02/07/2020

Thierry Meyssan - Genealogia da Questão Curda

por Thierry Meyssan

(2019)



Todas as guerras envolvem um processo de simplificação: existem apenas dois campos no campo de batalha e cada um deve escolher o seu. No Oriente Médio, onde há uma quantidade incrível de comunidades e ideologias, esse processo é particularmente aterrorizante, pois nenhuma das particularidades destes grupos pode mais ser expressa e cada um tem que se aliar a outros que desaprova.

Quando uma guerra termina, todos tentam apagar os crimes que cometeram, voluntariamente ou não, e às vezes erradicar aliados problemáticos que desejam esquecer. Muitos, então, tentam reconstruir o passado para dar a si mesmos um papel formidável. É exatamente isso que estamos testemunhamos com a operação turca “Nascente de Paz” na fronteira síria e as incríveis reações a ela.

Para entender o que está acontecendo, não é o suficiente saber que todos estão mentindo. É necessário você descobrir o que todos estão escondendo e aceitar isso, mesmo quando constatar que aqueles que você admirava até então eram, na verdade, bastardos.

Genealogia do Problema


Se acreditarmos na mídia europeia, pensar-se-ia que os turcos perversos exterminarão os bons curdos que os sábios europeus estão a tentar salvar, apesar dos covardes americanos. No entanto, nenhuma destas quatro potências desempenham o papel que lhe foi atribuído.


Em primeiro lugar, o acontecimento atual deve ser restabelecido no contexto da “Guerra à Síria”, da qual se trata apenas uma batalha, e da “Remodelação do Médio Oriente Mais Vasto”, da qual o conflito sírio é apenas um passo. Durante os ataques de 11 de setembro de 2001, o secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, e seu novo diretor do Escritório de Transformação das Forças (Office of Force Transformation -OFT), Almirante Arthur Cebrowski, adaptaram a estratégia do Pentágono ao capitalismo financeiro. Decidiram dividir o mundo em duas zonas: uma que seria a zona da globalização econômica e outra que seria vista como uma mera reserva de matérias-primas. Os exércitos dos EUA seriam responsáveis pela remoção das estruturas estatais nesta segunda parte do mundo para que ninguém resistisse a esta nova divisão de trabalho [1]. Começaram com o “Grande Oriente Médio”.

A destruição da República Árabe Síria tinha sido planejada em 2003 (Syrian Accountability Act) depois do Afeganistão e Iraque, mas várias contingências adiaram esta operação para 2011. O plano de ataque foi reorganizado à luz da experiência colonial britânica na região. Londres aconselhou a não destruir completamente os estados, a restaurar um estado mínimo no Iraque e a manter governos fantoches capazes de administrar a vida diária do povo. Com base na “Revolta Árabe” de Lawrence da Arábia, que eles organizaram em 1915, foi uma questão de organizar uma “Primavera Árabe” que coloca no poder a Fraternidade Muçulmana e não mais os wahhabi [2]. Eles começaram por derrubar os regimes pró-ocidentais da Tunísia e do Egito, depois atacaram a Líbia e a Síria.

Inicialmente, a Turquia, membro da OTAN, recusou-se a participar na guerra contra a Líbia, que foi o seu primeiro cliente, e contra a Síria, com a qual tinha criado um mercado comum. O ministro das Relações Exteriores da França, Alain Juppé, teve a idéia de matar dois coelhos com uma cajadada só. Ele propôs ao seu homólogo turco, Ahmet Davutoğlu, a resolução conjunta da questão curda, em troca da entrada da Turquia na guerra contra a Líbia e a Síria. Os dois homens assinaram um Protocolo secreto que previa a criação do Curdistão não nos territórios curdos da Turquia, mas nos territórios aramaicos e árabes da Síria [3]. A Turquia, que tem excelentes relações com o Governo Regional do Curdistão Iraquiano, queria a criação de um segundo Curdistão, pensando em pôr um fim à independência curda no seu próprio território. A França, que tinha recrutado tribos curdas em 1911 para reprimir os nacionalistas árabes, finalmente pretendia criar um Curdistão fantoche na região, tal como os britânicos haviam conseguido criar uma colônia judaica na Palestina. Os franceses e turcos obtiveram o apoio dos israelenses que já controlavam o Curdistão iraquiano com o clã Barzani, oficialmente membro da Mossad.

Os curdos são um povo nômade (este é o significado exato da palavra “curdo”) que se mudou através do Vale do Eufrates no atual Iraque, Síria e Turquia. Organizados não tribalmente, mas em clãs, e reconhecidos pela sua coragem, criaram numerosas dinastias que governaram os mundos árabe (incluindo a de Saladino, o Magnífico) e persa, e providenciaram substitutos para vários exércitos. No início do século XX, alguns deles foram recrutados pelos otomanos para massacrar as populações não muçulmanas da Turquia, principalmente os armênios. Nessa ocasião, eles se estabeleceram na Anatólia, enquanto os outros permaneceram nômades. No final da Primeira Guerra Mundial, o Presidente Woodrow Wilson, sob o décimo segundo parágrafo de seus Quatorze Pontos (objetivos de guerra), criou o Curdistão a partir dos escombros do Império Otomano. Para delimitar o território, ele enviou a Comissão King-Crane para o local, enquanto os curdos continuavam o massacre dos armênios. Especialistas determinaram uma área na Anatólia e alertaram Wilson das consequências devastadoras da expansão ou realocação do território. Mas o Império Otomano foi derrubado de dentro por Mustafa Kemal que proclamou a República e recusou a perda territorial imposta pelo projeto Wilsoniano. Por fim, o Curdistão não nasceu.

Durante um século, os curdos turcos tentaram separar-se da Turquia. Nos anos 80, os marxistas-leninistas do PKK abriram uma verdadeira guerra civil contra Ancara, que foi severamente reprimida. Muitos se refugiaram no norte da Síria, sob a proteção do Presidente Hafez al-Assad. Quando seu líder Abdullah Öcallan foi preso pelos israelenses e entregue aos turcos, eles abandonaram a luta armada. No final da Guerra Fria, o PKK, já não financiado pela União Soviética, foi penetrado pela CIA e sofreu uma mutação. Abandonou a doutrina marxista e tornou-se anarquista, renunciou à luta contra o imperialismo e pôs-se ao serviço da OTAN. A Aliança Atlântica fez amplo uso das suas operações terroristas para conter a impulsividade do seu integrante turco.

Além disso, em 1991, a comunidade internacional travou uma guerra contra o Iraque, que acabara de invadir o Kuwait. Após esta guerra, os ocidentais encorajaram a oposição xiita e curda à revolta contra o regime sunita do presidente Saddam Hussein. Os Estados Unidos e o Reino Unido permitiram que 200 mil pessoas fossem massacradas, mas ocuparam uma área do país na qual proibiram o exército iraquiano de entrar. Eles expulsaram os habitantes e reuniram os curdos iraquianos lá. Foi esta área que foi reintegrada no Iraque após a guerra de 2003 e se tornou o Curdistão iraquiano em torno do clã Barzani.

No início da guerra contra a Síria, o Presidente Bashar al-Assad concedeu a nacionalidade síria aos refugiados políticos curdos e seus filhos. Eles foram imediatamente a Damasco para defender o norte do país contra jihadistas estrangeiros. Mas a OTAN acordou o PKK turco e enviou-o para mobilizar os Curdos da Síria e do Iraque para criar um Grande Curdistão, como planeado pelo Pentágono desde 2001 e registado no Mapa do Estado-Maior divulgado pelo Coronel Ralph Peters em 2005.

Este projeto (que visava dividir a região por motivos étnicos) não correspondia em nada ao projeto do Presidente Wilson de 1919 (que visava reconhecer o direito do povo curdo), nem ao projeto francês (que visava recompensar os mercenários). Era demasiado vasto para eles e eles não podiam esperar controlá-lo. Por outro lado, encantou os israelenses que viam como uma maneira de conter a Síria por trás. No entanto, provou-se impossível conseguir. O USIP, um instituto “Cinco Olhos” ligado ao Pentágono, propôs a sua modificação. O Grande Curdistão seria reduzido em favor de uma extensão do Sunistão iraquiano [4] que seria confiada a uma organização jihadista: a futura Daesh.

Os curdos do YPG, o ramo sírio do PKK, tentaram criar um novo estado, a Rojava, com a ajuda das forças dos EUA. O Pentágono usou-os para confinar os jihadistas à área que lhes foi atribuída. Nunca houve qualquer luta teológica ou ideológica entre o YPG e Daesh, foi apenas uma rivalidade por território a ser partilhado sobre os escombros do Iraque e da Síria. E quando o Emirado do Daesh entrou em colapso, o YPG ajudou os jihadistas a se unirem às forças da Al Qaeda em Idleb cruzando seu “Curdistão”.

Os curdos iraquianos do clã Barzani participaram diretamente na conquista do Iraque pelo Daesh. Segundo o PKK, o filho do Presidente e chefe da Inteligência do Governo Regional Curdo Iraquiano, Masrour Barzani, participou da reunião secreta da CIA em Amã, em 1 de junho de 2014, que planejou esta operação [5]. Os Barzani não travaram nenhuma batalha contra o Daesh. Eles se contentaram em impor seu território e enviá-los para enfrentar os sunitas. Pior, eles permitiram que o Daesh escravizasse curdos não-muçulmanos, os Yezidi, na Batalha do Sinjar. Aqueles que foram salvos, assim o foram pelos combatentes turcos do PKK e sírios do YPG que foram enviados para lá.

Em 27 de Novembro de 2017, os Barzani organizaram – com o único apoio de Israel – um referendo sobre a independência no Curdistão iraquiano, que eles perderam apesar dos truques óbvios. O mundo árabe ficou atônito ao descobrir, na noite das eleições, uma maré de bandeiras israelenses em Erbil. Segundo a revista Israel-Kurd, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu havia se comprometido a transferir 200 mil curdos israelenses em caso de vitória no referendo, a fim de proteger o novo Estado.

Para usufruir do direito à independência, um povo deve primeiro estar unido, o que nunca foi o caso dos curdos. Deve então habitar um território onde está em maioria, o que só aconteceu na Anatólia após o genocídio dos armênios, em seguida, também no Norte do Iraque desde a limpeza étnica da zona de exclusão aérea durante a operação “Tempestade do Deserto”, e finalmente no Nordeste da Síria depois da expulsão dos assírios cristãos e dos árabes. Reconhecer esse direito para eles hoje é validar crimes contra a humanidade.

Notas


[1] Esta estratégia foi mencionada pela primeira vez pelo Coronel Ralph Peters em “Stability, America’s Ennemy”, Parameters (revista do Exército dos EUA) 31-4, Inverno 2001. Foi então explicado mais claramente para o público em geral pelo assistente do Almirante Cebrowski no The Pentagon’s New Map, Thomas P. M. Barnett, Putnam Publishing Group, 2004. Finalmente, o Coronel Peters publicou o mapa que o Estado-Maior dos EUA tinha preparado em “Blood borders – How a better Middle East would look”, Coronel Ralph Peters, Armed Forces Journal, Junho de 2006.

[2] Um grande número de documentos disponíveis já em 2005 atesta a preparação desta operação pelo MI6. Em particular os e-mails do Ministério dos Negócios Estrangeiros revelados pelo denunciante Derek Pasquill. Ler : Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump, (Sob os nossos Olhos. Do 11-de-Setembro a Donald Trump), Thierry Meyssan, Demi-Lune (2017).

[3] A existência deste Protocolo Secreto foi revelada na época pela imprensa argelina. Os diplomatas sírios descreveram-no em detalhes. Infelizmente, os arquivos que o tinham em Damasco foram transferidos apressadamente durante um ataque jihadista. Não está, portanto, disponível de momento, mas tornar-se-á público quando estes arquivos tiverem sido ordenados.

[4] “Imagining a Remapped Middle East”, Robin Wright, The New York Times Sunday Review, 28 de setembro de 2013.

[5] “Yer: Amã, Tarih: 1, Konu: Musul”, Akif Serhat, Özgür Gündem, 6 de julho de 2014.