04/06/2019

Alain de Benoist - Soldado, Trabalhador, Rebelde, Anarca: Uma Introdução a Ernst Jünger

por Alain de Benoist

(1997)



Nos escritos de Ernst Jünger, quatro grandes figuras aparecem sucessivamente, cada uma correspondendo a um período bastante distinto da vida do autor. Eles são, cronologicamente, o Soldado do Front, o Trabalhador, o Rebelde e o Anarca. Através dessas figuras, pode-se adivinhar o interesse apaixonado que Jünger sempre manteve em relação ao mundo das formas. Formas, para ele, não podem resultar de ocorrências fortuitas no mundo sensível. Em vez disso, as formas guiam, em vários níveis, os modos pelos quais os seres sensíveis se expressam: a “história” do mundo é, acima de tudo, morfogênese. Ademais, como entomólogo, Jünger estava naturalmente inclinado a classificações. Para além do indivíduo, ele identifica a espécie ou o tipo. Pode-se ver aqui um tipo sutil de desafio ao individualismo: "O único e o típico excluem um ao outro", escreve ele. Assim, como Jünger vê, o universo é um em que as Figuras dão às épocas seu significado metafísico. Nesta breve exposição, gostaria de comparar e contrastar as grandes Figuras identificadas por Jünger.


* * *

O Soldado do Front (Frontsoldat) é, antes de tudo, testemunha do fim das guerras clássicas: guerras que priorizavam o gesto cavalheiresco, que se organizavam em torno dos conceitos de glória e honra, que geralmente poupavam os civis, e que distinguiam claramente entre o Front e a Retaguarda. “Apesar de uma vez nos agacharmos em crateras de bombas, ainda acreditávamos” disse Jünger, “que o homem era mais forte do que o material. Isso provou ser um erro”. De fato, a partir de então, o “material” contava mais do que o fator humano. Este fator material significa a irrupção e domínio da tecnologia. A tecnologia impõe sua própria lei, a lei da impessoalidade e da guerra total - uma guerra simultaneamente massiva e abstrata em sua crueldade. Ao mesmo tempo, o Soldado se torna um ator impessoal. Seu próprio heroísmo é impessoal, porque o que mais conta para ele não é mais o objetivo ou o resultado do combate. Não é ganhar ou perder, viver ou morrer. O que conta é a disposição espiritual que o leva a aceitar seu sacrifício anônimo. Nesse sentido, o Soldado do Front é, por definição, um Soldado Desconhecido, que forma um corpo, em todos os sentidos do termo, com a unidade a que pertence, como uma árvore que não é apenas uma parte, mas uma encarnação exemplar da floresta. 

O mesmo se aplica ao Trabalhador, que aparece em 1932, no famoso livro desse nome, cujo subtítulo é: “Domínio e Figura”. (1) O elemento comum do Soldado e do Trabalhador é a impessoalidade ativa.

Eles também são filhos da tecnologia. Porque a mesma tecnologia que transformou a guerra num "trabalho" monótono, afogando o espírito cavalheiresco na lama das trincheiras, também transformou o mundo em uma vasta oficina onde o homem é daqui em diante completamente cativado pelos imperativos da produtividade. Soldado e Trabalhador, finalmente, têm o mesmo inimigo: o desprezível liberal burguês, o "último homem" anunciado por Nietzsche, que venera a ordem moral, a utilidade e o lucro. Também o Trabalhador e o Soldado do Front querem destruir a fim de criar, desistir dos últimos fragmentos do individualismo para fundar um novo mundo nas ruínas da antiga “forma de vida petrificada”.

No entanto, enquanto o Soldado era apenas o objeto passivo do reino da tecnologia, o Trabalhador visa ativamente identificar-se com ele. Longe de ser seu objeto, ou de se submeter às suas manifestações, o Trabalhador, ao contrário, busca com toda consciência endossar o poder da tecnologia que ele acha que abolirá as diferenças entre as classes, bem como entre a paz e a guerra, civis e militares. O Trabalhador não é mais aquele que é “sacrificado a carregar os fardos nos grandes desertos de fogo”, como Jünger ainda colocou no Caminho da Floresta, (3) mas um ser totalmente dedicado à “mobilização total.”(4) Assim, a Figura do Trabalhador vai muito além do Tipo do Soldado do Front. Para o Trabalhador - que sonha todo o tempo com uma vida espartana, prussiana ou bolchevique, em que o indivíduo seria definitivamente superado pelo Tipo - a Grande Guerra era apenas a bigorna em que outro modo de ser no mundo era forjado. O Soldado do Front se limitava para incorporar novas normas de existência coletiva. O Trabalhador, por sua vez, pretende transplantá-las para a vida civil, torná-las a lei de toda a sociedade.

O Trabalhador não é, portanto, apenas o homem que trabalha (o significado mais comum), mais do que ele é o homem de uma classe social, ou seja, de uma determinada categoria econômica (o significado histórico). Ele é o Trabalhador em um sentido metafísico: aquele que revela o Trabalho como a lei geral de um mundo que se dedica inteiramente à eficiência e à produtividade, mesmo no lazer e no descanso.

Os elementos da visão de mundo de Jünger - sua concepção estética e voluntarista da tecnologia, seu decisionismo de cada momento, a oposição do Trabalhador ao burguês, a vontade nietzscheana de "transvalorar todos os valores" que já sustentam o "nacionalismo soldatizado" do Jünger dos anos 20 às vezes são resumidas com o termo “realismo heroico”. No entanto, sob a influência de certos eventos, a reflexão de Jünger logo sofreria uma inflexão decisiva, que a levou em outra direção.

A virada corresponde ao romance Nos Penhascos de Mármore, (5) publicado em 1939. Os heróis da história, dois irmãos, herbalistas de Grande Marina que recuam horrorizados diante do resultado inexorável do empreendimento do Grande Monteiro, descobrem que existem armas mais fortes do que aquelas que perfuram e matam. Jünger, na época, não foi apenas informado pela ascensão do nazismo, ele foi também influenciado por seu irmão, Friedrich Georg Jünger, que em um famoso livro (6) foi um dos primeiros a elaborar uma crítica radical da estrutura tecnológica.(7) Como filhos da tecnologia, o Soldado e especialmente o Trabalhador estavam do lado dos Titãs. No entanto, Ernst Jünger chegou a ver que o reino titânico do elemental leva diretamente ao niilismo. Ele entendeu que o mundo não deveria ser interpretado ou modificado, mas visto como a própria fonte do desvelamento da verdade (aletheia). Ele entendeu que a tecnologia não é necessariamente antagônica aos valores burgueses, e que ela transforma o mundo apenas pela globalização do deserto. Ele entendeu que, por trás da história, a atemporalidade retorna a categorias mais essenciais, e que o tempo humano, marcado pelas engrenagens do relógio, é um “tempo imaginário”, fundado em um artifício que fez os homens se esquecerem de seu pertencimento ao mundo, um tempo que fixa a natureza de seus projetos em vez de ser fixado por eles, ao contrário da ampulheta, o "relógio elemental" cujo fluxo obedece a leis naturais - um tempo cíclico e não linear. Jünger, em outras palavras, percebeu que a irrupção dos Titãs é, antes de mais nada, uma revolta contra os deuses. É por isso que ele rejeitou Prometeu. As Figuras coletivas foram sucedidas por pessoais.

Contra o despotismo totalitário, os heróis de Nos Penhascos de Mármore optaram pelo recuo, afastando-se. Por isso, eles já anunciavam a atitude do Rebelde, sobre quem Jünger escreveria: “O Rebelde é...quem quer que a lei de sua natureza ponha em relação com a liberdade, uma relação que com o tempo o leva a uma revolta contra o automatismo e a uma recusa em aceitar sua consequência ética, o fatalismo”.

Vê-se que a Figura do Rebelde está diretamente ligada a uma meditação sobre a liberdade - e também sobre a exclusão, já que o Rebelde é igualmente um fora-da-lei. O Rebelde ainda é um combatente, como o Soldado do Front, mas ele é um combatente que repudia a impessoalidade ativa, porque ele pretende preservar sua liberdade em relação à causa que ele defende.

Nesse sentido, o Rebelde não pode ser identificado com um sistema ou outro, mesmo aquele pelo qual ele luta. Ele não está à vontade em nenhum deles. Se o Rebelde escolhe a marginalização, é acima de tudo para se proteger contra as forças da destruição, para quebrar o cerco, pode-se dizer, usando uma metáfora militar que o próprio Jünger emprega quando escreve:

"O incrível cerco do homem foi preparado há muito tempo pelas teorias que visam dar uma explicação lógica infalível do mundo e que marcham em sintonia com o desenvolvimento da tecnologia."

"O caminho misterioso avança para o interior", disse Novalis. O Rebelde é um emigrante para o interior, que procura preservar a sua liberdade no coração das florestas, onde "caminhos que vão a lugar nenhum" se cruzam.

Esse refúgio, porém, é ambíguo, porque esse santuário da vida orgânica ainda não absorvido pela mecanização do mundo representa - na medida exata em que constitui um universo estranho às normas humanas - a “grande casa da morte, o próprio assento do perigo destrutivo”. Assim, a posição do Rebelde só pode ser provisória.

A última Figura, a quem Jünger chama de Anarca, apareceu pela primeira vez em 1977 em Eumeswil, (8) um romance “pós-moderno”, pretendido como uma continuação de Heliópolis(9) e ambientado no terceiro milênio. Venator, o herói, não precisa mais recorrer à floresta para permanecer intocado pelo niilismo ambiental. É suficiente para ele ter alcançado uma elevação que lhe permite observar tudo à distância sem precisar se afastar. Típica a esse respeito é a atitude dele em relação ao poder.

Enquanto o anarquista quer abolir o poder, o Anarca se contenta em romper todos os laços com ele. O Anarca não é inimigo do poder ou da autoridade, mas ele não os busca, porque ele não precisa deles para se tornar quem ele é. O Anarca é soberano de si mesmo - o que equivale a dizer que ele mostra a distância que existe entre a soberania, que não requer poder e o poder, que nunca confere soberania.

“O Anarca”, escreve Jünger, “não é o parceiro do monarca, mas seu antípoda, o homem que o poder não pode captar, mas que também é perigoso para ele. Ele não é o adversário do monarca, mas o seu oposto”. Um verdadeiro camaleão, o Anarca se adapta a todas as coisas, porque nada o alcança. Ele está a serviço da história e ao mesmo tempo está além dela. Ele vive em todos os momentos ao mesmo tempo, presente, passado e futuro. Tendo atravessado “a parede do tempo”, ele está na posição da estrela polar, que permanece fixa enquanto toda a abóbada estrelada gira em torno dela, o eixo ou cubo central, o “centro da roda onde o tempo é abolido”. Assim, ele pode vigiar a “clareira” que representa o lugar e a ocasião para o retorno dos deuses. A partir disso, pode-se ver, como Claude Lavaud escreve a respeito de Heidegger, que a salvação reside “em recuar, em vez de atravessar; na contemplação, não no cálculo; na piedade comemorativa que abre o pensamento para o revelar e ocultar que juntos são a essência da aletheia”. (10)

O que distingue o Rebelde do Anarca é, portanto, a qualidade de sua marginalização voluntária: a retirada horizontal para o primeiro, a retirada vertical para o segundo. O Rebelde precisa se refugiar na floresta, porque ele é um homem sem poder ou soberania, e porque é só lá que ele mantém as condições de sua liberdade. O próprio Anarca também está desprovido de poder, mas é precisamente porque ele não tem poder que ele é soberano. O Rebelde ainda está em revolta, enquanto o Anarca está além da revolta. O Rebelde segue em segredo - ele se esconde nas sombras - enquanto o Anarca permanece à vista. Finalmente, enquanto o Rebelde é banido pela sociedade, o Anarca se bane. Ele não é excluído; ele é emancipado.

***

O advento do Rebelde e do Anarca relegou a memória do Soldado do Front para o segundo plano, mas não acabou com o reinado do Trabalhador. Reconhecidamente, Jünger mudou sua opinião sobre o que deveríamos esperar, mas a convicção de que essa Figura realmente domina o mundo de hoje nunca foi abandonada. O Trabalhador, definido como o "principal Titã que atravessa a cena do nosso tempo", é realmente o filho da Terra, o filho de Prometeu. Ele encarna esse poder "telúrico" do qual a tecnologia moderna é o instrumento. Ele também é uma Figura metafísica, porque a tecnologia moderna nada mais é do que a essência realizada de uma metafísica que coloca o homem como o mestre de um mundo transformado em objeto. E com o homem, o Trabalhador mantém uma dialética da possessão: o Trabalhador possui o homem na medida em que o homem acredita que possui o mundo ao se identificar com o Trabalhador.

No entanto, na medida exata em que eles são os representantes dos poderes elementais e telúricos, os Titãs continuam a levar uma mensagem cujo significado ordena a nossa existência. Jünger não os considera mais aliados, mas tampouco os considera inimigos. Como é seu hábito, Jünger é um sismógrafo: ele tem um pressentimento de que o reinado dos Titãs anuncia o retorno dos deuses, e que o niilismo é uma parte necessária da passagem rumo à regeneração do mundo. Para acabar com o niilismo, devemos vivê-lo até o fim - "cruzando a linha" que corresponde ao "meridiano zero" - porque, como diz Heidegger, a estrutura tecnológica(11) (Ge-stell) ainda é um modo de ser, não apenas do seu esquecimento. É por isso que, se Jünger vê o Trabalhador como um perigo, ele também diz que esse perigo pode ser a nossa salvação, porque é por ele e através dele que será possível exaurir o perigo.

***

É fácil ver o que diferencia as duas duplas formadas, de um lado, pelo Soldado do Front e o Trabalhador, e, do outro lado, pelo Rebelde e o Anarca. Mas seria errado concluir disso que o "segundo Jünger", de Nos Penhascos de Mármore, é a antítese do primeiro. Ao contrário, esse "segundo Jünger" representa, na verdade, um desenvolvimento, que recebeu um curso livre, de uma inclinação presente desde o começo, mas obscurecida pela obra do escritor-soldado e do polemista nacionalista. Nos primeiros livros de Jünger, assim como em “A Guerra como Experiência Interior” (12) e “Tempestades de Aço”, (13) vemos realmente, entre as linhas da narrativa, uma tendência inegável para a vita contemplativa. Desde o início, Jünger expressa um anseio por reflexão meditativa que as descrições de combate ou chamadas à ação não podem mascarar. Esse anseio é particularmente evidente na primeira versão de “O Coração Aventuroso”, (14) onde se pode ler não apenas uma preocupação com uma certa poesia literária, mas também uma reflexão - que se poderia descrever como mineral e cristalina - sobre a imutabilidade das coisas e sobre aquilo que, no coração do presente, nos eleva aos signos cósmicos e ao reconhecimento do infinito, alimentando assim a “visão estereoscópica” na qual duas imagens planas se fundem numa única imagem para revelar a dimensão da profundidade.

Não há, portanto, contradição entre as quatro Figuras, mas apenas um aprofundamento progressivo, um tipo de esboço cada vez mais refinado que levou Jünger, inicialmente um ator de sua época, então juiz e crítico de seu tempo, a se colocar finalmente acima de seu tempo para testemunhar o que veio antes de seu século e o que virá depois dele.

Em “O Trabalhador” já se lê: “Quanto mais nos dedicamos a mudar, mais devemos estar intimamente persuadidos de que por trás disso se oculta um ser calmo”. Ao longo de sua vida, Jünger nunca deixou de se aproximar desse “ser calmo”. Enquanto passava da ação manifesta à aparente não-ação - indo, pode-se dizer, dos entes ao Ser - ele alcançou uma progressão existencial que finalmente lhe permitiu ocupar o lugar do Anarca, o centro imóvel, o "ponto central da roda giratória" de onde todo o movimento procede.

Apêndice: Sobre Figura e Tipo (15)

Em 1963, em seu livro intitulado “Tipo-Nome-Figura”, (16) Jünger escreve: “Figura e Tipo são formas superiores de visão. A concepção das Figuras confere um poder metafísico, a apreensão dos Tipos um poder intelectual”. Vamos reconsiderar essa distinção entre Figura e Tipo. Mas vamos notar imediatamente que Jünger conecta a capacidade de distingui-los com uma forma de visão mais elevada, ou seja, com uma visão que vai além das aparências imediatas para buscar e identificar arquétipos.

Além disso, ele insinua que essa forma superior de visão se funde com seu objeto, ou seja, com a Figura e o Tipo. Além disso, ele especifica: “O Tipo não aparece na natureza, ou a Figura no universo. Ambos devem ser decifrados nos fenômenos, como uma força em seus efeitos ou um texto em seus caracteres”. Finalmente, ele afirma que existe um “poder tipificador do universo”, que “busca perfurar o indiferenciado”, e que "atua diretamente na visão", causando um "conhecimento inefável: intuição", conferindo então um nome:

“As coisas não portam um nome, os nomes são conferidos a elas”.

Essa preocupação em transcender as aparências imediatas não deve ser mal interpretada. Jünger não nos oferece uma nova versão do mito platônico da caverna. Ele não sugere buscar os traços de outro mundo neste mundo. Pelo contrário, em “O Trabalhador”, ele já denunciava “o dualismo do mundo e seus sistemas”. Da mesma forma, em seu “Diário de Paris”, (17) ele escreveu: “O visível contém todos os sinais que levam ao invisível. E a existência deste último deve ser demonstrável no modelo visível”. Assim, para Jünger, há transcendência apenas na imanência. E quando ele pretende buscar as “coisas que estão por trás das coisas”, para usar a expressão que ele emprega em sua “Carta ao Homem na Lua”, é ao mesmo tempo que está convicto, como Novalis, de que “o real é tão mágico quanto o mágico é real”.(18) Também se erraria gravemente ao comparar o Tipo com um “conceito” e a Figura com uma “ideia”. “Um Tipo”, escreve Jünger, “é sempre mais forte que uma ideia, e mais ainda do que um conceito”. De fato, o Tipo é apreendido pela visão, isto é, como imagem, enquanto o conceito só pode ser compreendido pelo pensamento. Assim, apreender a Figura ou o Tipo não é deixar o mundo sensível para algum outro mundo que constitui sua primeira causa, mas buscar no mundo sensível a dimensão invisível que constitui o “poder tipificador”: “Reconhecemos os indivíduos: o Tipo age como a matriz de nossa visão... Isso realmente mostra que não é tanto o Tipo que percebemos, mas, nele e por trás dele, o poder da fonte tipificadora”.

A palavra alemã para Figura é Gestalt, que geralmente se traduz como “forma”. (19) A nuance não é sem importância, porque ela confirma que a Figura está ancorada no mundo das formas, isto é, no mundo sensível, em vez de ser uma ideia platônico, que encontraria neste mundo apenas sua reflexão medíocre e deformada. Goethe, no seu tempo, ficou consternado ao saber que Schiller pensava que a sua Planta Primordial (Urpflanze) (arquétipo) era uma ideia. A Figura é frequentemente equivocadamente entendida da mesma maneira, como o próprio Jünger enfatizou. A Figura está do lado da visão, na medida em que está do lado do Ser, que é consubstancial ao mundo. Não está do lado do verum, mas do certum.

Vamos ver agora o que distingue a Figura e o Tipo. Comparado com a Figura, que é mais abrangente, mas também mais difusa, o Tipo é mais limitado. Seus contornos são relativamente nítidos, o que faz com que seja uma espécie de intermediário entre o fenômeno e a Figura: “Ele é”, diz Jünger, “a imagem-modelo do fenômeno e a imagem-fiadora da Figura”. A Figura tem uma extensão maior que o Tipo. Excede o tipo, como a matriz que dá a forma excede a forma.

Além disso, se o Tipo qualifica um grupo, a Figura tende a qualificar um reino ou uma época. Tipos diferentes podem coexistir lado a lado no mesmo tempo e lugar, mas há espaço para apenas uma Figura.

Deste ponto de vista, a relação entre a Figura e o Tipo é comparável àquela do Um e dos muitos. (É por isso que Jünger escreve: "O monoteísmo pode conhecer, estritamente falando, apenas uma Figura. É por isso que ele rebaixa os deuses para o posto de Tipos".) Isso equivale a dizer que a Figura não é apenas um tipo mais extenso, mas que também há uma diferença na natureza entre a Figura e o Tipo. A Figura também pode dar origem aos Tipos, atribuindo-lhes uma missão e um significado. Jünger dá o exemplo do oceano como uma extensão distinta de todos os mares específicos: “O Oceano é formador de Tipos; ele não tem um Tipo, é uma Figura”.

Pode o homem configurar uma Figura como ele configura um Tipo? Jünger diz que não há uma resposta única para essa pergunta, mas mesmo assim ele tende ao negativo. “A Figura”, escreve ele, “pode ser sustentada, mas não configurada”. Isso significa que a Figura não pode ser conjurada por palavras nem confinada pelo pensamento. Enquanto o homem pode facilmente nomear Tipos, é muito mais difícil fazer qualquer coisa com uma Figura: “O risco é mais significativo, porque nos aproximamos aí do indiferenciado em maior medida do que na nomeação de Tipos”. O Tipo depende do homem, que se adapta nomeando-o, enquanto a Figura não pode ser tornada nossa. “A nomeação de Tipos”, salienta Jünger, “depende do homem tomar posse. Por outro lado, quando uma Figura é nomeada, estamos certos em supor que ela primeiro toma posse do homem”. O homem não tem acesso à “pátria das Figuras”: “O que é concebido como uma Figura já está configurado”.

Na medida em que pertence à ordem metafísica, uma Figura aparece subitamente. Dá ao homem um sinal, deixando-o livre para ignorá-lo ou reconhecê-lo. Mas o homem não pode compreendê-lo apenas pela intuição. Conhecer ou reconhecer uma Figura implica um contato mais profundo, comparável ao domínio do parentesco. Jünger não hesita aqui em falar sobre “adivinhação”. Uma Figura é desvelada, liberada do esquecimento, no sentido heideggeriano - liberada dos níveis mais profundos do indiferenciado, diz Jünger - pela presença do Ser. Mas, ao mesmo tempo, à medida que se revela, à medida que sobe à aparência e ao poder efetivo, ela "perde sua essência" - como um deus que escolhe encarnar na forma humana.

Somente essa “desvalorização” de seu status ontológico torna possível ao homem saber o que o conecta a uma Figura que ele não consegue captar pelo pensamento ou pelo nome. Assim, a Figura é a "mais alta representação que o homem pode fazer do inefável e do seu poder".

À luz do precedente, pode-se dizer que as quatro Figuras jüngerianas são realmente Figuras e não Tipos? Em todo rigor, somente o Trabalhador responde plenamente à definição de uma Figura na medida em que descreve uma época.

O Soldado, o Rebelde e o Anarca, por outro lado, seriam Tipos. Jünger escreve que, para o homem, a capacidade de configurar Tipos procede de uma “força mágica”. Ele também observa que hoje em dia essa aptidão humana está declinando e sugere que estamos vendo a ascensão dos indiferenciados, isto é, uma “deterioração dos Tipos”. ”, O sinal mais visível de que o velho mundo está dando lugar a um novo, cujos Tipos ainda não apareceram e, portanto, ainda não podem ser nomeados. “Para conseguir conceber novos Tipos”, escreve ele, “o espírito deve derreter os antigos...É apenas no lampejo da aurora que o indiferenciado pode receber novos nomes”. É por isso que, no final, ele quer estar confiante: “É previsível que o homem recuperará sua aptidão para estabelecer os Tipos e assim retornará a sua suprema competência”.

1 - Ernst Jünger, Der Arbeiter: Herrschaft und Gestalt [The Worker: Dominion and Figure ]

(Hamburg: Hanseatische Verlagsanstalt, 1932).

2 - O francês é “arraisonne.”  Aqui o verbo arraisonner tem o sentido de “encantar,” com o sentido duplo de “capturar” e “cativar.” Depois nesse ensaio, Benoist usa “arraisonnement” como equivalente ao “Gestell” ou “Ge-stell” de Heidegger, que é usualmente traduzido como “enquadramento.” Segundo Heidegger, o Gestell é a visão do mundo como um estoque (Bestand) de recursos para a manipulação humana. Heidegger chama o Gestell de a “essência” da tecnologia, porque ele é a cosmovisão que torna a civilização tecnológica moderna possível. Ver Martin Heidegger, “The Question Concerning Technology,” trans. William Lovitt, em Martin Heidegger, Basic Writings , ed. David Farrell Krell, 2nd ed. (New York: Harper,1993)—TOQ.

3 - Ernst Jünger, Der Waldgang  [The Forest Path] (Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1951)—TOQ.

4 - Ernst Jünger, Die totale Mobilmachung (Berlin: Verlag der Zeitkritik, 1931); English translation: “Total Mobilization,” trans. Joel Golb and Richard Wolin, in Richard
Wolin, ed., The Heidegger Controversy: A Critical Reader (New York: Columbia University Press, 1991)—TOQ.

5 - Ernst Jünger, Auf den Marmorklippen (Hamburg: Hanseatische Verlagsanstalt, 1939); English translation: On the Marble Cliffs: A Novel , trans. Stuart Hood (London: John Lehman, 1947).

6 - Friedrich Georg Jünger, Die Perfektion der Technik [The Perfection of Technology](Frankfurt am Main: Klostermann, 1946); English translation: The Failure of Technology: Perfection Without Purpose,  trans. F. D. Wieck (Hinsdale, Ill.: Henry Regnery, 1949).

7 - “l’arraisonnement technicien” — TOQ.

8 - Ernst Jünger, Eumeswil (Stuttgart: Klett-Cotta, 1977); English translation: Eumeswil, trans. Joachim Neugroschel (New York: Marsilio, 1993).

9 - Ernst Jünger, Heliopolis: Rückblick auf eine Stadt  [Heliopolis: Review of a City](Tübingen: Heliopolis, 1949)—TOQ.

10 - “Über die Linie’: Penser l’Рtre dans l’ombre du nihilisme” [“‘Over the Line’: Thinking of Being in the Shadow of Nihilism”], in Les Carnets Ernst Jünger 1 (1996), 49.

11 - “l’arraisonnement” — TOQ.

12 - Ernst Jünger, Der Kampf als inneres Erlebnis [Battle as Inner Experience ] (Berlin: Mittler, 1922)—TOQ.

13 - Ernst Jünger, Sturm [Storm] (1923) (Stuttgart: Ernst Klett, 1978)—TOQ.

14 - Ernst Jünger, Das Abenteuerliche Herz: Aufzeichnungen bei Tag und Nacht [The Adventurous Heart: Sketches by Day and Night] (Berlin: Frundsberg, 1929).

15 – O apêndice seguinte é a seção 1 da palestra original, seguida pelo último parágrafo da seção 3 — TOQ.

16 - Ernst Jünger, Typus—Name—Gestalt (Stuttgart: Ernst Klett, 1963).

17 - In Ernst Jünger, Strahlungen [Emanations] (Tübingen: Heliopolis, 1949). In English: The Paris Diaries: 1941 –1942, trans. M. Hulse (London: Farrar, Straus &  Giroux,1992)—TOQ.

18 - Ernst Jünger, “Sizilischer Brief an den Mann im Mond” [“Sicilian Letter to the Man in the Moon”], in Blütter und Steine [Leaves and Stones] (Hamburg: Hanseatische Verlagsanstalt, 1934).

19 – O primeiro volume de O Declínio do Ocidente de Oswald Spengler (1916) já tinha o subtítulo: Gestalt und Wirklichkeit  [Forma e Realidade ]. “Gestalt”, escreve Gilbert Merlio, “é a Forma das formas, aquilo que ‘informa’ a realidade à maneira da enteléquia aristotélica; é a unidade morfológica que se percebe por baixo da diversidade da realidade histórica, a ideia formativa (ou Urpflanze!) que dá a ela coerência e direção” (“Les images du guerrier chez Ernst Jünger” [“The Images of the Warrior in Ernst Jünger”], in DaniПle Beltran-Vidal, ed., Images d’Ernst Jünger  [Images of Ernst  Jünger], [Berne: Peter Lang, 1996], 35).