27/02/2020

Sebastiano Fusco - Lovecraft ou a Inconsistência do Real

por Sebastiano Fusco

(2014)



A última vez que tentei obter uma cópia do Necronomicon - o livro oculto que contém o conhecimento para abrir os mundos e fazer irromper criaturas monstruosas em uma realidade despreparada para recebê-los - foi há algum tempo, na antiga biblioteca de uma cidade de arte italiana, famosa por sua coleção de incunábulos (você me permitirá permanecer vago, por razões que serão claras imediatamente). Um "bibliotecário cortês", como teria dito Lovecraft, depois de alguma hesitação me disse que, sim, ele se lembrava da presença do volume nas prateleiras augustas daquele templo do conhecimento, mas infelizmente, em um período indefinido, ele tinha sido perdido, roubado ou destruído. E, como prova, ele me mostrou os registros da venerável instituição em que o livro foi devidamente marcado com um cartão bibliográfico completo com todos os elementos necessários, e com as palavras "Removido" ao seu lado. Manifestei o meu pesar por um trabalho tão assustador ter acabado em mãos imprudentes, e o educado bibliotecário concordou.

Ao sair do edifício histórico da biblioteca, não fiquei particularmente surpreendido. Sei que o Necronomicon não existe e nunca existiu, porque é uma pura e simples invenção literária do Lovecraft. Mas sei também que o volume sinistro tem uma marcada e perturbadora propensão a não ter em conta a sua própria inexistência, manifestando-se indevidamente no mundo real das formas mais inesperadas e com os efeitos mais imprevisíveis. Respostas semelhantes às que me foram dadas pelo cortês bibliotecário me chegam uma vez a cada cinco na investigação que venho conduzindo há anos sobre a persistência de Lovecraft e sua mais famosa invenção, o Necronomicon, na cultura popular e no processamento das mídias de massa. Além da crença geral e inabalável dos leitores de que o livro amaldiçoado existe, apesar de todos os desmentidos, aqueles que querem verificar a sua existência encontrariam evidências em abundância: resenhas publicadas por periódicos de renome, citações como "obra consultada" em bibliografias de ensaios respeitáveis, inclusões em catálogos de coleções de livros, testemunhos verídicos de quem estava prestes a comprá-lo mas que no último momento o viu escapar de suas mãos, relatos de desaparecimentos misteriosos relacionados com estranhas desgraças, ofertas de venda por cifras bizarras em boletins de livrarias antigas, menções nas listas de preços de prestigiosas casas de leilão, em legados hereditários e assim por diante. Além disso, é claro, nos cartões de repertório presentes num número crescente de bibliotecas em todo o mundo, nas quais o livro de Abdul Alhazred aparece invariavelmente como "indisponível à consulta", "fora de lugar" ou "subtraído".

23/02/2020

Luca Negri - O Cosmismo Russo

por Luca Negri

(2017)



Façamos um exercício extremo de história alternativa: que caráter teria assumido a Revolução Russa de 1917 com Aleksandr Bogdanov no lugar de Lênin como líder dos bolcheviques? Qual seria o destino então, com soviéticos alternativos no poder, da Rússia e de toda a Europa. Hipótese improvável, mas que nos permite imaginar um outro bolchevismo, não necessariamente melhor, mas mais em sintonia com séculos de espiritualidade eslava. Solzhenitsyn escreveu que Lênin era um produto do jacobinismo europeu mais que do caráter russo; o mesmo se pode dizer apenas parcialmente de Bogdanov, das suas bizarrices e dos seus companheiros.

Já tradutor de Marx, Bogdanov escreveu também um romance de ficção científica no qual o socialismo triunfava no planeta Marte e os alienígenas ensinavam aos terráqueos como sair da pré-história. Era membro dos “construtores de Deus”: bolcheviques heréticos embriagados por leituras científicas e místicas. Nietzscheanos com o ateísmo como ponto de partida e não de chegada: Deus deveria ser (re)construído pelo homem, pelo super-homem soviético, por uma super-humanidade que finalmente chegaria. E tudo devia ser feito rapidamente, com todos os recursos da tecnologia material e da suprassensível.

18/02/2020

Alain de Benoist – Oswald Spengler: Uma Introdução

por Alain de Benoist

(2011)



Em 1925, André Fauconnet pôde escrever: "Depois do fim da guerra mundial, nenhuma obra filosófica na Europa Central teve um impacto comparável à de Spengler"[1]. A afirmação não é exagerada. A publicação do primeiro volume do “Declínio do Ocidente”, em abril de 1918, poucos meses antes do fim da Primeira Guerra Mundial, teve o efeito de um trovão[2]. A resposta na Alemanha, em particular, foi fenomenal, como evidenciado pelo número de livros e brochuras publicados em resposta, comentário, elogio ou crítica. Uma das razões para este sucesso, como Ernst Cassirer observou, foi sem dúvida o título do livro, que tinha sido inspirado a Spengler por um livro de Otto Seeck publicado no final do século XIX[3].

Fortemente criticado por Heinrich Rickert e Otto Neurath[4], chamado de "porco trivial" (triviale Sauhunde) por Walter Benjamin e "Karl May da filosofia" por Kurt Tucholsky, Spengler foi saudado por Georg Simmel, a quem enviou uma cópia do seu livro, como o autor da "filosofia da história mais importante desde Hegel", o que não foi um pequeno elogio[5]. O livro também causou grande impressão em Ludwig Wittgenstein, que aprovou o pessimismo de Spengler, bem como as principais linhas de seu método, no economista Werner Sombart e no historiador Eduard Meyer que, após uma discussão de cinco horas com o autor do “Declínio do Ocidente”, tornou-se seu admirador e amigo[6]. Max Weber ficou menos impressionado, mas mesmo assim convidou Spengler para falar em seu seminário de sociologia na Universidade de Munique, em dezembro de 1919. Quanto a Heidegger, que frequentemente cita Spengler, mas nunca lhe dedicou um estudo exaustivo, ele deu uma palestra em abril de 1920 em Wiesbaden sobre “O Declínio do Ocidente”[7].

A idéia central do livro, que se insere na tradição tanto da Kulturkritik alemã como na do "pessimismo cultural", é que a humanidade não tem mais objetivo pré-estabelecido, ideia orientadora, plano organizacional do que as "tem a orquídea ou a borboleta". A humanidade é "um conceito zoológico, ou então uma palavra vazia" ("Die Menschheit hat kein Ziel, keine Idee, kein Plan, so wenig wie die Gattung der Schmetterlinge oder der Orchideen en Ziel hat. ‘Die Menschheit’ ist ein zoologischer Begriff oder ein leeres Wort")[8]. É por isso que Spengler fala quase sempre de Weltgeschichte ("história mundial"), não de Universalgeschichte ("história universal"). Não há, portanto, "história da humanidade" no sentido de um processo homogêneo. Há apenas histórias separadas correspondentes às várias culturas, cujo desenvolvimento e declínio obedecem às mesmas leis. "Para ele, como escreve Lucian Blaga, a cultura é um verdadeiro organismo, dotado de uma ‘alma’ específica, radicalmente diferente da alma individual de cada um dos homens que constituem a coletividade"[9].

15/02/2020

Andrea Virga – O Novo Comunitarismo de Costanzo Preve

por Andrea Virga 

(2012)



Este ensaio pretende apresentar e discutir a teoria comunitarista desenvolvida nos últimos anos pelo filósofo de Turim Costanzo Preve, cuja particularidade reside em se posicionar, ao contrário de outras elaborações similares, na esteira da filosofia política comunista. Na introdução, serão apresentados brevemente o papel e a posição dessa teoria no percurso filosófico de Preve, em particular referindo-se ao texto de referência fundamental: “Elogio do Comunitarismo”[1]. Passamos então a uma definição histórica, ou seja às raízes do comunitarismo, ou de suas coordenadas históricas, da filosofia grega ao idealismo alemão. Então, a uma definição negativa, isto é, em relação às patologias e aos adversários do comunitarismo, ou seja sua comparação com as outras grandes "famílias políticas": comunismo, fascismo, liberalismo. Finalmente, uma definição mais concisa e positiva emerge da conclusão.

Dada a quantidade reduzida da bibliografia primária relevante e a quase total ausência de bibliografia secundária, as referências bibliográficas estarão diretamente na nota, sempre que necessário ou útil. O mesmo se aplica a quaisquer comentários do autor do ensaio sobre pontos singulares.

Rumo a um "Novo" Comunitarismo

Costanzo Preve, nascido em Valenza (AL) em 14 de abril de 1943, teve uma educação eclética: estudando ciências políticas em Turim (com Galante Garrone e Bobbio), filosofia em Paris (com Hyppolite, Sartre, Althusser e Garaudy), germanística em Berlim Ocidental e literatura neogrega em Atenas. Posteriormente, até 1991, ao mesmo tempo em que lecionava nas escolas secundárias de Turim, ele teve uma fase de forte compromisso político e cultural. Durante esse período, Preve, como outros intelectuais comprometidos de sua geração, seguiu um caminho político na esquerda extraparlamentar, militando, após uma breve adesão ao PCI, no Lotta Continua e depois no Democrazia Proletaria. A essas posições políticas, heterodoxas em relação às do comunismo italiano, ele adotou interesses de estudo e inspirações intelectuais igualmente "dissidentes" dentro da tradição filosófica marxista: Lukács, Bloch, Adorno e, em particular, Althusser.

O colapso do socialismo real na União Soviética e na maioria dos países satélites, devido a uma série de causas internas e externas, levou o filósofo de Turim a abandonar a política, para se dedicar a uma longa reflexão crítica e filosófica sobre as causas do fracasso político do fenômeno que ele chamou de "comunismo histórico do século XX". Nesta fase, entre 1990 e 2010, ele foi particularmente prolífico, com cerca de 70 ensaios publicados ao longo desses vinte anos. A partir de suas conclusões sobre o assunto - e mantendo constantemente em mente os desenvolvimentos típicos de uma era de transição, como a das décadas de 1990 e 2000 - Preve passou a considerar superados os rótulos políticos de "direita" e "esquerda" (mas não a definição de "comunista") e a apoiar a necessidade de um novo modelo sociopolítico e filosófico anticapitalista, que vá além das teorias do marxismo clássico e do século XX.

10/02/2020

Maurizio Neri - O Comunitarismo de Jean Thiriart

por Maurizio Neri

(2005)



Uma reconstrução filosófico-política do comunitarismo não pode deixar de se concentrar na figura de Jean Thiriart, tanto pelo uso particular do termo em questão derivado de sua reflexão teórica e suas iniciativas políticas, quanto pelos reflexos que elas tiveram na parábola do próprio comunitarismo na Itália. Vamos começar com uma breve biografia do personagem.

1 – Biografia Ponderada

Jean-François Thiriart, nascido em Bruxelas em 1922, de uma família de cultura liberal, na juventude militou na Jeune Garde Socialiste Unifiée (Jovem Guarda Socialista Unificada) e na Union Socialiste Antifasciste (União Socialista Antifascista). Mas, a certa altura, uma evolução semelhante à que caracterizou vários expoentes da extrema esquerda desde o início da época da Grande Guerra (pensemos, apenas para nos limitar ao caso mais clamoroso, ao percurso de Mussolini). De fato, ele primeiro colaborou com o Fichte Bund (Liga Fichte), subsidiária do movimento nacional-bolchevique de Hamburgo, e depois se juntou à associação Amis du Grand Reich Allemand (Amigos do Grande Reich Alemão), favorável a uma aliança da Bélgica com a Alemanha nazista, tanto que em 1943 ele foi condenado à morte pela resistência belga. Após o colapso do Terceiro Reich, Thiriart passou vários anos na prisão. Em 1960, na época da descolonização, ele se colocou decididamente a favor do predomínio domínio dos brancos no Congo, em Katanga, na Rodésia, participando da fundação do Comitê de Ação e Defesa das Belgas d’África, que mais tarde se tornaria o Movimento da Ação Cívica. O controle da África lhe parecia necessário para a luta que a Europa teria que conduzir contra os imperialismos norte-americano e soviético. Dois anos depois, como representante desse movimento, se encontrou em Veneza com expoentes de outros grupos e nacional-revolucionários europeus. Saiu dali uma declaração na qual os participantes se comprometiam a dar vida a “um Partido Nacional Europeu, centrado na ideia de unidade europeia, que não aceita a satelitização da Europa Ocidental pelos EUA e não renuncia à reunificação dos territórios da Leste, da Polônia à Bulgária passando pela Hungria".

Mas o projeto, como tantos outros criados por Thiriart, não decolou. No entanto, ele não se resignou e decidiu fundar de forma independente um novo grupo, a Jeune Europe (Jovem Europa), que logo se estabeleceu em muitos países do velho continente: Bélgica, Holanda, França, Suíça, Áustria, Itália, Alemanha, Espanha, Portugal, Inglaterra. A organização ofereceu o apoio de suas redes na região metropolitana à OEA (Organisation del l’Armée Secrète)[Organização do Exército Secreto], uma formação política constituída por militares de extrema-direita ligados ao ambiente dos franceses da Argélia que se opunham à independência da colônia. Vários militantes, incluindo o próprio Thiriart, foram presos. A aliança foi motivada pelo fato de que, no caso da vitória da OAS, a Argélia e a própria França poderiam constituir "santuários" em vista de uma ação revolucionária na Europa.

No "Manifesto à Nação Européia", era possível identificar o núcleo essencial do pensamento político de Thiriart:

"Entre o bloco soviético e o bloco dos EUA, nossa tarefa é construir a Pátria Grande: uma Europa unida, poderosa e comunitária, de Brest a Bucareste"

06/02/2020

John Médaille – Subversivos Patrióticos: O Distributismo como Problema Político

por John Médaille

(2019)



Distributismo como Problema

Quando as pessoas pensam no distributismo, mesmo as que sabem um pouco sobre isso, elas tendem a vê-lo como algo problemático, algo mais parecido com o agrarianismo e com uma nostalgia ingênua por um passado rural, uma busca por uma "era de ouro" que nunca existiu. Nisso, eles não estão completamente enganados, pois os distributistas frequentemente se apresentam dessa maneira, e não há erro em julgar alguém por suas palavras. Mas, se deve haver algum avanço real, o distributismo deve se apresentar melhor. E nesta tarefa, vejo dois grandes problemas. O primeiro é o mal-entendido (mesmo entre os distribuidores) da natureza da propriedade e o segundo é o mal-entendido (especialmente entre os distributistas) do papel da política. Ou seja, temos um problema teórico e político.

Distributismo como Problema Teórico

A principal preocupação do distributismo é a justiça distributiva, julgada em grande parte pela distribuição da propriedade. Pois existem apenas duas fontes de riqueza: os dons de Deus e o trabalho do homem. Por "dons de Deus" entendemos aquelas coisas que o homem não pode criar nem prescindir, coisas como terra, ar, água, espectro de transmissão e coisas do gênero. E em acordo com quase todos os sistemas religiosos, os distributistas consideram esses dons como dados por Deus (ou pela Natureza, se você tiver dúvidas sobre o divino) a todos os homens para uso comum. Mas esses dons só podem ser úteis ao homem quando aplicamos nosso trabalho, seja físico, intelectual, espiritual, administrativo, etc., e sem esse trabalho, os dons permanecem ocultos, inúteis. Então, pegamos uma árvore e fazemos uma cadeira, porque as pessoas preferem sentar em cadeiras do que em árvores; o trabalho do homem aplicado ao dom de Deus torna os dons disponíveis de uma forma que podemos usar, e toda riqueza é produzida dessa maneira.

02/02/2020

Severiano Scarchini – Caspar David Friedrich: A Natureza e o Sublime no Romantismo Alemão

por Severiano Scarchini

(2019)



Geralmente consideramos a arte alemã como algo secundário, desprovido de relevância, mas nenhum julgamento se mostrou tão errado ao longo da história. Certamente, nos séculos precedentes, a história da arte viu brilharem artistas italianos e franceses, consignando-os à lenda. No entanto, há uma corrente artística que nunca antes havia incorporado tão profundamente a alma e os sentimentos de um povo, neste caso o alemão, como o romantismo.

O romantismo alemão traduz o sentimento da natureza e a aspiração do sublime através da representação de paisagens evocativas e melancólicas, como montanhas cobertas de neve, enormes florestas silenciosas e extensões marinhas infinitas.