por Jorge Torres Hernández
(2021)
Indagaremos um pouco na origem deste famoso Santo. Já vos adianto que aqui não falaremos de dragões nem de princesas (embora no ícone bizantino que coloquei para ilustrar o artigo apareça o dragão), ao menos não inicialmente, pois a origem do Santo, padroeiro de inúmeros países, regiões e/ou cidades, devemos encontrá-la no Baixo Império Romano. Por sua vez, a popularidade de São Jorge é tamanha que podemos vê-lo reconhecido e adorado não apenas nas Igrejas Ocidentais, como a Católica ou as Protestantes, mas também no Oriente, com as diversas Igrejas Ortodoxas. E não apenas no âmbito do mundo cristão, já que este santo é um caso de sincretismo muito interessante, sendo também encontrado no Islã, onde é chamado por títulos como Al-Khidr (árabe cristão ou muçulmano) ou Mar Djiries (árabe cristão). Quero enfatizar isto, já que a religião maometana recolhe, absorve e incorpora diretamente das religiões abrahâmicas antecessoras uma grande quantidade de elementos. Podemos até encontrar o Santo em diversos ritos afro-americanos desenvolvidos pelas comunidades de escravos que os europeus trouxeram para a América, misturando-se com elementos religiosos trazidos da África e diversas crenças locais. A hagiografia de São Jorge estima que ele nasceu no final do século III d.C. (entre 275/280 d.C.) e morreu em 23 de abril do ano 303 d.C. Sabemos que seu pai pode ter sido um oficial do exército romano chamado Gerôncio, de origem grega, e sua mãe, Policrômia, de origem palestina. Após a morte do pai, provavelmente em algum conflito com os persas sassânidas, Policrômia voltou à sua cidade natal, Lida, também conhecida como Diospólis, sendo a atual cidade de Lod (Israel), onde o pequeno Jorge cresceu e, o mais importante, recebeu uma importante educação e formação cristã transmitida por sua mãe. Mais tarde, o próprio Jorge se alistaria no exército de Roma e começaria uma proveitosa carreira militar, que o levaria a ser Comes e Tribuno, chegando até à guarda pessoal do imperador Diocleciano.
O imperador Diocleciano, ou Caio Aurélio Valério Diocleciano Augusto, foi imperador dos romanos entre 284 d.C. e 305 d.C. e famoso por dois aspectos. O primeiro deles foi a divisão do Império em duas partes, através de sua fórmula da Tetrarquia, isto é, o governo de quatro. Para resolver os problemas de viabilidade e, sobretudo, de gestão do grandioso Império, este foi distribuído entre 4 tetrarcas: 2 augustos (Diocleciano e Maximiano) e 2 césares (Galério e Constâncio). Os augustos atuavam como co-imperadores e, para evitar uma gestão de sucessão de poder tão problemática como a do século III d.C., os césares também serviam como príncipes e herdeiros dos augustos. Isto é importante, pois aqui está a base sobre a qual, definitivamente, e já após Flávio Teodósio ou Teodósio I, o Grande, a partir de 395 d.C., o Império se dividirá definitivamente em um Império Romano Ocidental e outro Oriental. Vale dizer que Diocleciano se autoatribuíra a parte oriental do império, a mais rica e próspera.
O segundo aspecto é a perseguição contra os cristãos. Se Diocleciano é famoso em nossa tradição cultural, é por isso mesmo; afinal, foi a grande época de martírio das primeiras gerações de cristãos e dos primeiros passos da Igreja Cristã. Esta perseguição, conhecida como "A Perseguição de Diocleciano", também chamada de "A Grande Perseguição", durou entre 303 d.C. e 311 d.C. Como podemos ver, foi uma política que sobreviveu à própria morte de Diocleciano, ocorrida em 305 d.C., e continuada por Galério. Esta perseguição teve diversas etapas e foram proclamados vários éditos, totalizando quatro, e fracassaram em sua tentativa de erradicar a comunidade cristã nos limites imperiais. Já com o primeiro édito, além de se concentrar na propriedade e no alto clero cristão, ordenava-se a destruição de escrituras, livros e lugares de culto, bem como a proibição de reuniões para a celebração de ritos e atos cristãos. Esta dureza foi reforçada pela privação do direito de apelação a um tribunal pelos cristãos confessos e, se fossem libertos, voltavam a ser escravos. Além disso, iniciou-se uma purga consciente na administração e no exército imperial: senadores, veteranos e soldados que fossem encontrados culpados de praticar o cristianismo eram despojados de seus cargos e distinções. Posteriormente vieram os demais éditos, que, sobretudo no Oriente, desenvolveram uma legislação e uma metodologia ainda mais duras contra os cristãos.
Cabe destacar que o próprio Diocleciano, ao que parece, pediu que fossem aplicadas medidas para evitar o derramamento de sangue, sugerindo que foi Galério quem exigiu que aqueles que não renunciassem à religião fossem condenados a serem queimados vivos na fogueira. Este último se tornou um método muito comum para executar cristãos no Oriente. Assim, é paradoxal que esta perseguição tenha chegado até nós como a "perseguição de Diocleciano", quando na verdade quem colocou mais crueldade e sangue não foi o imperador que a proclamou, mas sim seu césar, Galério.
É nesse contexto, e de acordo com fontes hagiográficas de São Jorge, que ele, já membro da guarda pessoal do imperador, recebeu ordens para aplicar o édito. Ele se recusou e ainda confessou sua fé em Cristo. Diocleciano, enfurecido, torturou-o para que ele realizasse o ato de apostasia, ou seja, renunciasse à fé em Cristo, e diante da clara recusa de Jorge, ele foi condenado à pena capital por decapitação. Que Diocleciano tenha se dado ao trabalho de torturar seu antigo guarda pessoal provavelmente demonstra que o próprio imperador se sentiu incomodado em ter que aplicar a pena capital a seu antigo protetor, e que procurava, por meio da tortura, a renúncia de Jorge, para poder assim salvar sua vida. Isso não aconteceu e, finalmente, a sentença foi executada em 23 de abril do ano 303 d.C., em frente às muralhas da cidade de Nicomédia. O fato é que Jorge não foi sozinho; ao que parece, devido à determinação do prisioneiro em não renunciar à sua fé, durante a execução e com a multidão reunida para ver o espetáculo, uma sacerdotisa de um culto pagão não identificado foi convencida a se converter ao cristianismo. Inclusive a própria esposa do imperador, e para surpresa de Diocleciano, a imperatriz Alexandra, confessou que ela era cristã em segredo. Seu marido não teve outra escolha senão ordenar que ela também fosse executada, fazendo com que a própria Alexandra fosse canonizada posteriormente como mártir, sendo conhecida hoje como Santa Alexandra de Roma.
Os restos mortais do mártir foram transferidos para a cidade natal de sua mãe Policrômia, em Lida, e com o tempo foi se formando um culto ao redor dele, construindo-se uma pequena igreja. Ele foi canonizado como Santo e Mártir da Igreja pelo Papa Gelásio I no ano de 494 d.C., e apesar de várias histórias sobre São Jorge já circularem desde o século IV-V d.C., ele só se tornaria famoso no Ocidente com o advento das Cruzadas (séc. XI-XIII d.C.), quando foi redescoberto e bastante bem acolhido por muitas cortes dos reinos medievais e até mesmo pelo Sacro Império Romano-Germânico, não apenas pelo "redescobrimento" entre o Ocidente e o Oriente cristão, mas também por influências do próprio islamismo.
É nesse momento que, agora sim, encontramos São Jorge vinculado à famosa história do dragão; a representação de São Jorge matando o dragão é datada a partir do séc. XI d.C. Ainda que alguns digam que isso não aconteceu de fato e que, na realidade, São Jorge seja uma operação sincrética da Igreja Cristã com mitos da antiguidade clássica, como o que vincula a princesa Andrômeda e Perseu, é preciso reconhecer certas semelhanças. No mito pagão, Perseu deve derrotar a Górgona Medusa e, com a cabeça de Medusa, Perseu, que se havia apaixonado pela bela Andrômeda, foi resgatá-la. Andrômeda tinha sido oferecida em sacrifício a um monstro chamado Ceto, enviado por Poseidon devido à arrogância da mãe dela, Cassiopeia, que provocou a ira do Deus dos Mares. Perseu, com a cabeça de Medusa, transformou o monstro em coral/pedra e pôde salvar Andrômeda, casando-se finalmente com ela... A semelhança, portanto, com uma princesa oferecida em sacrifício para acalmar a ira de um monstro, a derrota desse monstro e o casamento oferecido como recompensa ou, no mito cristão, a conversão da população agradecida da vila devastada pela besta, está bem presente e não pode ser ignorada.
Para finalizar, gostaria de destacar alguns pontos e comentar a relação do Santo com o Islã, que realmente é uma maravilha e nos leva ao intrigante, importante, polifacético e misterioso "Khidr" ou al-Khadir (ٱلْخَضِر). O Khidr, ou "O homem de verde", é considerado pelo Islã como um dos verdadeiros profetas ou dos profetas imortais, também conhecido como o "afrād", ou "aquele que recebe a iluminação direta de Deus sem intervenção humana". Há quem diga que Khidr é um título, outros um epíteto, o que demonstra certa confusão quanto ao termo. Costuma-se comentar que o próprio São Jorge é identificado com a versão de Elias e com o sobrenome "o caminhante eterno", proveniente do mito do "judeu errante", que a tradição sufista vincula precisamente à viagem noturna do profeta ou ao miraŷ. Como referência fácil de consulta, deveríamos destacar a Surata XVIII do Alcorão, onde ele acompanha o próprio Moisés em sua busca pela verdade. Além disso, para adicionar maior complexidade a essa figura, ela pode ser relacionada ao mito de Gilgamesh e ao próprio Alexandre, o Grande, até mesmo como campeão de Deus no Apocalipse. Dentro do sufismo, há quem vá ainda mais longe, vinculando essas duas celebridades do mito e da história como uma mesma alma viajante que tem passado de corpo em corpo até chegar ao próprio São Jorge, sendo, na verdade, a mesma pessoa. E é interessante destacar esse vínculo histórico-cultural que mergulha suas raízes na Suméria, nos primórdios da Mesopotâmia, e como passa desses povos para os persas, gregos, romanos e, com a chegada dos árabes às províncias do Levante após as conquistas do século VII d.C., ao próprio Islã, em um exercício de sincretismo espetacular.
É precisamente um personagem tão singular que, na Igreja de São Jorge (كنيسة القديس جاورجيوس), de construção cristã ortodoxa bizantina, no vilarejo de Burquin, na Palestina, até hoje não só entram fiéis cristãos (católicos, ortodoxos e coptas), mas também muçulmanos para mostrar seu respeito e adoração ao santo, que para eles é Al-Khidr. Independentemente de sua origem, seja real ou imaginária, pagã ou cristã, não há dúvida de que ele condensa elementos de 2.500 anos de nossa história, ligando-nos a pessoas de base cultural judaico-cristã, muçulmana e outras, através de mitos e histórias que muitas vezes são compartilhados. Hoje em dia, ele adquire uma nova evolução e volta a se fundir com outros elementos culturais, como o Dia do Livro, provocando uma explosão de alegria e belezas muito autênticas. Não posso deixar de me surpreender com a vitalidade e genialidade do mundo mediterrâneo e do Oriente Próximo, tão próximos e ao mesmo tempo, às vezes, tão distantes, desde sua antiguidade clássica até os dias atuais.