21/11/2018

José Javier Esparza - Revisar Spengler: Da Filosofia da Vida à Filosofia da Crise?

por José Javier Esparza



Quando a sombra de um autor (um filósofo, um político, um poeta...) gravita sobre a alma de uma época que não é a sua, as razões podem ser de dois tipos. Um, o interesse dos mandarins do poder cultural por reatualizá-lo, relê-lo e interpretar suas ideias de acordo com a ideologia social oficial: lhe serão dedicados seminários na Universidade, artigos nos jornais de grande circulação, programas biográficos na televisão, etc., e finalmente será adaptado (digerido) pelo sistema; dois exemplos recentes: Ortega e Unamuno. O outro tipo de razões pelas quais um autor pretérito pode permear o ânimo de uma época determinada é a vigência de suas ideias, a retidão de suas intuições, a presença molesta de sua concepção do mundo nos foros onde se ventila qual há de ser o pensamento oficial: ele será ignorado, não se escreverá sobre ele nos jornais, nem se falará dele na televisão, mas suas ideias, como uma sombra fatídica, acompanharão os oradores do pensamento oficial obrigando-os a criticar continuamente as posições desse autor. Tal é o caso de Spengler, mais conhecido em nossos dias pelas críticas que dele se fazem do que pelas coisas que disse e pensou. Não obstante, é precisamente em seu pensamento que se encontra a chave de sua vigência, da pós-modernidade à epistemologia moderna, e passando pela literatura de antecipação. É neste marco que conceitos tipicamente spenglerianos como decadência (a da Europa), homem felash (o homem ocidental) e pessimismo (o nosso) encontram sua melhor acomodação. 


Spengler, portanto, não foi resgatado pela Academia, mas pelas circunstâncias. Vivemos uma época de incertezas e desencantos, marcados pela convergência de diversos parâmetros de crise (espiritual, econômica, ecológica, demográfica, política) no contexto de uma situação social que tem sido chamada de pós-modernidade. À luz dos textos spenglerianos esta situação pós-moderna é facilmente identificável coma as últimas fases da decadência do Ocidente. O homem faustiano que construiu o Ocidente desafiando a natureza e se rodeando de uma sobrenatureza técnica, se converter, ao ser transformado por sua própria criação técnica, em homem felash, ser urbano carente de nervo conquistador – semelhante ademais ao último homem nietzschiano e diretamente aparentado com o contemporâneo homem frio de que falam Faye e Lipovetski: homem indiferente, hedonista, vazio, desertor da modernidade por um excesso de modernidade. Este homem felash é por natureza incapaz de fazer frente aos desafios que exige o momento presente. E aqui o pessimismo. A regeneração do homem ocidental é sempre possível, mas para isso seria necessário adotar uma atitude que, se não vai salvar da morte sua civilização, pelo menos lhe permitirá sobreviver e, quiçá, construir outra: trata-se de readotar a atitude faustiana com a qual não perecerá o vitalismo do homem europeu. Trata-se, definitivamente, de assumir a tragédia; em nossos termos, de superar a pós-modernidade. Mas esta atitude é, hoje, minoritária e até mal vista.

Do Pensamento Realista à Pós-Modernidade

A concepção do mundo e da história que Spengler desenha não é exclusiva dele, mas se inscreve no amplo marco do que se chamou filosofia da vida ou pensamento realista. Iniciado com Heráclito e prosseguido pelos estoicos, este pensamento se transmitiu até nossos dias através de Nietzsche e Heidegger. Outros autores são mais ou menos incluíveis na lista: Nicolás de Cusa, Hölderlin, Schopenhauer, Ortega y Gasset, etc. Sua característica fundamental é ver a vida como um devir que transcorre ininterruptamente, mais ou menos afetado pelas vontades humanas (segundo os diversos autores), alheio a todo tipo de ideações abstratas e em qualquer caso trágico, porque nem existe um sentido na história humana, nem existe um final pré-determinado. Esta carência de objetivo na história encontrou um eco inusitado em nossos dias a partir da polêmica desatada sobre a pós-modernidade, na medida em que esta trouxe consigo o desencanto dos dogmas progressistas (modernos) que viam na história uma linha ascendente e finalista. Em nossa nova situação o sentido progressista da história desapareceu já, com o desencanto dos velhos dogmas e aí está Spengler para nos dizer: “Veem?”.

A influência do pensamento realista (e portanto, nesse sentido a influência spengleriana) sobre o pensamento europeu dos tempos pós-modernos se estende a outro campo, o da concepção do ser. Nietzsche vem se perguntar se o ser é e se o mundo tem sentido, ou em outros termos, se tem valor a ideia do mundo que até então havia mantido viva a velha metafísica ocidental. Esta havia extremado o velho dualismo pós-socrático mundo real/mundo ideal, primando sempre este último sobre o primeiro. Daí nascem todas as filosofias da modernidade, que seguem o caminho da velha metafísica ocidental. A pergunta de Nietzsche rompe o mundo ideal, com o que se fecha completamente o período da filosofia ocidental: a partir de agora será a vontade de poder, pura e nua, que move o mundo. Spengler está nessa linha, ainda que sua leitura da vontade de poder seja pós-nietzscheana: o destino e a tragédia pesam mais que a vontade. Heidegger corrigirá Nietzsche: para Heidegger a dominação das manifestações do ser (digamos, a dominação do mundo real) não vai nos facilitar o conhecimento do Ser, ao contrário o ocultará. Esta correção atrai influencia Spengler. Heidegger propõe assim perguntar à origem e tratar de desvelar o Ser sem se esgotar no domínio de suas manifestações. Mas aqui o Ser já não é o mundo ideal. É, a partir de Nietzsche, simplesmente o mundo, e com Heidegger a essência do mundo. Eis aqui, com a morte da utopia (a morte do mundo ideal) o que faz da Linha Nietzsche-Spengler-Heidegger o eixo de uma filosofia da pós-modernidade. Assim o entendeu Gianni Vattimo, que de modo geral, se mostra fundamentalmente heideggeriano.

A Herança Spengleriana

Mas as influências de Spengler transcendem o mero conceitualismo filosófico; são muitos os que viram heranças spenglerianas em diversos grandes autores contemporâneos. Por exemplo, se citou com frequência seu influxo sobre as ideias de MacLuhan sobre a natureza tecnológico-visual da cultura contemporânea. Também se tratou de associar a concepção spengleriana da dinâmica social com as intuições e teorias de diversos “sociólogos da pós-modernidade” ou “sociólogos inconformistas”: Baudrillard, Maffesoli, Guillaume Faye – principalmente este último, que é quem melhor captou a natureza decadente do Ocidente atual. De outra parte, a ideia spengleriana da técnica como sobrenatureza inevitável do homem se enlaça com as concepções de Max Scheler ou Arnold Gehlen sobre a natureza cultural do ser humano: para Spengler, o homem é um ser técnico por natureza, para Gehlen, é um ser cultural por natureza. Esta tese está na base dos desenvolvimentos práticos dos etólogos contemporâneos, começando pelo mais célebre, o prêmio Nobel Konrad Lorenz, que, apesar de criticar o “historicismo” spengleriano, compartilha de sua visão da técnica como fatalidade inerente ao ser humano. Citemos também a mais clara contribuição do autor alemão: o holismo. Em efeito, Spengler pretende forjar sua visão da realidade sobre uma apreensão completa do mundo humano, sem reducionismos, tendo em conta todos os fatores que possam concorrer. Como ele mesmo escreveu na introdução a O Homem e a Técnica, “para compreender o destino do homem é necessário considerar comparativamente todas as esferas de sua atuação ao mesmo tempo e não cometer o erro de partir exclusivamente da política, da religião ou da arte para iluminar aspectos particulares de sua existência, na crença de ter descoberto, com isso, tudo”. Este holismo considera cada unidade como inseparável da totalidade, ao mesmo tempo que considera a totalidade inconcebível se não for a partir das unidades individuais que a compõem. Evita assim, no plano metodológico, os reducionismos, e no plano sociológico, o individualismo tal como o coletivismo. O holismo está sendo muito utilizado na sociologia e na antropologia atuais, como testemunham, para não citar mais que um exemplo, os trabalhos de Louis Dumont. Também se estende ao terreno da filosofia da ciência, onde são claras as relações entre este holismo e o antideterminismo que traduzem as teorias nascidas da física quântica e do novo paradigma científico surgido com a microfísica. Mencionemos por último que inúmeros autores do que se denominou “literatura de antecipação” se inspiraram em ideias spenglerianas, principalmente em duas vertentes: a possibilidade de prever a decadência das civilizações e o universo tecnológico inerente ao homem. 

A Crise e a Máquina

Definitivamente, Spengler não pode ser esquecido. Suas ideias estão estreitamente entrelaçadas com o que constitui o núcleo do pensamento contemporâneo. Suas contribuições, suas intuições e suas teorias nos estão demonstrando dia após dia o quão bem fundadas são as explorações intelectuais de seu autor. Isso não obsta que sejam reconhecidos certos aspectos não tão firmes no edifício spengleriano, ou que poderiam ter envelhecido com o tempo. Tomemos, por exemplo, a ideia de decadência e sua correspondência com o estato atual de crise perpétua. Em efeito, as crises não resolvidas e prolongadas são indícios de decadência, principalmente quando são interiorizadas por todo o corpo social; agora bem, o que ocorre se esse estado de crise é consubstancial a um determinado tipo de civilização, quer dizer, se a civilização ocidental do pós-guerra não haja sido senão uma civilização de crise, edificada sobre a crise e governada para a crise, uma civilização onde a ameaça perpétua de crise é o único pilar firme de toda a construção social, onde a crise é a única coisa que impede o colapso? Hipótese quiçá vertiginosa, mas não desdenhável, pelo menos por princípio. Tomemos outro exemplo: a ideia de spengleriana de civilização e sua comparação com um organismo vivo que nasce, se desenvolve e morre; esta ideia pode ser aplicada a uma civilização “natural”, construída sobre o homem, mas poderia ser igualmente aplicada a uma civilização assentada, não sobre o humano, mas sobre estruturas tecnoeconômicas planetárias de onde se evaporou toda especificidade humana? Os organismos vivos sofrem uma morte natural, consequência inevitável de seu envelhecimento, mas como morrem as máquinas? E acaso nossa civilização ocidental não se assemelha cada vez mais a uma complexa máquina acéfala, autorregulada, inextinguível por natureza? E portanto: cabe construir uma filosofia da morte da máquina? Outra hipótese vertiginosa que não queríamos deixar de formular.

Spengler nos responderia, à primeira questão, que esse despotismo da crise não é senão indício de uma decadência cada vez mais acelerada; e à segunda hipótese, que tal estrutura tecnoeconômica e acéfala não é senão o resultado da morte do Ocidente e do homem ocidental. Boas respostas que, de todo modo, podem deixar insatisfeito a quem queira rompera a máquina.