29/07/2013

James Petras - Brasil:O Capitalismo Extrativo e o Grande Salto para Trás

por James Petras

O Brasil testemunhou um dos mais gritantes retrocessos sócio-económicos da moderna história mundial: de uma dinâmica nacionalista de industrialização para uma economia exportadora primária. Entre meados da década de 1930 e meados da década de 1980, o Brasil cresceu a uma taxa média de cerca de 10% no seu sector manufactureiro, em grande medida com base em políticas intervencionistas do estado, subsídios, protecção e regulação do crescimento de empresas públicas nacionais e privadas. Mudanças no "equilíbrio" entre o capital nacional e estrangeiro (imperial) começaram a verificar-se a seguir ao golpe de 1964 e aceleraram-se após o retorno da política eleitoral nos meados da década de 1980. A eleição de políticos neoliberais, especialmente com a eleição do regime Cardoso em meados da década de 1990, teve um impacto devastador sobre sectores estratégicos da economia nacional: a privatização generalizada foi acompanhada pela desnacionalização dos altos comandos da economia e a desregulamentação maciça de mercados de capitais [1] . O regime Cardoso preparou o cenário para o fluxo maciço de capital estrangeiro nos sectores agro-mineral, financeiro, seguros e imobiliário. A ascensão das taxas de juro, como exigido pelo FMI, o Banco Mundial e o mercado especulativo imobiliário elevaram os custos da produção industrial. A redução de tarifas de Cardoso acabou com subsídios à indústria e abriu a porta a importações industriais. Estas políticas neoliberais levaram ao declínio relativo e absoluto da produção industrial [2]

A vitória presidencial do auto-intitulado "Partido dos Trabalhadores", em 2002, aprofundou e expandiu o "grande retrocesso" promovido pelos seus antecessores neoliberais. O Brasil reverteu para tornar-se um exportador primário de commodities, como soja, gado, ferro e minérios que se multiplicaram, as exportações de material de transporte e manufacturas declinaram [3] . O Brasil tornou-se uma dos principais exportadores de commodities extractivas do mundo. A dependência do Brasil das exportações de commodities foi ajudada e compensada pela entrada maciça e a penetração de corporações imperiais multinacionais e de fluxos de financeiros por bancos além-mar. Os mercados além-mar e os bancos estrangeiros tornaram-se a força condutora do crescimento extractivo e da morte industrial. 

Para ter um melhor entendimento da "grande reversão" do Brasil de uma dinâmica nacionalista-industrializante para uma vulnerável dependência imperial conduzida pela extracção agro-mineral, precisamos resumidamente rever a economia política do Brasil ao longo dos últimos cinquenta anos a fim de identificar os "pontos de viragem" decisivos e a centralidade da política e da luta de classe. 

Modelo militar: Modernização a partir de cima 

Sob a ditadura militar (1964-1984) a política económica era baseada numa estratégia híbrida enfatizando uma tríplice aliança do estado, do capital estrangeiro e do capital privado nacional [4] centrada primariamente em exportações industriais e secundariamente e commodities agrícolas (especialmente produtos tradicionais como o café). 

Os militares rejeitaram o modelo nacionalista-populista baseado em indústrias do estado e cooperativas camponesas do deposto presidente Goulart e puseram em vigor uma aliança de capitalistas industriais e agronegócio. A cavalgar uma onda de mercados globais em expansão e beneficiando da repressão do trabalho, a compressão de salários, subsídios abrangentes e políticas proteccionistas, a economia cresceu a dois dígitos desde o fim da década de 1960 até meados da de 1970, o chamado "Milagre brasileiro" [5] . Os militares, se bem que afastando quaisquer ameaças de nacionalizações, puseram em vigor um certo número de regras de "conteúdo nacional" e ampliaram a dimensão e âmbito da classe trabalhadora urbana, especialmente na indústria automotiva. Isto levou ao crescimento dos sindicatos de trabalhadores metalúrgicos e posteriormente do Partido dos Trabalhadores. O "modelo exportador" baseado na indústria leve e pesada, de produtores estrangeiros e internos, tinha base regional (Sudeste). A estratégia de modernização aumentou desigualdades e integrou os capitalistas "nacionais" a multinacionais imperiais. Isto preparou o terreno para o início das lutas anti-ditatoriais e o retorno da democracia. Partidos neoliberais ganharam hegemonia com a viragem para políticas eleitorais. 

Políticas eleitorais, a ascensão de neoliberalismo e a ascendência do capitalismo extractivo 

A oposição eleitoral que sucedeu aos regimes militares esteve inicialmente polarizada entre uma elite liberal, adepta do livre mercado agro-mineral e aliada a multinacionais imperiais e, por outro lado, um bloco nacionalista de trabalhadores, camponeses, trabalhadores rurais e classe média baixa. Trabalhadores militantes constituíam a CUT, camponeses sem terra o MST e ambos juntaram-se à classe média para constituir o PT. [6]

A primeira década de política eleitoral, 1984-94, foi caracterizada pelo puxa e empurra entre o capitalismo estatista residual herdado do regime militar anterior e a emergente burguesia do "livre mercado" liberal. As crises de dívida, hiper-inflação, corrupção sistémica maciça, o impedimento do presidente Collor e a estagnação económica enfraqueceram gravemente os sectores capitalistas estatais e levaram à ascendência de uma aliança do capital agro-mineral e financeiro, tanto de capitalistas estrangeiros como locais, ligada a mercados além-mar. Esta coligação retrógrada encontrou o seu líder politico e o caminho do poder com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, um antigo académico de esquerda que se converteu em fanático do mercado livre. 

A eleição de Cardoso levou a uma ruptura decisiva com as políticas nacionais estatistas dos sessenta anos anteriores. As políticas de Cardoso deram um impulso decisivo à desnacionalização e privatização da economia, elementos essenciais na reconfiguração da economia do Brasil, e à ascendência do capital extractivo [7] . De acordo com quase todos os indicadores, as políticas ultra-liberais de Cardoso levaram a um precipitado grande salto para trás, concentrando rendimento e terra, e aumentando a propriedade estrangeiro de sectores estratégicos. A "reforma" da economia de Cardoso a expensas do trabalho industrial, da propriedade pública, dos trabalhadores sem terra provocou greves generalizadas e ocupações de terra [8] . A "economia extractiva", especialmente a abertura de sectores lucrativos na agricultura, mineração e energia, ganhou espaço a expensas das forças produtivas: a posição relativa da manufactura, tecnologia e serviços avançados declinou. Em particular, os ganhos do trabalho como um todo declinaram como percentagem do PNB [9]

A taxa de crescimento médio da indústria declinou para uns magros 1,4%. O emprego no sector industrial caiu em 26%, o desemprego subiu para mais de 18,4%, o "sector informal" subiu de 52,5% em 1980 para 56,1% em 1995 [10]

A privatização de empresas públicas como a Telebrás, firma gigante e lucrativa de telecomunicações, levou ao despedimento maciço de trabalhadores e à subcontratação de trabalho com salários mais baixos e sem benefícios sociais. Sob Cardoso, o Brasil tinha as mais altas taxas de desigualdade (coeficiente de Gini) entre todos os países do mundo. 

Cardoso utilizou subsídios do estado para promover o capital estrangeiro, especialmente nos sectores da exportação agrária e mineral, enquanto pequenos e médios agricultores ansiavam por crédito. O seu programa de desregulamentação financeira levou à especulação com divisas, lucros maciços e inesperados para bancos da Wall Street quando o regime elevou as taxas de juro em mais de 50% [11] . A bancarrota de agricultores levou ao seu despojamento pelos capitalistas agro-exportadores. A concentração de terra assumiu uma viragem decisiva quando 7% dos grandes proprietários que possuíam fazendas de mais de 2000 hectares aumentaram a dimensão das suas terras de 39,5% para 43% das terras agrícolas brasileiras [12]

Durante os oito anos de Cardoso no governo (1994-2001) houve um tsunami de investimento estrangeiro: mais de US$50 mil milhões entraram no país só nos primeiros cinco anos – dez vezes o total dos 15 anos anteriores [13] . Companhias agro-minerais de propriedade estrangeiras entre as principais companhias estrangeiras (em 1997) representavam mais de um terço e continuavam a crescer. Entre 1996-1998 multinacionais estrangeiras adquiriram oito grandes firmas de alimentos, mineração e produção metálica [14]
As políticas neoliberais de Cardoso abriram a porta amplamente para a tomada de indústrias críticas e sectores bancários pelo capital estrangeiro. No entanto, foram os presidentes do "Partido dos Trabalhadores" que vieram a seguir, Lula da Silva e Rousseff, que completaram o Grande Salto para Trás da economia brasileira ao se voltarem decisivamente para o capital extractivo como a força condutora da economia. 

Do neoliberalismo ao capital extractivo 

As privatizações de Cardoso foram apoiadas e aprofundadas pelo regime Lula. A ultrajante privatização de Cardoso da mineradora Vale do Rio Doce por uma fracção do seu valor foi defendida por Lula; o mesmo se passou com a privatização de facto da companhia petrolífera estatal Petrobrás. Lula abraçou as políticas monetárias restritivas, acordos de excedente orçamental com o FMI e seguiu as prescrições orçamentais dos directores do FMI [15]

O regime Lula (2003-2011) adoptou as políticas neoliberais de Cardoso como um guia para promover a reconfiguração da economia do Brasil em benefício do capital estrangeiro e interno, agora assente no sector primário e de exportação de matérias-primas. Em 2005 o Brasil exportou US$55,3 mil milhões em matérias-primas e US$44,2 mil milhões em bens manufacturados; em 2011 o Brasil triplicou suas exportações de matérias-primas para US$162,2 mil milhões enquanto suas exportações de manufacturas aumentaram para uns meros US$60,3 mil milhões [16]

Por outras palavras, a diferença entre o valor das exportações de matérias-primas e de manufacturas aumentou de US$13 mil milhões para mais de US$100 mil milhões nos últimos cinco anos do regime Lula. A desindustrialização relativa da economia, o desequilíbrio crescente entre o sector extractivo dominante e o sector manufactureiro ilustra a reversão do Brasil para o seu "estilo colonial de desenvolvimento". 

O capitalismo agro-mineral, o estado e o povo 

O sector exportador do Brasil beneficiou-se enormemente com a ascensão dos preços das commodities . O principal beneficiário foi o sector exportador agro-mineral. Mas o custo para a indústria, transporte público, condições de vida, investigação e desenvolvimento e educação foi enorme. As exportações agro-minerais proporcionarem grandes receitas para o estado mas também extrairam-lhe grandes subsídios, benefícios fiscais e lucros. 

A economia industrial do Brasil foi afectada desfavoravelmente pelo boom da commodities devido à ascensão no valor da sua divisa, o real, em 40% entre 2010-2012, a qual aumentou o preços das exportações de manufacturas e diminuiu a competitividade dos produtos manufacturados [17] . As políticas de "mercado livre" também facilitaram a entrada de bens manufacturados mais baratos da Ásia, particularmente da China. Enquanto as exportações primárias para a China deram um salto, o sector manufactureiro do Brasil, particularmente bens de consumo como têxteis e calçados, declinou entre 2005 e 2010 em mais de 10% [18]

Sob os regimes Lula-Rousseff, a extrema dependência de um número limitado de commodities levou a um declínio agudo nas forças produtivas, medido pelos investimentos em inovações tecnológicas, especialmente aqueles relacionados com a indústria [19] . Além disso, o Brasil tornou-se mais dependente do que nunca de um único mercado. De 2000 para 2010 a importações chinesas de soja – a principal exportação agrícola – representaram 40% das exportações do Brasil; as importações chinesas de ferro – a exportação mineira chave – constituem mais de um terço do total das exportações daquele sector. A China também importa cerca de 10% das exportações brasileiras de petróleo, carne, celulose e papel [20] . Sob os regimes Lula e Rousseff, o Brasil reverteu para uma economia quase mono-cultural dependente de um mercado muito limitado. Em consequência, o arrefecimento da economia da China levou como era de prever a um declínio no crescimento do Brasil para menos de 2% de 2011 para 2013 [21]

Brasil: Paraíso económico do capital financeiro 

Sob as políticas de mercado livre do Partido dos Trabalhadores, o capital financeiro entrou a jorros no Brasil, como nunca antes. O investimento directo estrangeiro saltou de cerca de US$16 mil milhões em 2002, durante o último ano do regime Cardoso, para mais de US$48 mil milhões no último ano do governo de Lula [22] . A carteira de investimento – na maior parte de tipo especulativo – subiu de US$5 mil milhões negativo em 2002 para US$67 mil milhões em 2010. Entradas líquidas de investimento directo estrangeiro (IDE) e investimentos de carteira totalizaram US$400 mil milhões durante 2007-2011, a comparar com os US$79 mil milhões durante o período anterior de cinco anos [23] . Investimentos de carteira em títulos de altos juros retornaram entre 8% e 15%, o triplo e o quádruplo das taxas na América do Norte e Europa. Lula e Dilma são presidentes poster da Wall Street. 

De acordo com os indicadores económicos mais importantes, as políticas dos regimes Lula-Dilma foram as mais lucrativas para o capital estrangeiro além-mar e os investidores nos sectores agro-minerais primários na história recente do Brasil. 

O modelo agro-mineral e o ambiente 

Apesar da sua retórica política em favor da família agricultora, os regimes Lula-Dilva têm estado entre os maiores promotores do agro-negócio na história política brasileira. A maior fatia de recursos do estado foi concedida à agricultura, finanças e grandes proprietários rurais. De acordo com um estudo, em 2008/2009 pequenos proprietários receberam cerca de US$6,35 mil milhões, ao passo que o agro-negócio e grandes proprietários rurais receberam US$31,9 mil milhões em financiamento e crédito [24] . Menos de 4% dos recursos do governo e de investigação foi destinada à agricultura familiar e explorações agro-ecológicas. 

Sob Lula, a destruição das florestas tropicais verificou-se a um ritmo acelerado. Entre 2002 e 2008 a vegetação da região do Cerrado foi reduzida em 7,5% ou mais de 8,5 milhões de hectares, principalmente por corporações do agro-negócio [25] . O Cerrado brasileiro é uma das regiões de savana mais biologicamente ricas do mundo, concentrando-se na região centro-leste do país. De acordo com um estudo, 69% da terra de propriedade de corporações estrangeiras está concentrada no Cerrado do Brasil [26] . Entre 1995 e 2005 a fatia de capital estrangeiro no sector cerealífero agro-industrial saltou de 16% para 57%. O capital estrangeiro capitalizou com as políticas neoliberais sob Cardoso, Lula e Dilma deslocando-se para o sector do agro-combustível (etanol), controlando cerca de 22% das companhias brasileiras de cana-de-açúcar e etanol [27] – e rapidamente invadindo a floresta amazónica. 

Entre Maio de 2000 e Agosto de 2005, graças à expansão do sector exportador, o Brasil perdeu 132 mil quilómetros quadrados de floresta devido à expansão de grandes proprietários de terra e multinacionais dedicados à criação de gado, soja e madeira [28] . Entre 2003 e 2012, mais de 137 mil quilómetros quadrados foram desflorestados, crime ajudado por multibilionários investimentos do governo em infraestrutura, incentivos fiscais e subsídios. 



Em 2008 o dano à floresta tropical amazónica aumentou 67%. Sob pressão de indígenas, camponeses, trabalhadores rurais sem terra e movimentos ecológicos o governo entrou em acção para restringir a desflorestação. Ela declinou de um pico de 27.772 quilómetros quadrados em 2004 (o segundo, apenas inferior ao de 1995, sob Cardoso, com 29.059 km2) para 4.656 km2 em 2012 [29]

A criação de gado é a principal causa da desflorestação na Amazónia brasileira. Estimativas atribuem mais de 40% a grandes capitalistas e corporações multinacionais de processamento de carne [30] . Os principais investimentos em infraestrutura dos regimes Lula-Dilma, principalmente estradas, haviam aberto anteriormente terras florestais inacessíveis a empresas corporativas de gado. Sob Lula e Dilma, a agricultura comercial, especialmente a soja, tornou-se o segundo maior contribuidor para a desflorestação da Amazónia. 

Acompanhando a degradação do ambiente natural, a expansão do agro-negócio foi acompanhada pelo despojamento, assassínio e escravização de povos indígenas. A Comissão Pastoral da Terra, da Igreja Católica, informou que em 2004 a violência latifundiária atingiu o seu mais alto nível em pelo menos 20 anos – o segundo ano do mandato de Lula. Os conflitos subiram de 1.801 em 2004, quando em 2003 foram 1.690 e em 2002 foram 925 [31]

Segundo o governo, corporações de gado e soja exploram pelo menos 25 mil brasileiros (principalmente índios despojados da sua terra e camponeses sem terra) sob "condições análogas à escravidão". As principais ONGs afirmam que o número verdadeiro poderia ser dez vezes superior àquele. Mais de 183 fazendas foram inspeccionadas em 2005 libertando 4.133 escravizados [32]

Mineração: A fraude da "privatização" da Vale, agora poluidora número um 

Cerca de 25% das exportações do Brasil são constituídas por produtos minerais – o que destaca a crescente centralidade do capital extractivo na economia. O minério de ferro é o minério de maior importância, representando 78% do total das exportações mineiras. Em 2008, o ferro representou US$16,5 dos rendimentos da indústria, num total de US$22,5 mil milhões [33] . A vasta maioria das exportações de ferro está dependente de um único mercado – a China. Quando o crescimento da China diminui, a procura declina e a vulnerabilidade económica do Brasil aumenta. 

Uma firma, privatizada durante a presidência Cardoso, a Vale, através de aquisições e fusões controla quase 100% da produção das minas de ferro do Brasil[34] . Em 1997 a Vale foi vendida pelo estado neoliberal por US$3,14 mil milhões, uma pequena fracção do seu valor. Ao longo da década seguinte ela concentrou seus investimentos na mineração, estabelecendo uma rede global de minas e mais de uma dúzia de países na América do Norte e do Sul, Austrália, África e Ásia. O regime Lula-Dilma desempenhou um papel importante para facilitar a dominância da Vale no sector mineiro e o crescimento exponencial do seu valor. O valor líquido da Vale hoje é de mais de US$100 mil milhões mas ela paga uma das mais baixas taxas de imposto do mundo, apesar de ser a segunda maior companhia mineira do mundo, o maior produtor de minério de ferro e o segundo maior de níquel. Os royalties máximos sobre a riqueza mineral subiram de 2% para 4% em 2013 [35] . Por outras palavras, durante a década do governo "progressista" de Lula e Dilma, a taxa fiscal era um sexto daquela da conservadora Austrália, que mantém uma taxa de 12%. 

A Vale tem utilizado os seus enormes lucros para diversificar operações mineiras e actividades relacionadas. Ela liquidou negócios como o aço e a celulose vendendo-os por US$2,9 mil milhões – aproximadamente o preço pago por todo o complexo mineral. Em vez disso concentrou-se na compra de minas de ferro de competidores e literalmente na monopolização da produção. A Vale expandiu-se no manganês, níquel, cobre, carvão, potassa, caulim, bauxita; comprou ferrovias, portos, terminais de contentores, navios e pelo menos oito centrais hidroeléctricas; dois terços das suas centrais hidroeléctricas foram construídas durante o regime Lula [36]

Em suma, o capitalismo floresceu durante o regime Lula com lucros recorde no sector extractivo, perigo extremo para o ambiente e deslocamento maciço de povos indígenas e produtores em pequena escala. A experiência mineira da Vale sublinha as poderosas continuidades estruturais entre o regime neoliberal de Cardoso e o de Lula: o primeiro privatizou a Vale a preço de saldo, o último promoveu a Vale como o produtor e exportador monopolista dominante de ferro, ignorando totalmente a concentração de riqueza, lucros e poderes do capital extractivo. 

Em comparação com o crescimento geométrico dos lucros de monopólio do sector extractivo, os miseráveis dois dólares por dia de Lula e Dilma, dados como subsídio para reduzir a pobreza, dificilmente permitem classificar este regime como "progressista" ou de "centro-esquerda". 

Se bem que Lula e Dilma estejam embevecidos com o crescimento do "campeão mineiro" do Brasil (a Vale), outros não estão. Em 2002, a Public Eye, um grupo de direitos humanos e ambientais, deu à Vale um "prémio" como a pior corporação do mundo: "A Vale Corporation actua com o maior desrespeito pelo ambiente e direitos humanos no mundo" [37] . Os críticos citaram a construção da barragem de Belo Monte, da Vale, no meio da floresta tropical amazónica como tendo "consequências devastadoras para regiões com biodiversidade única e tribos indígenas" [38]

O sector mineiro é capital intensivo, gera poucos empregos e acrescenta pouco valor às suas exportações. Ele tem degradado á água, a terra e o ar; afectado desfavoravelmente comunidades locais, despojado comunidades índias e criado uma economia de altos e baixos. 

Com o acentuado arrefecimento da economia chinesa, especialmente o seu sector manufactureiro em 2012-14, os preços do ferro e do cobre caíram. As receitas de exportação do Brasil declinaram, minando o crescimento geral. É especialmente importante que a canalização de recursos para infraestruturas destinadas aos sectores agro-minerais resultou no esgotamento de fundos para hospitais, escolas e transporte urbano – os quais estão de deprimidos e proporcionam um serviço fraco a milhões de trabalhadores urbanos. 

O fim do "mega ciclo" extractivo e a ascensão de protestos em massa 

O modelo de orientação extractiva do Brasil entrou num período de declínio e estagnação em 2012-2013 quando a procura mundial – especialmente na Ásia – declinou, sobretudo na China [39] . O crescimento flutuou em torno dos 2%, mal acompanhando o crescimento populacional. A classe baseada neste modelo de crescimento, especialmente o estrato reduzido de investidores estrangeiros de carteira, mineração monopolista e grandes corporações do agro-negócio, os quais controlam e arrecadam a maior parte das receitas e lucros, limitou os "efeitos gotejamento" ("trickle down effects") que os regimes Lula-Dilma promoveram como a sua "transformação social". Se bem que alguns programas inovadores tenham sido iniciados, o acompanhamento e a qualidade dos serviços realmente deteriorou-se. 

O número de camas para pacientes em hospitais declinou de 3,3 por 1000 brasileiros em 1993 para 1,9 em 2009, o segundo mais baixo da OCDE [40] . As admissões em hospitais financiados pelo sector público caiu e as longas esperas e baixa qualidade são endémicos. 

O gasto federal no sistema de saúde tem caído desde 2003, quando ajustado à inflação, segundo o estudo da OCDE. A despesa pública em saúde é baixa: 41%, a comparar com 82% no Reino Unido e 45,5% nos EUA [41] . A polarização de classe inerente ao modelo extractivo agro-mineral estende-se às despesas do governo, impostos, transportes e infraestrutura: financiamento maciço para rodovias, barragens, centrais hidroeléctricas para o capital extractivo, contra gastos inadequados e em declínio para transportes públicos, saúde pública e educação. 

As raízes mais profundas dos levantamentos em massa de 2013 estão localizadas na política de classe de um estado corporativo. Os regimes Cardoso e Lula-Dilma, ao longo das últimas duas décadas, seguiram uma agenda elitista e conservadora, amortecida pela política clientelista e paternalista que neutralizou a oposição em massa durante um período de tempo extenso, até que a rebelião em massa e os protestos à escala nacional desmascararam a fachada "progressista". 

Publicistas de esquerda e sabichões conservadores que saudaram Lula como um "progressista pragmático" ignoraram o facto de que durante o seu primeiro mandato o apoio do estado à elite do agro-negócio foi sete vezes maior do que a oferecida aos agricultores familiares que representavam aproximadamente 90% da força de trabalho rural e proporcionavam a maior parte dos alimentos para consumo local. Durante o segundo mandato de Lula, o apoio financeiro do Ministério da Agricultura ao agro-negócio durante a safra 2008.09 foi seis vezes maiores do que os fundos concedidos ao programa de redução da pobreza de Lula, o altamente publicitado programa "Bolsa Família" [42] . Ortodoxia económica e demagogia populista não são substitutos de mudanças estruturais substantivas, envolvendo uma reforma agrária ampla que abranja 4 milhões de trabalhadores rurais sem terra, assim como uma renacionalização de empresas extractivas estratégicas como a Vale a fim de financiar agricultura sustentável e preservar a floresta tropical. 

Ao invés disso, Lula e Dilma saltaram em força para o boom do etanol: "açúcar, açúcar por toda a parte" mas sem nunca perguntar, "Que bolsos enchem?" A crescente rigidez estrutural do Brasil, sua transformação numa economia capitalista extractiva, potenciou e ampliou o âmbito da corrupção. A competição por contratos mineiros, concessões de terra e projectos gigantes de infraestrutura encoraja as elites dos negócios agro-minerais a pagarem ao "partido no poder" a fim de assegurar vantagens competitivas. Isto se verificou particularmente com o "Partido dos Trabalhadores" cuja liderança executiva (destituída de trabalhadores) era composta de profissionais em ascensão, aspirando a posições na classe da elite que encarava os subornos nos negócios para o seu "capital inicial" como uma espécie de "acumulação inicial através da corrupção". 

O boom das commodities, durante quase uma década, encobriu as contradições de classe e a extrema vulnerabilidade de uma economia extractiva dependente de exportações de bens primários para mercados limitados. As políticas neoliberais adaptadas à promoção de exportações de commoditieslevaram ao influxo dos bens manufacturados e enfraqueceram a posição do sector industrial. Em consequência, os esforços de Dilma para renovar a economia produtiva a fim de compensar o declínio das receitas de commodities não funcionaram: estagflação, excedentes orçamentais em declínio e enfraquecimento da balança comercial praguejaram a sua administração precisamente quando a massa de trabalhadores e da classe média estão a pedir uma redistribuição de recursos em grande escala, de subsídios ao sector privado para investimentos em serviços públicos. 

As fortunas politicas de Rousseff e do seu mentor, Lula, foram construídas sobre os frágeis fundamentos do modelo extractivo. Eles falharam em reconhecer os limites do seu modelo, muito menos em formular uma estratégia alternativa. Uma colcha de retalhos de propostas, reformas políticas, retórica anti-corrupção face aos protestos de milhões de pessoas que se estendem a todas as grandes e pequenas cidades do país não resolve o problema básico de desafiar a concentração de riqueza, propriedade e poder de classe da elite agro-mineral e financeira. As suas aliadas multinacionais controlam as alavancas do poder político, com e sem corrupção e bloqueiam quaisquer reformas significativas. 

A era do "Populismo Wall Street" de Lula está acabada. A ideia de que altas receitas provenientes das indústrias extractivas podem comprar lealdades populares através do consumismo, financiado pelo crédito fácil, está ultrapassada. Os investidores da Wall Street já não louvam mais os BRICs como um novo mercado dinâmico. Como é previsível eles estão a transferir seus investimentos para actividades mais lucrativas em novas regiões. Quando a carteira de investimentos declina e a economia estagna, o capital extractivo intensifica sua pressão dentro da Amazónia e com terrível preço por parte da população indígena e a floresta tropical. 

O ano de 2012 foi um dos piores para os povos indígenas. Segundo o Conselho Indigenista Missionário, filiado à Igreja Católica, o número de incidentes violentos contra as comunidades índias aumentou 237% [43] . O regime Rousseff deu aos índios o menor número de títulos legais à terra do que qualquer presidente desde o retorno da democracia (sete títulos). A esta taxa, o estado brasileiro levará um século para titular os pedidos de terra das comunidades índias. Ao mesmo tempo, em 2012, 62 territórios índios foram invadidos por latifundiários, mineiros e madeireiros, 47% mais do que em 2011 [44] . A maior ameaça de despojamento vem de projectos como a mega barragem de Belo Monte e centrais hidroeléctricas gigantes promovidas pelo regime Rousseff. Quando a economia agro-mineral vacila, as comunidades índias estão a ser esmagadas ("genocídio silencioso") a fim de intensificar o crescimento agro-mineral. 

Os maiores beneficiários da economia extractiva do Brasil são os principais traders de commodities do mundo os quais, à escala mundial, embolsaram US$250 mil milhões ao longo do período 2003-2013, ultrapassando os lucros das maiores firmas da Wall Street e cinco das maiores companhias automobilísticas. Em meados de 2000, alguns traders desfrutaram retornos de 50 a 60 por cento. Mesmo em 2013 eles estavam numa média de 20-30% (Financial Times , 4/15/13, p. 1). Especuladores de commodities ganharam mais de 10 vezes o que foi gasto com os pobres. Estes especuladores lucram com flutuações de preços entre localizações, com oportunidades de arbitragem proporcionadas pela abundância de discrepâncias de preços entre regiões. Traders monopolistas eliminaram competidores e os impostos baixos (5-15%) aumentaram a sua mega riqueza. Os maiores beneficiários do modelo extractivista Lula-Dilma, ultrapassando mesmo os gigantes agro-minerais, são os vinte maiores traders -especuladores de commodities. 

Capital extractivo, colonialismo interno e o declínio a luta de classe 

A luta de classe, especialmente sua expressão em greves conduzidas por sindicatos e trabalhadores rurais localizados em acampamentos que lançam ocupações de terras, declinou drasticamente ao longo do último quarto de século. O Brasil durante o período que se seguiu à ditadura militar (1989) foi um líder mundial em greves, com 4000 em 1989. Com o retorno da política eleitoral e a incorporação e legalização dos sindicatos, especialmente na estrutura de negociações colectivas tripartidas, as greves declinaram para uma média de 500 durante a década de 1990. Com o advento do regime Lula (2003-2010) as greves declinaram ainda mais, para 300-400 por ano [45] . As duas maiores centrais sindicais, CUT e Força Sindical, aliadas ao regime Lula, tornaram-se adjuntas virtuais do Ministério do Trabalho: sindicalistas asseguravam posições no governo e as organizações recebiam grandes subsídios do estado, ostensivamente para treino e educação do trabalhador. Com o boom das commodities e a ascensão das receitas do estado e rendimentos de exportações, os governos formularam uma estratégia do gotejamento, aumentando o salário mínimo e lançando novos programas anti-pobreza. Nas zonas rurais, o MST continuava a pedir uma reforma agrária e empenhado em ocupações de terras mas a sua posição de apoiar criticamente o Partido dos Trabalhadores em troca de subsídios sociais levou a um declínio agudo nos acampamentos a partir dos quais lançar ocupações de terras. No arranque da presidência de Lula (2003) o MST tinha 285 acampamentos, em 2012 tinha 13 [46]

O declínio da luta de classe e a cooptação dos movimentos de massa estabelecidos coincidiram com a intensificação da exploração capitalista extractiva do interior do país e o violento despojamento das comunidades indígenas. Por outras palavras, a exploração acrescida do "interior" pelo capital agro-mineral facilitou a concentração de riqueza nos grandes centros urbanos e nas áreas rurais estabelecidas, levando à cooptação de sindicatos e movimentos rurais. Portanto, apesar de algumas declarações retóricas e protestos simbólicos, o capital agro-mineral encontrou pouca solidariedade organizada entre o trabalho urbano e os índios despojados e trabalhadores rurais escravizados na Amazónia "arrasada". Lula e Dilma desempenharam um papel chave na neutralização de qualquer frente unida nacional contra as depredações do capital agro-mineral. 

A degeneração das principais confederações trabalhistas é visível não só com a sua presença no governo e com a ausência de greves como também na organização dos comícios anuais de trabalhadores no 1º de Maio. Os mais recentes virtualmente não incluíram qualquer conteúdo político. Há espectáculos de música, temperados com lotarias oferecendo automóveis e outras formas de entretenimento consumista, financiados e patrocinados por grandes bancos privados e multinacionais [47] . Esta relação entre a cidade e a Amazónia lembra com efeito uma espécie de colonialismo interno, no qual o capital extractivo subornou uma aristocracia do trabalho como aliado cúmplice para a sua pilhagem das comunidades do interior. 

Conclusão: Com movimentos de massa, o modelo extractivista está sob sítio 

Se a CUT e a Força Sindical estão cooptadas, o MST está enfraquecido e as classes de baixo rendimento receberam aumentos monetários, como e por que movimentos de massa sem precedentes emergiram em simultâneo numa centena de grandes cidades e outras menores por todo o país? 

O contraste entre os novos movimentos de massa e os sindicatos foi evidente na sua capacidade para mobilizar apoio durante os dias de protesto de Junho-Julho/2013: os primeiros mobilizaram 2 milhões, os últimos 100 mil. 



O que precisa ser esclarecido é a diferença entre os pequenos grupos locais de estudantes ( Movimento Passe Livre , MPL) que detonaram os movimentos de massa com base num aumento em tarifas de autocarros e os gastos faraónicos do estado com a Copa do Mundo (campeonato de futebol) e as Olimpíadas e os movimentos de massa espontâneos que questionaram as políticas orçamentais do estado e as prioridades na sua totalidade. 

Muitos publicistas dos regimes Lula-Dilma aceitam sem questionamento as verbas orçamentais atribuídas a projectos sociais e de infraestrutura, quando de facto apenas uma fracção é realmente gasta na medida em que são roubadas por responsáveis corruptos. Exemplo: entre 2008-12 foram destinados R$6,5 mil milhões para transporte públicos nas cidades principais mas só 17% foi realmente gasto ( Veja, 17/07/2013). Segundo a ONG "Contas Abertas", ao longo de um período de dez anos o Brasil gastou mais de R$160 mil milhões em obras públicas que não estão concluídas, nunca deixaram a prancheta de desenho ou foram roubadas por responsáveis corruptos. Um dos mais notórios casos de corrupção e má administração é a construção de 12 quilómetros de metro em Salvador, com a condição estabelecida de que seria completado em 40 meses ao custo de R$307 milhões. Treze anos depois (2000-13) as despesas aumentaram para cerca 1000 milhões de reais e escassos 6 km foram completados. Seis locomotoras e 24 carruagens compradas por 100 milhões de reais decompuseram-se e a garantia dos fabricantes expirou ( Veja, 17/07/2013). O projecto foi paralisado por acções de sobrefacturação corrupta envolvendo responsáveis federais, estaduais e municipais. Enquanto isso, 200 mil passageiros são forçados a viajar diariamente em autocarros decrépitos. 

A corrupção profunda que infecta toda a administração Lula-Dilma conduziu a um vasto fosso entre os apregoados feitos do regime e a deteriorada experiência diária da grande maioria do povo brasileiro. O mesmo fosso existe em relação às despesas para preservar a floresta tropical amazónica, as terras dos índios e para financiar os programas anti-pobreza: responsáveis corruptos do PT desviam fundos para financiar suas campanhas eleitorais ao invés de reduzir a destruição ambiental e reduzir a pobreza. 

Se a riqueza do boom no modelo extractivo agro-mineral "filtrou-se" para o resto da economia e elevou salários, isso fez-se de um modo muito irregular, desigual e distorcido. A grande riqueza concentrada no topo encontrou expressão numa espécie de novo sistema casta-classe no qual transporte privado – helicópteros e heliportos – clínicas privadas, escolas privadas, áreas de recreação privadas, exércitos de segurança privada para os ricos e abastado foram financiados por subsídios promovidos pelo estado. Em contraste, as massas experimentaram um agudo declínio relativo e absoluto em serviços públicos nas próprias experiências essenciais da vida. A ascensão no salário mínimo não compensada por 10 horas de espera em apinhadas salas públicas de emergência, transportes irregulares e sobrelotados, ameaças pessoais diárias e insegurança (50 mil homicídios). Pais que recebem a esmola anti-pobreza enviam seus filhos para escola decadentes onde professores mal pagos correm de uma escola para outra mal atendendo suas classes e proporcionando um fraco aprendizado. A maior indignidade para aqueles que recebem esmolas de subsistência foi dizerem-lhes que, nesta sociedade de classe-casta, eles eram "classe média"; que faziam parte da imensa transformação social que retirou 40 milhões da pobreza, quando se arrastavam para suas casas com horas de tráfego, retornando de empregos cujo salário mensal pagava uma partida de ténis num clube de campo da classe alta. A economia extractiva agro-mineral acentuou todas as desigualdades sócio-económicas do Brasil e o regime Lula-Dilma acentuou esta diferença pela elevação das expectativas, ao afirmar o seu cumprimento e a seguir ignorar os impactos sociais reais na vida diária. As verbas orçamentais em grande escala do governo para transporte público e promessas de projectos para novas linhas de metro e comboio foram adiadas durante décadas pela corrupção em grande escala e a longo prazo. Os milhares de milhões gastos ao longo de anos renderam resultados mínimos – uns poucos quilómetros completados. O resultado é que o fosso entre as projecções optimistas do regime e a frustração das massas aumentou amplamente. O fosso entre a promessa populista e o aprofundamento da clivagem entre classes sociais não será encoberto por lotarias sindicais e almoços VIP. Especialmente para toda uma geração de jovens trabalhadores que não estão presos às antigas memórias do Lula "metalúrgico" um quarto de século antes. A CUT, a FS, o Partido dos Trabalhadores são irrelevantes ou são percebidos como parte do sistema de corrupção, estagnação social e privilégio. A característica mais gritante da nova onda de protesto de classe é a divisão geracional e organizacional: trabalhadores metalúrgicos mais velhos ausentes, jovens trabalhadores não organizados dos serviços presentes. Organizações locais e espontâneas substituem os sindicatos cooptados. 

O local de confrontação é a rua – não o lugar de trabalho. As reivindicações transcendem salários monetários – as questões em causa são o salário social, padrões de vida, orçamentos nacionais. Em última análise os novos movimentos sociais levantam a questão das prioridades de classe nacionais. O regime está a despojar centenas de milhares de residentes em favelas – um expurgo social – para construir complexos desportivos e acomodações de luxo. As questões sociais permeiam os movimentos de massa. A sua independência organizativa e autonomia sublinham o mais profundo desafio a todo o modelo extractivista neoliberal; muito embora nenhuma organização ou liderança nacional tenha emergido para elaborar uma alternativa. Mas a luta continua. Os mecanismos tradicionais de cooptação fracassam porque não há líderes identificáveis para subornar. O regime, a enfrentar o declínio dos mercados de exportações e dos preços das commodities, e profundamente comprometido com investimentos não produtivos de muitos milhares de milhões de dólares nos jogos, tem poucas opções. O PT perdeu há muito a sua vanguarda anti-sistémica. Seus políticos estão ligados a e financiados por bancos e elites agro-minerais. Os líderes sindicais protegem seus feudos, suas deduções mensais automáticas e seus estipêndios. Os movimentos de massa das cidades, tal como as comunidades índias da Amazónia, terão de encontrar novos instrumentos políticos. Mas ao tomarem o caminho da "acção directa" eles deram o primeiro grande passo.

[1] James Petras and Henry Veltmeyer Cardoso's Brazil: A land for Sale (Lanham, Maryland: Rowman and Littlefield 2003/Chapter 2. 
[2] ibid Chapter 1. 
[3] James Petras, Brasil e Lula – Ano Zero (Blumenau: EdiFurb 2005) Chapter 1. 
[4] Peter Evans, Dependent Development: The Alliance of Multinational State and Local Capital in Brazil (Princeton NJ : Princeton University Press 1979). 
[5] Jose Serra "The Brazilian Economic Miracle" in James Petras Latin America from Dependence to Revolution (New York: John Wiley 1973) pp. 100 – 140. 
[6] Brasil e Lula op cit. Ch. 1 
[7] Cardoso's Brazil Ch. 5 
[8] ibid, Ch.3 and 6 
[9] ibid, Table A.12, p. 126 
[10]iIbid, Ch. 3. 
[11] ibid, Ch. 1, 2. 
[12] ibid, Ch. 5 
[13] ibid, Ch. 2. 
[14] ibid, Table A. 6. 
[15] Brasil e Lula, Ch. 1. 
[16] Brazil Exports by Product Section (USD) www.INDEXMUNDI.com/trade/exports/Brazil
[17] Peter Kingstone "Brazil 's Reliance on Commodity Exports threatens its Medium and Long Term Growth Prospects" www.americasquarterly.or/icingstone
[18] Brazil Exports op cit. 
[19] Kingstone op cit. 
[20] Kingstone op cit. World Bank Yearbook 2011. 
[21] Financial Times, 3/26/13, p. 7. 
[22] Brazil's Surging Foreign Investment: A Blessing or Curse? VSITC Executive Briefing on Trade Oct. 2012. 
[23] ibid 
[25] Ibid. 
[26] Bernard Mancano Fernandes and Elizabeth Alice Clements "Land Grabbing, Agribusiness and the Peasantry in Brazil and Mozambique " Agrarian South (April 2013). 
[27] Rainforests op cit. 
[28] Rainforests op cit. 
[29] Rainforests op cit. 
[30] ibid 
[31] Jose Manual Rambla "La agonia de los pueblos indigenas, buera de la agenda reivindicativa de Brasil" rebellion.org/notice, 5/7/13. 
[32] Rainforests ibid p. 8 
[35] The Economist, June 2, 2013. 
[36] Wikipedia, p. 9. 
[37] Guardian, Jan. 27, 2012. 
[38] ibid 
[39] Financial Times, July 13, 2013, p. 9. 
[40] Financial Times, July 1, 2013. 
[41] ibid 
[42] Rainforest op cit. 
[43] ibid 
[44] ibid 
[45] Raul Zibechi, "El fin del consenso lulista" rebellion 7/7/13 
[46] Ibid. 
[47] Ibid.

13/07/2013

Guilhermo Sepúlveda Castro - A Democracia é o Problema, não a Solução

por Guillermo Sepúlveda Castro



O governo do povo, dizem todos. A participação através do voto é suficiente. Sob uma linda e bela fantasia isso pode parecer necessário, mas em estrito rigor não é e nem será.

A concepção democrática, assumida por muitos como originariamente helênica, trouxe para muitos a crença de que quanto mais habitantes sejam incluídos como cidadãos dentro de um território, maiores graus de "liberdades" lhes devemos outorgar. Justamente o helênico, o denominado "democracia participativa" era o contrário do que muitos burgueses hoje creem. Mais parecia ser um exemplo honroso de Aristocracia do que aquele regime insano chamado por muitos de "democracia".

Somado a isso, a falsa crença de que através do voto uma Comunidade Orgânica pode dirigir seu destino, sem lugar para dúvidas já se demonstrou que isso jamais poderá acontecer. Sob as urnas sempre se encontra um organismo político com fins lucrativos, falo com clareza, dos chamados partidos políticos, os quais esperam ansiosos pela reprodução de seus próprios capitais. As campanhas políticas são sua melhor manifestação. Ganha sempre o que investe mais dinheiro em bandeiras e panfletos, perde sempre o que só confia na boa vontade "cidadã". Em estrito rigor, o voto, a participação por meio do voto e o domínio do voto majoritário, distanciam à Comunidade do Povo de seus próprios destinos. Menos soluções sociais e mais problemas para um país, não é mais que a essência do regime democrático.

A crença de que o voto legitima as decisões de um político eleito "democraticamente" resulta ser uma falácia, pensando em claro, que as decisões e consequências dessas são motivadas - em geral - majoritariamente por causa de um lobby sinistro que se manifesta através das minorias da vez: empresários milionários, grupos feministas, grupos homossexuais e muito poucas vezes por representantes populares...

O regime democrático, ademais, funciona apesar das ideologias que o representem. É mais, quando uma ideologia (esquerda, direita, centro, fascista) se democratiza, de mãos dadas vem sempre a germinação de um modo de produção capitalista, baseado nas relações de produção desiguais e no definhamento das forças produtivas que o permitem. Se potencia a exploração, a usura e a pobreza. Passa a ser mais importante o aborto que o salário mínimo e o matrimônio homossexual prioritário em relação à melhora das condições laborais. Esse processo de democratização por sua vez acompanha o fomento do egoísmo e a relativização de todo o espiritual de uma Comunidade do Povo, pois até Deus é submetido ao sufrágio universal.

A maioria de seus mais fiéis fanáticos defensores estigmatizam toda tentativa alternativa de organização política. Falam dos fascistas, dos totalitários, machistas e conservadores, porém desconhecem que inclusive sem democracia o homem pode igualmente chegar à plenitude. É curioso que após toda uma defesa da Democracia, se encontrem mais garranchos que argumentos. Creio que a medida que vamos compreendendo que o amor, a felicidade, a paz e tudo o que nos faz bem se realiza para além do regime que nos governe, podemos dar início a uma mudança cultural realmente revolucionária.

Ao contrário de toda idéia democrática, considero que o ser humano, como ser social e político, vive melhor agrupado e participando ativamente nas instituições que regem seu entorno mais próximo. Que o voto é desnecessário quando durante todo o ano te encontras participando de alguma organização comunitária ou funcional bairrista ou comunal. Que quando se fala de "partido político" se falará sempre de uma empresa mais do que de um espaço político de influência cidadã e que, portanto, sem estes e com a abertura das Organizações Sociais ao Congresso, a Comunidade do Povo se sentirá mais empoderada que sob os ditames da coalizão dominante.

No plano quotidiano a liberdade é mais plena sem democracia. Quanto mais involucrado se encontre o cidadão orgânico com seu bairro e comuna, seu destino será igual ao de sua comunidade e suas necessidades deixarão de ser moeda de troca para se tornarem obra social. Que o shopping que se encontra pronto no projeto deverá ser queimado e esquecido, pois é mais necessária uma Sede Comunitária que um McDonald's. Quando se pensa assim a democracia deixa de ser um dogma formal e passa a ser algo que há que superar. Pois quanto mais organizados, menos democracia será necessária para construir um país melhor.

12/07/2013

Guillaume Faye - Tributo a Dominique Venner

por Guillaume Faye


O suicídio de Dominique Venner em 21 de maio em Notre Dame: Marine Le Pen se curvou a esse gesto de consciência despertadora, o que pode ser surpreendente, mas é para seu crédito. Uma representante nua do Femen, um grupo de palhaças feministas, tentou sujar sua memória no dia seguinte, fazendo mímica de seu suicídio no coral de Notre Dame. Em seu peito reto estava pintado: "Que o Fascismo descanse no Inferno". É a segunda vez que essas groupies peladas entram na catedral impunemente, ainda que haja fiscalização de segurança na entrada. Jornalistas da AFP foram notificados antecipadamente para cobrir esse "acontecimento" e portanto são provavelmente cúmplices.

A mídia e os políticos esquerdistas (especialmente o patético Harlem Désir) juntos acusaram Venner, post mortem, de incitação à violência, de provocação. Sapos escarradores. Claramente, o gesto romano de Venner, tão trágico quanto a própria história, assustou essas pessoas, que passam a totalidade de suas vidas rastejando pelo chão.

Venner deu sua morte como exemplo, não por desespero mas por esperança: o sacrifício simbólico encoraja nossa juventude, em face do atual afundamento da civilização européia em suas linhagens sanguíneas e seus valores, a resistir e lutar ao custo da própria vida, que é o preço da guerra. Uma guerra que já começou. Venner queria que entendêssemos que a vitória pode ser alcançada na história dos povos se os guerreiros estão dispostos a morrer por sua causa. É pelas futuras gerações de europeus resistentes e guerreiros que Dominique Venner deu sua vida. Ele foi um "despertador do povo", nas palavras de seu amigo Jean Mabire.

***

E ele se matou, ainda que não fosse cristão no sentido ordinário, no altar central da Notre Dame de Paris, isto quer dizer, no coração de um dos lugares mais sagrados e históricos de toda Europa. (Europa: a pátria real e autêntica de Venner, não a farsa de marshmallow da União Européia). Notre Dame, um lugar de memória muito mais rica do que, por exemplo, a Tumba do Soldado Desconhecido sob o Arco do Triunfo. Ele queria dar a seu sacrifício um significado especial, como as antigas tradições romanas em que a vida de um homem, até o fim, é devotada ao país que ele ama e deve servir. Como Cato, Venner jamais comprometeu seus princípios. Nem em questões de estilo necessário - de comportamento, de escrita, de idéias - que não tem nada a ver com pose, aparência e pedantismo. Sua sobriedade expressava, em essência, o poder de sua lição. Um mestre distante, que não estava desconectado da tradição estóica, um rebelde com coração e coragem e não vaidade e vanglória, um homem completo de ação e reflexão, ele jamais se desviou de seu caminho. Um dia ele me disse que não se deve nunca perder tempo criticando traidores, covardes, líderes egoístas; nem, é claro, se deve perdoá-los; apenas se deve ignorá-los e seguir em frente. O silêncio do desprezo.

Este é o Dominique Venner que, em 1970, me trouxe para a Resistência, que eu jamais neguei ou abandonei desde então. Ele foi o meu sargento recrutador. Sua morte voluntária - ecoando a de Mishima mais do que a de Montherlant - é um ato fundacional. E me encheu de uma tristeza alegre, como um relâmpago. Um guerreiro não morte na cama. A morte sacrificial desse homem de honra demanda que honremos sua memória e sua obra, não para lamentarmos mas para lutarmos. Mas lutar pelo que?

Não apenas por resistência, mas pela reconquista. A contraofensiva, em outras palavras. Após um de meus ensaios em que desenvolvi essa idéia, Venner me enviou uma carta de aprovação em sua caligrafia elegante. Seu sacrifício não será vão ou ridículo. A morte voluntária de Dominique Venner é um chamado à vitória.

Alain de Benoist - Tributo a Dominique Venner

por Alain de Benoist


As razões para viver e as razões para morrer são muitas vezes as mesmas. Esse era definitivamente o caso de Dominique Venner, cujo gesto objetivava por sua vida e morte em um profundo acordo. Ele disse que escolha morrer da maneira que era a mais honrada em certas circunstâncias, particularmente quando as palavras se tornam impotentes para descrever, para expressar o que sentimos. Dominique Venner no fim morreu como viveu, com a mesma vontade, a mesma lucidez. Mais notável para todos que o conheceram foi ver como toda a trajetória de sua existência é uma linha pura e reta, uma perfeita linha de extrema retidão.

Honra acima da Vida

O gesto de Dominique Venner é obviamente uma ação ditada por um senso se honra, honra acima da vida, e mesmo aqueles que, por razões pessoais ou outras, se opõem ao suicídio, mesmo aqueles que, diferentemente de mim, não o acham admirável, devem ter respeito por suas ações, porque devemos ter respeito por tudo que é feito a partir de um senso de honra.

Eu não estou falando sobre política. Já em julho de 1967, Dominique Venner havia rompido com qualquer forma de ação política. ele era um observador cuidadoso da vida política, e é claro ele tornou seus sentimentos conhecidos. Mas eu penso que o que era essencial para ele estava em outro lugar, como amplamente demonstrado por muitas coisas já ditas hoje.

Dominique Venner punha a ética acima de tudo, e esta já era a sua perspectiva como jovem ativista. Permaneceu assim, quando gradualmente o jovem ativista se tornou historiador, um historiador meditativo, como ele disse. Dominique Venner era bastante interessado nos textos homéricos, a Ilíada e a Odisséia, em que ele via a fundação da grande tradição imemorial européia, primariamente por razões éticas: os heróis da Ilíada jamais ensinam lições morais, eles dão exemplos éticos, e a ética é inseparável, evidentemente, da estética.

O Belo determina o Bom

Dominique Venner não era daqueles que creem que o bom determina o belo, ele era daqueles que considerava que o belo determina o bom; ele acreditava que juízos éticos que focam nos homens não são tão baseados em suas opiniões ou idéias, mas sim uma função de suas qualidades superiores ou inferiores de ser, e em primeiro lugar a qualidade humana quintessencial que ele resumiu em uma palavra: comportamento.

Comportamento

Comportamento, que é um modo de ser, um modo de viver, e um modo de morrer. Comportamento que é um estilo, o estilo de que ele falou tão belamente em O Coração Rebelde, um livro publicado em 1994, e, é claro, em todas as suas obras, e eu penso especialmente no livro que ele publicou em 2009 sobre o escritor alemão Ernst Jünger. Nesse livro, Dominique disse muito claramente que se Jünger deu, e dá, um grande exemplo, não é apenas através de seus escritos, mas também porque esse homem, que teve uma longa vida e morreu aos 103 anos de idade, jamais falhou com as demandas do comportamento.

Dominique Venner foi um homem discreto, atencioso e exigente - exigindo de si mesmo em primeiro lugar. Ele havia de alguma forma internalizado todas as regras do comportamento: jamais abandonar, jamais desistir, jamais explicar, jamais reclamar, porque o comportamento (tenue) traz a mente e deriva de reserva (retenue). Obviamente, quando falamos sobre tais coisas, devemos parecer como homens de Marte para muitos habitantes dessa era de smartphones e Virgin Megastores. Falar de equanimidade, nobreza de alma, altivez mental, comportamento, é empregar palavras cujos próprios significados escapam a muitos, e é por isso que os filisteus e liliputianos - aqueles que escrevem essas notas paroquiais para os bem-pensantes que a mídia de massa se tornou hoje - foram incapazes de modo geral de compreender o próprio sentido de seu gesto, que eles tentaram reduzir a considerações medíocres.

Um Modo de Protesto Contra o Suicídio da Europa

Dominique Venner não era nem um extremista nem um niilista, e, acima de tudo, ele jamais se desesperou. De fato, suas longas reflexões históricas o levaram a desenvolver um tipo de otimismo. Ele sustentava que a história é imprevisível e sempre aberta, que ela tanto faz os homens como é feita pelos homens. Dominique Venner rejeitava todo fatalismo, todas as formas de desespero.

Eu falo paradoxalmente, porque não foi suficientemente notado, que seu desejo de cometer suicídio foi um modo de protestar contra o suicídio, um modo de protestar contra o suicídio da Europa que ele observava por tanto tempo.

Um Suicídio de Esperança Racional como Ato Fundacional

Dominique Venner simplesmente não poderia suportar a Europa que ele amava, sua pátria, se desvanecendo aos poucos da história, esquecida de si mesma, esquecida de sua memória, seu gênio, sua identidade, de alguma forma drenada da energia pela qual ela foi conhecida através dos séculos. Porque ele não podia suportar o suicídio da Europa, Dominique Venner opôs seu próprio, porque ele não foi um suicida do colapso, da resignação, mas sim um suicida da esperança.

A Europa, disse Dominique, está adormecida. Ele queria despertá-la. Ele queria, como ele disse, mobilizar consciências entorpecidas. Devemos ser muito claros nesse ponto: não houve qualquer desespero no gesto de Dominique Venner. Havia um chamado a agir, a pensar, a continuar. Ele disse: Eu dou, eu sacrifico o resto de minha vida em um ato de protesto e fundação. Nós devemos, eu penso, nos agarrar a sua palavra "fundação". Essa palavra "fundação" nos foi concedida por um homem cuja última preocupação foi morrer de pé.

Um Samurai Ocidental

Dominique Venner não era um nostálgico, mas ele era um verdadeiro historiador que estava interessado, é claro, no passado com uma visão do futuro; ele não estudava o passado como refúgio; ele simplesmente sabia que povos que esquecem seu passado, que perdem toda consciência de seu passado, são por conseguinte privados de um futuro. Não se pode ter um sem o outro: o passado e o futuro são duas dimensões do momento, nenhuma mais importante que a outra: dimensões de profundidade.

E nesse processo, Dominique Venner se lembrava, certamente, de um número de memórias e imagens. Ele se lembrava dos heróis e deuses homéricos; ele se lembrava dos antigos romanos, aqueles que o precederam no caminho da morte voluntária: Cato, Sêneca, Regulus, e muitos outros. Ele tinha em mente os escritos de Plutarco e as histórias de Tácito. Ele tinha em mente a memória do escritor japonês Yukio Mishima, cuja morte é em muitas maneiras similar a sua própria. E certamente não é uma coincidência que seu último livro, que logo aparecerá através de Pierre-Guillaume Roux, é chamado de Um Samurai Ocidental: um samurai ocidental!

E na capa desse livro, Um Samurai Ocidental, nós vemos uma imagem, uma impressão, uma gravura famosa: "O Cavaleiro, a Morte e o Diabo", de Albrecht Dürer. Dominique Venner escolheu deliberadamente essa gravura. Algum tempo atrás, Jean Cau devotou à figura do cavaleiro um maravilhoso livro que também levava o título: O Cavaleiro, a Morte e o Diabo. Em uma de suas últimas colunas, escrita apenas dias antes de sua morte, Dominique Venner prestou tributo a esse mesmo cavaleiro que, ele disse, nas estradas e encruzilhadas, sempre continuará seguindo rumo a seu destino, rumo a seu dever, entre a morte e o diabo.

"O Cavaleiro, a Morte e o Diabo":  Desenhado por Dürer em 1513

E nessa coluna, Dominique Venner falou de um aniversário. Foi em 1513, 500 anos atrás exatamente, que Dürer fez essa gravura "O Cavaleiro, a Morte e o Diabo", e essa ênfase me deu uma idéia bastante simples que qualquer um poderia ter: Eu olhei as datas de nascimento e morte de Albrecht Dürer, o homem que desenhou "O Cavaleiro, a Morte e o Diabo", exatamente há 500 anos, e percebi que Dürer nasceu em 1471; ele nasceu em 21 de maio de 1471. Dürer nasceu em 21 de maio; Dominique Venner escolheu morrer em 21 de maio. Se isso é uma coincidência, ela é extraordinária, mas ninguém é forçado a crer em coincidências.

O Coração Rebelde Sempre Estará Lá

É isso que eu gostaria de dizer em memória de Dominique Venner, agora já ido para a grande caçada selvagem, em um paraíso onde se pode ver os gansos selvagens a voar. Aqueles que o conheceram, e eu o conheci por 50 anos, aqueles que o conheceram provavelmente dirão que perderam um amigo. Mas eu penso que estão errados. Ao contrário, eu creio que deveriam saber que, desde 21 de maio de 2013, às 2:422 p.m., ele necessariamente sempre estará lá. Ainda junto aos corações rebeldes e espíritos livres que sempre enfrentaram a coalizão eterna de Tartufos, Trissotins e Torquemadas.

11/07/2013

Julius Evola - A Doutrina Svadharma & O Existencialismo

por Julius Evola



Em um outro ensaio eu apontei para a importância de esclarecer os pontos em que uma conexão entre as doutrinas do Oriente tradicional e certas tendências intelectuais bastante avançadas do Ocidente emerge. Eu então disse que em muitos casos um conhecimento sério e não amador das primeiras poderia servir bem para completar as segundas, liberando-as de seu aspecto enquanto opiniões de uma natureza puramente individual e especulativa, e também de tudo afetado por uma atmosfera de crise, tal como é de fato a de nossa própria civilização ocidental moderna. Desse jeito seria possível ascender daquelas intuições casuais, alcançadas por europeus que lutam em um estado de profundo labor crítico, ao plano de um conhecimento objetivo e suprapessoal, que deveria ser definido como "sabedoria" ao invés de "filosofia".

Eu aqui quero lidar nesse sentido com certos aspectos específicos de uma tendência de pensamento, muito na moda hoje, conhecida como "existencialismo", selecionando como uma contraparte para ela a doutrina hindu do "svadharma" [o próprio dharma ou dever em relação à ordem cósmica].

Com referência ao existencialismo eu naturalmente não considerarei suas formas excêntricas e boêmias, de um caráter predominantemente literário, que infelizmente são aquelas as quais essa tendência em boa parte deve sua popularidade. Eu gostaria, ao invés, de me referir ao existencialismo sério, filosófico, que tomou forma mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, e que, após Soren Kierkegaard (e de certa forma Nietzsche), teve como seus principais intérpretes Jaspers, Heidegger e Barth. Primeiro tentarei apresentar certas idéias básicas do existencialismo da maneira mais acessível. Essa tarefa não é fácil em um artigo pequeno, por causa da natureza peculiar, quase esotérica, da terminologia dos existencialistas, onde muitas palavras são costumeiramente usadas com significados completamente distintos dos usuais.

A base do existencialismo reside na concepção de existência. Agora, essa expressão não deve ser tomada no sentido comum, simples. A existência, segundo Kierkegaard, significa o ponto paradoxal e contraditório, em que o finito e o infinito, o temporal e o eterno estão implicados e se encontram. Por existência aqui naturalmente se entende aquela do Ego, do ente individual, que é portanto considerado uma síntese de elementos contraditórios. Sua situação espiritual é tal que ele não pode se afirmar (o ente finito que existe no tempo), sem também afirmar o "outro" em relação a si (o incondicionado, o temporário, o ente absoluto); mas, por outro lado, ele não pode afirmar o transcendente, sem também afirmar a si mesmo, o ente existindo no tempo. Duvidar de um significa também duvidar do outro. Essa é a premissa geral do existencialismo, como afirmado por todos os seus principais intérpretes, de Kierkegaard a Lavelle, de Barth a Jaspers. Aqui é adequado aponta para a harmonia dessa linha de pensamento com as perspectivas do Hinduísmo tradicional. Em primeiro lugar, há a questão do método: o existencialismo busca alcançar uma intimidade no próprio centro do indivíduo, o que deve ao mesmo tempo ter o valor de uma experiência metafísica. Mas isso pode-se dizer ser o método de todo o yoga upanishádico e também da filosofia budista, à qual nós bem poderíamos aplicar a fórmula de um "experimentalismo transcendental". Em segundo lugar é óbvio que esse ponto de encontro ambíguo entre o centro de um ente finito e o incondicionado mais ou menos nos relembra o atma, que apresenta as características atuais, por assim dizer, de uma "transcendência imanente", de algo que é o Ego, e ao mesmo tempo um super-Ego, o eterno Brahman.

Não obstante, o paradoxo da "existência", compreendido no sentido supramencionado, assume a forma de um problema. Nós nos encontramos diante de uma posição insustentável de equilíbrio instável, que deve ser resolvida em função de um ou de outro dos dois termos, que se encontram no indivíduo, mas parecem excluir, contradizer um ao outro também: o condicionado e o incondicionado, o temporal e o não-temporal.

As duas soluções possíveis correspondem a duas direções de fato seguidas pelo existencialismo, em cuja conexão eu posso mencionar os nomes de Heidegger e Sartre por um lado, de Jaspers e principalmente Barth pelo outro.

A solução própria da filosofia de Heidegger é a do homem que tenta encontrar o incondicionado no transitório. A questão segundo esse pensador, se apresenta como segue: a existência no tempo significa existir como indivíduo e como ser individualizado. Mas individualidade significa particularidade, significa a afirmação e assunção de um certo grupo de possibilidades, à exclusão de outras, a totalidade das outras; mas estas subsistem, elas vivem dentro do indivíduo, elas constituem o senso de infinito dentro dele, e tendem a encontrar expressão, a se realizarem. Isso determina o movimento do Ego no tempo, um movimento concebido no sentido de emergir de nós mesmos (de nossa própria particularidade definida), como uma tendência a realizar tudo que fomos excluídos de nós mesmos, a viver através disso em uma sucessão de experiências: uma sucessão que evolui enquanto tempo, e que deveria representar o substituto para a totalidade, para tudo que o indivíduo, enquanto tal, não pode ser simultaneamente. Naturalmente, à infinitude de possibilidades corresponde necessariamente a infinitude de tempo, e tudo isso dá em alguma medida o sentimento de se perseguir a própria sombra: uma busca sem jamais alcançar, sem jamais inteiramente adquirir posse sobre si, de modo a acalmar e resolver a antítese e a "angústia" própria da "existência".

Essa solução de Heidegger assim termina em um tipo de justificativa metafísica da santificação daquilo que, em termos hindus, pode ser chamado de samsara, a consciência samsarica. Isso nos parece uma posição perigosa, na medida em que ela siga rumo às várias filosóficas ocidentais modernas da imanência, da "Vida", do devir, uma posição que, em nossa opinião, dificilmente se poderia conectar com qualquer concepção tradicional do mundo. De fato, um sombrio pessimismo não disfarçado perpassa toda a filosofia de Heidegger.

A segunda tendência existencialista, aquela de Jaspers e Barth, está em uma situação diferente. Partindo de premissas mais ou menos similares, é dada importância ao conceito de que, se o indivíduo representa uma possibilidade particular em meio a uma infinidade de outras, que residem fora dele, essa possibilidade definida emana da escolha. Essa escolha naturalmente nos traz a algo que é anterior ao tempo e anterior à existência no tempo. A solução da antítese é dada pela "ética da fidelidade": aquilo que somos no tempo devemos assumir, nós devemos considerar "nossa própria essência como idêntica a nossa própria existência", nós devemos permanecer verdadeiros com o que somos, tendo o pressentimento de que isto é algo eterno, que, através de nós mesmos, se torna em si "temporalizado", que tudo que aparece como necessidade, como destino, como dureza, nos envia para algo que é desejado, a um ente que o é porque escolheu ser, assumindo essa natureza particular, excluindo toda outra natureza possível.

Assim, junto com o preceito de fidelidade a nós mesmos, há, no existencialismo, também o preceito da clarificação (Erhellung). A regra da vida desse existencialismo não é a busca por algo mais, a dispersão de nós mesmos na multiplicidade infinita e problemática das perspectivas que se apresentam no mundo exterior, e muito menos significa ela a busca no tempo - como afirma Heidegger - da miragem do incondicionado perpetuamente em fuga; nós deveríamos ao invés assumir nossa própria perspectiva ou visão de mundo, tomar e realizar seu significado, o que é equivalente a dizer sua raiz transcendental, aquela vontade pela qual eu sou o que sou, e que na existência só podemos concretizar com base em seus traços, seus efeitos. Então a existência aparecerá meramente como a perseguição no tempo de algo que existe antes do tempo, e cada necessidade ou finitude se revelará como a consequência do ato primordial de um poder livre.

Quem quer que conheça a doutrina do dharma e do svadharma não pode deixar de notar as suas analogias com essas perspectivas existencialistas. Segundo a concepção hindu, cada ente possui uma natureza própria. Não é mero acaso que sejamos o que sejamos e não outra coisa. A essa natureza - a não ser que sintamos uma vocação para uma ascensão superior - devemos permanecer fiéis; a fidelidade a nossa própria natureza, qualquer seja ela, é o maior alto culto que podemos render ao Espírito Supremo.

Assim, sermos nós mesmos, assumir nossa própria posição e cuidar de nossa própria perfeição individual, sem nos deixarmos distrair ou seduzir por interesses, objetivos ou valores externos. Não há natureza propriamente nossa, um dharma, superior ou inferior a outro, se tomarmos - como devemos - o infinito, aquilo que está além do tempo, como medida. Daí trair o próprio dharma - a lei da própria natureza - para assumir o dharma - a maneira de ser, a lei, o caminho - de outro é erro e falha: falha, não em um sentido moral, mas no sentido ontológico. É uma ofensa contra a ordem cósmica - rta - equivalente a violência contra nós mesmos; porque assim entramos em contradição com nós mesmos, nós queremos ser aqui, no tempo, algo diferente do que quisermos ser para além de todo o tempo. O efeito disso é desintegração, e portanto uma queda na hierarquia dos entes (simbolicamente, inferno). Estes são conceitos hindus tradicionais que encontramos expressos nas Leis de Manu, e, de forma ainda mais definitiva, no Bhagavad Gita. Nós sabemos que na Índia elas não permaneceram mera teoria e filosofia, mas exerceram uma poderosa influência sobre a vida individual e coletiva, constituindo, entre outras coisas, a base ética e metafísica do sistema de castas, daquele sistema que tem sido tão pouco compreendido por ocidentais (ainda que na Idade Média se tivesse algo do mesmo tipo), enquanto está prestes a ser posto de lado levianamente, pelo oriental modernizado.

Mas, a visão geral do mundo e do homem, em que a doutrina svadharma é enquadrada, possui dimensões que estão ausentes no existencialismo; por essa razão ela é tal que integra e coloca para além de críticas mais do que um ponto duvidoso nessa filosofia ocidental.

Nesse sentido Barth deve ser posto de lado. Ele conclui em um teocentrismo que lhe permite conectar existencialismo e teologia cristã. Essa teologia, como sabemos, com o tomismo defendia a teoria de "nossa própria natureza" - natura propria - e a ética da fidelidade àquela natureza, que é diferente em cada homem e é desejada por Deus. Mas aqui, em nossa opinião, estamos subindo muito algo, e a referência à divindade teísta, cuja vontade seria responsável por ser dessa ou daquela maneira particular, é uma explicação muito simplória e resumida. O problema existencialista é resolvido somente pela fé, pela confiança em Deus, mesmo que com a promessa de uma visão futura de todas as coisas, e consequentemente também de nós mesmos, do curso da própria vida, "sub specie aeternitatis", uma visão através da qual toda obscuridade desaparecerá. Mas tudo isso é religião ao invés de metafísica, e não se pode provar satisfatória para todos.

Retornemos portanto a Jaspers. Os pontos defeituosos de suas teorias, onde idéias hindus podem auxiliar, concernem a natureza daquela "escolha", que deve ter sido feita no plano atemporal e que nos permite explicar a coexistência, dentro da existência, do finito e do infinito. Acima de tudo o lugar dessa escolha permanece completamente obscuro - não menos do que em Kant e Schopenhauer, que já haviam formulado algo do tipo com suas teorias sobre o "caráter inteligível".

Essa obscuridade é inevitável, devido à prática inexistência, na filosofia ocidental e na própria religião, da doutrina da pré-existência e dos múltiplos estados do ser. Que, antes do nascimento, existia não simplesmente a vontade de Deus, criando a Seu belprazer almas a partir do nada; que ao invés havia pré-existido uma certa entidade-consciência, da qual a existência de cada um de nós na terra é a manifestação - tudo isso é uma "terra incognita" para a maioria dos filósofos e teólogos ocidentais: eles dificilmente sabem qualquer coisa do tipo.

Mas sem referências desse tipo toda a teoria existencialista sofre de uma obscuridade inicial e básica. Incidentalmente deve ser notado que nós falamos da teoria da pré-existência, e não sobre a "reencarnação" ou karma, tais como os teosofistas tem disseminado desde o fim do último século em certos círculos espiritualistas ocidentais. A primeira teoria não tem nada a ver com a segunda - uma possui um caráter metafísico, a outra um caráter popular - e, como eu já expliquei em várias ocasiões, tomada literalmente não explica nada, de fato ela é um erro.

Do primeiro erro o segundo é derivado, que se refere ao sentido do ato por meio do qual nós desejamos ser o que nos encontramos sendo na terra e no tempo, nomeadamente, ao sentido da escolha ou opção transcendental, que toma o lugar da vontade Divina e que é também uma pré-condição necessária para ser possível falar de responsabilidade e para justificar o preceito da fidelidade ao que nós somos.

Agora, nisso Jaspers vê apenas um erro: ter desejado ser indivíduo significa ter desejado limitar a nós mesmos; mas nos limitar significa pecar, pecar contra o infinito, contra o incondicionado, que é fatalmente negado em todas as possibilidades, em todas as maneiras de ser excluídas do horizonte daquela vida singular definida. E com o pecado está naturalmente associada a angústia, a famosa "angústia existencial" do Ego.

Essa é de fato uma idéia estranha, que trai um certo pessimismo, do qual encontramos traços na filosofia grega mais antiga e mesmo no orfismo. Se no início das coisas, se lá no alto, no lado de cá do tempo, tenha havido realmente um poder livre, não podemos compreender que "erro", que "pecado" pode ter havido para ele ter feito a escolha, para ter decidido em favor de um certo modo de existência e não de outro. Que assim outras possibilidades devam ter sido excluídas ou negadas, isso é lógico e inevitável, nem sabemos a quem essa liberdade deve responder.

Em todo caso, falar aqui em "pecado" realmente não faz sentido. Então nós deveríamos considerar como um pecado gerando angústia existencial o fato de que, tendo uma tarde livre, eu escolhi desperdiçá-la em uma boate, o que obviamente me impede de fazer outras coisas igualmente possíveis, tais como ir a um teatro, ou a uma palestra, ou permanecer em casa para estudar, e daí em diante.

O verdadeiro infinito, para nós, e para toda verdadeira metafísica, não é aquilo que é, por assim dizer condenado a sua infinitude estática e indeterminada, mas é aquilo que é, que é o que deseja ser, permanecendo incondicionado em cada ato, retendo o sentido de sua liberdade primordial e seu estado incondicionado e tudo que haja desejado e em que haja se tornado. No mais, uma vez que tenhamos entrado no domínio da temporalidade, devemos ter em mente aquilo que os extremo-orientais chamam de lei das ações e reações concordantes, e que os hindus chamam de karma, mas no sentido verdadeiro, não naquele dos teosofistas e popularizadores.

Seria suficiente entrar nessa ordem de idéias para conferir sobre as noções existencialistas supracitadas um significado inteiramente diferente, para remover delas tudo que é "crise", "angústia", "invocação", ou dispersão em uma ação arbitrária; tudo passaria para um plano de calma, transparência e decisão superiores. E o preceito de sermos nós mesmos, de fidelidade a nós mesmos e à "posição" que temos no reino da temporalidade, adquiriria luz - graças a sua relação com uma ordem verdadeiramente incondicionada e supraindividual.

De fato a perspectiva hindu correspondente - que o antigo Ocidente já conhecia (Plotino, por exemplo, e mesmo Platão antes dele) - pode agir nesse sentido sobre os existencialistas que realmente podem viver seus próprios problemas, e este seria um dos pontos mais significativos de um possível encontro entre o pensamento do Oriente e o pensamento do Ocidente.


10/07/2013

Slavoj Zizek - Problemas no Paraíso

por Slavoj Žižek





Em seus textos de juventude, Marx descreveu a situação alemã como aquela em que a solução de problemas particulares só era possível através da solução universal (revolução global radical). Ali reside a fórmula mais resumida da diferença entre um período reformista e um revolucionário: em um período reformista, a revolução global continua a ser um sonho que, na melhor das hipóteses, sustenta nossas tentativas para aprovar alterações locais – e, no pior dos casos, impede-nos de concretizar mudanças reais –, ao passo que uma situação revolucionária surge quando se torna claro que apenas uma mudança global radical pode resolver os problemas particulares. Nesse sentido puramente formal, 1990 foi um ano revolucionário: tornou-se claro que as reformas parciais dos Estados comunistas não seriam suficientes, que era necessário uma ruptura global radical para resolver até mesmo problemas parciais (fornecimento adequado de alimentos etc.).

Então onde é que estamos, hoje, em relação a essa diferença? Seriam os problemas e protestos dos últimos anos sinais de uma crise global que está gradual e inexoravelmente se aproximando, ou seriam estes apenas pequenos obstáculos que podem ser contidos, se não resolvidos, por meio de intervenções precisas e específicas? A característica mais estranha e ameaçadora sobre eles é que não estão explodindo apenas (ou principalmente) nos pontos fracos do sistema, mas também em lugares que eram até agora tidos como histórias de sucesso. Problemas no Inferno parecem compreensíveis – sabemos por que as pessoas estão protestando na Grécia ou na Espanha, mas por que é que há problemas no Paraíso, em países prósperos ou que, ao menos, passam por um período de rápido desenvolvimento, como a Turquia, a Suécia e o Brasil? Com uma retrospectiva, podemos agora ver que o “problema no Paraíso” original foi a revolução de Khomeini, no Irã, um país considerado oficialmente próspero, na via rápida da modernização pró-ocidental, e principal aliado do Ocidente na região. Talvez exista algo de errado com a nossa percepção de Paraíso.

Antes das contínuas ondas de protestos, a Turquia era quente: um modelo de economia liberal próspera combinado com um Islamismo moderado e de “rosto humano”. Apta para a Europa, mostrou-se um contraste bem-vindo em relação a essa Grécia mais “europeia”, presa em um antigo pântano ideológico e destinada à autodestruição econômica. É verdade que ocorreram alguns sinais ameaçadores (a insistente negação do holocausto armênio, a prisão e acusação de centenas de jornalistas, a situação não resolvida dos curdos, as exigências de uma grande Turquia que iria ressuscitar a tradição do império Osman, a imposição ocasional da legislação religiosa etc.), mas que acabaram todos sendo considerados como pequenas manchas que não deveriam ter sido autorizadas a borrar a imagem internacional de um país em que, aparentemente, a última coisa que se poderia esperar são protestos – eles simplesmente não deveriam ter acontecido.

Então o inesperado aconteceu: explodiram os protestos da Praça Taksim, no centro de Istambul. E hoje todo mundo já sabe que a transformação do tal do parque que faz fronteira com a praça em um centro comercial não foi exatamente o motivo dos protestos; um mal-estar mais profundo foi ganhando força sob a superfície. É o mesmo com os protestos que eclodiram no Brasil em meados de junho: foram sim desencadeados por um pequeno aumento no preço do transporte público, mas continuaram mesmo após essa medida ser revogada. Mais uma vez, os protestos explodiram em um país que, ao menos de acordo com os meios de comunicação, encontrava-se no seu ápice econômico, desfrutando da alta confiança depositada em seu futuro. Somou-se ao mistério o fato de que os protestos foram imediatamente apoiados pela presidente Dilma Roussef, que afirmou estar “encantada” por eles. Sendo assim, quem são os verdadeiros alvos de inquietação dos manifestantes sobre a corrupção e desintegração dos serviços públicos?

Em suma, a Turquia quente de repente se tornou uma fria. Então sobre o que foram realmente os protestos? É crucial não limitá-los a uma sociedade civil secular impondo-se contra um autoritário governo islâmico apoiado pela maioria muçulmana silenciosa: o que complica a situação é o caráter anticapitalista dos protestos (privatização do espaço público) – o eixo fundamental dos protestos turcos foi a ligação entre o islamismo autoritário e a privatização do espaço público de livre mercado. Essa ligação é justamente o que torna o caso da Turquia tão interessante e de longo alcance: os manifestantes intuitivamente sentiam que a liberdade de mercado e o fundamentalismo religioso não são mutuamente exclusivos, que podem muito bem trabalhar lado a lado – um sinal claro de que o “eterno” casamento entre a democracia e o capitalismo aproxima-se do divórcio.

Devemos evitar o essencialismo aqui: não existe um único objetivo “real” perseguido pelos manifestantes, algo capaz de, uma vez concretizado, reduzir a sensação geral de mal-estar (“os protestos são realmente contra o capitalismo global, contra o fundamentalismo religioso, em defesa das liberdades civis e da democracia…”). O que a maioria das pessoas que participaram dos protestos compartilha é um sentimento fluido de desconforto e descontentamento que sustenta e une demandas particulares. Aqui, novamente, o velho lema de Hegel de que “os segredos dos antigos egípcios eram segredos também para os próprios egípcios” mantém-se plenamente: a luta pela interpretação dos protestos não é apenas “epistemológica”; a luta dos jornalistas e teóricos sobre o verdadeiro teor dos protestos é também uma luta “ontológica”, que diz respeito à coisa em si, que ocorre no centro dos próprios protestos. Há uma batalha acontecendo dentro dos protestos sobre o que eles representam em si: é apenas uma luta contra a administração de uma cidade corrompida? Contra o regime islâmico autoritário? Contra a privatização dos espaços públicos? O desfecho dessa situação está em aberto, e será resultado do processo político atualmente em curso.

O mesmo vale para a dimensão espacial dos protestos. Já em 2011, quando uma onda de manifestações estava explodindo por toda a Europa e pelo Oriente Médio, muitos comentaristas insistiam que não deveríamos tratá-los como momentos de um mesmo movimento de protestos globais, pois cada um deles reagia a uma situação específica: no Egito, os manifestantes exigiam aquilo que as sociedades contra as quais o movimento Occupy protestava já tinham (a liberdade e a democracia); até mesmo nos países muçulmanos, a Primavera Árabe no Egito e a Revolução Verde no Irã eram fundamentalmente diferentes: enquanto o primeiro dirigia-se contra um autoritário regime pró-ocidental e corrupto, o segundo condenava o autoritarismo islâmico). É fácil observar como essa particularização de protestos ajuda os defensores da ordem mundial existente: não há nenhuma ameaça contra a ordem global como tal, e sim problemas locais específicos.

Aqui, no entanto, deve-se ressuscitar o bom e velho conceito marxista de totalidade – neste caso, da totalidade do capitalismo global. O capitalismo global é um processo complexo que afeta diversos países de maneiras variadas, e o que unifica tantos protestos em sua multiplicidade é que são todos reações contra as múltiplas facetas da globalização capitalista. A tendência geral do capitalismo global atual é direcionada à expansão do reino do mercado, combinada ao enclausuramento do espaço público, à diminuição de serviços públicos (saúde, educação, cultura) e ao aumento do funcionamento autoritário do poder político. É dentro desse contexto que os gregos protestam contra o reinado do capital financeiro internacional e contra seu próprio Estado clientelista, ineficiente e corrupto, cada vez menos capaz de fornecer serviços sociais básicos; que os turcos protestam contra a comercialização dos espaços públicos e o autoritarismo religioso; que os egípcios protestaram contra o regime autoritário corrupto apoiado pelas potências ocidentais; que os iranianos protestaram contra o fundamentalismo religioso corrupto e ineficiente etc.

O que une esses protestos é o fato de que nenhum deles pode ser reduzido a uma única questão, pois todos lidam com uma combinação específica de (pelo menos) duas questões: uma econômica, de maior ou menor radicalidade (de temáticas que variam de corrupção e ineficiência até outras francamente anticapitalistas), e outra político-ideológica (que inclui desde demandas pela democracia até exigências para a superação da democracia multipartidária usual). E será que o mesmo já não se aplica ao Occupy Wall Street? Sob a profusão de (por vezes, confusas) declarações, o movimento Occupy sugere duas ideias básicas: i) o descontentamento com o capitalismo como sistema – o problema é o sistema capitalista em si, não a sua corrupção em particular –; e ii) a consciência de que a forma institucionalizada de democracia multipartidária representativa não é suficiente para combater os excessos capitalistas, ou seja, que a democracia tem de ser reinventada.

Isto, é claro, não significa que, uma vez que a verdadeira causa dos protestos é o capitalismo global, a única solução seja sobrepor-se diretamente a ele. A alternativa de negociação pragmática com problemas particulares, esperando por uma transformação radical, é falsa, pois ignora o fato de que o capitalismo global é necessariamente inconsistente: a liberdade de mercado anda de mãos dadas com o fato de os Estados Unidos apoiarem seus próprios agricultores com subsídios; pregar democracia anda de mãos dadas com o apoio à Arábia Saudita. Tal inconsistência, essa necessidade de quebrar suas próprias regras, abre um espaço para intervenções políticas: quando o capitalista global é forçado a violar suas próprias regras, abre-se uma oportunidade para insistir que essas mesmas regras sejam obedecidas. Isto é, exigir coerência e consistência em pontos estrategicamente selecionados nos quais o sistema não consegue se manter coerente e consistente é uma forma de pressionar o sistema como um todo. Em outras palavras, a arte da política reside em insistir em uma determinada demanda que, embora completamente “realista”, perturba o cerne da ideologia hegemônica e implica uma mudança muito mais radical, ou seja, que embora definitivamente viável e legítima, é de fato impossível. Era este o caso do projeto de saúde universal de Obama, razão pela qual as reações contrárias foram tão violentas .

Um movimento político nasce de alguma ideia positiva em prol da qual ele se esforça, mas ao longo de seu prórprio curso essa ideia passa por uma transformação profunda (não apenas uma acomodação tática, mas uma redefinição essencial), porque a ideia em si é comprometida no processo, (sobre)determinada em sua materialização [1]. Tomemos como exemplo uma revolta motivada por um pedido de justiça: uma vez que as pessoas tornam-se de fato envolvidas, pecebem que é necessário muito mais para que seja feita a verdadeira justiça do que apenas as limitadas solicitações com que começaram (revogação de algumas leis etc.). O problema, portanto, é: o que exatamente seria esse “muito mais”? A ideia liberal-pragmática é que os problemas podem ser resolvidos gradualmente, um por um (“as pessoas estão morrendo agora em Ruanda, então esqueçamos sobre a luta anti-imperialista e vamos apenas evitar esse massacre”, ou “temos de lutar contra a pobreza e o racismo aqui e agora, sem esperar o colapso da ordem capitalista global”). Recentemente, John Caputo escreveu:

“Eu ficaria imensamente feliz caso os políticos de extrema esquerda dos Estados Unidos fossem capazes de reformar o sistema, oferecendo serviços de saúde universal, efetivamente redistribuindo a riqueza de forma equitativa e com um código tributário revisado, efetivamente restringindo o financiamento de campanha, garantindo os direitos de todos os eleitores, tratando trabalhadores migrantes humanamente, efetuando uma política externa multilateral que integrasse o poder norte-americano no seio da comunidade internacional etc., ou seja, intervir sobre o capitalismo por meio de reformas sérias e de longo alcance. [...] Se depois de tudo isso, [Alain] Badiou e Zizek se queixassem de que um monstro chamado Capital ainda nos persegue, eu tenderia a cumprimentar esse monstro com um bocejo.” [2]

O problema aqui não é a conclusão de Caputo de que, se pudéssemos conseguir tudo isso dentro do capitalismo, não teríamos porque não permanecer onde estamos. O problema é a premissa subjacente de que seja possível obter tudo isso dentro do capitalismo global em sua forma atual. E se os problemas de funcionamento do capitalismo enumerados por Caputo não são apenas distúrbios acidentais, mas estruturalmente necessários? E se o sonho de Caputo for um sonho de universalidade (a ordem capitalista universal), sem sintomas, sem os pontos críticos nos quais sua “verdade reprimida” mostra a própria cara?

Os protestos e revoltas atuais são sustentados pela sobreposição de diferentes níveis, e é esta combinação de propostas que representa sua força: eles lutam pela democracia (“normal”, parlamentar) contra regimes autoritários; contra o racismo e o sexismo, especialmente contra o ódio dirigido a imigrantes e refugiados; pelo estado de bem-estar social contra o neoliberalismo; contra a corrupção na política e na economia (empresas que poluem o meio ambiente etc.); por novas formas de democracia que avancem além dos rituais multipartidários (participação etc.); e, finalmente, questionando o sistema capitalista mundial como tal e tentando manter viva a ideia de uma sociedade não capitalista. Duas armadilhas existem aí, a serem evitadas: o falso radicalismo (“o que realmente importa é a abolição do capitalismo liberal-parlamentar, todas as outras lutas são secundárias”) e o falso gradualismo (“no momento, temos de lutar contra a ditadura militar e por uma democracia básica; todos os sonhos socialistas devem ser postos de lado por enquanto”). A situação é, portanto, devidamente sobredeterminada, e devemos inquestionavelmente mobilizar aqui as velhas distinções maoístas entre a contradição principal e as contradições secundárias – isto é, os antagonismos –, entre os que mais interessam no fim e os que dominam hoje. Por exemplo, há situações concretas em que insistir sobre o antagonismo principal significa perder a oportunidade e, portanto, desferir um golpe à própria luta capital.

Somente a política que leva plenamente em conta a complexidade da sobredeterminação merece o nome de estratégia política. Quando temos de lidar com uma luta específica, a questão chave é: como nosso engajamento (ou a falta dele) nesta luta afetará as outras? A regra geral é que quando uma revolta começa contra um regime semidemocrático opressivo (como foi o caso do Oriente Médio em 2011), é fácil mobilizar grandes multidões com palavras de ordem que facilmente agradam (“pela democracia”, “contra a corrupção” etc.). Mas então aproximamo-nos gradualmente de escolhas mais difíceis: quando a nossa revolta é vitoriosa em seu objetivo direto, percebemos que o que realmente nos incomodou (a nosso falta de liberdade, a humilhação, a corrupção social, a falta de perspectiva de uma vida decente) toma uma nova forma e precisamos então admitir que há uma falha em nosso objetivo em si (por exemplo, de que a democracia “normal” também pode ser uma forma de falta de liberdade), ou que devemos exigir mais do que apenas a democracia política – pois a vida social e a economia também devem ser democratizadas. Em suma, o que à primeira vista tomamos como um fracasso que só atingia um princípio nobre (a liberdade democrática) é afinal percebido como fracasso inerente ao próprio princípio. Essa descoberta – de que o princípio pelo qual lutamos pode ser inerentemente viciado – é um grande passo de pedagogia política.

A ideologia dominante mobiliza aqui todo o seu arsenal para nos impedir de chegar a essa conclusão radical. Seus representantes nos dizem que a liberdade democrática traz consigo sua própria responsabilidade e que esta tem um preço – logo, que é um sinal de imaturidade esperar tanto assim da democracia. Dessa forma, nos culpam por nosso fracasso: segundo eles, em uma sociedade livre somos todos capitalistas investindo na própria vida, quando decidimos, por exemplo, nos focar mais em nossa educação do que em diversão para que sejamos bem sucedidos. Em sentido político mais direto, os Estados Unidos perseguem coerentemente uma estratégia de controle de danos em sua política externa, por meio da recanalização de levantes populares para formas capitalistas-parlamentares aceitáveis: foi o bem sucedido caso da África do Sul, após a queda do regime do apartheid; nas Filipinas, depois da queda de Marcos; na Indonésia, após Suharto etc. É aqui que a política propriamente dita começa: a questão é como seguir adiante depois de finda essa primeira e entusiasmada etapa, como dar o próximo passo sem sucumbir à catástrofe da tentação “totalitária” – como ir além de Mandela sem se tornar Mugabe?

Então, o que significaria isso em um caso concreto? Vamos voltar aos protestos de dois países vizinhos, Grécia e Turquia. Numa primeira abordagem, eles podem parecer totalmente diferentes: a Grécia está enroscada nas políticas ruinosas da austeridade, enquanto a Turquia goza de um boom econômico e está emergindo como uma nova superpotência regional. Mas se, no entanto, cada Turquia gera e contém sua própria Grécia, suas próprias ilhas de miséria? Em uma de suas Elegias de Hollywood, Brecht escreveu sobre essa aldeia (como ele a chama): 

A aldeia de Hollywood foi planejada de acordo com a noção
Que as pessoas desse lugar fazem do Céu. Nesse lugar
Elas chegaram à conclusão de que Deus,
Necessitando de um Céu e de um Inferno, não precisou
Planejar dois estabelecimentos, mas
Apenas um: o Céu. Que esse,
Para os pobres e infortunados, funciona
Como Inferno. [3]

Será que o mesmo não se aplica à aldeia global de hoje, como os casos exemplares do Qatar ou de Dubai, onde há glamour para os ricos e quase escravidão para os trabalhadores imigrantes? Não é de se admirar, então, que um olhar mais atento revele a semelhança subjacente entre a Turquia e a Grécia: privatizações, fechamento de espaços públicos, o desmantelamento dos serviços sociais, a ascensão da política autoritária (basta comparar a ameaça do fechamento da TV pública na Grécia com os sinais de censura na Turquia). Nesse nível elementar, os manifestantes gregos e turcos estão engajados na mesma luta. O verdadeiro evento teria sido então para coordenar ambas, para rejeitar as tentações “patrióticas”, recusar-se a se preocupar com as preocupações de outros (isto é, deixar de enxergar a Grécia e a Turquia como inimigos históricos) e organizar manifestações comuns de solidariedade.

Talvez o próprio futuro dos protestos em curso dependa da capacidade de se organizar essa solidariedade global.