(1970)
Um dos perigos que ameaçam toda reação contra as forças da desordem e da corrupção que estão devastando nossa civilização e nossa vida social é a tendência dessa reação a acabar em formas que são pouco mais significativas do que as da mera domesticidade burguesa. Mais de uma vez ouvimos denúncias do caráter decadente do moralismo em comparação a toda forma superior de direito e de vida. Na verdade, se uma "ordem" tiver valor, ela não deve significar nem rotina nem mecanização despersonalizada. Devem existir nela forças que estão originalmente indomadas e que conservam de alguma forma e até certo ponto sua natureza, mesmo na aderência mais rígida a uma disciplina. Só então a ordem se torna fecunda. Poderíamos expressar isso em uma imagem: uma mistura explosiva e expansiva, quando restrita a um espaço limitado, desenvolve sua eficácia ao extremo, ao passo que, se for colocada em um espaço ilimitado, ela praticamente se dissipa. Nesse sentido, Goethe poderia falar de um "limite que cria", e poderia dizer que no limite o Mestre se mostra. Também é necessário lembrar que, na visão clássica da vida, a ideia do limite – πέρας(1) - foi tomada como a própria perfeição, e foi postulada como o mais alto ideal, não apenas em termos éticos, mas também em termos metafísicos. Essas considerações podem ser aplicadas a vários domínios. No presente ensaio, consideramos um caso particular: o da família.
A família é uma instituição que, erodida pela mais recente civilização cosmopolita, minada em seus fundamentos pelas próprias premissas do feminismo, do americanismo e do sovietismo, demanda reconstrução. Mas mesmo aqui a alternativa indicada acima emerge. Instituições são como formas rígidas em que uma substância originalmente fluida se cristalizou: esse é o estado original que se deve despertar, sempre que as possibilidades vitais inerentes a um ciclo civilizacional específico parecem esgotadas. Somente uma força que age por dentro, como algo que dá sentido, pode ser criativa. Agora, que significado devemos encontrar na família? Em nome do que se deve desejá-la e preservá-la? O significado usual, burguês e "respeitável" dessa instituição é de conhecimento de todos, e vale menos a pena aponta-lo, do que observar o suporte totalmente insuficiente que ele possa fornecer para uma nova civilização. Pode bastar para proteger os vestígios existentes, mas é inútil esconder o fato de que este não é o verdadeiro ponto da questão, que isso por si só é apenas outro "muito pouco". Se alguém deseja encontrar uma das causas primevas da corrupção e da dissolução da família que surgiram nos tempos mais recentes, isso pode ser indicado precisamente no estado de uma sociedade em que a família é reduzida a significar nada mais do que convenção, respeitabilidade burguesa, sentimentalismo, hipocrisia e oportunismo.
Aqui, como em outros lugares, simplesmente dirigindo-nos direta e resolutamente, não apenas para ontem, mas para as origens, podemos encontrar o que é realmente necessário. E essas origens devem ser acessíveis para nós, particularmente se nossa tradição romana da família estiver entre aquelas que trouxeram a mais alta e original expressão do conceito.
De acordo com a concepção original, a família não é uma unidade naturalista nem sentimental, mas uma unidade essencialmente heroica. Sabe-se que a antiga denominação de pater deriva de um termo que designava o líder, (2) o rei. A unidade da família já por esta razão apareceu, portanto, como a de um grupo de seres unidos de maneira viril em torno de um senhor, que aos seus olhos parecia investido de um poder bruto, mas também de uma dignidade majestosa, de modo a despertar veneração e fidelidade. Este caráter da família é, aliás, confirmado, se nos lembrarmos que nas civilizações indo-europeias o pater - assim como o líder - é o homem que exercia um domínio absoluto sobre seus parentes, na medida em que ele era ao mesmo tempo absolutamente responsável por seus parentes diante de cada ordem hierárquica superior; ele também era o sacerdote de suas gens, (3) pois ele, mais do que qualquer outro, representava seu povo diante das divindades; ele era o custódio da chama sagrada, que nas famílias patrícias era o símbolo de uma influência sobrenatural que se unia invisivelmente ao sangue e se transmitia com o mesmo. Nenhum sentimento social suave ou convencionalismo, mas sim algo entre o heroico e o místico fundava a solidariedade do grupo familiar ou popular, (4) transformando-o em uma única coisa unificada através de relações de participação de dedicação viril, de tal modo que ela estava pronta para se levantar unida contra quem quer que pudesse prejudicá-la ou ofender sua dignidade. Com razão, de Coulanges, (5) em seus estudos sobre o assunto, conclui que a antiga família era uma unidade religiosa primeiro, e apenas secundariamente uma unidade da natureza e de sangue.
Que o casamento já era um sacramento muito antes do cristianismo (como, por exemplo, no ritual romano de confarreatio) (6) talvez já seja conhecido do leitor. Menos conhecida, no entanto, é a ideia de que este sacramento não operava como uma cerimónia convencional ou como uma fórmula jurídico-social, mas sim como uma espécie de batismo que transfigurava e dignificava a mulher, levando-a a participar no mesmo “espírito místico” do povo de seu esposo. Segundo um rito indo-europeu, em si muito expressivo enquanto símbolo, antes de se casar, a mulher era Agni, o fogo místico do lar. Ora, isso não é diferente do pressuposto original, pelo qual o marido era identificado com o Senhor da mulher; A fidelidade burguesa não é mais do que a derivação decadente e debilitada dessa relação original. A antiga dedicação da mulher, que dá tudo e nada pede, é a expressão de um heroísmo essencial - muito mais místico ou "ascético", somos tentados a dizer, do que apaixonado ou sentimental - e, em todo caso, transfigurador. De acordo com um antigo ditado:
“Não há rito ou ensinamento especial para a mulher. Deixe-a venerar seu marido como seu deus e ela obterá seu próprio lugar celestial”.
Podemos quase encontrar um paralelo aqui com a concepção de outra tradição, segundo a qual a Casa Solar da imortalidade era reservada, não apenas para os guerreiros caídos no campo de batalha e para os senhores da linhagem divina, mas também para as mulheres que morreram trazendo um filho para a luz do dia: isso era visto como uma oferta de sacrifício, uma oferenda tão transfiguradora quanto aquela trazida pelos próprios heróis.
Isso poderia nos levar a considerar o próprio significado da geração, mas esse tópico nos levaria muito longe. Lembremo-nos apenas da antiga fórmula segundo a qual o filho primogênito era considerado filho, não de amor, mas de dever. E esse dever era, mais uma vez, de caráter tanto místico quanto heroico. Não se tratava apenas de criar um novo rex para o bem e a força da família, (7) mas também de dar vida àquele que podia absolver seu povo de sua misteriosa obrigação para com os antepassados e para com todos aqueles que produziam grandes famílias (no rito romano, estes eram frequentemente lembrados na forma de inúmeras imagens erguidas no alto durante ocasiões solenes), simbolizadas pela chama familiar perene. Portanto, em não poucas tradições encontramos fórmulas e ritos que trazem à mente a ideia de geração consciente autêntica – geração, não a partir de um ato escuro e semiconsciente da carne, mas através do corpo e ao mesmo tempo através do espírito, literalmente dando vida a um novo ser; no que diz respeito à sua função invisível, dizia-se até mesmo que, em virtude de sua existência, os ancestrais seriam confirmados na imortalidade e na glória.
Destes testamentos, que são apenas alguns dentre os muitos que poderiam ser facilmente reunidos, emerge uma concepção de unidade familiar que, estando além de toda mediocridade burguesa conformista e moralista, e toda presunção individualista abusiva, está igualmente distante de sentimentalismo, paixão e tudo relacionado a fatos sociais ou naturalistas brutos. A família recebe sua maior justificativa quando se baseia em uma fundação heroica. Compreender que o individualismo não é uma força, mas uma renúncia; reconhecer no sangue uma base firme para a família; articular e personalizar esta base através da força da obediência e do comando, da dedicação e da afirmação, da tradição e de uma solidariedade que chegaremos a chamar de guerreira e, finalmente, a personalizá-la também através de uma força de transfiguração íntima - somente por todos esses meios a família virá mais uma vez a ser uma coisa viva e poderosa, a primeira e essencial célula daquele organismo supremo, que é o próprio Estado.
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1 – Grego antigo para “limite”, “fronteira”, “extremidade”; daí a perfeição de uma coisa, seu fim ou seu objeto. Daí também uma decisão final.
2 – A palavra aqui traduzida “líder” é duce no italiano, do latin dux. Significa aquele que guia, que lidera, que comanda; é obviamente conectada etimologicamente ao inglês “duke”, e em tempos modernos foi mais famosamente associado com Mussolini, conhecido universalmente como il Duce durante o Ventennio, os vinte anos de governo fascista.
3 – Latin para “povo, população, raça”, originalmente “poder ou origem geradora”. A centralidade e extensão desse termpo pode ser indicada ao notarmos vários termos ingleses que derivam dele: genialidade, gênio, ingenuidade. Evola faz algumas breves observações sobre o conceito romano da gens em O Arco e a Clava (Arktos, 2018), pp.41-42. O italiano gente, é obviamente derivado diretamente dele, e onde quer que essa palavra apareça no presente ensaio eu o traduzi como “povo”. A tentação de usar nossa palavra “folk” foi resistida por conta de seu peso etimológico radicalmente diferente; ele estava originalmente ligado ao conceito de guerreiro. (Pode ter originalmente significado uma “hoste de guerreiros”.)
4 - Italiano: gruppo familiare o gentilizio; ou seja o grupo baseado em laços familiars ou em laços da gens (ver nota 2 acima).
5 - Numa Denis Fustel de Coulanges (1830–1889) foi um historiador francês, cuja obra mais famosa, também sua primeira, provavelmente é a aludida aqui por Evola. Ela foi traduzida como “A Cidade Antiga”, um panorama das religiões, leis e costumes das antigas civilizações grega e romana.
6 – A confarreatio era uma forma patrícia de casamento, notável no contexto presente por seus elementos religiosos e espirituais. Por exemplo, uma mulher só poderia se tornar uma Virgem Vestal se ela fosse nascida de pais casados pela confarreatio, indicando assim que ela estava conectada a certa perspectiva de pureza espiritual. Também é notável que ela era, pelo menos originalmente, considerada indissolúvel – algo raro em ritos de casamento, os quais, até o que pode ser corretamente considerado como a revolução cristã no casamento, tendiam (em maior ou menor medida) a permitir o divórcio sob condições bem definidas.
7 Italiano: ceppo. Essa palavra tem uma acepção muito mais ampla do que família, significando também “linhagem”, “estirpe” e “família” no sentido mais científico de um grupo de relações genéticas.