28/11/2020

Julius Evola - Setores a Derrotar: A Burocracia "Não-Neutra"

 por Julius Evola

(1941)



É algo singular que, entre as diversas formas e manifestações do espírito burguês individual com as notórias polêmicas voltadas contra ele, muito pouca importância foi dada à que está entre as mais típicas e ainda mais insidiosas, posto prospera justamente nos gânglios mais essenciais do Estado: queremos dizer a burocracia.

A burocracia é tipicamente o "burguesismo político" e do espírito burguês em geral ela assume seus piores defeitos. No entanto, devo reconhecer lealmente que, apesar dos dezenove anos de fascismo, ainda estamos longe de poder ver, na Itália, uma efetiva "desburocratização", de fato e não no nome. Longe de ter abandonado as posições mais importantes já ocupadas por ela, a burocracia de fato garantiu novas posições, e isto - um paradoxo singular - até mesmo explorando habilmente algumas instituições revolucionárias.

Em uma ordem política normal, a burocracia, segundo a conhecida expressão de Max Weber, deveria ser um meio neutro. É útil para esclarecer o significado deste termo. A administração estatal implica fatalmente um certo mecanismo, um automatismo de funções subordinadas de um tipo instrumental e particularmente impessoal - como, no corpo humano, são as funções de vida vegetativa e de reserva. Este é o "lugar" próprio à burocracia, este é o plano onde sua existência é legítima e com base no qual suas prerrogativas normais podem ser definidas. Usando o atributo "neutro" para a burocracia, não queremos dizer, entretanto, que o agnosticismo político e a irresponsabilidade devem ser seus princípios norteadores. Não é disso que se trata. Pelo contrário, todo funcionário do Estado deve se sentir como um membro de uma milícia: deve sentir a honra do serviço público para o qual foi chamado e deve demonstrar um senso de responsabilidade correspondente. Mas, como a analogia agora utilizada quando falamos de milícia, mesmo no exército estas qualidades, exigidas em elementos subordinados, nada têm a ver com as funções de um comando real e, em geral, com o direito de dirigir e dispor inerente aos líderes reais. Da mesma forma, a burocracia, mesmo "fascistizada" - ou seja, permeada por um particular senso de responsabilidade política - deve ser "neutra", no sentido de que não deve procurar de forma alguma se tornar independente, assegurar para si uma autoridade propriamente política, exercer influência tanto de pessoas, de classe, ou de claque. Quando isto acontece, na verdade, tem-se um fenômeno teratológico e uma inversão hierárquica, que, acentuando-se, não pode deixar de ter como conseqüência uma involução e materialização da idéia de Estado.

De fato, no ponto em que ele deixa de ser "neutro" no sentido de um instrumento consciente, fiel e inteligente do mecanismo administrativo do Estado, o burocrata vai quase sem exceção demonstrar as "virtudes" mais típicas da burguesia: a vantagem pessoal torna-se seu interesse predominante, com base no qual ele tenta tirar todo o lucro possível do cargo que ocupa e da autoridade com a qual é investido. Em vez de seguir um estilo quase ascético e impessoal em suas funções, ele se assoberba e as pavoneia, ficando cada vez mais convencido de que ele é "alguém" - em termos de um ras de calibre estreito - e agindo de acordo. Além disso, possuir esta ou aquela alta posição ministerial lhe permite estabelecer facilmente relações que criam uma certa zona de interesses comuns com elementos similares, enquanto a conexão com elementos ainda mais elevados lhe dá a oportunidade de propiciar influências e proteções - tudo isso, sem ter que se expor e assumir responsabilidades precisas, já que, nominalmente, o burocrata não tem nada a responder senão no âmbito restrito e técnico de um ramo da administração comum, um âmbito que, no entanto, está longe de corresponder a sua atividade real e muito mais ampla.

Desta forma, constituem-se formas de um verdadeiro feudalismo burocrático, cujos princípios, para serem revogáveis, não deixam de gozar de um prestígio correspondente. Tomadas como um todo, estas formas se emancipam tacitamente da verdadeira classe política, quase constituindo um substituto do Estado ou, pelo menos, um duplo dele, tendo a função de uma cavidade, de um compartimento hermético entre a nação e a verdadeira classe política dirigente. Na realidade, forma-se uma rede, por via da qual se torna muito difícil entrar em contato direto com elementos políticos do governo e esclarecê-los positivamente sobre este ou aquele problema: é necessário, na grande maioria dos casos, passar por um determinado grupo burocrático-político e sua zona de interesse, bem protegido pelo fato de que esses burocratas serão fatalmente abordados para informações, pareceres e opiniões no ramo em questão, de acordo com as prerrogativas oficiais com as quais estão investidos.

Mas há algo mais também. Esta burocracia "não-neutra" quase sempre acaba exercendo influência mesmo além do campo em que se encontra diretamente pelo próprio ofício. Isto aconteceu, por exemplo, de forma típica após a constituição dos chamados órgãos paraestatais ou similares, nos quais é difícil que os elementos da burocracia em questão não tenham assegurado este ou aquele cargo, com o resultado daquele cumulismo de cargos e emolumentos relativos, contra os quais as hierarquias fascistas se declararam repetida e decisivamente, mas que - com exceção de alguns casos isolados e muito expostos, portanto facilmente culpáveis - apesar de tudo existe e persiste, porque os interesses que se opõem a uma ação de remediação radical e geral são muito fortes. Mas desta forma o compartimento estanque entre o Estado e as diversas forças nacionais é reforçado e a burocracia - como já foi dito - tem a forma de estender sua influência também em direção a esferas, o que, de forma normal, não interferiria com aquelas técnicas que são de competência dos diversos Ministérios.

Outra conseqüência - e de não pouca relevância - do cumulismo burocrático é uma ruptura das relações hierárquicas normais da própria burocracia, com efeitos não exatamente edificantes em relação aos elementos menos privilegiados ou menos capazes da mesma burocracia. De fato, do ponto de vista efetivo, aqueles que agarraram vários cargos pela tangente, evidentemente têm um prestígio e uma influência diferente daquela que adviria simplesmente e normalmente de seu cargo principal: assim - e não apenas em termos de emolumentos - uma ordem e um patamar, que não coincidem com aqueles definidos puramente e impessoalmente pelos quadros, são de fato criados. Em certa medida, isso reproduz a situação que tivemos ocasião de ver pessoalmente em uma nação estrangeira, onde em mais de um ministério os mais altos funcionários e gerentes visíveis nada mais eram do que aparências dependentes de seus funcionários, devido ao fato de que estes últimos tinham, em uma loja comum, uma dignidade mais elevada do que a deles.

Esta aceno pode, no entanto, causar alguns protestos "puros", dizendo que o que estamos descrevendo, se pode ser próprio a um sistema democrático com seu conhecido sistema de claques parapolíticas e maçônicas, não pode se referir ao Estado fascista. Mas aqui não estamos falando do Estado fascista, em si superior a todas as críticas e suspeitas, mas sim de uma classe e de um espírito difícil de morrer, mestres da transformação e do conformismo, tendo a virtude, quase, da fênix, e isto porque sempre encontram novo alimento no burguês, no egoísta, no especulador e no narcisista, adormecido na grande maioria dos homens, mesmo quando receberam o cartão. A Revolução das camisas negras venceu na classe puramente política, que está no centro do novo estado e demonstra efetivamente uma nova mentalidade, coragem, impessoalidade, força de decisão. Ao redor deste núcleo central, para separá-lo das forças vivas da nação na qual o fermento do novo espírito fascista também atua e se desenvolve, encontra-se a substância opaca e diatérmica da burocracia, no sentido de um resíduo real e um elemento que, em vez de servir como um elo, é apenas para obstruir e separar. Também não são raros os casos, quando se passam certos limites, em que os elementos propriamente políticos se encontram em ruas sem saída, precisamente onde menos esperam, sem saber das "constelações" que se formam no domínio "neutro" e "administrativo". Mantemos as considerações atuais em um nível muito geral: mas todos podem facilmente aplicá-las para explicar até mesmo episódios recentes, precisos e certamente não edificantes.

Foi mencionado que este estado de coisas existente e indesejável encontrou uma maneira de se confirmar e até mesmo de se fortalecer através de novas instituições revolucionárias. Muito tem sido discutido sobre a fisionomia que os poderes devem apresentar na nova doutrina fascista do Estado. Foi levantada a questão de saber se ainda devemos permanecer na velha visão da divisão abstrata de poderes e, se não, com que nova teoria devemos superá-la.

Lidar ex-professo com este problema está fora do escopo do presente artigo. Só pode ser mencionado que, dadas as premissas autoritárias e totalitárias do novo Estado fascista, a velha visão de um equilíbrio de poderes mantido em uma relativa autonomia deve obviamente dar lugar à idéia de uma precisa coordenação hierárquica dos mesmos, com preponderância do que é chamado de "executivo", mas que, no fascismo, é reforçado com um significado político-espiritual especial. A este respeito, também recentemente, em artigo na Stampa (9 de janeiro), Alberto De Stefani, falando da adesão legislativa aos princípios da revolução, destacou "a necessidade de superar um dualismo jurídico-político que paralisa o sistema anterior, sem conceder ao novo liberdade de movimento". "Os princípios - acrescentou ele, precisamente por serem grandes em sua órbita vital e enérgica, são poucos; não parece, portanto, difícil traduzi-los em novas regras, confirmando-os com as necessárias sanções contra aqueles que os desobedecem". Mas mesmo neste campo - no campo do direito constitucional e da doutrina geral do Estado - a persistência de elementos refratários a qualquer renovação revolucionária é evidente no fato de uma incerteza ideológica duradoura e uma incapacidade de governar positivamente - ou seja, como um direito positivo - toda a nova realidade política despertada para a vida pelo fascismo.

Por isso, muito tem sido discutido - para dar um exemplo e voltar ao nosso principal argumento - sobre o decreto-lei: que, a partir de uma medida excepcional, que em seu tempo escandalizou os juristas das mais variadas escolas do século XIX, tornou-se hoje um instrumento de ação normal, pertinente, por assim dizer, à administração ordinária. Bem, é claro que, em princípio, o decreto-lei deve testemunhar e manifestar a preeminência e a dignidade superior do poder executivo sobre o poder legislativo e administrativo no novo Estado. Mas na realidade das coisas, se examinadas com honestidade fascista, elas são bastante diferentes. Em muitos casos o decreto-lei aparece como nada mais que o instrumento utilizado pela burocracia não neutra e autônoma, em suas manobras destinadas a escalar - para não dizer usurpar - a função própria da classe política dominante.

Ou seja, é o elemento administrativo que, passando apenas pró-forma através da sanção do órgão legislativo, desafia o poder executivo e, para dizer a verdade, de acordo com a autoridade e o escopo incomparavelmente mais amplo que a tal poder é próprio no novo Estado totalitário e revolucionário. E aqui pode ser notado que no documento acima mencionado De Stefani acusou corretamente os casos, nos quais "a tendência instintiva da burocracia de subordinar a ordem corporativa a si mesma sem participar dela e mesmo permanecendo fora de sua disciplina" é manifestada. É novamente a "idéia de uma burocracia alheia à revolução do sistema e cuja natureza jurídica ainda é substancialmente o do liberalismo, apesar das vastas tarefas e gigantescas responsabilidades", idéia que deveria ser revista - segundo o próprio De Stefani - para chegar à criação de um direito adequado, contra "os defensores livres de interesses pré-constituídos, que mal suportam vinculações específicas e operacionais após tê-las aceito em sua formulação genérica, evanescente e inofensiva".

É assim que as coisas, em muitos casos, são de fato, com o resultado do fortalecimento do que chamamos de feudalismo da burocracia não-neutra. Examinar as formas em que este estado de coisas persiste não é nossa tarefa, seja porque o assunto é sensível e só deve ser tratado por aqueles que estão autorizados a fazê-lo, ou porque estas formas variam caso a caso de acordo com as situações, pessoas e oportunidades. Em qualquer caso, mesmo que nos limitemos ao campo puro dos princípios, e assumindo portanto que o sistema de decretos-lei sempre e somente reflete o espírito que por si só pode justificá-lo sob o regime fascista, é claro que as transformações mais recentes do instituto parlamentar estão destinadas a levantar novos problemas e reavivar as exigências de coerência e organicidade constitucional, que anteriormente poderiam não ter sido diretamente sentidas. De fato, é claro que com as reformas agora mencionadas, a revolução fascista pretende ir totalmente além da concepção puramente legislativa da função do Parlamento e torná-lo um órgão determinante, uma vez que agora ele se tornou o lugar onde o elemento político governante se encontra com a ordem das competências técnicas e das hierarquias administrativas. Sendo assim, se procedermos consistentemente nesta direção ousadamente revolucionária, de modo a dar à nova idéia constitucional fascista uma real coerência e organicidade, é difícil pensar que o Conselho Nacional, que substituiu a antiga instituição parlamentar, pode deixar de reivindicar para si mesmo - e, para dizer a verdade, nos termos de um poder seu que é normal e geral - exatamente aquilo que é próprio ao decreto-lei, o que de fato será necessário, para evitar uma espécie de duplicação e, afinal, uma situação até anárquica, determinada pelo uso múltiplo do mesmo poder, enquanto que este deve permanecer concentrado em um órgão central e ser usado somente por ele para a solução dos diversos problemas.

Se esta necessidade fosse atendida e se procedesse de acordo, não há dúvida de que já teria sido dado um passo considerável para limitar o poder da burocracia e desmontar a lacuna que, em muitos casos, ela constitui. Retomando o motivo, com a qual estas breves considerações começaram, repetimos que um dos principais setores a serem derrotados na campanha antiburguesa é justamente a burocracia, pois ela ameaça, em seu isolamento e não-neutralidade, o núcleo mais vital de toda a estrutura do novo Estado: constituindo, ao mesmo tempo, uma espécie de matéria isolante ou diatérmica, que paralisa e diminui a faculdade de visão e o impulso criativo e animador dos próprios expoentes da verdadeira classe política dominante.

Para esta classe, a burocracia, da qual já falamos aqui, representa um perigo constante, pois utiliza todos os meios para capturá-la, a fim de participar de sua autoridade e fazer uso de seu prestígio, ao ponto de reproduzir, mutatis mutandis, o estilo próprio dos círculos conhecidos do período pré-fascista e parlamentar, muito hábeis em assegurar todas as situações que podem propiciar vantagens e, simultaneamente, se distanciar das responsabilidades. Portanto, quando o fascismo tiver vencido, com determinação romana, esta batalha na frente interna do anti-burguesismo, também terá dado um passo gigantesco na direção da completa adaptação de cada força e de cada setor da nação aos ideais éticos da Revolução mussoliniana.