por Rafael Aires Ferreira
(Apresentado no Encontro Nacional Evoliano em 11 de Setembro de 2014)
Introdução
Uma sociologia contra a sociologia
A Sociologia surge, como diz Agnes Heller, como um mecanismo de desfetichização da modernidade, mas, ao mesmo tempo, imbuída da necessidade constante de reificação de seu objeto e admitindo o paradigma moderno como sub specie aeternitatis, que além de inexorável e irrevogável teria açambarcado a totalidade das relações sociais através da substituição da estratificação pela divisão funcional orgânica. Ainda segundo Heller, a pré modernidade não demandaria uma ciência social, nem mesmo poderia cogitá-la, por possuir uma outra estrutura de certificação ontológica.
Um dos grandes problemas em lidar com esta concepção de Ciência Social reside no fato da modernidade, por vezes impor-se muito mais como discurso que como fato social, e na dificuldade em reconhecer a profunda cisão que divide o universo social em enclaves modernos e pré modernos que se expressam em relações de tensão e acomodação cuja clivagem poucas vezes se mostra relevante aos estudiosos desta disciplina.
É justamente no bojo desta clivagem que, no início do século XX, Oliveira Vianna vai estruturar seu pensamento na dicotomia entre o Brasil real, do direito costumeiro das gentes, de onde emanariam as forças vitais da nacionalidade; e o Brasil juridicamente normatizado por um direito intelectual, alheio às formas irracionais e arcaicas daquele primeiro Brasil.
A essência da tese de O. Vianna, sobre nosso devir civilizatório, poderia ser descrita, muito resumidamente, como a que afirma que a grande componente social da civilização Brasileira em forja, exceto por recortes específicos, não abraçou o projeto de modernidade do Liberalismo e acalenta ainda as estruturas epistemológicas e culturais pré modernas que, poderíamos dizer, a aproximam mais do “Oikos” grego que do cosmopolitismo global contemporâneo. Lendo-se aqui, esse Oikos, como a grande “fazenda” doméstica, autoritariamente dirigida, por um príncipe ou senhor territorial, patrício, cujo motivo não reside na aquisição capitalista de dinheiro, mas na cobertura natural e organizada das necessidades de tal senhor; tal como diz Weber.
Esta cisão assinalada por Vianna assenta-se sobre a polarização entre Estado e Sociedade, enquanto estruturas que apresentam naturezas e interesses antagônicos. Aliás, a natureza deste direito que emana do caráter sociológico, nacional das gentes e de sua relação com o aparato legal “científico” e profissional que se encarrega de asfixiar a vitalidade do direito natural “Folkish” destas gentes foi, ao longo da vida de Vianna, mote fundamental de uma carreira que conheceu pouca distinção entre suas duas vocações, acadêmica e pública. Para Vianna, a forja de uma civilização nacional Brasileira passa pela correta adequação desta relação Estado/Sociedade, através da racionalização das instituições políticas de uma forma não apartada entre a Lei Escrita e a Consuetudinária, mas em sua conciliação orgânica. À maneira de Mannheim, que em Ideologia e Utopia dirige sua crítica ao aparato burocrático racionalizador e unilateral, dizendo do “Funcionário” que: “ele não compreende que toda ordem racionalizada é somente uma das muitas formas em que as forças irracionais, socialmente concorrentes, são reconciliadas”; Vianna acrescentaria, dando como indiscutíveis as “preferências tenazes” fixadas na origem da formação de qualquer sociedade, que é preciso contar com esses “fatos de civilização” caso não queiramos ver irreconhecivelmente deformadas as instituições racionalizadoras que se lhe queiram impor.
Ao passarmos em revista a conjuntura desta relação entre estado e sociedade no que tange à formação das instituições políticas no Brasil, percebemos que num contexto onde a “Liberdade” veio antes da Organização, estas instituições têm sido desde sempre aparelhadas, e após o fim do Império, o Brasil sai de um Feudalismo prático para uma República teórica.
Organização x Liberdade
Eis um binômio fundamental na análise de Vianna sobre o subdesenvolvimento das instituições políticas no Brasil. Como bem coloca Paulo Edmur de Souza Queiroz, em “Sociologia Política de Oliveira Vianna”, “Para Oliveira Vianna o pensamento político que Mannheim define como o intelectualismo burguês liberal-democrático, a partir do século XIX, não fez mais, no Brasil, do que demonstrar a tese de que na aplicação intelectual, pura, de um pensamento político a uma realidade sociológica, esse pensamento é inevitavelmente deformado por essa realidade.” (1975, p. 36) Vianna percebia no Liberalismo um novo modelo político-ideológico importado pela intelligentsia pré-republicana que aprofundaria a dissociação entre Estado e Sociedade, e do encontro entre as estruturas semifeudais estabelecidas, com ideologia e uma norma jurídica burguesas consuma-se um panorama onde o aparelho estatal, redesenhado para o livre empreendimento individual torna-se a presa perfeita de um conjunto de facções autocráticas representadas pela junção das velhas oligarquias que sobrevivem, adaptando-se às novas instituições representativas, com os novos especuladores financistas.
Clãs eleitorais formavam partidos que se organizavam ao sabor de interesses pessoais, preterindo a ideia da unidade e da centralização como meios de organização nacionais. Com a República, se aprofundaria o trabalho de desarticulação e fragmentação desta unidade às escusas de um federalismo, como diria Vianna, “mal compreendido e mal praticado, sob o ilusório pretexto de realizarem, assim, a liberdade.”
A polarização entre organização e liberdade, cuja forja civilizacional Brasileira tem sido desde sempre refém, pode ser encarada por outro binômio, o da afirmação do indivíduo, contra a afirmação do grupo. A estruturação Liberal do Estado Brasileiro, além de ter cavado um abismo entre o Brasil das gentes e o Brasil legal, afastando o homem-massa das instituições políticas; aprofundou também seu insolidarismo e indiferença às coletividades. Dos núcleos sociais familiares e profissionais, até as coletividades culturais e de seu senso de nacionalidade, a afirmação do indivíduo tem preponderado sobre a afirmação do grupo.
Vianna nos fala como o espírito de comunidade tem sido mutilado desde a mais remota ocupação de nosso território, onde a dispersão e o isolamento darão lugar a um tipo humano que não vela ou se interessa pelo bem comum, senão pelos seus próprios bens particulares e que não está disposto à cousa pública.
Resta-nos assim questionar, como realizar a construção desta mentalidade solidarista, como desenvolver este espírito comunitário?
Para Vianna, além das forças armadas e do escotismo juvenil, o grande foco metodológico desta transformação caberia às organizações Sindicais e Corporativas.
A Consciência Corporativa
Tendo patente que a Democracia Liberal é incompatível com o desenvolvimento nacional, por evasão direta de focos prioritários, que além dos já citados, incluem ainda soberania, infra estrutura, autonomia energética e industrial, ordem social e controle da “stasis”; Oliveira Vianna elabora ao longo de suas obras, uma complexa pesquisa do maquinário teórico Corporativista, entendendo as Corporações em um contexto onde seriam o único fundamento possível do poder público.
Como Durkheim, que via o Estado como órgão especial destinado a gerar representações de valor coletivo, para Vianna, num devir civilizatório como o Brasileiro, fundamentalmente isolacionista, insolidarista e anticomunitário, como descreve fartamente em suas obras, principalmente em “Instituições Políticas Brasileiras”; o aparelho Estatal deveria encarregar-se da politização da Sociedade através das Corporações, organizando o corpo social a partir da noção de grupo ao invés da noção de indivíduo, ensejando assim a ascensão do grupo como sujeito de direitos e faculdade de ação daí decorrente.
Vianna vai buscar no Realismo Jurídico de Brandeis, a concepção de individualismo grupalista, que afirma que é no grupo que o indivíduo se realiza em sua plenitude. Vai mais além, e de Marcelo Caetano extrai a definição de que “há regime corporativo sempre que uma atividade é representada e regulada por aqueles que a desempenham”; atando a Manoilesco, para quem o corporativismo puro seria o sistema político em que a fonte do poder legislativo supremo é constituído pelas Corporações.
No esteio destes princípios, o poder não emanaria do “povo massa”, anônimo e desqualificado, mas de forças coletivas economicamente, cultural e socialmente ativas, e institucionalmente encarregadas de seu próprio destino. O Estado Corporativo seria, neste contexto, a incorporação do “Volkgeist”, o instrumento que realiza a finalidade suprema da nação, agindo como interventor econômico, gestor de conflitos e modulador de preços no lugar do livre mercado, trabalhando sempre no sentido da supressão do antagonismo de classe através da conciliação entre capital e trabalho.
As Corporações, sendo estes corpos de natureza pública e colocando-se na posição intermediária entre os indivíduos e o estado, tornar iam-se eficientes substitutos da democracia parlamentar liberal, com a instituição da Câmara Corporativa, tendo a função legislativa.
De maneira objetiva e sintética, podemos afirmar que Vianna buscou construir uma concepção de Estado Corporativo com as seguintes características:
• Sem caráter Totalitário, dada a influência de Pirou, baseadas na ideia da convenção coletiva e no caráter fiscalizador do Estado; mas rejeitando a concepção de Manoilesco, onde as Corporações estariam sujeitas ao controle do Partido Único.
• Colaboracionista, no sentido clássico da “terceira solução”, onde através da conciliação entre Capital e Trabalho o antagonismo de classe seria suprimido em função do interesse supremo do Estado.
• Antiliberal, do ponto de vista econômico, já que o Livre Mercado não seria o agente modulador de preços e que seu saneamento se daria no equilíbrio entre oferta e procura; e do ponto de vista ideológico, visto que a concepção de grupo teria mais força que a de indivíduo e o capitalista não seria alvo da superestimação dada pelo estado burguês, mas apenas o cumpridor de uma função social cujo fim último seria a promoção do interesse nacional.
• Apartidário e Unicameral, pois tendo as Corporações e convenções coletivas no papel de Legisladores cessaria a necessidade de qualquer organização partidária paralela.
Percebemos, no esboço que aqui se desenha um programa de reestruturação radical do modelo societário Brasileiro a partir das brechas deixadas por um liberalismo que se encastelou em um estado alienado das preferências tenazes do Brasil real.
Malgrado erros e acertos, concordâncias e discordâncias, o ponto de vista ideologicamente eclético e cirurgicamente realista de Oliveira Vianna sobre a adaptação do ideal corporativo à realidade Brasileira toca em feridas até hoje expostas. O Zeitgeist que nos dirige na Pós-Modernidade é refratário ao ideal corporativo, em grande parte por conta da atomização do indivíduo em uma socioesfera fortemente insolidarista e rompedora do tecido comunitário, em especial no Brasil. A concepção corporativa de Estado fornece, porém, um antídoto real ao esvaziamento político do Estado e sua predação por uma sociedade civil aparelhada pela via cultural. Aqui no Brasil, o Estado se tornou refém, neutralizado, despolitizado e burocratizado, de um poder que se exerce a partir de uma base metapolítica e pluri-ideológica, que se autodenomina como "sociedade civil organizada". Esta S.C.O. é justamente a polarização ideológica que busca fomentar uma opinião pública mobilizada contra os mais vitais interesses do país, estratificando o corpo social em bases antagônicas e totalmente desconexas da produção, da cultura e dos seus reais enclaves de poder. As Corporações são o antídoto do "onguismo" e expressão absoluta e radical de uma verdadeira sociedade civil, que no Brasil ainda está por ser organizada.