A política continua sendo o que sempre foi: ação. Essa é a única maneira de entendermos a política.

A relação fundamental de toda ação é um meio para um fim, uma meta. Essa relação entre conceitos pode ser vista na política a partir de vários pontos de vista, três dos quais são essenciais para nossa discussão sobre política.

Primeiro, podemos considerar a política pelas lentes das categorias morais do bem e do mal, uma visão que é considerada a mais honrosa e digna, o que explica o fato de ser a visão mais comum da política, embora seja uma visão ruim da realidade política e cause muita confusão e ambiguidade. Não é preciso dizer que não estamos tentando subtrair a política do juízo moral ou isolar a moralidade e a política uma da outra. Entretanto, temos de reconhecer que a política e a moralidade não são idênticas. De fato, a política e a moralidade não têm o mesmo objetivo. A moralidade responde a um requisito interno pessoal e diz respeito à adequação das ações pessoais das pessoas de acordo com o padrão de dever ou obrigação. A política, por outro lado, responde às exigências necessárias da vida social e uma pessoa que se compromete dessa forma política participa do cuidado com o destino geral de uma comunidade coletiva. Aristóteles fez a distinção entre as virtudes morais de um homem bom, que definem a perfeição individual, ou seja, a autorrealização, e as virtudes cívicas do cidadão, que se referem à capacidade de comandar e obedecer e à salvação da comunidade como um todo. Embora seja desejável que o político seja sempre um homem bom, ele pode não ser, especialmente porque em um Estado nem todos os cidadãos são homens bons e virtuosos. Em outras palavras, a política é responsabilidade da comunidade como tal, independentemente da qualidade moral e da vocação pessoal dos membros. Portanto, é "possível ser um bom cidadão sem possuir a virtude que nos torna um bom homem" (Aristóteles, n.d., p.180).

Essa distinção clássica continua válida até hoje, apesar das ideologias que buscam escravizar os indivíduos às epifanias da justiça, da igualdade social ou da ordem moral que prometem para um futuro indeterminado. A identificação da moralidade com a política é uma das fontes do despotismo e da ditadura. O resultado é que a moralidade não é conceitual nem logicamente inerente à atividade política, ou seja, agir politicamente não é a mesma coisa que agir moralmente e vice-versa. Aqui encontramos outra distinção clássica, aquela entre moralidade e legalidade. A lei moral é autônoma, o que significa que obedecemos e impomos obrigações a nós mesmos, enquanto a lei política é heterônoma, o que significa que nos submetemos a uma regra imposta a nós de fora de nós mesmos, por um poder legislativo que pode ser chamado de governo, parlamento ou conselho municipal.

Em resumo, a moralidade é uma questão de disciplina, a política é uma questão de restrição.

Se a política e a moral são duas atividades distintas por natureza, porque seus objetivos são diferentes, é claro que só podem ser iguais em termos de seus respectivos meios. A convicção ética pura não pode ser uma garantia de eficácia política. Essa é a base da oposição que Max Weber vê entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade. Isso mostra, em particular, que a sinceridade, a generosidade e a bondade podem comprometer a obtenção de fins políticos, se alguém acreditar que somente o bem gera o bem e o mal gera o mal injustamente. Toda a experiência e a história contradizem essa opinião, pois muitas vezes acontece que os ideais morais levam a consequências terríveis, se não desastrosas, e que uma decisão moralmente repreensível pode ter consequências felizes ou favoráveis. Quem considera a relação entre os meios e o objetivo na política apenas do ponto de vista moral está condenado à inação e, consequentemente, à impotência, porque é levado a se fechar em um questionamento perpétuo de suas ações. Ele só pode se esconder do mundo ou amaldiçoá-lo e, por fim, pode levar o mundo ao apocalipse chamado "revolução".

Em segundo lugar, pode-se considerar a relação entre os meios e um objetivo na política de forma prática, do ponto de vista das "receitas", conselhos, procedimentos e técnicas que devem ser seguidos para alcançar o poder, exercer o comando, fazer uma revolução ou até mesmo manter o poder depois de conquistado. É possível ver a política do ponto de vista diretamente pragmático da contribuição da ciência e da pesquisa para o caso concreto de um empreendimento específico, no sentido de que, como o objetivo é fixo, o homem político consulta especialistas para saber quais são os meios mais adequados para atingir o objetivo. Olhar para a política com o método pragmático requer um senso político incomum, mas é cheio de riscos, porque nessa área nós incessantemente nos deparamos com o cinismo ou o ridículo, porque esse tipo de método não reconhece chavões nem banalidade ou afeição pretensiosa. No entanto, grandes mentes já viram a política dessa forma e se destacaram, deixando algumas das obras mais notáveis da literatura política, como O Príncipe, de Maquiavel, Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado, de Gabriel Naudé, Que Fazer? de Lênin, e O Fio da Espada, de Charles De Gaulle. A leitura desses livros, juntamente com uma análise das ações de homens do Estado, como Péricles, Richelieu, Cromwell, Churchill e outros, nos permite ver que a política é uma arte e não apenas uma profissão. É possível ganhar a vida com a política como outros ganham cozinhando ou construindo estradas. Embora seja errado desprezar aqueles que fazem bem o seu trabalho, continua sendo verdade que, na política, dada a sua finalidade, a mediocridade é mais prejudicial do que em qualquer outra carreira.

Aqui nos referimos à arte no sentido comum do termo, que enfatiza a relação dos meios com um objetivo, como ordenar os processos mais adequados para atingir um objetivo desejado. A arte política é essencialmente uma arte de decisão, o que significa que é preciso ter intuição para avaliar o que parece apropriado em uma determinada situação e ter um senso de responsabilidade pela causa que se defende. A arte política não é de forma alguma oportunista; não é um entusiasmo vazio aliado a uma falta de confiança na causa que se alega servir. Nada é mais contrário à arte política da decisão e da responsabilidade do que a vaidade, como mostra Max Weber, porque a vaidade se volta para a excitação do sensacionalismo e da participação nos lucros, que carece da distância necessária que permite a um homem agir adequadamente, com contemplação, sobre os eventos desordenados que ele deve dominar com precisão.

O segundo aspecto dessa avaliação prática da relação entre meios e metas é muito modesto, porque consiste em fazer propostas e não decidir, embora hoje a elite tecnocrática seja caracterizada pelo desejo de influenciar definitivamente as decisões políticas, sem assumir a responsabilidade: a elite tecnocrática é um intermediário. Como no passado, o rei se cercava de "conselheiros particulares", o líder político moderno consulta especialistas ou peritos para dar a base mais racional possível a seus projetos, dadas as condições, os meios disponíveis ou a implementação, e para prever as consequências e o escopo geral do projeto. De fato, independentemente da relação entre os meios e o fim na política, nada se desenvolve de acordo com a estrita conformidade com as disposições e os cálculos, porque precisamos lidar com emergências o tempo todo, obstáculos inesperados e surpresas, e isso tem consequências subsidiárias que podem, quando apropriado, nos levar a questionar o todo ou a recorrer a meios que foram descartados a princípio, devido a certos valores ou problemas que inevitavelmente surgem ao levar um projeto até o fim. As falhas de uma ação são reveladas apenas na própria ação. Esse aspecto da avaliação prática da relação entre meios e metas é, portanto, fundamental, pois se trata de definir, dentro dos limites do objetivo, as possibilidades e as impossibilidades técnicas, os valores finais que estão em jogo, bem como as possíveis consequências do projeto. De fato, na política, qualquer relação de meios com um objetivo implica, além do objetivo desejado, consequências indesejadas que devem ser enfrentadas, sob pena de covardia. A verdadeira responsabilidade política é, portanto, confiança sem garantia, risco sem garantia, uma determinação sem certeza. Os especialistas também estão frequentemente errados; seria muito tedioso fazer uma lista dos erros que eles cometeram.

Por fim, podemos considerar essa relação de um ponto de vista fenomenológico. Se a política é uma atividade autônoma, da mesma forma que a ciência, a arte, a economia, a religião e a moral operam como esferas autônomas, e se é verdade que a política não pode ser reduzida a nenhuma dessas esferas, então devemos perguntar: quais são os meios e fins específicos da esfera política? Essa é uma tarefa difícil, pois é necessário superar muitos obstáculos que bloqueiam nosso entendimento, todos tentando sequestrar o propósito da política - por exemplo: comunismo, socialismo, liberalismo, progressismo, despotismo, federalismo e parlamentarismo, democracias, aristocracias, plutocracias e teocracias, monarquias, anarquias e oligarquias, ideologias, apologéticas, pleitos e heresias, declarações, proclamações, declamações, afirmações, refutações, negações e denegações. De acordo com todas essas teorias, doutrinas e regimes, ditos e escritos, o objetivo da esfera política poderia ter os mais diversos e contraditórios propósitos: liberdade, igualdade, justiça ou igualdade social, fraternidade, o fim da guerra de classes, o prestígio de uma nação, a pureza de uma raça, o estado de direito, a solidariedade, a paz etc. Há até mesmo grupos que conseguem conciliar o irreconciliável em programas em preto e branco, capazes de satisfazer a todos sem satisfazer ninguém. Cada geração recomeça com novas acusações e, por isso, a política se torna um termo genérico. Da mesma forma, devemos examinar os meios da política: conflito, negociações, violência, terror, subversão, guerra, lei etc.; os meios são pensados e tão variados quanto os objetivos são díspares. A demagogia é a mesma coisa - ela é usada para muitos objetivos finais diferentes. Dependendo das circunstâncias, o demagogo recupera a teologia ou a denigre, invoca os grandes princípios ou zomba deles; glorifica a psicologia, a sociologia, a demografia, as armas termonucleares ou condena todas elas; invoca a legalidade contra a legitimidade ou o inverso; exalta a tolerância ou recomenda o fanatismo rápido; defende a liberdade de imprensa, de informação e de consciência ou as difama todas; diz que a arte é divina ou a denigre. Apresentamos a política como a libertação do homem, mas a ciência, a religião, a arte e a economia têm a mesma pretensão. Não sabemos se a política é moralidade, ciência, arte ou economia. A política é tudo e nada.

Em um certo sentido, a política pode servir a qualquer propósito e usar qualquer meio. O problema, no entanto, é saber se, como a ciência, a arte ou a religião, a política tem um objetivo e meios próprios. Nas páginas a seguir, pretendo esclarecer o propósito da política, fazendo uma distinção clara entre escatologia, tecnologia e teleologia. Para esclarecer minha abordagem, gostaria de dar dois exemplos: os exemplos da "liberdade" e da "paz".

Não é apenas a política que se propõe a contribuir para o desenvolvimento da liberdade no mundo; a política também pode tirar a liberdade. De qualquer forma, a ciência, a arte, a religião e a moralidade têm a mesma ambição libertadora. Portanto, não se pode estabelecer que a liberdade seja um objetivo específico de qualquer uma dessas atividades; a liberdade é, na verdade, um objetivo final, escatologicamente falando, de todas as atividades humanas. Cada uma dessas atividades promove a liberdade em sua própria esfera, sem nunca alcançar a liberdade final e definitiva, seja trabalhando sozinha ou em conjunto com outras esferas de atividade. A política participa desse trabalho comum em sua própria esfera de atividade, dentro dos limites de seus próprios propósitos, a saber, a segurança externa e a concórdia interna de uma unidade política, usando seus próprios meios, que são a restrição e a força. Como isso é verdade, fica claro que a liberdade política não pode ser estabelecida em um estado de ações livres, ou seja, em um desvio da regra geral ou na violação da lei, mas de acordo com as regras e a lei, desde que as regras e as leis não vitimem outras atividades, como a arte, a moral ou a ciência. De fato, o significado profundo da atividade política é permitir que cada indivíduo obedeça à sua vocação dentro de sua comunidade sem causar danos irreparáveis a outros membros da comunidade. Em outras palavras, a regra reguladora é a condição política da liberdade do indivíduo. Essa regra reguladora é diferente das outras esferas de atividade, que buscam seu próprio significado de "liberdade".

Isso não significa que a liberdade política exigiria a supressão de inimigos; isso seria contrário à essência da esfera política, uma vez que ela vive da inimizade, da oposição entre partidos e ideologias, da adversidade antagônica de opiniões, valores e fins, e da competição de possíveis soluções para o problema do que é o bem comum para todos. A liberdade política, entendida dessa forma, inevitavelmente levanta a questão do conceito de "paz" na política. A crença de que a negação da existência de um inimigo leva à promoção da paz não leva de fato à paz, mas é uma falsificação, uma mentira (isso é realmente popular em alguns círculos religiosos que se envolvem em política). Ela consiste em acreditar que a tolerância é uma relação entre ideias, enquanto a tolerância é, na verdade, uma relação entre homens - um problema de comportamento.  De fato, nenhuma ideia é liberal, nem mesmo a ideia de liberalismo, porque, por sua própria natureza, toda ideia afirma algo e nega outra coisa. Desse ponto de vista, a promoção da paz por meio da tolerância é mais do que uma falha de julgamento, é a sua ausência.

Como estamos lutando contra um inimigo, é também com um inimigo que devemos fazer as pazes, o que significa que, politicamente, não há paz sem um inimigo. Uma ordem sem paz com um inimigo real não poderia se manter sem o uso da força ou da violência, em outras palavras, apenas com o uso das virtudes da lei, da justiça ou da solidariedade, mas uma ordem que faz a paz com um inimigo real depende de uma vontade política concreta incorporada em acordos ou em um tratado. A ideia de paz sem um tratado de paz, ou seja, sem regulamentos e sem garantias, é politicamente absurda. O que é chamado de "paz das almas" ou "paz religiosa" só pode ter um significado religioso. De fato, enquanto a paz definir, como a guerra, uma relação entre Estados-nações, ela é principalmente um assunto político; a paz não pode ser assimilada a um fim total da luta ou a uma completa ausência de conflitos e antagonismos. O que caracteriza a paz, diferentemente da guerra, é que ela não busca conquistar, derrotar ou esmagar o inimigo, mas o reconhece, ou seja, a paz política aceita o inimigo como ele é, em pé de igualdade, com todas as suas diferenças e sua alteridade.  Em suma, a paz política não exclui o inimigo, sob qualquer forma que seja, mas a paz política é uma declaração de guerra disfarçada ou camuflada. Nesse sentido, a paz não é, como a liberdade, um fim último, de ordem escatológica, mas constitui um objetivo concreto da política, uma meta alcançável com os meios específicos da política, dentro dos limites estabelecidos pela segurança de cada Estado-nação.

Deve-se entender que a paz é uma fase do objetivo específico da política e que ela não pode ser o fim de outras atividades, como a religião, a ciência ou a moral, embora, dadas as interrelações entre as várias atividades humanas, a política deva considerar, para estabelecer firmemente a paz, os aspectos econômicos, religiosos e morais do acordo entre os Estados-nações.

Não é preciso uma longa explicação para perceber que essa análise fenomenológica da relação dos meios com o objetivo da política pressupõe que a atividade política tem seus próprios meios e objetivos somente se admitirmos que as outras atividades humanas, como a moral, a economia, a ciência, a arte e a religião, também têm seus próprios meios e objetivos. Ou seja, cada uma das outras esferas da atividade humana também é autônoma, apesar das inevitáveis relações recíprocas ou dialéticas entre elas; o conflito e a amizade constituem a espinha dorsal da história humana. Isso significa que não podemos reduzir a política à moral, à economia ou à ciência e vice-versa, nem pode ser deduzida de uma esfera da atividade humana como a infraestrutura da qual as outras esferas seriam superestruturas. É com bons motivos que Marx acusa Bruno Bauer em A Ideologia Alemã de ter afirmado, sem provar, que a política, a arte ou a economia se reduzem "em última análise" à religião. Mas o próprio argumento de Marx funciona contra ele, porque ele não fornece evidências fortes o suficiente para mostrar que todas as atividades humanas são reduzidas "em última análise" à economia.