09/04/2019

Esaúl Alvarez - Karma e Destino

por Esaúl Alvarez

(2014)



Uma das noções metafísicas que tem sido mais pervertida e desnaturalizada pela new age é a do karma. Chama a atenção em particular que esse termo do karma tenha se estendido amplamente no ocidente uma vez que se nega de maneira fervorosa toda concepção metafísica própria da tradição ocidental, e muito particularmente se nega aquela que vem sendo a contraparte ocidental da ideia de karma: o destino.

Isto demonstra a profunda confusão em que está imerso o homem moderno, que renega tudo aquilo que lhe é mais próprio e próximo -com o consabido argumento do obscurantismo e da superstição- só para acabar abraçando exotismos e modas alheias que não compreende, e que frequentemente resultam ser ainda mais obscurantistas e falsas, quando não obedecem a interesses suspeitos [1].

Se se nega no ocidente a existência do destino não é com base em razões filosóficas ou metafísicas senão em virtude de uma suposta "liberdade individual" de que dispomos para reger nossas vidas e com a qual seria incompatível a ideia de destino. Isso é, se pensa e se decide com base em critérios meramente sentimentais, relativos ao gosto e ao desejo; não importa a verdade. Até aqui tem chegado a debilidade mental do ocidente. 

Desse modo, se certas ideias, como a do destino, são -ou parecem ser a juízo da 'polícia do pensamento' moderno- contrárias à superstição da liberdade, que é um dos 'termos fetiche' da modernidade, então tais ideias devem ser rechaçadas e combatidas. Pouco importa se há ou não nelas algo de verdade, o fato é que são incompatíveis com a ideologia da modernidade.


Ademais, negar qualquer realidade ou conhecimento que provenha ou se identifique com o passado ou a história do ocidente é algo bastante corrente nos últimos tempos: se a modernidade foi extremamente etnocêntrica e alardeava sua superioridade frente às demais realidades humanas, às que subjugava e extinguia sem nenhum remorso -dando lugar com isso a racionalização do racismo e aos nacionalismos, por exemplo-; a pós-modernidade, ideada pela intelectualidade mais progre dos anos 60 e 70 do século passado, e que é sua decomposição inevitável, se jacta de um não menos extremo ódio a si mesma e a seu passado e conduz assim à seguinte fase civilizatória, talvez a fase final: a dissolução [2].

Tudo isso, ademais, vem acompanhado de uma profunda incompreensão quando o ocidental médio faz uso do termo karma, o que coloca de manifesto, em um sentido mais geral, a falta de rigor com a qual se importam, por parte de um ocidente absolutamente perdido e carente de um critério próprio, conceitos próprios de outras tradições -completamente estranhas à mentalidade ocidental- e o seu uso se torna moda.

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Passando já para a análise do que supõem as noções de karma e de destino, é fácil perceber que as doutrinas oriental do karma e ocidental do destino (a Anánkê platônica, o Fatum ou Fado latino) são análogas, com a única particularidade de que a ênfase de cada uma delas recai sobre aspectos diferentes de uma mesma realidade, a realidade da manifestação -seja da manifestação particular de um ser ou da manifestação em sentido geral, o universo ou cosmos-.

Assim, a doutrina oriental do karma põe ênfase na concatenação causal, que é uma relação de ordem sutil entre os fenômenos, que, apesar de sua inabarcável variedade, ficam profundamente unidos entre si pela 'cadeia causal'. Enquanto a doutrina ocidental do destino põe ênfase, não na concatenação incontrolável dos fenômenos, senão na origem invariável de toda essa cadeia de ações e reações, e por isso, ao atender ao que é fixo, coloca em destaque sua inevitabilidade ao desenvolver-se de frente à manifestação. Dir-se-ia que a doutrina hindu atende em primeiro lugar ao processo -a sucessão indefinida de causas e efeitos- enquanto a doutrina ocidental atende à estrutura que origina ou causa dito processo. 

Se percebe então como a doutrina hindu do karma, ao atender ao que é móvel, destaca a impermanência e a contingência dos fenômenos, colocando a ênfase no enganoso e fútil dos mesmos: é a roda da manifestação que sempre gira e nunca se detém, o samsara. Mas é claro que, visto desde a perspectiva particular de um ser concreto, e a pesar do fluxo sem fim de fenômenos, o destino é percebido como algo fixo e invariável que subjaz abaixo -e se impõem à- dos próprios fenômenos, como teremos ocasião de explicar em detalhe mais adiante. Portanto, ambas doutrinas -karma e destino- não são em absoluto contraditórias nem opostas senão que supõem dois pontos de vista diferentes de um mesmo ensinamento acerca de uma só realidade.

Negar toda predeterminação do sujeito, ainda que possa parecer muito atrativo aos olhos da mentalidade moderna seria negar a noção hindu fundamental de swadharma.

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Temos dito que a análise pode referir-se à manifestação universal de forma genérica ou particularizada em cada um dos seres que formam parte da mesma. 

Quanto à aplicação macrocósmica da doutrina do destino, ela se encontra exposta em primeiro lugar por Platão na cosmogonia do Timeu, ali a Necessidade (Anánkê) é apresentada como uma das forças fundamentais que mantém o universo unido, sem a qual a manifestação se dissolveria. Também há referências a essa força universal em A República.

No caso de referirmo-nos a um ser particular o destino corresponde a seu ‘corpo causal’, isto é, as sementes e germens -os samskaras-  que estão presentes nele e que correspondem a marcas e impressões de maior ou menor profundidade, tal como expomos em nossa análise do simbolismo do lago e o estanque. O que é importante destacar aqui é que os samskaras mais profundos -e por isso mesmo mais fixos e invariáveis- são congênitos a um ser particular -pode-se dizer que são herdados pois provém de modos de manifestação anteriores- de modo que constituem um ‘ponto de partida’ imutável e único para esse ser. 

Ou seja, e nisso voltam a coincidir as doutrinas oriental e ocidental, os samskaras são a ‘origem’ primeira da cadeia causal de cada ser particular, pois delimitam e emolduram toda a ordem de sua manifestação, assim como as possibilidades de desenvolvimento de uma árvore -todavia podem ser muito amplas- estão contidas por completo na semente. De uma semente de macieira podemos fazer uma árvore de diferentes formas, inclusive um arbusto, mas sempre será uma macieira. 

A principal crítica desde a modernidade feita à doutrina ocidental do destino é em relação ao seu suposto fanatismo ou determinismo -uma vez mais encontramos o fator sentimental como motor do pensamento moderno-. De maneira paradoxal a doutrina oriental do karma é percebida como menos determinista e, a juízo dos profetas da new age, deixaria mais espaço à liberdade individual, pois de nossos atos ou eleições presentes dependerá o curso futuro. Em realidade, tais sutilezas são apenas fruto da incompreensão do que é o ‘corpo causal’. Quando se compreende a natureza informal deste e sua imutabilidade ao longo do ciclo completo de manifestação de um ser particular não resta lugar para conceber tais sutilezas.

Algumas dessas noções permaneceram inclusive na tradição filosófica ocidental. Assim, Schopenhauer definia o destino como ‘aquilo que não se pode mudar’ e, em efeito, tal definição parece bastante correta segundo o que acabamos de dizer acerca do ‘corpo causal’: se se alterasse o destino de um ser, dito ser já não seria o que era, pois o destino é sua essência mais profunda, que o fez ser o que é no nível da manifestação. É por isso também que Schopenhauer pôde dizer que o caráter de um homem é o seu destino.

Tal ideia sobrevive inclusive na cultura popular, pois existe a noção intuitiva de que o caráter de uma pessoa é algo fixo e imutável. Por outro lado, a personalidade de um indivíduo qualquer se desenvolve ao longo principalmente de sua infância, no processo de interação constante entre esse caráter interior que a pessoa possui desde o nascimento -em realidade desde antes, deveria se dizer- e o meio exterior com o qual há de lidar dia após dia. Tudo isso é algo que a sabedoria popular reconhece sem problemas. Por outro lado negá-lo equivale a negar a própria noção de potência em sentido aristotélico. Certas potências de um ser se actualizam* na interação com o meio exterior enquanto outras ficam adormecidas ou latentes. Comprovamos como a simples observação livre de preconceitos se aproxima muito mais da verdade -e a verdades profundas- do que as fantasias intelectualistas tão próprias da modernidade.  

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Então, há outro ponto onde ambas doutrinas -karma e destino-, se são compreendidas em profundidade, poderiam se chocar de maneira ainda mais frontal com as ilusões e superstições próprias da modernidade e a new age. É o fato da origem e da conformação do ‘corpo causal’ de um ser.

Para as doutrinas tradicionais autênticas, os samskaras, germens que implicam certas predisposições que condicionam o desenvolvimento desse ser, são herdados dos antepassados através de algo que poderíamos denominar 'herança psíquica' -como expõe René Guénon em 'A Grande Tríade'-. Herança que se transmite segundo determinadas leis psíquicas -e não poderia ser dito de forma melhor, pois se referem à alma-. Há que se entender que o 'corpo causal' é também um efeito ou produto de causas que são anteriores a ele mesmo, e estas causas não podem provir senão de nossos próprios antepassados. Tudo isso, ainda que hoje resulte em grande medida incompreensível para a mentalidade convencional, constitui uma realidade que a sabedoria popular e o folclore tem tido uma noção mais ou menos clara até períodos muito recentes.

Se compreende assim, através de sua relação com o passado e os ancestrais, que a ideia de destino estivesse relacionada -para os povos antigos- com as ideias de herança e sangue. E se compreende também como uma sociedade que renega de seu passado coletivo, tanto pessoal como familiar, negue qualquer concepção semelhante. A ideia de que dispomos de uma liberdade eletiva infinita, não condicionada por nosso passado pessoal ou familiar/coletivo e de que assim podemos modificar o porvir à vontade, é, se a analisamos a partir da perspectiva metafísica, uma negação evidente da doutrina tradicional do tempo qualificado -Kairós-. Porém, inclusive sem entrar em complexidades metafísicas a própria ideia de uma absoluta liberdade de eleição não deixa de ser uma tolice de caráter sobretudo infantil, um desejo mais do que uma realidade. Lamentavelmente, como dizíamos, até aqui chega a debilidade intelectual do ocidente moderno. 

Em definitivo, o que estamos dizendo forma parte dos ensinamentos que todas as sociedades passadas reconheceram e que certamente a própria modernidade reconheceria se olhasse a realidade humana de forma menos enviesada por teorias acadêmicas e com menos preconceitos. Assim, o verdadeiro ponto em que a modernidade se vê obrigada a negar a realidade de tais fenômenos é o seguinte: o reconhecimento por parte da ciência moderna de que o 'caráter' de um ser não é inteiramente "aprendido" tombaria a superstição ambientalista em que se edificam todas as ciências sociais e a psicologia modernas, assim como o mito da liberdade individual -a partir do qual se nega a noção de destino- e de que cada qual pode fazer e chegar basicamente aonde queira pela via da autoconstrução, ou seja, o mito da tabula rasa [3]. Ademais, constatamos que miragens desse tipo acerca da liberdade humana provocam enorme sofrimento e dor aos homens e mulheres que se deixam subjugar por eles.

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II. Corpo causal e liberação espiritual

Uma vez entendido que o destino está constituído por aqueles condicionamentos inscritos de maneira informal, porém indelével, no 'corpo causal' de um ser, resulta evidente que o desenvolvimento desse ser não pode ir para qualquer direção, pois, ainda que possuindo diversas possibilidades ou potências, estas não são de modo algum infinitas para um ser dado na manifestação, definido e caracterizado, e não poderia ser de outro modo, pela concretização e a limitação [4]. 

As diversas tradições espirituais da humanidade tem tratado de dotar os homens de estratégias para superar ditas limitações a fim de alcançar o espírito. Se trata, portanto, de transcender a barreira que supõem os condicionamento da alma em sentido geral e do 'corpo causal', enquanto núcleo da alma, em particular. O principal obstáculo para alcançar dita união não é a alma em si -pois a alma é um órgão de conhecimento-, senão as impurezas -impressões e condicionamentos que a contaminam e obscurecem sua visão-. É assim, portanto, que toda disciplina espiritual autêntica é uma terapia de descondicionamento -de liberação- dirigida a 'limpar' e purificar a alma para que ela possa unir-se com o espírito, isso é, em última instância a liberar o 'observador'. Todas as tradições coincidem em evidenciar que o homem que alcançou tal 'união' ou 'identificação' é o único 'homem livre' ou liberado -mukti- segundo a terminologia hindu. Por sua vez, a consecução de dita limpeza ou purificação destrói a 'cadeia kármica' que produziu esse ser particular pela 'lei da necessidade' (a Anánkê platônica) e o conduziu à manifestação. Pode descrever-se essa 'limpeza' interior como um caminho 'para trás', ou 'para as profundidades' desse ser, qualquer uma dessas imagens serve, pois todas elas são metáforas tradicionais empregadas para referir-se ao trabalho espiritual. 

Como já comentamos em outras ocasiões, o nível mais profundo em que ficam inscritas as impressão na alma é o nível correspondente ao que na terminologia hindu se conhece como 'corpo causal'. Este 'corpo causal' seria o equivalente às últimas 'moradas' de Santa Tereza e sua 'limpeza' equivaleria à passagem pela última 'Noite Escura' segundo o conhecido termo empregado por São João da Cruz, 'Noite' imediatamente anterior à união com o Amado e que de certo modo a prefigura, anunciando sua próxima vinda. As imagens mais clássicas para representar a culminação dessa 'limpeza' e a consecução do estado de 'liberdade' paradisíaco, anterior à queda e já não-condicionado, são geralmente duas: 

A lavagem das vestimentas - muito frequente no cristianismo, é particularmente significativa a passagem do Apocalipse em que os santos lavam -branqueiam- suas vestes com o sangue do cordeiro:

“E ele disse-¬me: ‘Estes são os que vêm da grande tribulação, e que lavaram as suas roupas e as tornaram brancas no sangue do Cordeiro.”
(Ap. 7:14) 

Não é pouco o que se poderia dizer desta passagem, ainda que isso excederia o propósito do presente artigo. Apontamos somente que é fácil estabelecer a relação entre a ‘grande tribulação’ e a última Noite Escura de São João da Cruz a que nos referíamos antes. Ou seja, depois da grande tribulação os elegidos lavam e branqueiam suas roupas ficando ‘limpos’, sem mancha ou sem ‘marca’. Já vimos anteriormente que as marcas são as impressões, os samskaras inscritos profundamente no corpo causal.

A liberação das correntes – Imagem muito frequente na arte românica, sobretudo em grupos escultóricos. O símbolo do ‘romper as correntes’ costuma colocar-se em relação com a lei mosaica, a que está submetido o homem profano, não livre, e portanto, ainda ‘aprisionado’, segundo a conhecida passagem de Paulo:

“... temos sido libertados da lei, tendo morrido para aquilo em que estávamos retidos; para que sirvamos em novidade de espírito, e não na velhice da letra.” (Rm. 7:6)

Ou, como nessa outra passagem, aonde as cadeias são substituídas pelo jugo:

“Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão.” Gal. 5:1)

Geralmente a referência de Paulo à lei costuma entender-se como referida à lei mosaica, da mesma forma que se interpretam, nesse sentido, as cadeias que atam aos condenados que vão à caminho do inferno nos pórticos das igrejas e catedrais românicas. Mas é evidente que todas essas citações -tanto as citações de Paulo como as imagens da arte medieval- possuem um sentido alegórico que transcende a simples interpretação da lei como uma referência exclusiva à lei mosaica pela qual se regia o povo judeu. Do contrário Paulo não poderia dizer, pouco depois da primeira passagem citada:
“Sem a lei, estava morto o pecado.”

O que disse Paulo -e o confirma depois- é que houve um tempo em que o pecado não tinha consequências: “estava morto”. É evidente que se refere aqui a uma lei superior, de ordem metafísica e não escrita pelas mãos de um homem, anterior à Aliança com o povo elegido, dado que o pecado existia já antes.

Portanto, as passagens citadas de Paulo, assim como as imagens que temos destacado, estão de acordo com o que dissemos acerca da limpeza do ‘corpo causal’ como última fase purgativa ou purificativa da alma do místico que precede a divina união.

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Pois bem, na arte cristã existe uma imagem canônica que representa alegoricamente essa limpeza profunda e final da alma, após a qual ela estará ao fim preparada para a divina união, e a representa na forma de uma passagem evangélica: o descenso de Cristo aos infernos. Vamos explicar onde está a relação entre ambos momentos.

Anteriormente temos relacionado o ‘corpo causal’ com a dimensão da profundidade, -lembremos que no simbolismo do estanque o corpo causal era precisamente seu fundo- e por simples transposição espaço-temporal o profundo equivale simbolicamente ao passado, de modo tal que uma maior profundidade no espaço é equivalente a uma maior distância temporal, um passado mais remoto. Assim, dissemos que muitas tradições relacionavam o ‘corpo causal’ com heranças -sobretudo psíquicas- sem ‘limpar’, recebidas dos ancestrais.

Pode-se colocar tudo isso em relação com as diversas tradições que falam da transmissão ou herança dos pecados, o que nos remete à ideia de pecado original. Falar de pecado original, transmitido desde o começo dos tempos, traz à memória, na tradição judeu-cristã, as figuras de Adão e Eva, que foram liberadas por Cristo, segundo a tradição, em seu descenso aos infernos [5], inferno ás vezes também denominado de Limbo dos Patriarcas ou Seio de Abraão. 





Dois exemplos do Descenso de Cristo aos Infernos na arte cristã ocidental, ambos de estilo gótico. Resulta evidente nesse tipo de representação a referência à profundidade e à prisão mediante as imagens da caverna, das faces da besta (o Behemoth bíblico) ou do ventre da baleia. Ademais, em algumas representações podem aparecer as cadeias à que nos referimos, particularmente habituais nas representações escultóricas do episódio. 



Na tradição iconográfica oriental, a representação dessa passagem é muito mais frequente que na tradição ocidental, onde praticamente desapareceu no Renascimento. 

Na imagem, o famoso fresco da igreja de São Salvador em Chora, que segue o cânone iconográfico oriental, como que se pode observar nos ícones dedicados ao mesmo tema. Neste fresco Cristo estende suas mãos para resgatar Adão e Eva de sua prisão. 

A interpretação teológica deste episódio é bem conhecida: Cristo, através de seu sacrifício como cordeiro de Deus, remonta a ‘cadeia causal’ até o primeiro homem, por ele que precisamente dita ‘corrente’ ficou danificada de forma indelével, para liberar os prisioneiros. Nas representações mais habituais deste acontecimento Cristo aparece pisando as portas do inferno, enquanto restos das correntes e ferrolhos permanecem no chão.

Dito de outro modo: o descenso de Cristo aos infernos para liberar Adão, Eva e os Patriarcas é um episódio análogo no nível cósmico ao que a purificação completa do corpo causal através do trabalho espiritual representa no nível particular da existência de cada ser. Que seja Cristo quem descende para liberar por suas próprias mãos aos primeiros homens é um dado a favor dessa ideia, pois muitos místicos -entre eles, São João da Cruz- apontaram que não está nas mãos do homem fazer essa última limpeza, pois ele não pode nada a respeito disso, deve ser o próprio espírito quem a afronte deixando a alma desse ser pronta para a união final... Certamente depois de completar a limpeza só resta mais uma passagem a cumprir, para a consecução da qual o caminho ficou desimpedido: a gloriosa Ressureição. 

Assim o sentido místico deste ‘descenso aos infernos de Cristo é a purificação final e completa das ‘profundezas da alma’, momento culminante da purificação espiritual, depois do qual o ser fica livre da Lei que até então o teria escravizado e submetido às suas Leis.

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Para acabar, queremos demonstrar que existe uma conhecida representação visual desta misteriosa lei a que se referia São Paulo nas passagens já comentadas, uma representação que se mostra como a perfeita inversão da imagem iconográfica tradicional da Anastasis de Cristo que acabamos de ver, nos referimos ao Arcano XV do Tarot, denominado O Diabo:



Comparemos esta imagem com a ilustração anterior, o fresco da Igreja de Chora que mostra a liberação de Adão e Eva, para captar como é sua perfeita inversão. Aqui o lugar de Cristo é ocupado pelo diabo enquanto as figuras feminina e masculina se correspondem perfeitamente com Adão e Eva. O diabo não estende a mão à eles, senão que parece zombar -saúda com a mão e faz uma careta com o rosto- a partir de sua posição de poder, enquanto eles permanecem ‘aprisionados’. É uma imagem muito certeira para mostrar a alma do homem prisioneira. A relação entre ambas representações é evidente. Frequentemente, ademais, em muitas representações medievais deste episódio, o próprio Cristo, ao derrubar as portas do inferno, esmaga o diabo da figura anterior, como pode apreciar-se nos seguintes exemplos.




III. O sentimento trágico do Ocidente

O estudo mereceria um capítulo aparte do porquê diferentes tradições -a hindu e a greco-latina- puseram a ênfase em diferentes aspectos dessa realidade.

A ênfase diferente que colocam ambas doutrinas acerca dos condicionamentos e os limites que acarreta toda manifestação há de dar lugar forçosamente a desenvolvimentos e conhecimentos diferentes num e no outro caso. Desenvolvimentos que podem implicar disciplinas como a teologia, a filosofia, a arte e quaisquer outras, pois todas são expressão da alma humana. 

Como vimos até agora o destino é, por definição, invariável. Pois bem, a ênfase especial posta na inamovibilidade do destino por parte da tradição greco-latina tem gerado um ‘sentimento trágico’ muito próprio da cultura e tradição ocidental, uma percepção de fatalidade intrínseca à experiência vital [6]. Esse sentimento trágico pode encontrar-se nos povos germânicos, eslavos, obviamente entre os gregos e talvez um pouco menos nos romanos. Em todo caso, parece arrasador novamente em certos períodos da cristandade medieval. Este caráter trágico, este modo doloroso de enfrentar a vida se distancia de maneira muito clara da atitude de desapego e distanciamento com que costumam enfrentar a existência as tradições orientais, e consideremos que é um tipo de ‘marca racial’ dos povos do ocidente. 

Em verdade, as expressões trágicas de todo tipo que encontramos na arte, na literatura e inclusive na filosofia ocidentais são difíceis de encontrar em outros povos ou civilizações. Os exemplos seriam numerosos [7]. Acreditamos, além disso, que este traço tem uma profunda relação com o marcado viés sentimental dos povos europeus e provavelmente se encontre também relacionado com a criação do teatro -o drama- como forma artística própria e unívoca destes povos.

Certamente, sempre poderia colocar-se a questão de até que ponto a ênfase foi dada ao ‘destino’ já desde as origens do pensamento ocidental, o que alimentou essa percepção trágica de enfrentamento entre o ego e outras forças telúricas que escapam ao controle humano ou se, ao contrário, essa percepção trágica tem sido um traço mais ou menos congênito da ‘raça ocidental’ -talvez alguns samskaras particulares- , que levou a colocar a ênfase dessa realidade metafísica no caráter irremediável e fatal do destino. 

Por último, queremos fazer notar que o conflito prometeico que representa o homem moderno é praticamente incompreensível sem a concepção trágica de uma força superior e contraria à que o homem terá de enfrentar para salvaguardar sua individualidade, inclusive às custas da permanência. 

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Por outro lado, o fato de que a doutrina do destino foi ‘personificada’ no mundo grego e latino sob a forma das Moiras ou como a deusa Fatum dos romanos não lhe retira seu sentido metafísico mais profundo, mas pelo contrário o faz mais facilmente compreensível para certas mentalidades de tipo concreto e pouco predispostas para os conceitos metafísicos.

Além disso, na origem as Moiras eram só uma e seu culto estava particularmente associado à Afrodite, isso é, ao desejo e ao amor, um âmbito em que o ‘destino’ se manifesta de maneira singular. A Moira Láquesis foi de fato empregada frequentemente no simbolismo medieval como metáfora do amor conjugal e do matrimônio.

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Por último, e como exemplo da mais genuína arte ocidental dedicada à esse sentimento trágico da vida, onde a ideia de destino entendido como fatalidade se cruza com outra ideia central do pensamento -e o sentimento- do ocidente, a do amor, deixamos esse doloroso poema de Barbara Strozzi:

Che si può fare?
le stelle rubelle
non hanno pietà
Che si puo fare?
che s’el cielo non da
un influso di pace
al mio penare?
Che si può fare?

Che si può dire?
dagl’astri disastri
mi piovano ogn’hor.
che si può dire,
che le perfido amor
un respiro diniega
al mio martire?
che si può dire?

*N.T. – A palavra actualizar, como utilizada pelo autor, designa o transformar-se da potência em ato. Esse sentido do termo, embora continue presente nos idiomas castelhano e francês, na língua portuguesa se tornou obscurecido, dando lugar quase unicamente a um significado idêntico à palavra modernização. Por isso decidimos manter a grafia do idioma castelhano e não descurar do sentido aristotélico do termo. 

Notas Bibliográficas

[1] Pensamos aqui, por exemplo, na influência que possuem sobre muitos de nossos contemporâneos, seduzidos pela new age, as grosserias lógicas divulgadas por essas pseudotradições que são a teosofia e a antroposofia, correntes completamente ausentes de rigor tradicional e de conteúdo muito obscuro. Para mais sobre o tema, ver em René Guénon "O Teosofismo, história de uma pseudorreligião".

[2] É interessante perceber como a intelectualidade ocidental começou seu trabalho de dissolução -no pós-guerra mundial- pelo nível psíquico e uma vez demolida toda ideia que pudesse gerar uma identidade ou inclusive um simples interesse comum entre europeus, começou a dissolução política e social. O trabalho constante de demolição de todo o passado teve como fruto deixar-nos como única ideologia e visão de mundo hegemônica o economicismo liberal mais radical. À eles devemos ser gratos. Nunca se denunciará o bastante o papel que tem representado a intelectualidade progressista e marxista nesse processo. Isso sim, tudo realizado a partir de uma superioridade moral absoluta...

[3] A respeito disso trazemos à memória uma curiosa anedota do escritor José Saramago que escutamos de sua própria boca. Saramago refletia acerca de que a educação é necessária mas não pode ser superestimada, nem tudo pode ser educacional e é uma fantasia pretender mostrar tudo assim. Um pensamento politicamente muito incorreto nesses tempos. O escritor colocava a sua própria infância como exemplo. Ele era de família humilde e não tinha acesso à cultura alguma em seu pequeno vilarejo. No entanto, havia um terratenente em uma fazenda próxima que possuía uma boa biblioteca e que emprestava ao menino Saramago seus livros para que ele lesse. Saramago comparecia ali quando as tarefas familiares o permitiam, andando durante quilômetros, para lhe devolver alguns livros e tomar emprestado outros. Curiosamente, o filho do terratenente, que ás vezes brincava com o futuro escritor e que recebia educação formal, não tinha o mínimo interesse pelos livros de seu pai... A que se deve o interesse ou vocação por algo? A fatores ambientais? Não é perigoso simplificar tanto a natureza humana?

[4] Só a Prima Materia, a Prakriti hindu, o polo substancial do qual a manifestação parte, possui a possibilidade em forma indefinida, isso é, sem limitação. No cristianismo este polo substancial de possibilidade infinita é representado pela Santíssima Virgem Maria, por essa razão ela é "concebida sem pecado", ou seja, a Imaculada Conceição.

[5] Uma matização é necessária. O modelo iconográfico que recolhe esse episódio recebe geralmente o nome de Anastasis (literalmente ressureição), que é um tanto errôneo e pode levar à confusão, pois a Ressureição de Cristo possui sua própria representação pictórica canônica tanto na arte cristã ocidental como na oriental.

[6] Entenda-se antes da chegada da modernidade -que supõem em rigor a perversão dessa mesma tradição-, ainda que resíduos desse 'sentimento trágico' tenham sobrevivido inclusive até nossos dias.
 
[7] Aqui temos, por exemplo, a denominação de 'Sinfonia do destino' que Schindler deu à sinfonia nº 5 de Beethoven (Op. 67) como exemplo da presença desse conflito com o destino na arte ocidental.