14/01/2021

Giandomenico Casalino - A Realização do Espírito na Tradição Indo-Européia

por Giandomenico Casalino

(2015)


"...do século VII a.C. até Jesus há um esvaziamento contínuo e progressivo da religião olímpica indo-européia, que gradualmente vai se cristalizando cada vez mais no esteticismo dos artistas e no ritualismo dos sacerdotes, e um desenvolvimento paralelo da religião dos Mistérios que vai se ampliando cada vez mais... Toda a história da religião, e na verdade do pensamento grego, reside neste dúplice processo..." - Vittorio Macchioro, Zagreus. Studio intorno all'orfismo (Firenze, 1930)

O homem indo-europeu, se for visto do ponto de vista do sujeito moderno, é um homem cósmico aberto ao mundo[1], é "atravessado" pelo Mundo e pelos seus Poderes, ele nada sabe de "interno" e "externo", sua "consciência" é cósmica, universalizada, na verdade ele é universal no sentido de que coincide com os Deuses. O homem após a Queda, a crise, na Modernidade como categoria do Espírito, na convicção prometeica de ter adquirido ou conquistado a "liberdade", perdeu a Universalidade da consciência e a mesma foi reduzida ao pequeno Ego que acredita decidir, olha com suficiência e altivez para o homem homérico que ele considera um "escravo" dos Deuses; o seu pequeno Ego, convencido de "decidir" e de ser "autônomo", está sempre nas "mãos" de algo "diferente" de si mesmo e é sempre "algo" desconhecido e, portanto, obscuro, que vem tanto do "seu" interior (que seu não é) quanto do "exterior", um mundo que é igualmente estranho...

Como é evidente no homem homérico, (o homem da doxa que é a glória, onde o aparecer equivale ao ser, na expectativa de sua transparente luminosidade)[2] ele é em "sua" essência vital e espiritual, no thymòs, nas frènes, na psiquê, no vivente unitário que ele é, os mesmos Poderes Cósmicos, ou seja as próprias realidades Divinas. O movimento é, portanto, o proceder do Mundo como universo das Idéias que se reflete no Si de tal homem que é "invadido" pelo Mundo, de modo que é o próprio Mundo, refletido, como Idéia, no Si, a ser reconhecido como sua própria natureza mais íntima: aquilo que para nós, estúpidos e arrogantes modernos, filhos e netos do antropocentrismo cristão, são "nossos" sentimentos, "nossas" paixões, "nossas" idéias e "nossos" medos, para o homem indo-europeu são Deuses, Potências Cósmicas, certamente não "seus", pelos quais ele é atravessado e impregnado; ele é, portanto, em sua essência, Divino e ele sabe disso, estando serenamente consciente; portanto, os próprios Deuses e todas as outras Potências Divinas e semidivinas são "sua" natureza mais profunda e isto, longe de fazê-lo sentir-se desprovido de vontade e autonomia decisória e, portanto, "escravo" deles (como a idiotice dos intérpretes modernos ousou pensar, elucubrando sobre a suposta e alegada ausência de autoconsciência e liberdade em tal homem ...) o dignifica ainda mais, dando-lhe a firme convicção, baseada no Saber, de ser um com o Universo, totalmente aberto ao mesmo e livremente aceito pelos mesmos, quase como abraçado, como um irmão e filho [3] do próprio Cosmos; esta natureza Espiritual o coloca em sólida amizade com o Divino (Pax Deorum Romana...) tendo sua natureza e sendo Si mesmo; ele é, portanto, Homem Cósmico, Homem de Luz! Nesta sabedoria reside a razão arcaica da natureza divina e, portanto, cósmica que, no próprio mundo romano, foi reconhecida a potências espirituais tais como: Spes, Concordia, Fides, Felicitas e outras; enquanto nós, modernos, as consideramos apenas "sentimentos" humanos...!

Portanto, o homem védico, homérico ou arcaico-romano não precisa de "iniciações", nem de caminhos misteriosos, pois, pertencendo espiritualmente à natureza heróica, ele não conhece fraturas nem separações, nem dualismos ("alma" e "corpo"; "interior" e "exterior"). É a modernidade vedantina pós-védica na Índia ariana, pós-homérica e sofística na Grecidade, pós-arcaica e helenizante na Romanidade, que impede de ver a Idéia do Mundo na Realidade, no Real, porque a partir de então o homem desta época é presa da convicção de que a Idéia vem a ele "de fora", do exterior e que, portanto, ela é algo estranho à sua natureza íntima; algo que consequentemente o "condiciona" e limita ou restringe coercivamente sua "livre" vontade, determinação ou capacidade de conhecimento. Diante de tal catástrofe, há duas Vias para recuperar a Unidade e a transparência perdidas, uma é afundar no Todo que é a Divindade (exemplos podem ser a corrente órfico-dionisíaca, a trágica e a gnóstica na Antiguidade e Spinoza e Eckhardt na modernidade...) onde se acredita ter encontrado ou redescoberto que o "fora" não existe e não pode existir, sendo o "fora" que é o Mundo, por tal atitude do Espírito, Maya como engano, nada e falácia; a outra Via é a da busca e da fabricação heróica enquanto espiritualização da Consciência, pois é a iluminação da opacidade das Idéias que, encontradas em Si e nas profundezas de Si, no fundo da alma, convertem o "subjetivismo" da Modernidade, o antropocentrismo que posteriormente assumirá a face definitiva do Cristianismo, em uma nova e antiga forma de objetivismo. 

Platão, de fato, inicia o caminho de ascensão a partir do sujeito, do homem e mesmo que inicialmente possa parecer um caminho órfico (Fédon), em sua natureza íntima não o é, pela simples razão de que Platão sabe perfeitamente que a corrente órfico-dionisíaca, os seus Mistérios, o seu mundo (teatro e tragédia...), sua espiritualidade lacerada e, portanto, dualista, nunca pode ser nem se revelar um phàrmakon, um remédio, pois são a própria fenomenologia de uma alma desesperada, da "fratura", sintomas da própria doença da Modernidade e, portanto, não podem ser caminhos, remédios e "instrumentos" para a reconquista da Unidade perdida. Platão inicia a Grande Obra de ascensão a partir das profundezas da consciência humana, definidas mitologicamente com a imagem do Hades (Menon); nesta profundidade escura - que não "pertence" ao sujeito individual, mas é o lugar cósmico da espécie humana - estão as "memórias" opacas, ou melhor, as Idéias, os conhecimentos, enterrados no "passado" do conhecimento humano, ou seja, cosmicamente, nos ciclos anteriores da civilização; Platão, como começou a fazer já Sócrates, atua como parteiro, faz sair à "luz" da espiritualidade aquilo que a consciência universal, em sentido objetivo, já possui, mas não sabe! No sentido de que não tem consciência disso, o Conhecimento não veio da alma e de suas profundezas para a superfície, para a Luz do Espírito, não há "ainda" a autoconsciência da identidade eterna entre o fundo da Alma e o Espírito: somente naquele Instante a alma como "sono do espírito" (Hegel) desperta! E aqui está o sentido da experiência do Buda, ou seja, do Despertado! Não é mais a Alma, mas todo o Espírito que iluminou as Águas como um solvente derramado nelas ou como o Sol que as ilumina e as torna transparentes. Assim o homem não será mais o átomo subjetivista, estupidamente jactante com presunções inautênticas, mas reconhecerá no Real, no Mundo, verá nele o próprio objeto que ele mantinha "escondido" nas profundezas de sua alma... e não o sabia! No Instante em que o homem adquire o Conhecimento da identidade entre Pensamento e Ser, a dualidade não só não existe (mais), como o homem conquista o Conhecimento de que ela nunca existiu: era apenas ilusão, engano, sono.

Eis o Caminho Indo-Europeu que Platão indica, ascese filosófica, Via que leva o homem de volta à phýsis, reconecta o homem com o Mundo (para além do orfismo dionisíaco...!) já que não é uma fuga do Mundo!

Platão, tal como Hegel futuramente, não responde de forma reacionária e nostálgica ao desafio da Modernidade dissociante, sofística e subjetivista, lamentando o belo tempo homérico e seus heróis, mas "usa" o homem da modernidade, que é "diabólico" (diabàllein = separar, cortar, cindir) para mostrar-lhe, através da reminiscência, a lembrança, que é a anamnese, a busca pela consciência e pela autoconsciência do Espírito como forma tanto no microcosmo (o fundo da alma do homem) quanto no macrocosmo (o fundo da alma do mundo) para que ele possa dizer a si mesmo novamente: "o mesmo é Pensamento e Ser"! (Parmênides) Este é o Despertar que se move exclusivamente do sujeito, de seus limites, de sua tragédia, do próprio Mundo, não negando-o a priori, mas convertendo Chumbo em Ouro, borra em remédio, como ensina a própria Tradição Hermética, convertendo relativismo em objetivismo, em Idéias que vêm dos Deuses, que são os Deuses! E esta é a Ascética platônica. 

Ao contrário dos Mistérios, esta Via é Ascese filosófica, é a Via do Conhecimento que é o Ser, é a natureza profunda da própria Filosofia que nasce do culto religioso[4], do culto oracular (Delfos) como sua dimensão esotérica, nasce como um ritual ascético a ser perseguido ao longo da vida. O Filósofo é o "novo" Sacerdote para o "novo" ciclo da humanidade, que é também o último, antes do advento do outro ciclo (como nos ensina Aristóteles: Metafísica, XII, 8, 1074a, 38-b 14) e sua é a Ascese da Contemplação, mas ele está além da sacerdotalidade e do plano religioso, que, como bem entendeu Hegel, é sempre dualista, representativo do "objeto", de Deus como "outro" em relação à Alma. No ascetismo filosófico, que é a mais alta e primordial das realizações do Espírito, há uma identificação absoluta: EU sou TU! Plotino fala de mònos pròs mònon, sozinho para sozinho, no final das Enéadas, depois de ter atravessado e deixado para trás o simulacro, as representações "objetuais" do Divino. A Ascese da Contemplação parte do "interior" e depois o nega, e é o momento espiritual da morte da alma como um pequeno "eu", como sujeito, e é a aurora do nascimento da grande alma (magnanimitas, mahatma) como Espírito que não conhecerá mais "interior" ou "exterior" e voltará a ser o que sempre foi: Homem Cósmico, Homem Vivente aberto ao Mundo, onde o Espírito é Um e é cósmico e universal. Este "interior" é o Mesmo do "exterior" e sempre foi assim, mesmo se o homem cindido da Queda o tenha esquecido. Da Queda, de sua consciência nasce, na crise do conhecimento como obscuridade da mente, toda a Grande Obra que, agora, aparece verdadeiramente como uma Obra Heróica. Nela há religio como religatio, como a reunião do que foi separado (rectius: parecia Separado: Eu e Mundo, "interior" e "exterior"), existe a Arte, como linguagem para falar, operando, dos Deuses perdidos; há todos os Caminhos Sagrados que têm como objetivo o Retorno, a Reconquista do Paraíso Perdido, o estado de União (Realidades, em verdade, nunca perdidas ou nunca eclipsadas, mas apenas momentaneamente - ciclicamente - ocultadas...), da visão alegre, da contemplação espontânea das Idéias que são as Formas do Divino, sempre inteligíveis, e são os próprios Entes na realidade de sua essência que é sua própria existência, ou seja, o Mundo. 

Este é o próprio "caminho" da Tradição Hermética que, ao contrário dos Mistérios e sua espiritualidade dualista, é a Ascética heróica e sapiencial, onde o Conhecimento coincide com o Ser, precisamente porque tal experiência do Absoluto é conhecimento que o Absoluto não pode senão conhecer a si mesmo. De uma maneira extraordinariamente indo-europeia, nesta experiência o espírito é corporificado e o corpo é espiritualizado: que é como descrever a realidade do Transcendente Imanente, um conceito que Hegel expressa de forma semelhante quando afirma, no final do caminho iniciático-sapiencial, que o Absoluto é o Círculo dos Círculos, a Idéia das Idéias; Hegel, de fato, no final da Ciência da Lógica, não dá, enigmaticamente, nenhuma "definição" do Absoluto, deixando entendido que ele é o Resultado de todo o caminho e é Todo...o caminho! E é Absoluto desde o início do processo: é a Verdade do próprio processo! Aqui o processo não é cronológico porque, tratando do Eterno, o Tempo só pode ser o Tempo do Lógico e é o Instante fora do tempo e do espaço do qual Platão trata (Parmênides, 156 b-c;).

De fato, o reconhecimento hegeliano da identidade do Sujeito com Objeto, do Ser com Pensamento, é uma "memória", como um reaparecimento, depois de J. Boehme, na consciência européia moderna, e nos mais altos níveis do Pensamento, da unidade primordial do homem cósmico aberto ao mundo, que é o homem indo-europeu.

Em Hegel existe a consciência, que é a consciência filosófica, de que somente a Filosofia, como caminho especulativo-sapiencial de natureza iniciática, é a reconciliação desta Unidade perdida, desta Identidade Eu-Mundo, Pensamento-Ser, Sujeito-Objeto, que é o mesmo conhecimento que na Índia védica diz "Braman é Atman". Em Hegel reaparece e se manifesta novamente a grande "Luta pelo Espírito", que já havia começado com Parmênides. A identidade Eu-Mundo é reconhecida e realizada (em Hegel) somente no conhecimento filosófico, pois ele consiste precisamente na experiência espiritual que o Absoluto faz de Si mesmo ao ver-se no homem tal como o homem vê o Absoluto dentro de Si mesmo, acendendo-se assim a centelha no Instante que é a Realização Anamnética da qual fala o Divino Platão na Carta VII...! Esta é a natureza e a finalidade teosófico-iniciática da Filosofia de acordo com Hegel, que nisso é a herdeira da grande estação grega do Conhecimento e da teosofia iniciática de Jacob Boehme. Na experiência religiosa (como nos Mistérios...), e temos repetidamente destacado isto, ainda há Dualidade, Dissociação, há a posição espiritual do Sujeito que não pode deixar de se colocar "diante" do Objeto (a Divindade) e em sua consciência há a consciência definitiva de que Ele é Outro, na verdade, é o Outro, do qual ele só pode se aproximar através da fé, que é a convicção da existência dele como Outro e de sua "absolutização" inalcançável e incognoscível, de modo que a relação só pode ser e permanecer (aqui está o aspecto trágico da crise...! ) de subalternidade.

Notas

[1] J. EVOLA, La dottrina del risveglio, Milano 1965, p. 34 e 55; K. KERENYI, La religione antica nelle sue linee fondamentali, Roma 1952.
[2] G. CASALINO, l’Origine. Contributi per la filosofia della spiritualità indoeuropea, Genova 2009.
[3] Em tal comunhão, ao mesmo tempo filial e fraterna, se encontra a profunda e esotérica Verdade da identidade primordial entre a natureza do homem e a do Cosmo!
[4]     K. ALBERT, Vom kult zum Logos. Studien zur Philosophie der Religion, Hamburg 1982.