por David L'Epée
(2016)
Enquanto o resultado da crise que afeta atualmente a Ucrânia é ainda incerto após a “revolução” ocorrida em Kiev e os eventos da Crimeia, o fator do nacionalismo russo (ou pró-russo) parece ter sido chamado ao debate como um elemento-chave sem o qual é impossível compreender o que se passa no Leste. Me parece interessante examinar quais são as especificidades desse nacionalismo russo, tão estranho às nossas concepções, que fala mais de império do que de nação, olhar um pouco mais longe para descobrir em que medida as suas raízes se afundam na época soviética. A publicação recente da tese de Vera Nikolski dedicada a este tema nos fornece a oportunidade.
Vera Nikolski, pesquisadora de ciências políticas de origem russa, é autora de uma tese chamada “Les Nouvelles Formes de Pensée Conservatrice em Russie Contemporaine, du Militantisme des Jeunes à ses Fondements Idéologiques”. Ela publicou poucos meses atrás, destinado a um público maior, uma obra inspirada em sua tese, “Nacional-Bolchevismo e Neo-Eurasianismo na Rússia Contemporânea”. Ela baseia sua tese em várias disputas nacionalistas que acompanharam e ainda acompanham a transição liberal da Rússia após a queda da URSS, se concentrando mais particularmente em duas figuras que os nossos leitores conhecem bem: Aleksandr Dugin e Edouard Limonov.
Mas não podemos entender estes dois fenômenos ideológicos tipicamente russos e modernos se não mergulharmos novamente no passado para questionar as formas anteriores de nacionalismo russo, especialmente durante a era soviética. Nikolski vai ainda mais longe e busca no século XIX, entre as Centúrias Negras e a corrente eslavófila, os ancestrais do eurasianismo contemporâneo. É verdade que uma parte dos nacionalistas russos de hoje gostam de se referir aos velhos tsares como figuras tutelares, mas essas referências, segundo Nikolski, são artificiais, puramente simbólicas, e não apresentam coerência ideológica com o que poderia ter sido, em um contexto bastante diferente, o nacionalismo tzarista da época.
A URSS era Nacional-Comunista
Muitos comunistas europeus de hoje, esquecidos da história e desinformados pela ideologia esquerdista circundante, ocultaram o que ainda parece evidente quando estudamos um pouco os acontecimentos do século XX: em todos os lugares do mundo em que triunfaram as revoluções comunistas, da China à Iugoslávia e até Cuba, eles apelaram para um sentimento patriótico vivo e fundaram regimes que poderíamos justamente qualificar como nacional-comunistas. A URSS conheceu uma história bastante semelhante à de todos os outros países nacional-comunistas. Os sentimentos patrióticos de Lênin eram conhecidos, mas acima de tudo foi Stálin que, após um período de questionamento das chamadas guerras imperialistas (“nem guerra entre povos, nem paz entre classes”) após a Revolução de Outubro que se deu em meio a uma guerra mundial, orientou seus esforços para a reabilitação do nacionalismo russo mais tradicional. Substituindo em seus discursos a expressão comunista “camaradas” por “irmãos e irmãs”, elogiando Ivan, o Terrível, ou Alexander Nevsky (uma reabilitação que permitiu a realização da obra-prima homônima de Eisenstein) e, de uma maneira muito mais problemática, ao “etnicizar” o poder - “etnicização” que acompanhou certas ondas de perseguições raciais contra várias minorias - Stálin renovou uma concepção de poder ancestral na Rússia.
Enquanto na Europa contemporânea, o nacionalismo é encontrado principalmente nas classes populares e só encontra desprezo por parte das elites (todas convertidas à globalização e ao catecismo pró-europeu), o esquema era muito diferente na URSS, onde o nacionalismo era muito valorizado pela intelligentsia, tanto no Partido (os intelectuais do Estado, que Nikolski já qualifica como nacional-bolcheviques) como na oposição, onde encontramos nacionalistas com sensibilidades ocasionalmente liberais ou democráticas. É essa distinção entre poder e oposição que leva os historiadores a falar nas chamadas correntes legais e ilegais no nacionalismo russo nessa época. Se a primeira frequentemente professava o ateísmo e seguia a linha oficial, a do materialismo dialético, a segunda era frequentemente ortodoxa ou tinha outras sensibilidades religiosas, e Nikolski fala de “alianças entre os nacionalistas ortodoxos e os pagãos” (1). Certos nacionalistas na oposição cederam às sereias da união sagrada e validaram, muitas vezes com relutância, o regime soviético como o repositório da identidade nacional russa. Esse apego voluntário por parte da opinião tradicionalista a um sistema conhecido por sua política revolucionária de tabula rasa parece difícil de entender para um espectador ocidental, mas em numerosas culturas - e tenho em mente a China também - é muitas vezes difícil conceber um nacionalismo que não é simultaneamente um ato de lealdade ao Estado (2). Outros nacionalistas resistentes, mais ferozmente anticomunistas, recusaram essa concessão e preferiram fugir para o exterior, onde alguns deles se envolveriam nos movimentos fascistas europeus.
A Oposição Nacionalista em Face da Perestroika
Mas o regime, entre o período de Stalin e o de sua queda, conheceu numerosas reviravoltas que também levaram a reviravoltas na concepção de nacionalismo. A Perestroika constituiu uma mudança importante tanto nas relações de poder quanto nas posições do campo nacionalista. Já durante os anos de Andropov, houve um esfriamento nas relações entre o Partido e as revistas literárias nacionalistas, um prenúncio do declínio da corrente nacionalista legal. A Perestroika, associada a um enfraquecimento do Estado e uma fase de ocidentalização, foi duramente criticada pelos nacionalistas e este é todo o paradoxo: é exatamente a Perestroika e a recuperação da liberdade de expressão que ela desencadeou, que permitiu que a oposição articulasse suas críticas sem necessariamente acabar no gulag. Muitos intelectuais foram então dilacerados por esse paradoxo: o escritor Alexander Zinoviev, por exemplo, ataca com vigor (e muito humor) as políticas reformistas em seu romance Katastroika, mas foi graças a essas reformas que ele finalmente pôde voltar do exílio, assim como Solzhenitsyn e Limonov - para citar apenas personalidades bem conhecidas. “A oportunidade de retornar, real ou simbólica”, escreveu Nikolski, “é especialmente importante para os autores nacionalistas, ao restabelecer a coerência de seus registros, que foi interrompida pelo abandono do país” (3).
Aqui somos confrontados com fenômenos difíceis de entender a partir de fora: enquanto parecia óbvio que o regime soviético estava em processo de enfraquecimento, os oponentes nacionalistas, longe de se alegrar, se desesperaram. Fora do problema da associação da nação com o Estado (e, assim, com o regime) de que falaremos mais adiante, este aparente paradoxo é explicado pelo surgimento de uma nova oposição paralela à dos nacionalistas, a oposição liberal. Ela se beneficiou, como a outra, da reemergência da liberdade, mas tomou como questões fundamentais ideias novas, começando com a da influência filosófica e econômica do Ocidente. “Se a abertura do regime oferecia (aos nacionalistas) novas possibilidades, isso não lhes dava nenhuma legitimidade particular, de que os seus homólogos liberais desfrutavam, por outro lado, durante a Perestroika, um curto, mas intenso momento de dedicação.” (4) O campo nacionalista reagiu, assim, radicalizando seu discurso e criticando o governo Gorbachev e suas novas orientações com virulência. No mesmo momento, esse campo viu emergir de suas fileiras um novo tipo de intelectual, que poderíamos qualificar como um forasteiro: ao contrário dos comunistas, eles não saíam das escolas oficiais do Partido e, ao contrário dos liberais, não eram formados em institutos internacionais chefiados pelos Estados Unidos, eles eram dissidentes fora do mundo acadêmico, escritores, jornalistas, dissidentes militares, autodidatas revoltosos. As figuras de Dugin e Limonov emergiriam dessa nova onda.
Nacionalismo Vermelho versus Nacionalismo Branco
Do lado do poder, os partidários conservadores do Partido, aqueles que se sentiam mais diminuídos em face dos reformistas liberais, foram tentados por alianças com os nacionalistas da corrente legal. “A aliança entre os comunistas e os nacionalistas da tendência imperial-estatista constituía-se indisputavelmente o centro de gravidade do que eles começaram a chamar de campo patriótico nacional”.(5) Essa aproximação contribuiu, um tanto em reação à nova relação de forças, para reforçar a linha que já poderíamos qualificar como nacional-bolchevique (sem referência direta à sua contrapartida alemã na primeira metade do século XX), e que se caracterizava por um nacionalismo interétnico, levando em conta a dimensão imperial de uma Rússia mista. Ou seja, no esquema ideológico, em competição direta com outra forma de nacionalismo muito presente em uma parte da oposição, o nacionalismo branco, vindo da extrema direita e portando uma visão racista e frequentemente monarquista. Após a queda da URSS, o nacional-bolchevismo perdurou permanentemente acima do nacionalismo da extrema direita.
Essa queda, entretanto, mudaria radicalmente o status do nacionalismo russo em suas complexas relações com o poder. Como sabíamos, uma liberalização desenfreada que levaria, em 1992, à hiperinflação, a preços explodidos, privatizações sucedidas umas às outras, e levaria a um empobrecimento maciço na população com consequências dramáticas: crise demográfica, queda na expectativa de vida, agravamento repentino de desigualdades sociais, quase desaparecimento da classe média - as alegrias do capitalismo. Como sob a Perestroika, as reformas levaram a protestos nacionalistas, apoiados desta vez por comunistas expulsos do poder e horrorizados ao ver a velha política socialista substituída por uma economia de mercado predatória. Assim, Dugin disse: “Eu disse sim à URSS no momento em que ela deixou de existir. Como o que o substituiu era realmente pior não havia o que pôr em questão...Eu sou um homem soviético, meus pais eram soviéticos. Embora eu tenha tentado ao máximo eliminar o soviético em mim, em 19 de agosto de 1991, comecei a restaurar essa herança”.(6) Foi primeiramente por intermédio do eurasianismo que Dugin começou a considerar a URSS como herdeira legítima do Império Russo.
União Sagrada Contra os Liberais
Após o fracasso das rebeliões de 1992-1993, o KPRF (o Partido Comunista pós-soviético) afirmou-se como o único defensor do nacionalismo vermelho, a grande dama dos grupos nacionalistas que estavam roubando o show. Este partido foi fundado e presidido por Gennady Zyuganov, um importante político na história da Rússia contemporânea e que, até hoje, é o principal concorrente de Putin eleitoralmente. Ex-membro do CPSU dissolvido, ele reconstruiu um partido em torno da mesma disciplina marxista, mas em uma linha mais conservadora e nacionalista do que o primeiro. É possível que a influência de Dugin tenha desempenhado um papel nessa orientação, o que levaria a relações com ele e seu ocasional aconselhamento(7); Dugin disse em outro lugar: “O KPRF é, na maior parte, um partido eurasianista de esquerda”.(8) Muito mais tarde, quando fundou o Partido Nacional-Bolchevique, Limonov explicaria que seu objetivo era superar a oposição existente entre os programas do LDPR de Zhirinovsky (partido nacionalista) e o KPRF de Zyuganov.
Durante os anos Ieltsin que se seguiram à queda da URSS, podemos dizer que esse poder era liberal e a oposição era nacionalista. O esquema reverteria com a chegada de Putin ao poder. Seria acompanhada de um momentâneo enfraquecimento da oposição, já que esta última seria superada em seu próprio território pelo Kremlin. Uma parte da oposição, notadamente a dos nacionais-bolcheviques, entretanto, encontraria seu lugar no campo revolucionário, notadamente na frente social. Mas isso já é outra história.
1) Vera Nikolski, National-Bolchevisme et Néo-Eurasisme dans la Russie Contemporaine : la Carrière Militante d’une Idéologie, Mare & Martin, 2013, p.114
2) Na França hoje, é claro, a lealdade ao Estado, e particularmente ao governo Hollande, poderia ao contrário ser corretamente associada a uma forma de anti-patriotismo...
3) Ibid. p. 117
4) Ibid. p. 117
5) Ibid. p. 126-127
6) Entrevista de Alexander Dugin com Vera Nikolski, Ibid, p.226-227
7) Dugin, durante sua aproximação com a Nova Direita Europeia, havia até mesmo conseguido organizar um encontro entre Zyuganov e Alain de Benoist
8) Alexander Dugin, cited in Ibid. p. 240