por Tomislav Sunic
O propósito desse ensaio é examinar criticamente as dinâmicas históricas do liberalismo e seu impacto nas políticas ocidentais contemporâneas. Esse ensaio argumentará a) que o liberalismo hoje garante um "recuo" ideológico confortável para membros da elite intelectual e para tomadores de decisão cansados das disputas teológicas e ideológicas que abalaram a política ocidental por séculis; b) que o liberalismo pode fazer compromissos com diversos tipos de socialismo em praticamente todas as questões, exceto na liberdade do mercado; c) que o liberalismo prospera expandindo a arena econômica para todos os aspectos da vida e todos os cantos do mundo, assim gradualmente apagando o senso de comunidade nacional e histórica que anteriormente garantiam ao indivíduo um senso básico de identidade e segurança psicológica. Esse ensaio também questionará se o liberalismo, apesar de seu sucesso notável no reino da economia, garante um baluarte contra ideologias não-democráticas, ou se sob certas condições ele pode, em verdade, estimular seu crescimento.
Após a Segunda Guerra Mundial, o liberalismo e o marxismo emergiram como as duas ideologias inquestionavelmente dominantes após seu sucesso militar sobre seu rival comum, o fascismo. Isso colocou-os em conflito direto um com o outro, já que cada um disputava, a partir de seu próprio ponto de vista, de que o único modelo político válido era o seu próprio, negando a validade da tese do oponente. Beaud escreve que quando as idéias liberal e socialista começaram a emergir, a primeira rapidamente disfarçou-se em ciência ("a lei da oferta e da demanda", "a lei de ferro dos salários"), enquanto a segunda teve a tendência a degenerar em misticismo e sectarianismo. (1)
Alguns críticos do liberalismo, tal como o economista francês François Perraoux, apontaram que segundo algumas suposições liberais extremas, "tudo (que) tem acontecido desde o início do tempo (pode ser atribuído ao capitalismo) como se o mundo moderno tivesse sido construído por industrialistas e comerciantes consultando seus livros de contabilidade e desejando colher lucros". (2) Atitudes subjetivas similares, ainda que de um ângulo ideológico diferente, podem muitas vezes ser ouvidas entre teóricos marxistas, que na análise do capitalismo liberal recorrem a juízos de valor coloridos pela dialética marxistas e acompanhados pela rejeição da interpretação liberal dos conceitos de igualdade e liberdade. "O fato de que o método dialético pode ser usado para cada propósito", afirma o filósofo austríaco Alexander Topitsch, "explica sua atração extraordinária e sua disseminação global, que só pode ser comparada ao sucesso da doutrina dos direitos naturais do século XVIII."(3) Não obstante, apesar de suas discordâncias ideológicas reais, liberais, neoliberais, socialistas e "sócio-neoliberais", aconcordam, ao menos em tese, em reclamar uma herança comum do racionalismo, e na rejeição de todas as ideologias não-democráticas, especialmente o racialismo. Mais cedo nesse século, Georges Sorel, o teórico francês do anarco-sindicalismo, afirmou com ironia que "tentar protestar contra a ilusão do racionalismo significa ser imediatamente categorizado como inimigo da democracia". (4)
O conflito prático entre as respectivas virtudes do liberalismo e do socialismo está hoje aparentemente vindo a um fim, na medida em que alguns dos principais regimes marxistas movem-se na direção de uma liberalização de suas economias, ainda que o debate ideológico não esteja de modo algum pacificado entre os intelectuais. Indubitavelmente, a popularidade do socialismo marxista está hoje em declínio global entre aqueles que tem que encarar o problema de fazê-lo funcionar. Em consequência, apesar do fato de que o apoio ao marxismo entre os intelectuais ocidentais estava em seu ápice quando a repressão nos países marxistas estava em seu máximo, o liberalismo hoje parece ter sido aceito como local de "refúgio" por muitos intelectuais que, desiludidos com a falha da repressão nos países marxistas, não obstante continuam a sustentar os princípios socialistas do universalismo e do igualitarismo.
Como François B. Huyghe comenta, as políticas do estado de bem-estar social aceitas pelos liberais implementaram muitos dos programas socialistas que patentemente falharam em países comunistas. (5) Assim, o liberalismo econômico não apenas é popular entre muitos intelectuais de esquerda (incluindo números de intelectuais do leste europeu) porque conseguiu resultados econômicos tangíveis nos países ocidentais, mas também devido ao fato de que sua contraparte socialista falou na prática, deixando o modelo liberal como a única alternativa inconteste. "A principal razão para as vitórias do liberalismo econômico", escreve Kolm, "são devidas ao fato de que todo funcionamento defeituoso do modelo não-liberal de realização social garante a consideração da alternativa liberal de realização social. Os exemplos de tais casos abundam no Ocidente como no Oriente; no Norte como no Sul". (6)Na ausência de outros modelos de sucesso, e na época de um pronunciado processo de "desideologização" por toda a Europa e América, o liberalismo moderno acabou sendo um modus vivendi para os adversários outrora beligerantes. Mas devemos então concluir que o eclipse de outros modelos e ideologias deve significar o fim da política e inaugurar o início da Era do Liberalismo?
Muito antes de o milagre do liberalismo moderno tornar-se óbvio, um certo número de escritores observou que o liberalismo continuaria a encarar uma crise de legitimidade mesmo se seus adversários socialistas e fascistas desaparecessem milagrosamente. (7) Mais recentemente, Serge-Christophe Kolm afirmou que o liberalismo e o socialismo não devem ser vistos em oposição dialética, mas sim como a complementação um do outro. Kolm escreve que os ideais do liberalismo e do marxismo "são quase idênticos dado que são fundados nos valores de liberdade, e coincidem nas aplicações de quase tudo, exceto em um tema que é logicamente pontual, ainda que factualmente enorme nesse mundo: salário, o lugar do indivíduo e de si mesmo". (8) Alguns até mesmo propuseram a hipótese de que o liberalismo e o socialismo são a face e a contraface do mesmo fenômeno, já que o liberalismo contemporâneo conseguiu realizar, a longo prazo e de modo irrepreensível, muitos dos mesmos objetivos que o socialismo marxista a curto prazo, empregando meios repressivos, não conseguiu realizar. Porém, diferenças existem.
Não apenas ideólogos socialistas atualmente temem que a introdução de medidas de livre-mercado poderiam significar o fim do socialismo, mas o socialismo e o liberalismo discordam fundamentalmente na definição de igualdade. Teoricamente, ambos subscrevem à igualdade constitucional, legal, política e social; porém sua principal diferença está em suas perspectivas opostas concernentes à distribuição de benefícios econômicos, e assim, em sua definição correspondente de igualdade econômica. Diferentemente do liberalismo, o socialismo não está satisfeito em demandar igualdade política e social, mas insiste na distribuição igual de bens econômicos. Marx repetidamente criticou a definição liberal de direitos iguais, da qual ele uma vez disse que "esse direito igual é direito desigual para trabalho desigual. Esse direito não reconhece diferenças de classe porque todo mundo é apenas um trabalhador como todos os outros; mas ele tacitamente reconhece talentos individuais desiguais, e consequentemente sustenta habilidades individuais como privilégios naturais". (9) Apenas em um estágio superior do comunismo, após a presente subordinação dos indivíduos ao capital, desaparecerão os direitos burgueses, e a sociedade escreverá em sua bandeira: "De cada um segundo sua capacidade, para cada um segundo sua necessidade". (10)
Apesar dessas diferenças, pode ser dito que, em geral, as idéias socialistas sempre emergiram como satélites inevitáveis e dependentes do liberalismo. Assim que as idéias liberais fizeram seus avanços pela cena feudal européia, o palco para os apetites socialistas foi arrumado - apetites que subsequentemente provaram-se grandes demais para ser preenchidos. Assim que a burguesia primitiva assegurou sua posição, liquidando guildas e corporações feudais junto com a aristocracia feudal, ela teve que encarar críticos que acusavam-a de sufocar liberdades políticas e a igualdade econômica, e de transformar o recém liberado camponês em um escravo fabril. No século XVII, afirma Lakoff, as idéias burguesas de igualdade e liberdade imediatamente garantiram para o Quarto Estado munição ideológica, que foi rapidamente expressa por numerosos movimentos revolucionários proto-socialistas. (11) Sob tais circunstâncias de igualdade falha, não deve vir como surpresa que o fardo mais pesado para os camponeses era a hipocrisia da burguesia, que havia exaltado os direitos de igualdade enquanto lutava para deslocar a aristocracia do poder; porém o minuto que chegou ao poder, prudentemente absteve-se de fazer mais qualquer demanda por igualdade em afluência. David Thomson afirmou com ironia que "muitos daqueles que defenderia até a morte os direitos de liberdade e igualdade (tais como muitos liberais ingleses e americanos) encolhem-se em horror diante da noção de igualitarismo econômico". (12) Também, Sorel indicou que em geral, o abuso de poder por uma aristocracia hereditária é menos danoso ao sentimento jurídico de um povo que os abusos cometidos por um regime plutocrático, (13) acrescentando que "nada arruinaria tanto o respeito pelas leis quanto os espetáculos de injustiças cometidas por aventureiros que, com a cumplicidade de tribunais, tornaram-se tão ricos que podem comprar políticos". (14)
As dinâmicas das revoluções liberais e socialistas ganharam vapor nos séculos XVIII e XIX, notavelmente uma época de grande fermento revolucionário na Europa. A revolução liberal de 1789 na França rapidamente deu lugar à revolução socialista jacobina de 1792; "o liberal" Condorcet foi suplantado pelo "comunista" Babeuf, e o golpe relativamente exangue girondino foi seguido pela avalanche de chacinas sob o terror jacobino e a revolta dos "sans-culottes". (15) Similarmente, uns cem anos depois, a revolução de fevereiro na Rússia foi seguida pela acelerada revolução de outubro, substituindo o social-democrata, Kerensky, pelo comunista Lênin. O liberalismo devorou a antiga aristocracia, liquidou as corporações de ofício medievais, alienou os trabalhadores, e então por sua vez foi frequentemente suplantada pelo socialismo. É, portanto, interessante observar que após sua competição de séculos com o socialismo, o liberalismo está hoje mostrando mlehores resultados tanto nos domínios ecomômicos como éticos, enquanto o credo marxista parece estar em declínio. Mas tornou-se o liberalismo o único modelo aceitável para todos os povos na Terra? Como pode ser que o liberalismo, como uma incarnação do ideal humanitário e do espírito democrático, sempre criou inimigos tanto na esquerda como na direita, ainda que por razões diferentes?
Livre Mercado: A "Religião" do Liberalismo
O liberalismo pode fazer muitos "acordos" ideológicos com outros ideologias, mas uma esfera na qual ele permanece intransigente é na defesa do livre mercado e na livre troca de bens e commodities. Indubitavelmente, o liberalismo não é uma ideologia como outras ideologias, e ademais, ele não possui desejo de impor uma visão absoluta e exclusiva do mundo enraizada em uma clivagem dualista entre bem e mal, o proletariado e a burguesia, os "escolhidos e os não-escolhidos". Ademais, o ideal liberal carece daquele telos distintivo tão típico das ideologias socialista e fascista. Contrariamente a outras ideologias, o liberalismo é em geral cético de qualquer concentração de poder político, porque na "inflação" da política, e no fervor ideológico, ele afirma ver sinais de autoritarismo e mesmo, como alguns autores afirmaram, totalitarismo. (16) O liberalismo parece estar melhor adequado a uma política secularizada, que Carl Schmitt alternativamente chamou de "estado mínimo" (Minimalstaat), e stato neutrale. (17) Segue-se que em uma sociedade em que a produção foi racionalizada e a interação humana é sujeita a constante reificação (Vergegenstandlichung), o liberalismo não pode (ou não quer) adotar a mesma "Vontade de Poder" que tão normalmente caracteriza outras ideologias. Ademais, é razoavelmente difícil visualizar como tal sociedade pode demandar de seus cidadãos que sacrifiquem seus bens e suas vidas no itneresse de algum ideal político ou religioso. (18) O livre mercado é visto como um "campo neutro" (Neutralgebiet), permitindo apenas o mínimo do conflito ideológico, que objetiva apagar todos os conflitos ideológicos, propondo que todas as pessoas são seres racionais cuja busca por felicidade é melhor assegurada pela busca pacífica de objetivos econômicos. Em uma sociedade liberal, individualista, cada crença política é mais cedo ou mais tarde reduzida a uma "coisa privada" cujo árbitro último é o próprio indivíduo. O teórico marxista Habermas chega a uma conclusão razoavelmente similar, quando ele afirma que os sistemas liberais modernos adquiriram um caráter negativo: "A política é orientada para a remoção de disfuncionalidades e de riscos perigosos ao sistema; em outras palavras a política não é orientada para a implementação de objetivos práticos, mas para a solução de questões tecnológicas." (19) O mercado pode então ser visto como um construto social ideal cujo principal propósito é limitar a arena política. Consequentemente, cada falha imaginável no mercado é geralmente explicada por afirmações de que "há ainda muita política" atrapalhando a livre troca de bens e commodities. (20)
Provavelmente uma das afirmações mais cínicas sobre o liberalismo e o "fetichismo monetário" liberal, não veio de Marx, mas do ideólogo fascista Julius Evola, que uma vez escreveu: "Diante do dilema clássico, seu dinheiro ou sua vida, o burguês paradoxalmente será aquele a responder: 'Leve minha vida, mas poupe meu dinheiro.'" (21) Mas a despeito de seu caráter supostamente agnóstico e apolítico, seria errado afirmar que o liberalismo não possui "raízes religiosas". De fato, muitos autores afirmaram que a implementação do liberalismo foi mais bem sucedida precisamente naqueles países que são conhecidos por forte adesão ao monoteísmo bíblico. Mais cedo nesse século, o sociólogo alemão Werner Sombart afirmou que os postulados liberais da economia e ética derivam do legalismo judaico-cristão, e que liberais concebem o comércio, o dinheiro a "santa economicidade" ("heilige Wirtschaftlichkeit") como o caminho ideal para a salvação espiritual.(22) Mais recentemente, o antropólogo francês Louis Dumont, escreveu que o individualismo liberal e o economismo são a transposição secular das crenças judaico-cristãs, notando que "assim como a religião deu origem à política, demonstrar-se-á que a política por sua vez deu origem à economia". (23)
Daí em diante, escreve Dumont em seu livro De Mandeville a Marx, segundo a doutrina liberal, a busca do homem por felicidade cada vez mais veio a estar associada com a busca desimpedida de atividades econômicas. Na política moderna, ele opina, a substituição do homem como um indivíduo pela idéia do homem como um ser social foi tornada possível pelo Judaico-Cristianismo: "a transição foi então feita possível, de uma ordem social holística a um sistema político gerado por consenso como uma superestrutura sobre uma base econômica ontológica dada". (24) Em outras palavras, a idéia de responsabilidade individual perante Deus, deu origem, após um longo período de tempo, ao indivíduo e à idéia de que responsabilidade econômica constitui o elemento decisivo do contrato-social liberal - uma noção totalmente ausente de sociedades orgânicas e tradicionais nacionalisticamente orientadas. (25) Assim Emanuel Rackman argumenta que o Judaico-Cristianismo desempenhou um papel importanto no desenvolvimento do liberalismo ético nos EUA: "Essa foi a única fonte na qual Thomas Paine pôde confiar em seus Direitos do Homem para apoiar o dogma da Declaração Americana de Independência de que todos os homens são criados iguais. E esse dogma era básico no Judaísmo." (26) Afirmações similares são feitas por Konvitz em Judaísmo e a Idéia Americana, na qual ele argumenta que a América moderna deve muito às escrituras sagradas judaicas. (27) Feuerbach, Sombart, Weber, Troeltsch, e outros similarmente argumentaram que o Judaico-Cristianismo teve uma influência considerável sobre o desenvolvimento histórico do capitalismo liberal. Por outro lado, quando considera-se os recentes sucessos econômicos de vários países asiátios no nas margens do Pacífico, cujo ímpeto expansionista muitas vezes obscurece as conquistas econômicas de países marcados pelo legado judaico-cristão, deve-se tomar cuidado para não equiparar sucesso econômico únicamente com formas judaico-cristãos de sociedade liberal.
Oportunidade Econômica Igual ou a Oportunidade de Ser Desigual?
A força do liberalismo e da economia de livre mercado está no fato de que a idéia liberal permite que todas as pessoas desenvolvam seus talentos como acharem melhor. O livre mercado ignora toda hierarquia e diferenciação social, exceto aquelas diferenças que resultam da realização de transações econômicas. Liberais argumentam que todas as pessoas tem a mesma oportunidade econômica, e que consequentemente, cada indivíduo, ao fazer melhor uso de seus talentos e empreendedorismo, sozinho determinará seu status social. Mas críticos do liberalismo muitas vezes afirmam que essa fórmula é em si mesma dependente dos termos e condições sob as quais os princípios da "oportunidade econômica" podem operar. John Schaar afirma que o liberalismo transformou substancialmente a arena social na pista de corrida econômica, e que a fórmula deve ler: "igualdade de oportunidade para todos desenvolverem aqueles talentos que são muito valorizados por um dado povo em um dado tempo". (28) Segundo a lógica de Schaar, quando os desejos do mercado determinam que itens, commodities ou talentos humanos específicos são os mais em demanda, ou são mais comercializáveis do que outros, seguir-se-á que indivíduos carentes desses talentos ou commodities experimentarão um senso agudo de injustiça. "Cada sociedade", continua Schaar, "encoraja alguns talentos e desencoraja outros. Sob a doutrina da oportunidade igual, os únicos homens que podem realizar a si mesmos e desenvolver suas habilidades ao máximo são aqueles que são capazes e ávidos por fazer o que a sociedade ordena-lhes que façam". (29) Isso significa que sociedades liberais muito provavelmente estarão mais contentes quando seus membros partilham de um background homogêneo e uma cultura comum. Porém o liberalismo moderno busca romper as barreiras nacionais e promover a conversão de Estados-Nação até então homogêneos em estados políticos multiétnicos e altamente heterogêneos. Assim, o potencial para disputa e insatisfação é aumentada pela implementação bem-sucedida de suas políticas econômicas.
É ademais possível de afirmar que o sucesso do liberalismo engendra seus próprios problemas. Assim, como Karl Marx foi rápido em notar, em uma sociedade em que tudo torna-se uma commodity descartável, o homem gradualmente passa a ver a si mesmo como uma commodity descartável também. Um indivíduo médio estará menos e menos disposto a seguir seu próprio critério, valores ou interesses interiores, e ao invés, ele irá focar de modo tenaz em não ser deixado de fora da batalha econômica, sempre em guarda de que seus interesses estejam alinhados com o mercado. Segundo Schaar, tal atitude, a longo prazo, pode ter consequências catastróficas para o vencedor bem como para o perdedor: "Os vencedores facilmente vem a pensar a si mesmos como sendo superiores à humanidade comum, enquanto os perdedores são quase forçados a pensar a si mesmos como algo menos que humanos". (30) Sob pressão psicológica causada por uma competição econômica incessante, e acometidos por medo de que possam ficar fora do jogo, um número considerável de pessoas, cujos interesses e sensibilidades não são compatíveis com as demandas atuais do mercado, podem desenvolver sentimentos de amargura, inveja e inferioridade. Um grande número deles aceitará o jogo econômico, mas muitos irão, pouco a pouco chegar à conclusão de que a fórmula liberal "todas as pessoas são iguais", em realidade apenas aplica-se àqueles que são economicamente os mais bem sucedidos. Murray Milner, cujas análises paralelam as de Schaar, observa que sob tais circunstâncias, a doutrina da oportunidade igual cria insegurança psicológica, independentemente da afluência material da sociedade. "Enfatizar igualdade de oportunidade necessariamente torna a estrutura de status fluida e a posição do indivíduo dentro dela ambígua e insegura". (31) A luta interminável por riquezas e segurança, que aparentemente não tem limites, pode produzir resultados negativos, particularmente quando a sociedade está à beira de mudanças econômicas súbitas. Antony Flew, de modo similar, escreve que "uma 'competição' na qual o sucesso de todos os participantes é igualmente provável é um jogo de sorte ou loteria, não uma competição genuína". (32) Para Milner tal jogo econômico é cansativo e imprevisível, e se "estendido indefinidamente, pode levar à exaustão e colapso". (33)
Muitos outros autores contemporâneos também argumentam que a maior ameaça ao liberalismo vem da elevação constante no bem-estar gerado por seu próprio sucesso econômico. Recentemente, dois estudiosos franceses, Julien Freund e Claude Polin, escreveram que a notável expansão do liberalismo, resultando em uma afluência geral cada vez maior, inevitavelmente gera novas necessidades econômicas e materiais, que constantemente gritam por ainda mais realização material. Consequentemente, após a sociedade alcançar um nível invejável de crescimento material, até mesmo a mais leve crise econômica, resultando em uma queda perceptível nos padrões de vida, causará discórdia social e possivelmente revoltas políticas.
Assumindo uma posição levemente diferente, Polin afirma que o liberalismo, em acordo com a muito propagandeada doutrina dos "direitos naturais", tende, muitas vezes, a definir o homem como uma espécie final e completa que não precisa mais evoluir, e cujas necessidades podem ser racionalmente previstas e finalizadas. Levado por um desejo insaciável de que ele deve agir exclusivamente em seu ambiente físico de modo a melhorar sua sorte terrena, ele é desse jeito levado pela ideologia liberal a pensar que o único modo possível de realizar a felicidade é colocar o bem-estar material e o individualismo acima de todos os outros objetivos. (34) De fato, dado que a "ideologia das necessidades" tornou-se um critério tácito de progresso no liberalismo, é discutível que as necessidades materiais das massas anômicas modernas deve sempre ser "adiada", já que elas não podem nunca ser completamente satisfeitas. (35) Ademais, cada sociedade que coloca esperanças excessivas em uma economia salutar, gradualmente virá a ver a liberdade como liberdade puramente econômica e o bem como puramente bem econômico. Assim, a "civilização mercantil" (civilization marchande), como Polin chama-a, deve eventualmente tornar-se uma civilização hedonista em busca de prazer, e amor próprio. Esses pontos são similares às opiniões sustentadas por Julien Freund, que também vê no liberalismo uma sociedade de necessidades impossíveis e desejo insaciável. Ele ressalta que "parece que a saciedade e a superabundância não são as mesmas coisas que satisfação, porque elas provocam nova insatisfação". (36) Ao invés de resolver racionalmente todas as necessidades humanas, a sociedade liberal sempre desperta novas, que por sua vez constantemente criam mais necessidades. Tudo ocorre, Freund continua, como se o bem nutrido precisasse de mais do que aqueles que vivem em indulgência. Em outras palavras, a abundância cria uma forma diferente de escassez, como se o homem precisasse de privação e indigência, "como se ele precisasse de algumas necessidades". (37) Quase tem-se a impressão de que a sociedade liberal propositadamente objetiva provocar novas necessidades, geralmente imprevisíveis, muitas vezes bizarras. Freund conclui que "quanto mais a racionalização dos meios de produção traz um aumento no volume de bens acessíveis, mais as necessidades estendem-se a ponto de tornarem-se irracionais". (38)
Tal argumento implica que a dinâmica do liberalismo, continuamente gerando necessidades novas e imprevisíveis, continuamente ameaça as premissas filosóficas do mesmo racionalismo na qual a sociedade liberal construiu sua legitimidade. A esse respeito teóricos socialistas muitas vezes soam convincentes quando eles em efeito afirmam que se o liberalismo não foi capaz de garantir igualdade em afluência, o comunismo pelo menos oferece igualdade na frugalidade!
Conclusão: Da Sociedade Atomística ao Sistema Totalitário
O imperialista britânico, Cecil Rhodes, uma vez exclamou: "Se eu pudesse eu anexaria os planetas!" Uma idéia assaz prometéica, de fato, e muito digna dos indivíduos endurecidos de Jack London ou dos empreendedores de Balzac - mas poderia realmente funcionar em um mundo em que a velha guarda capitalista, como Schumpeter uma vez indicou, está tornando-se uma espécie em extinção? (39)
Permanece a ser visto como o liberalismo buscará sua odisséia em uma sociedade na qual aqueles que são bem sucedidos na arena econômica vivem lado a lado com aqueles que são retardatários na realização econômica, quando seus princípios igualitários proibem o desenvolvimento de qualquer sistema moral que justificaria tais diferenças hierárquicas, tais como sustentadas na sociedade medieval européia. À parte das profecias sobre o declínio do Ocidente, o truísmo permanece de que é mais fácil criar igualdade na frugalidade econômica do que igualdade na afluência. As sociedades socialistas podem apontar a um grau mais elevado de igualdade na frugalidade. Mas sociedades liberais, especialmente nos últimos dez anos, tem sido constantemente assombradas por uma escolha desconfortável; por um lado, seu esforço por expandir o mercado, de modo a criar uma economia mais competitiva, tem quase invariavelmente causado a marginalização de algum estrato social. Por outro lado, seus esforços para criar condições mais igualitários por meio do estado de bem-estar social causa, em regra, uma performance econômica mais lenta e um crescimento ameaçador de controles burocráticos. Como demonstrado antes, a democracia liberal dispõe desde o princípio que o "Estado neutro" e o livre mercado são os melhores pilares contra ideologias políticas radicais, e que o comércio, como Montesqueu uma vez disse, "amacia os costumes". Ademais, como um resultado do impulso liberal de estender mercados em uma base global, e consequentemente, reduzir ou eliminar todas as formas de protecionismo nacional, quer seja para o fluxo de mercadorias, ou de capital, ou mesmo de trabalho, o trabalhador individual encontra-se em um ambiente incompreensível, rapidamente mutante, muito diferente da sociedade local segura e familiar para ele desde a infância.
O paradoxo do liberalismo foi muito bem descrito por um observador alemão astuto, o filósofo Max Scheler, que teve uma oportunidade para observar o desenvolvimento errático, primeiro na Alemanha Guilhermina e então em Weimar. Ele notou que o liberalismo está destinado a criar inimigos, tanto à direita como à esquerda do espectro político: À esquerda faz inimigos entre aqueles que veem no liberalismo uma caricatura do dogma dos direitos humanos, e à direita, entre aqueles que discernem nele uma ameaça à sociedade orgânica e tradicional. "Consequentemente", escreve Scheler, "uma grande carga de ressentimento aparece em uma sociedade, tal como a nossa, na qual direitos políticos iguais e outros direitos, isto é, a igualdade social publicamente reconhecida, vão lado a lado com grandes diferenças em poder real, propriedade real e educação real. Uma sociedade na qual cada um tem o "direito" de compara-se a todo mundo, mas que na qual, na realidade, ele não pode comparar-se a ninguém". (40) Em sociedades tradicionais como Dumont escreveu, tais tipos de raciocínio jamais poderiam desenvolver-se na mesma medida porque a maioria das pessoas estavam solidamente ligadas a suas raízes comunais e ao status social que sua comunidade dava a eles. A Índia, por exemplo, represente um caso de estudo de um país que preservou de modo significativo uma medida de comunidade cívica tradicional, pelo menos nas aldeias e vilas menores, apesar do impacto adverso de sua explosão populacional e do conflito contemporâneo entre socialismo no governo e liberalismo no crescente setor industrial da economia. Por contraste, no Ocidente mais industrializado, poder-se-ia quase afirmar que a sobrevivência do liberalismo moderno depende de sua habilidade constante de "correr mais rápido que as próprias pernas" economicamente.
A necessidade por expansão econômica rápida e constante carrega em si mesma as sementes do deslocamento social e cultural, e é essa perda de "raízes" que garante terreno fértil para ideologias radicais. De fato como pode o crescimento ilimitado algum dia apaziguar os proponentes dos direitos naturais, cuja resposta padrão é de que é inadmissível para alguém ser um perdedor e alguém ser perdedor? Diante de uma expansão constante do mercado, o indivíduo alienado e desenraizado em uma sociedade na qual o padrão de valor principal tornou-se a riqueza material, pode ser tentado a sacrificar a lbierdade pela segurança econômica. Não parece sempre convincente que as sociedades liberais sempre serão capazes de sustentar o "contrato social" do qual elas dependem para sua sobrevivência empurrando as pessoas à interdependência material. Ganhos econômicos podem ser um laço forte, mas não possuem o poder emocional afetivo para induzir auto-sacrifício voluntário em temos de adversidade nos quais o velho Estado-Nação baseado na família podia geralmente contar.
Mais provavelmente, colocando os indivíduos em uma interdependência puramente econômica em relação uns aos outros, e destruindo os laços mais tradicionais de parentesco e lealdade nacional, o liberalismo moderno pode ter sido bem sucedido em criar uma fase em que, em temos de adversidade, o indivíduo econômico buscará comprar mais, ser mais esperto, e mais malicioso que todos os outros, assim preparando o caminho para o "terror de todos contra todos", e preparando o terreno, novamente, para a ascensão de novos totalitarismos. Em outras palavras, o espírito do totalitarismo nasce quando a atividade econômica obscurece todos os outros reinos da existência social, e quando o "indivíduo cessou de ser um pai, um esportista, um religioso, um amigo, um leitor, um homem justo - apenas para tornar-se um ator econômico". (41) Ao encolher a arena espiritual e elevar o status de atividades econômicas, o liberalismo na verdade desafia seus próprios princípios de liberdade, assim enormemente facilitando a ascensão de tentações totalitárias. Poder-se-ia concluir que enquanto os valores econômicos permaneceram subordinados a ideais não-econômicos, o indivíduo tinha pelo menos algum senso de seguração independentemente do fato de que sua vida era muitas vezes, economicamente falando, mais miserável. Com a emergência subsequente do mercado anônimo, governado pela igualmente anônima mão invisível, como Hanna Arendt uma vez afirmou, o homem adquiriu um sentimento de desenraizamento e futilidade existencial. (42) Como as sociedades pré-industriais e tradicionais demonstram, a pobreza não é necessariamente o motor por trás das revoluções. A revolução em mais prontamente àqueles nos quais a pobreza está combinada com uma consciência de identidade perdida e um sentimento de insegurança existencial. Por essa razão, as economias liberais modernas do Ocidente devem constantemente trabalhar para garantir que o milagre econômico vai continuar. Como o sucesso econômico foi tornado o maior valor moral, e as lealdades nacionais foram desprezadas como fora de moda, os problemas econômicas automaticamente geram uma profunda insatisfação entre aqueles confrontados com a pobreza, que são então prováveis de cairem prostrados diante da sensação de "alienação" na qual o sucesso de todos os sucessos marxistas passados basearam-se.
Não deve-se, então, excluir a probabilidade de que a sociedade liberal moderna pode em algum tempo no futuro encarar dificuldades sérias caso falhe em garantir um crecimento econômico permanente, especialmente se, em adição, ela continue a atomizar a família (desencorajando o casamento, por exemplo, por meio de sistemas de impostos que favorecem o individualismo extremo) e destruir todas as unidades nacionais em favor da emergência de um único mercado internacional global, junto com seu concomitante inevitável, o "homem internaciona". Enquanto qualquer oscilação da economia global, já sob pressão da explosão populacional do Terceiro Mundo, possa concebivelmente levar a uma ressurgência de totalitarismos de direita em algumas áreas, é muito mais provável que em uma sociedade internacionalizada o novo totalitarismo do futuro virá da esquerda, na forma de uma ressurgência do "experimento socialista", prometendo ganhos econômicos para uma população que foi ensinada que os valores econômicos são os únicosvalores que improtam. Precisamente porque os "proletários do mundo" terão vindo a ver a si mesmos como um proletariado internacional aleinado, eles tenderão a inclinar-se na direção de um totalitarismo socialista internacional, ao invés de outras formas de ideologia política extrema.