29/03/2014

Germán Spano - A Águia Bicéfala, o Arcano Imperial e a Terceira Roma

por Germán Spano



"A santa Igreja apostólica, a da Terceira Roma, a de teu reino, irradia sob os céus mais amplamente que o Sol. E que tu potência o saiba, oh Czar bendito, que todos os reinos de fé cristã se fundiram no teu; que tu és sob os céus o único Czar cristão. Olha, escuta, oh Czar bendito, essa coisa, que todos os reinos cristãos se fundiram em teu reino único; que duas Romas caíram; que a terceira existe, e que não haverá uma quarta. Teu reino cristão não passará a outro". - Carta do monge Filoteu a Basílio III de Moscou

O Ocidente, monstro enfermo que goza de boa saúde, merece morrer. Desencantado e cínico, essa parte do mundo nos encontra errantes e sem justificativa. A final de contas, quem somos nós para dar lições de moral e bons costumes?

Autoproclamados como o "Império do Bem", nossa bondade bem merece um bocejo, quando não um vômito.

Desprovidos de deuses e destino, já não há missão que nos comova. Nenhuma conquista poderá já saciar nossas ninharias, e isso porque carecemos de absoluto. Difícil tarefa cabe ao Ocidente atlantófilo, ao querer lançar o imperialismo carecendo de horizontes metafísicos contra czares de fundamento.

Desvitalizado e em plena fase niilista, que resistência poderia empregar o Ocidente contra a muda voracidade do Império russo? Não será que às portes de Moscou sucumbirão as forças do "bem" para retroceder e cair em suas próprias capitais? Por outra parte, por acaso, de alguma maneira, já não fomos testemunhas disso? Em qualquer caso, está claro que este não é tempo de utopias. De um e de outro lado já estamos demasiado espertos. A decepção fez o seu e a apocalíptica parece que chegou para ficar por um bom tempo. E se de apocalipse se trata...os russos tem as melhores notas. Ademais aqui já nem o Papa resiste na Cruz.

Cansado do transitório, o apetite russo pelo absoluto engendra em seu espírito a necessidade de revanche. A Santa Rússia, messiânica por convicção profética, assume sua missão na história e declara guerra aos hereges. Império escatológico, a Rússia não duvida em incendiar-se em um rapto de afirmação e auto-aniquilação. Fiel, a Rússia está sujeita aos desígnios katechonticos que impõe a presença do Príncipe Vladimir, sua heráldica, seu batismo e seu cristocentrismo. A queda de Bizâncio e o ridículo que exibe a Cidade Eterna não parecem mais que confirmar a profecia do monge Filoteu, que faz da Rússia a Terceira Roma.

Sobre os restos de um Leviatã convenientemente aperfeiçoado e neutralizado, alheio a qualquer superstição que não seja a legalidade e sua máscara de legitimidade, assim como o bem estar e a felicidade obrigatórias, emerge a necessidade de um novo nomos que atualize as velhas rivalidades políticas. Ou será que devemos ser ingênuos e ignorar o conflito Oriente-Ocidente, ou a rivalidade existencial entre as potências telurocráticas e talassocráticas? Leviatã e Behemoth são coisa do passado?

Não há dúvida de que assistimos a tensões geopolíticas que advertem uma reconfiguração do espaço político. Não sabemos ainda se do conflito resultará uma alteração nomocrática e a fundação de uma ordem concreta. As velhas leis do realismo político e da geopolítica, com seus repertórios de noções e conceitos, assim como de recursos e técnicas, buscam validar o que em princípio a história e a metapolítica já antecipam. Como desconhecer que Vladimir, Príncipe de Novgorod, foi batizado na Criméia, sobre a costa do Mar Negro?

E que foi Vladimir que evangelizou os eslavos orientais levando a cabo a ousadia de batizar em massa os habitantes de Kiev nas águas do rio Dnieper? Ou que a primeira Rússia foi a Rus de Kiev e que foi Vladimir seu primeiro soberano ortodoxo? Por acaso Vladimir é indiferente à história e a seus eventos recentos, ou o peso histórico e estratégico clama por sua soberana proteção? E não foi Marechal quem disse que ao receber um nome se recebe um destino?

A águia bicéfala, que com atitude ameaçadora olha para o Oriente e para o Ocidente, sustenta entre suas garras o orbe e um cetro, simbolizando assim a unidade existente entre o poder sobrenatural da ortodoxia cristã e a autoridade política do Czar. Se bem a secularização fez a sua parte, e em aparência já não há autocratas na Rússia, como não ver teologia política na restauração de tal heráldica? A Rússia, diferentemente da estatalidade ocidental, não conheceu a guerra civil religiosa; a Rússia, portanto, não conhece outra realidade que a do Império. A unidade entre auctoritas e potestas não faz mais que reforçar seu messianismo.

O katechon russo será um castigo ao fanatismo pelo inútil que predica este cínico, cruel, desmitologizado e patético Ocidente materialista e pós-humanizado. Lançada pelo ódio, paradoxal forma de amor, a Santa Rússia tentara purificar a tudo. E por acaso não tem razão?

Não devemos ser purificados? Estes bárbaros do século XXI merecem sua oportunidade e a tem. Enquanto isso, desse lado do Mundo, os hereges do Ocidente tentamos decifrar o mistério do arcano imperial russo. Nos voltando sobre a história, encontramos cinco Rússias que, segundo dizem os livros, estão caracterizadas por histórias bem diferentes. A primeira Rússia ou Rus de Kiev; a segunda Rússia dominada pelo Império Mongol; a terceira Rússia ou Grão Principado de Moscou; a quarta Rússia ou Rússia de são Petersburgo; a quinta Rússia ou Rússia soviética. Todas essas colaboraram na formação de um caráter e uma consciência nacional em razão das experiências limite a que o povo russo foi submetido.

A evangelização, o domínio mongol, a incerteza sobre a identidade nacional entre ocidentófilos e eslavófilos, assim como duas guerras mundiais e uma revolução bolchevique com seu consequente totalitarismo, entre tantas outras catástrofes nacionais, exige meditar sobre sua desconcertante capacidade de existir e se manter Império. Como conseguem? Qual é seu segredo? Nos confins da dor o povo russo encontra um sentido para sua existência e destino. É nos segredos da dor que o povo russo entesoura sua força, seu arcano imperial. Sua debilidade pela tragédia não tem igual. O sofrimento físico e moral, a postergação histórica e o silêncio meditado são as pedras angulares da abóbada de seu poder que reclama por ser liberado. O cálice da proteção e da obediência, é de onde emana a sujeição entre o Império russo e seu povo. Obediência e proteção formada e treinada na arte da dor. Dor sagrada, da qual não se pode senão proliferar o já tão conhecido e particular messianismo e niilismo russo.

Finalmente, nós, fadigados para o grande, afundados em querelas de tipo crematístico, mais entretidos que animados, ocupados na internacionalização do "bem", na "democratização" de tudo quanto ocupe a mente de algum moralista bem esclarecido, profanadores em série de mundos desconhecidos, nos deixaremos facilmente vencer perante a superioridade do "inimigo", que enganando também a si mesmo, pelo menos terá a seu favor a necessidade de um verbo que enobreça seu atormentado espírito.