11/07/2013

Julius Evola - A Doutrina Svadharma & O Existencialismo

por Julius Evola



Em um outro ensaio eu apontei para a importância de esclarecer os pontos em que uma conexão entre as doutrinas do Oriente tradicional e certas tendências intelectuais bastante avançadas do Ocidente emerge. Eu então disse que em muitos casos um conhecimento sério e não amador das primeiras poderia servir bem para completar as segundas, liberando-as de seu aspecto enquanto opiniões de uma natureza puramente individual e especulativa, e também de tudo afetado por uma atmosfera de crise, tal como é de fato a de nossa própria civilização ocidental moderna. Desse jeito seria possível ascender daquelas intuições casuais, alcançadas por europeus que lutam em um estado de profundo labor crítico, ao plano de um conhecimento objetivo e suprapessoal, que deveria ser definido como "sabedoria" ao invés de "filosofia".

Eu aqui quero lidar nesse sentido com certos aspectos específicos de uma tendência de pensamento, muito na moda hoje, conhecida como "existencialismo", selecionando como uma contraparte para ela a doutrina hindu do "svadharma" [o próprio dharma ou dever em relação à ordem cósmica].

Com referência ao existencialismo eu naturalmente não considerarei suas formas excêntricas e boêmias, de um caráter predominantemente literário, que infelizmente são aquelas as quais essa tendência em boa parte deve sua popularidade. Eu gostaria, ao invés, de me referir ao existencialismo sério, filosófico, que tomou forma mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, e que, após Soren Kierkegaard (e de certa forma Nietzsche), teve como seus principais intérpretes Jaspers, Heidegger e Barth. Primeiro tentarei apresentar certas idéias básicas do existencialismo da maneira mais acessível. Essa tarefa não é fácil em um artigo pequeno, por causa da natureza peculiar, quase esotérica, da terminologia dos existencialistas, onde muitas palavras são costumeiramente usadas com significados completamente distintos dos usuais.

A base do existencialismo reside na concepção de existência. Agora, essa expressão não deve ser tomada no sentido comum, simples. A existência, segundo Kierkegaard, significa o ponto paradoxal e contraditório, em que o finito e o infinito, o temporal e o eterno estão implicados e se encontram. Por existência aqui naturalmente se entende aquela do Ego, do ente individual, que é portanto considerado uma síntese de elementos contraditórios. Sua situação espiritual é tal que ele não pode se afirmar (o ente finito que existe no tempo), sem também afirmar o "outro" em relação a si (o incondicionado, o temporário, o ente absoluto); mas, por outro lado, ele não pode afirmar o transcendente, sem também afirmar a si mesmo, o ente existindo no tempo. Duvidar de um significa também duvidar do outro. Essa é a premissa geral do existencialismo, como afirmado por todos os seus principais intérpretes, de Kierkegaard a Lavelle, de Barth a Jaspers. Aqui é adequado aponta para a harmonia dessa linha de pensamento com as perspectivas do Hinduísmo tradicional. Em primeiro lugar, há a questão do método: o existencialismo busca alcançar uma intimidade no próprio centro do indivíduo, o que deve ao mesmo tempo ter o valor de uma experiência metafísica. Mas isso pode-se dizer ser o método de todo o yoga upanishádico e também da filosofia budista, à qual nós bem poderíamos aplicar a fórmula de um "experimentalismo transcendental". Em segundo lugar é óbvio que esse ponto de encontro ambíguo entre o centro de um ente finito e o incondicionado mais ou menos nos relembra o atma, que apresenta as características atuais, por assim dizer, de uma "transcendência imanente", de algo que é o Ego, e ao mesmo tempo um super-Ego, o eterno Brahman.

Não obstante, o paradoxo da "existência", compreendido no sentido supramencionado, assume a forma de um problema. Nós nos encontramos diante de uma posição insustentável de equilíbrio instável, que deve ser resolvida em função de um ou de outro dos dois termos, que se encontram no indivíduo, mas parecem excluir, contradizer um ao outro também: o condicionado e o incondicionado, o temporal e o não-temporal.

As duas soluções possíveis correspondem a duas direções de fato seguidas pelo existencialismo, em cuja conexão eu posso mencionar os nomes de Heidegger e Sartre por um lado, de Jaspers e principalmente Barth pelo outro.

A solução própria da filosofia de Heidegger é a do homem que tenta encontrar o incondicionado no transitório. A questão segundo esse pensador, se apresenta como segue: a existência no tempo significa existir como indivíduo e como ser individualizado. Mas individualidade significa particularidade, significa a afirmação e assunção de um certo grupo de possibilidades, à exclusão de outras, a totalidade das outras; mas estas subsistem, elas vivem dentro do indivíduo, elas constituem o senso de infinito dentro dele, e tendem a encontrar expressão, a se realizarem. Isso determina o movimento do Ego no tempo, um movimento concebido no sentido de emergir de nós mesmos (de nossa própria particularidade definida), como uma tendência a realizar tudo que fomos excluídos de nós mesmos, a viver através disso em uma sucessão de experiências: uma sucessão que evolui enquanto tempo, e que deveria representar o substituto para a totalidade, para tudo que o indivíduo, enquanto tal, não pode ser simultaneamente. Naturalmente, à infinitude de possibilidades corresponde necessariamente a infinitude de tempo, e tudo isso dá em alguma medida o sentimento de se perseguir a própria sombra: uma busca sem jamais alcançar, sem jamais inteiramente adquirir posse sobre si, de modo a acalmar e resolver a antítese e a "angústia" própria da "existência".

Essa solução de Heidegger assim termina em um tipo de justificativa metafísica da santificação daquilo que, em termos hindus, pode ser chamado de samsara, a consciência samsarica. Isso nos parece uma posição perigosa, na medida em que ela siga rumo às várias filosóficas ocidentais modernas da imanência, da "Vida", do devir, uma posição que, em nossa opinião, dificilmente se poderia conectar com qualquer concepção tradicional do mundo. De fato, um sombrio pessimismo não disfarçado perpassa toda a filosofia de Heidegger.

A segunda tendência existencialista, aquela de Jaspers e Barth, está em uma situação diferente. Partindo de premissas mais ou menos similares, é dada importância ao conceito de que, se o indivíduo representa uma possibilidade particular em meio a uma infinidade de outras, que residem fora dele, essa possibilidade definida emana da escolha. Essa escolha naturalmente nos traz a algo que é anterior ao tempo e anterior à existência no tempo. A solução da antítese é dada pela "ética da fidelidade": aquilo que somos no tempo devemos assumir, nós devemos considerar "nossa própria essência como idêntica a nossa própria existência", nós devemos permanecer verdadeiros com o que somos, tendo o pressentimento de que isto é algo eterno, que, através de nós mesmos, se torna em si "temporalizado", que tudo que aparece como necessidade, como destino, como dureza, nos envia para algo que é desejado, a um ente que o é porque escolheu ser, assumindo essa natureza particular, excluindo toda outra natureza possível.

Assim, junto com o preceito de fidelidade a nós mesmos, há, no existencialismo, também o preceito da clarificação (Erhellung). A regra da vida desse existencialismo não é a busca por algo mais, a dispersão de nós mesmos na multiplicidade infinita e problemática das perspectivas que se apresentam no mundo exterior, e muito menos significa ela a busca no tempo - como afirma Heidegger - da miragem do incondicionado perpetuamente em fuga; nós deveríamos ao invés assumir nossa própria perspectiva ou visão de mundo, tomar e realizar seu significado, o que é equivalente a dizer sua raiz transcendental, aquela vontade pela qual eu sou o que sou, e que na existência só podemos concretizar com base em seus traços, seus efeitos. Então a existência aparecerá meramente como a perseguição no tempo de algo que existe antes do tempo, e cada necessidade ou finitude se revelará como a consequência do ato primordial de um poder livre.

Quem quer que conheça a doutrina do dharma e do svadharma não pode deixar de notar as suas analogias com essas perspectivas existencialistas. Segundo a concepção hindu, cada ente possui uma natureza própria. Não é mero acaso que sejamos o que sejamos e não outra coisa. A essa natureza - a não ser que sintamos uma vocação para uma ascensão superior - devemos permanecer fiéis; a fidelidade a nossa própria natureza, qualquer seja ela, é o maior alto culto que podemos render ao Espírito Supremo.

Assim, sermos nós mesmos, assumir nossa própria posição e cuidar de nossa própria perfeição individual, sem nos deixarmos distrair ou seduzir por interesses, objetivos ou valores externos. Não há natureza propriamente nossa, um dharma, superior ou inferior a outro, se tomarmos - como devemos - o infinito, aquilo que está além do tempo, como medida. Daí trair o próprio dharma - a lei da própria natureza - para assumir o dharma - a maneira de ser, a lei, o caminho - de outro é erro e falha: falha, não em um sentido moral, mas no sentido ontológico. É uma ofensa contra a ordem cósmica - rta - equivalente a violência contra nós mesmos; porque assim entramos em contradição com nós mesmos, nós queremos ser aqui, no tempo, algo diferente do que quisermos ser para além de todo o tempo. O efeito disso é desintegração, e portanto uma queda na hierarquia dos entes (simbolicamente, inferno). Estes são conceitos hindus tradicionais que encontramos expressos nas Leis de Manu, e, de forma ainda mais definitiva, no Bhagavad Gita. Nós sabemos que na Índia elas não permaneceram mera teoria e filosofia, mas exerceram uma poderosa influência sobre a vida individual e coletiva, constituindo, entre outras coisas, a base ética e metafísica do sistema de castas, daquele sistema que tem sido tão pouco compreendido por ocidentais (ainda que na Idade Média se tivesse algo do mesmo tipo), enquanto está prestes a ser posto de lado levianamente, pelo oriental modernizado.

Mas, a visão geral do mundo e do homem, em que a doutrina svadharma é enquadrada, possui dimensões que estão ausentes no existencialismo; por essa razão ela é tal que integra e coloca para além de críticas mais do que um ponto duvidoso nessa filosofia ocidental.

Nesse sentido Barth deve ser posto de lado. Ele conclui em um teocentrismo que lhe permite conectar existencialismo e teologia cristã. Essa teologia, como sabemos, com o tomismo defendia a teoria de "nossa própria natureza" - natura propria - e a ética da fidelidade àquela natureza, que é diferente em cada homem e é desejada por Deus. Mas aqui, em nossa opinião, estamos subindo muito algo, e a referência à divindade teísta, cuja vontade seria responsável por ser dessa ou daquela maneira particular, é uma explicação muito simplória e resumida. O problema existencialista é resolvido somente pela fé, pela confiança em Deus, mesmo que com a promessa de uma visão futura de todas as coisas, e consequentemente também de nós mesmos, do curso da própria vida, "sub specie aeternitatis", uma visão através da qual toda obscuridade desaparecerá. Mas tudo isso é religião ao invés de metafísica, e não se pode provar satisfatória para todos.

Retornemos portanto a Jaspers. Os pontos defeituosos de suas teorias, onde idéias hindus podem auxiliar, concernem a natureza daquela "escolha", que deve ter sido feita no plano atemporal e que nos permite explicar a coexistência, dentro da existência, do finito e do infinito. Acima de tudo o lugar dessa escolha permanece completamente obscuro - não menos do que em Kant e Schopenhauer, que já haviam formulado algo do tipo com suas teorias sobre o "caráter inteligível".

Essa obscuridade é inevitável, devido à prática inexistência, na filosofia ocidental e na própria religião, da doutrina da pré-existência e dos múltiplos estados do ser. Que, antes do nascimento, existia não simplesmente a vontade de Deus, criando a Seu belprazer almas a partir do nada; que ao invés havia pré-existido uma certa entidade-consciência, da qual a existência de cada um de nós na terra é a manifestação - tudo isso é uma "terra incognita" para a maioria dos filósofos e teólogos ocidentais: eles dificilmente sabem qualquer coisa do tipo.

Mas sem referências desse tipo toda a teoria existencialista sofre de uma obscuridade inicial e básica. Incidentalmente deve ser notado que nós falamos da teoria da pré-existência, e não sobre a "reencarnação" ou karma, tais como os teosofistas tem disseminado desde o fim do último século em certos círculos espiritualistas ocidentais. A primeira teoria não tem nada a ver com a segunda - uma possui um caráter metafísico, a outra um caráter popular - e, como eu já expliquei em várias ocasiões, tomada literalmente não explica nada, de fato ela é um erro.

Do primeiro erro o segundo é derivado, que se refere ao sentido do ato por meio do qual nós desejamos ser o que nos encontramos sendo na terra e no tempo, nomeadamente, ao sentido da escolha ou opção transcendental, que toma o lugar da vontade Divina e que é também uma pré-condição necessária para ser possível falar de responsabilidade e para justificar o preceito da fidelidade ao que nós somos.

Agora, nisso Jaspers vê apenas um erro: ter desejado ser indivíduo significa ter desejado limitar a nós mesmos; mas nos limitar significa pecar, pecar contra o infinito, contra o incondicionado, que é fatalmente negado em todas as possibilidades, em todas as maneiras de ser excluídas do horizonte daquela vida singular definida. E com o pecado está naturalmente associada a angústia, a famosa "angústia existencial" do Ego.

Essa é de fato uma idéia estranha, que trai um certo pessimismo, do qual encontramos traços na filosofia grega mais antiga e mesmo no orfismo. Se no início das coisas, se lá no alto, no lado de cá do tempo, tenha havido realmente um poder livre, não podemos compreender que "erro", que "pecado" pode ter havido para ele ter feito a escolha, para ter decidido em favor de um certo modo de existência e não de outro. Que assim outras possibilidades devam ter sido excluídas ou negadas, isso é lógico e inevitável, nem sabemos a quem essa liberdade deve responder.

Em todo caso, falar aqui em "pecado" realmente não faz sentido. Então nós deveríamos considerar como um pecado gerando angústia existencial o fato de que, tendo uma tarde livre, eu escolhi desperdiçá-la em uma boate, o que obviamente me impede de fazer outras coisas igualmente possíveis, tais como ir a um teatro, ou a uma palestra, ou permanecer em casa para estudar, e daí em diante.

O verdadeiro infinito, para nós, e para toda verdadeira metafísica, não é aquilo que é, por assim dizer condenado a sua infinitude estática e indeterminada, mas é aquilo que é, que é o que deseja ser, permanecendo incondicionado em cada ato, retendo o sentido de sua liberdade primordial e seu estado incondicionado e tudo que haja desejado e em que haja se tornado. No mais, uma vez que tenhamos entrado no domínio da temporalidade, devemos ter em mente aquilo que os extremo-orientais chamam de lei das ações e reações concordantes, e que os hindus chamam de karma, mas no sentido verdadeiro, não naquele dos teosofistas e popularizadores.

Seria suficiente entrar nessa ordem de idéias para conferir sobre as noções existencialistas supracitadas um significado inteiramente diferente, para remover delas tudo que é "crise", "angústia", "invocação", ou dispersão em uma ação arbitrária; tudo passaria para um plano de calma, transparência e decisão superiores. E o preceito de sermos nós mesmos, de fidelidade a nós mesmos e à "posição" que temos no reino da temporalidade, adquiriria luz - graças a sua relação com uma ordem verdadeiramente incondicionada e supraindividual.

De fato a perspectiva hindu correspondente - que o antigo Ocidente já conhecia (Plotino, por exemplo, e mesmo Platão antes dele) - pode agir nesse sentido sobre os existencialistas que realmente podem viver seus próprios problemas, e este seria um dos pontos mais significativos de um possível encontro entre o pensamento do Oriente e o pensamento do Ocidente.