02/06/2020

Thibault Isabel - Quem Pagará o Preço da Crise? As Classes Populares ou a Finança Mundial?

por Thibault Isabel



O choque para a economia mundial causado pela pandemia de Covid-19 foi mais rápido e mais grave do que a crise financeira de 2008 ou mesmo a Grande Depressão de 1929. Durante esses dois episódios, as bolsas de valores caíram pelo menos 50%, os mercados de crédito foram paralisados por falências em cascata, as taxas de desemprego subiram mais de 10% e o PIB contraiu a uma taxa anualizada de 10% ou mais. Este processo levou cerca de três anos. Em março de 2020, foram necessárias apenas três semanas para prever um resultado igualmente desastroso.

A Crise no Sistema


Seria errado analisar a situação pensando que esta crise é a conseqüência exclusiva da pandemia de coronavírus. A pandemia foi apenas um gatilho, que veio para parar a máquina já engasgada do sistema econômico global. Muitos especialistas há muito nos advertiam do risco de estouro das bolhas financeiras, e as aberrações de mercado se tornaram aparentes quando, após uma delirante supervalorização dos ativos em janeiro, foram tomadas por um pânico sem precedentes quando foram anunciadas as primeiras medidas de contenção, experimentando um tímido renascimento apenas quando novas intervenções públicas foram anunciadas, como se o setor privado agora esperasse tudo dos governos para salvá-lo.

O contexto é tanto mais dramático na medida em que o custo intrínseco da crise econômica e financeira será adicionado ao custo de gestão da crise sanitária. O relançamento de uma economia global, que está paralisada há meses, representará um esforço titânico, enquanto a maioria dos Estados já está fortemente endividada pela crise de 2008, que ainda não foi digerida pelas contas públicas (enquanto os mercados financeiros estão novamente colhendo lucros fabulosos há vários anos). Segundo as estimativas atuais, o endividamento dos principais Estados ocidentais aumentará em cerca de 25% nos próximos três anos.


Reformar a Finança Global


Isto dá origem a várias observações.

1) Não se pode pensar em revitalizar as economias nacionais após a crise sem reformar radicalmente o sistema, que tem demonstrado amplamente seus erros, aumentando exponencialmente as desigualdades sociais e testemunhando uma fragilidade culpável que penaliza a economia real, as pequenas e médias empresas, bem como a poupança familiar.

2) No contexto de uma globalização galopante, a interconexão das economias se tornou muito forte, tornando incontroláveis crises de todo tipo – sanitárias, financeiras, etc.

3) A perda de nossa soberania industrial, concedida em nome do livre mercado internacional, não trouxe as oportunidades econômicas prometidas e nos enfraqueceu para resistir a cataclismos, como mostra nossa atual incapacidade de produzir medicamentos, máscaras, respiradores suficientes.

4) O sistema econômico autoriza lucros privados gigantescos para as grandes fortunas planetárias, mas quando a situação se deteriora, exige a intervenção pública dos Estados, e portanto dos contribuintes, para pagar os erros do passado.

5) Tudo isso também leva a uma consideração mais filosófica: a corrida pelo consumo e pelo produtivismo é combinada com a especulação para levar a um estilo de vida que todos concordam cada vez mais em achar perigoso e contraproducente, já que o espelho das cotovias do “crescimento” e dos “bons números econômicos” serve apenas às classes abastadas, enquanto as classes trabalhadoras vêem suas condições de vida se deteriorarem num relance (menor poder aquisitivo para as necessidades básicas, emprego precário, isolamento da periferia da França, etc.).

Vamos ter que esquecer as receitas antigas


Vamos ter que reconstruir e não podemos fazer da mesma forma. De qualquer forma, as soluções antigas não vão mais funcionar, dado o pouco espaço de manobra que nos resta. O próprio Emmanuel Macron anunciou isso no dia 16 de março: “Vamos vencer, mas esse período nos ensinou muito. Muitas certezas e convicções serão varridas e questionadas”. Dominique Strauss-Kahn também fez seu mea culpa, em 7 de abril, nas colunas da Slate, afirmando que os antigos opositores da globalização, até agora considerados “idealistas”, “doutrinários” ou “pessimistas”, estavam de fato “parcialmente certos”, pois “é muito provável que a crise leve a formas de deslocalização da produção, regionais se não nacionais”.

A admissão do fracasso é corajosa, mas ainda podemos nos perguntar se devemos confiar naqueles que nos colocaram contra a parede para nos mostrar o caminho certo de agora em diante. De qualquer forma, os partidários do velho mundo tentarão, acima de tudo, salvar o que ainda pode ser salvo diante do fracasso óbvio do sistema que eles montaram.

A pandemia nos oferece uma oportunidade única de considerar um profundo redesenho do nosso tecido econômico e social. Além disso, ela nos obriga a fazer isso. Não haverá saída fácil e só evitaremos o pior se nos prepararmos agora para uma mudança de rumo, com o objetivo de redirecionar a poupança familiar para gastos que construam uma economia útil e sustentável. Resta saber como e, sobretudo, quem vai pagar a conta.

Quem vai financiar o plano de recuperação econômica?


Na verdade, esse é o problema. As belas declarações de intenção dos globalistas neoliberais, tanto à esquerda como à direita, em breve terão como objetivo fazer os cidadãos engolirem comprimidos muito amargos, a quem será pedido que apertem os cintos para “reformar”.

A crise que estamos atravessando é tanto um choque de demanda (as famílias consomem menos) quanto um choque de oferta (as empresas produzem menos). Para lidar com isso, as medidas postas em prática pelo governo francês são essencialmente keynesianas. Trata-se, portanto, de investir recursos públicos para sustentar o consumo e manter a produção em funcionamento. Estas medidas são mais ou menos partilhadas por todos os países europeus e apoiadas por um relaxamento das restrições orçamentárias do Tratado de Maastricht.

Mas as políticas keynesianas, sob pretexto das raízes históricas de esquerda, na verdade contribuem demasiadas vezes para transformar a dívida privada em dívida pública, ou seja, em dívida dos cidadãos. Não é surpreendente, deste ponto de vista, que Nicolas Sarkozy, mesmo que inclinado à direita, tenha feito um uso massivo delas durante a crise de 2008. É aí que estamos: os mercados se apressam a especular e, no caso de um fiasco generalizado, esperam benignamente que os Estados paguem a conta transferindo a dívida privada do setor financeiro para o setor público, a fim de evitar o fracasso do sistema.

Apoiar as Classes Populares e Médias


É evidente que o Estado deve agora organizar um plano de recuperação; mas se o fizer com os métodos habituais do establishment, estas medidas acabarão por resultar numa redução drástica dos serviços públicos (ou seja, uma redução das despesas), ou num reforço dos impostos (ou seja, um aumento das receitas) ou da inflação (em particular, se o Estado imprimir papel-moeda em grandes quantidades para limitar o custo da dívida). Nenhum destes cenários é desejável. Se for decidido limitar os gastos do Estado, as classes trabalhadoras serão as primeiras a pagar as conseqüências, já que são as principais beneficiárias dos gastos públicos; e, se for usado imposto ou inflação, serão as classes médias que pagarão a conta, já que são elas que tomam a maior parte do esforço fiscal e dependem da poupança familiar para evitar o empobrecimento – no entanto, a poupança dos franceses seria muito reduzida por uma política inflacionária.

Colocar as classes populares e médias umas contra as outras tem sido a estratégia do partido de Maastricht há décadas: ele queria fazer as pessoas esquecerem que as únicas pessoas que nunca pagam por crises são aqueles que as causam, ou seja, os agentes financeiros e os grandes negócios. Recordemos que a inflação galopante dos anos 30, após a crise de 1929, foi para muitas pessoas a causa da ruína da classe média na Europa, especialmente na Alemanha, e que esta situação traumática levou às calamidades políticas que conhecemos: fascismo, rivalidades entre nações e a Segunda Guerra Mundial. A unidade do país, portanto, só pode ser alcançada se as classes trabalhadoras e as classes médias estiverem solidárias diante da prova, e entenderem que têm um adversário comum: o sistema bicpefalo de mercado desregulado e dos monstros da globalização, que correm o risco de se tornarem onipotentes após a crise, quando muitas pequenas e médias empresas terão de fechar. É quando a Amazon vai ganhar a aposta; e é isso que deve ser evitado.

O Princípio do “Poluidor-Pagador” em Economia


Para conseguir isso, porém, você não pode simplesmente remendar um navio que está tomando água de todos os lados. O casco terá que ser reparado de cima para baixo. Assim como aplicamos o princípio do poluidor-pagador à ecologia, teremos que fazer pagar aqueles que causaram os desequilíbrios do sistema neoliberal globalizado. Isto significa, em particular: tributar as transações financeiras e os rendimentos do capital, estabelecer um imposto universal para combater a expatriação fiscal, tributar a automação do trabalho, aumentar o valor do imposto Gafam sobre serviços digitais ou tributar as grandes empresas pelos custos ambientais de suas atividades, não só para salvar os cofres do Estado, mas também para redirecionar o sistema de produção e consumo de forma alinhada com a justiça e o bem comum. Ao invés de simplesmente tratar os sintomas, é hora de atacar as verdadeiras raízes do mal.

A outra questão é a dívida que está prestes a explodir. Quanto mais os Estados se endividarem, maiores serão os juros da dívida, mais os operadores econômicos perderão confiança no futuro e limitarão seus gastos e investimentos. As medidas de recuperação não podem ser senão conjunturais: a austeridade voltará muito rapidamente à frente, forçando os governos europeus a fechar os cordões da bolsa.

A melhor opção será, portanto, reunir a dívida dos Estados europeus a fim de reduzir as taxas de juros. Mas as tensões que surgiram em março sobre os Eurobonds revelam profundas divergências entre os países do Sul (França, Itália, Espanha), que os apoiaram desde o início, e os países do Norte (Alemanha, Holanda), que se recusaram a ouvir falar disso. Eles se beneficiam da diferença nas taxas de juros entre as nações. O mecanismo de exploração dos países mais pobres pelos alemães e holandeses é a base da política de austeridade fiscal, cujas bases foram lançadas com o “grande mercado único” no final dos anos 80. A Alemanha também aproveita a política monetária européia para promover suas exportações, e a Holanda deve sua prosperidade à sua política de paraíso fiscal. Portanto, na situação atual, a ordem de Maastricht coloca os países europeus sob o controle da Alemanha e de seus aliados privilegiados.

O Ponto de Vista da França Profunda


Naturalmente, é inevitável recorrer temporariamente à dívida pública para financiar o plano de recuperação, pois não há cura milagrosa ou dinheiro gratuito. Mas acima de tudo, esta oportunidade deve ser aproveitada para reformar o sistema, para que o choque social da globalização possa ser melhor amortecido. A revolta dos Coletes Amarelos e da periferia da França, amplamente apoiada pela opinião pública, mostrou que o país não queria mais as receitas políticas que vêm sendo aplicadas há décadas por todos os partidos que compartilham o poder. A França profunda, sem a qual nada pode ser reconstruído, não quer mais uma política neoliberal que garanta flexibilidade cada vez maior às grandes multinacionais; e não quer mais uma simples política de assistência de curto prazo, que leve ao endividamento do Estado sem impedir o desmantelamento dos nossos serviços públicos básicos.

O França Profunda espera que cada um de nós tenha a oportunidade de trabalhar com dignidade, em condições dignas, por um salário digno. Esta foi muito claramente a mensagem das rotundas no inverno de 2018-2019. Nem a direita nem a esquerda ao longo dos últimos trinta anos levaram a sério este pedido. E por uma boa razão: romper com a lógica da hipertrofia dos mercados, cujos defeitos só podem ser dolorosamente entupidos com a interminável hipertrofia da ajuda social, exigiria, ao mesmo tempo, uma reforma radical do sistema econômico que nos foi imposto após os acordos de Maastricht. Em outras palavras, a reabilitação do nosso tecido econômico de proximidade só é possível através de uma tomada de distância com a União Européia, a fim de estabelecer uma cooperação estratégica continental com geometria variável. É assim, e só assim, que será possível retomar uma política protecionista de pleno emprego. Essa distância facilitará muito o recurso a sistemas de mutualização de dívidas – sem isso, é verdade que a economia alemã pode ser confiável para sustentá-la – mas marcará, ainda mais, o fim dos dogmas neoliberais que paralisam qualquer refundação de nossa economia.

Reconquistar nossa Independência Política e Econômica


Na verdade, a saída da pandemia só será saudável se aproveitarmos o imenso trabalho em andamento para trazer as reformas essenciais para uma retomada em mãos soberanas de nossas capacidades industriais e de nosso sistema financeiro. Entre as medidas mais urgentes, o governo terá, naturalmente, que curar as feridas abertas pela crise, nacionalizando certas empresas industriais, a fim de deslocalizar a produção em muitos setores. Provavelmente também será necessário nacionalizar bancos em dificuldade, sem esquecer mais tarde, de separar bancos de depósito e bancos de investimento, a fim de evitar a inflação de novas bolhas especulativas e proteger a poupança de forma mais eficaz. À luz dos admiráveis esforços feitos pelos profissionais de saúde, tornar-se-á finalmente essencial reabilitar o hospital público, assim como será essencial reabilitar os serviços públicos e os transportes locais, que têm sido negligenciados por muito tempo.

A longo prazo, o nervo da guerra econômica, para financiar as reformas, será tributar aqueles que mais se beneficiam do sistema, pagando menos impostos: os grandes grupos multinacionais. Caso contrário, seja o que for feito, sejam quais forem os métodos aplicados, serão sempre as classes trabalhadoras e as classes médias que pagarão o preço em primeiro lugar. É impossível lutar contra empresas praticamente monopolistas que podem, a qualquer momento, relocalizar a maior parte de sua produção e optar pelo pagamento de impostos na Holanda ou Irlanda, em vez de nos territórios onde vendem seus produtos.

A única arma dos Estados é o recurso aos circuitos curtos e ao protecionismo. Não um protecionismo nacionalista agressivo visando esmagar países rivais, como os Estados Unidos e a China alegremente fazem, mas um protecionismo concertado com possíveis aliados europeus. Quanto mais este protecionismo global encontrar apoio de nossos parceiros, mais eficaz será diante de ataques econômicos externos, permitindo também uma cooperação frutífera em grandes projetos conjuntos. Paradoxalmente, esta política também poderia dar novo impulso a uma certa idéia de Europa, à margem das instituições existentes.

O objetivo final será liberar a economia local da concorrência de grandes empresas internacionais. O capitalismo globalizado tomou uma forma tão ampla que chegou ao ponto de esmagar os ideais de liberdade que inicialmente serviam para legitimá-lo: afinal, quem pode agora acreditar no mito do self-made man, do homem feito por si mesmo, a partir do nada, que consegue subir a escada do sucesso para ganhar uma vida muito digna? Para cada um de nós, ao contrário, tornou-se extraordinariamente difícil nos desligarmos de nossa condição original, justamente porque a riqueza está cada vez mais concentrada nas mãos de uma minúscula minoria de grandes fortunas, e o sistema de mercado tornou-se uma vasta estrutura tecnocrática, da qual acabamos sendo os acólitos, e à qual os políticos nem ousam mais se opor. Esperemos que, com o fim da crise sanitária, também nós saiamos da crise democrático-econômica do mundo neoliberal. Em última análise, isso depende de nós.