08/07/2015

Entrevista com Rafael Correa - A Via do Equador

por New Left Review, nº77

Tradução por Lucas Rodrigues



Entrevistador: Você pode nos dizer algo sobre sua formação pessoal e política? 

Rafael Correa: Nasci na cidade de Guayaquil, a maior e mais problemática do país. Durante 20 anos - dos 5 aos 24, isso é, desde que me entendi por gente - vivi no mesmo bairro, perigoso e duro. Meu pai vinha de uma família "fidalga", pelo lado do meu avô paterno, e de uma família campesina, pelo lado da minha avó paterna (sua mãe era filha ilegítima). Ele nasceu na fazenda Palmar, a maior da província da Província de Los Rios, uma fazenda que era propriedade da família Correa. Meu avô paterno, típico boêmio, quebrou a fazenda e aos 5 anos de idade meu pai se encontrou na miséria e, pior ainda, com seus pais divorciados, sem que o permitissem ver sua mãe de origem humilde. Minha mãe provinha de uma família de classe média de origem manabita, sem maiores problemas familiares mas com muitas limitações econômicas. Por ter que trabalhar para ajudar sua família, minha mãe não pôde terminar seus estudos no colégio, coisa que meu pai, um homem extremamente inteligente, tampouco conseguiu, devido aos problemas econômicos e familiares citados. Todavia, paradoxalmente eles sempre nos inculcaram o amor pelo estudo. Ambos eram funcionários privados, que ganhavam salários baixos e enfrentavam condições de trabalho instáveis, razões pelas quais nossa família era bem pobre, e só pudemos estudar em colégios bons graças a bolsas de excelência acadêmica. Éramos quatro irmãos: Fabrício, Pierina, eu e minha irmã Bernardita, que morreu quando eu tinha apenas 13 anos e ela 12; sua morte, porém, foi o golpe mais duro que recebi na minha vida. Quando eu tinha 8 anos meus pais se divorciaram, motivo pelo qual basicamente fui criado pela minha mãe, uma trabalhadora incansável. Pouco tempo depois disso, ela encontrou um emprego como gerente na principal rede de supermercados da cidade; era um trabalho duríssimo que incluía sábados, domingos e feriados e no qual ela permaneceu por uns 20 anos, porém que nos permitiu ter a melhor comida em casa. Quer dizer, levando em conta que sempre vivemos em uma casa alugada de madeira e cimento e que o quarto que dividia com meu irmão nem sequer tinha uma porta, meus pais me deram o melhor que podiam: saúde e educação.

Minha formação é enraizada na Teologia da Libertação e na Doutrina Social da Igreja Católica. Eu estudava na Universidade Católica de Santiago de Guayaquil, onde eu fui um militante em um grupo de esquerda no Departamento de Economia. Nós fomos o primeiro movimento de esquerda a ganhar a presidência da federação estudantil daquela Universidade, que era uma das mais conservadoras do país.  Isso foi em um período muito duro, sob a administração de Febres Cordero, um governo bem repressivo de direita [1]. Então eu fiz um ano de serviço voluntário em Zumbahua, uma região indígena em uma altitude de 3.600 metros, antes de ganhar uma bolsa para estudar na Europa. Em Louvain, eu também tomei parte na política estudantil, mas então eu me casei e fui aos Estados Unidos para estudar para um doutorado. Apesar de eu ter mantido minhas convicções de esquerda, eu não estava politicamente ativo. Algumas pessoas que se consideram da esquerda radical dizem que eu não sou da esquerda porque eu não estava ativo ao lado deles, mas isso é arrogância. Existem muitos espaços na esquerda nos quais se pode obter formação e agir, e a Teologia da Libertação e a Doutrina Social da Igreja são alguns desses espaços.  

E: O Equador passou por uma crise econômica em 1999-2000, a qual foi seguida por um período de turbulência política – os Presidentes Mahuad e Gutiérrez foram escorraçados dos cargos em 2000 e 2005, com figuras não eleitas ocupando o poder no meio tempo. Como você se juntou ao governo do sucessor de Gutiérrez em 2005?

RC: De vez em quando, voluntariamente, eu aconselhava Alfredo Palacio, quando ele era Vice-Presidente da República [2]. Eu nunca tinha me encontrado com Palacio, mas tinha mantido contato com ele através de um amigo mútuo, Rubén Barberán, que eu conhecia de nosso tempo como ativistas estudantis de esquerda [3]. Eu escrevi alguns artigos para o Vice-Presidente sobre a dolarização e sobre os fundos de petróleo, que foram bem recebidos. Quando Gutiérrez caiu e Palacio assumiu a presidência, ele nomeou-me Ministro da Economia e das Finanças.

E: O que o levou a se candidatar à presidência em 2006?

RC: Em meu curto tempo como Ministro das Finanças – cerca de cem dias – nós demonstramos que não é necessário fazer o de sempre: submissão ao FMI e ao Banco Mundial, pagando a dívida externa sem atentar a débitos sociais ainda pendentes. Isso criou um alto nível de expectativas por parte do público. Quando eu saí da pasta ministerial, houve protestos e manifestações – provavelmente os primeiros no país em apoio a um Ministro das Finanças! Eu inicialmente planejava voltar a ensinar na Universidade de São Francisco de Quito, mas fui dispensado bem antes do serviço começar porque, assim disse a hierarquia, eu era um político. Nesse ponto Ricardo Patiño e um grupo de colaboradores me disseram que nós não podíamos deixar as expectativas que tinham sido criadas, o sentimento que as coisas podiam ser feitas diferentemente, acabarem em mais um desapontamento [4]. Nós viajamos pelo país e formamos um movimento político para assegurar a presidência. Pois nós vimos claramente que para mudar o Equador, nós tínhamos de obter o poder político.

E: Por que você começou a chamar esse processo de Revolução Cidadã?

RC: Durante a campanha nós estávamos claramente conscientes de que o que estávamos propondo era uma revolução e uma mudança rápida nas estruturas existentes da sociedade equatoriana, para transformar o Estado burguês em um Estado verdadeiramente popular. Encarando a deslegitimazação da classe política, a qual não mais representava ninguém além de si mesma, dissemos a nós mesmos que éramos nós, enquanto cidadãos, que tínhamos de desvelar as inadequações. Nós decidimos, então, chamar esse processo de uma revolução dos cidadãos, uma revolta de cidadãos indignados. Nossa revolução antecipou em cinco ou seis anos o movimento dos indignados que está ocorrendo na Europa. Essa revolução também é profundamente bolivariana, sobretudo no que diz respeito à integração regional. E nós também nos inspiramos na revolução liberal de Eloy Alfaro, a única revolução real que ocorreu nesse país. Por isso Alfaro foi assassinado em 1912, de forma bárbara, porque realmente estava mudando as estruturas do país naquele tempo [5].

E: Você assumiu o cargo no início de 2007. Nesse mesmo ano, mais tarde, a economia mundial foi abalada pelo colapso de crédito que desembocou na crise financeira de 2008. Qual foi o impacto dessa crise no Equador e como seu governo procurou confrontá-la? 

RC: Nós fomos triplamente golpeados pela crise. Além das consequências comuns de uma crise – perda de mercados de exportação, diminuição do financiamento, etc. – houve um colapso nas remessas de imigrantes, que desde a crise de 1999 até a nossa ascensão ao poder eram o que sustentava o país. Também o preço do petróleo, um produto essencial da nossa economia, caiu. A despeito disso, em 2009, enquanto a economia da América Latina se contraiu 2%, nosso crescimento foi pequeno, menos de 1%, mas positivo. Modéstia aparte, isso foi ainda mais espantoso considerando que a economia foi dolarizada desde 2000, privando-nos de um instrumento central à política econômica. Como isso foi atingido? Através de uma combinação de conhecimento técnico e uma visão de bem comum – agindo em prol dos nossos cidadãos, e não do capital financeiro. Por exemplo, nós costumávamos ter um banco central autônomo, que é uma das grandes armadilhas do neoliberalismo, de forma que, qualquer que seja o governo no poder, as coisas continuem como são. Graças à Constituição de 2008, o banco central não é mais autônomo. Nós tiramos vantagem dos poucos benefícios que um sistema rígido e dolarizado oferece, como não precisar de reservas para lastrear uma moeda nacional. Quando o banco central era autônomo, ele tinha milhões de dólares nas reservas nacionais – sendo que o principal contribuinte era a previdência social – que seriam enviados para o além-mar, para a Flórida. Depois que a autonomia do banco foi posta sob controle democrático nós pudemos trazer essas reservas de volta ao país e usá-las para dinamizar a economia. No caso dos bancos privados enviarem dólares para o além-mar, nós impusemos um coeficiente de liquidez doméstico, obrigando-os a trazer o dinheiro de volta. Nós obtivemos um novo financiamento da China. Isso tudo significou que pudemos tomar medidas anti-cíclicas para mitigar os efeitos da crise. Não apenas não reduzimos o investimento público, nós o aumentamos. A mistura de medidas significou que nós pudemos crescer em 2009; de acordo com o CEPAL, o Equador foi um dos países que se recuperou mais rapidamente da crise, e no ano passado estava entre as economias de crescimento mais rápido na América Latina. 

E: Quais foram as vantagens e as desvantagens da dolarização instituída pelo Presidente Mahuad em Janeiro de 2000?

RC: A dolarização significou o suicídio monetário para o Equador – e não, tal como na Europa, para adotar uma moeda transnacional comum; aqui foi uma moeda externa que foi adotada. Conseqüentemente, nosso destino depende em larga medida da coincidência da política monetária dos Estados Unidos com as nossas necessidades. Nossa grande sorte nos anos recentes foi que, de modo geral, isso ocorreu. O enfraquecimento do dólar foi benéfico a nós, ao passo que países que não adotaram o dólar como sua moeda estão enfretando problemas: perda de competitividade nas exportações, apreciação real. Mas é necessário distinguir entre boa sorte e boas políticas. A  dolarização foi uma medida totalmente equivocada. Dentro desse erro, nós tivemos alguma sorte.

E: Em 2008, você montou uma comissão para renegociar a dívida pública do Equador, que pelo início do seu mandato tinha atingido cerca de 10,3 bilhões de dólares, cerca de um quarto do PIB. Qual era o pensamento por trás disso e qual foi seu efeito? 

RC: O custo da dívida externa era um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento do Equador. Em certo momento, pagar a dívida consumia 40% do orçamento, três vezes o que era gasto na esfera social – educação, saúde e essas coisas. A alocação de recursos demonstrava quem estava no comando da economia: banqueiros, credores, instituições financeiras internacionais. Nós organizamos a criação da Comisión para la Auditoría Integral del Crédito Público (CAIC); essa foi a primeira vez que uma instituição dessas foi criada na América Latina a partir da iniciativa de um governo, e não da sociedade civil. A Comissão provou além de qualquer dúvida o que já sabíamos: a dívida externa era imoral, um roubo. Por exemplo, os Fundos Globais de 2012 e 2030 foram vendidos no mercado secundário por 30% do seu valor, mas nós tivemos de pagá-los por 100% do valor. Se descobriram coisas atrozes nos documentos que tinham sido assinados pelos supostos advogados do país. Quando a Comissão olhou os contratos, ela também achou muita corrupção e conflitos de interesse. Dessa forma, em Dezembro de 2008 a CAIC decidiu que esse débito era imoral, e nós declaramos uma moratória unilateral sobre esses fundos. Isso aconteceu em um momento no qual nós estávamos em uma posição econômica forte – os preços do petróleo estavam altos, as exportações estavam crescendo – algo que foi premeditado. Isso significava que o valor do débito caiu, e nós forçamos nossos credores a negociar e vender seus fundos em uma audição holandesa. Nós conseguimos comprar de volta nosso débito por 32% ou 33% de seu valor, o que significava bilhões de dólares de economias para o povo do Equador, tanto em capital quanto em pagamento de juros. Isso liberou muitos recursos que nós pudemos então dedicar à esfera social; agora, a situação é a reversa da anterior – nós gastamos três vezes mais em educação, saúde, habitação que em questões de débito.

E: Os processos constitucionais populares foram um traço comum dos governos reformistas bolivarianos de esquerda da América Latina ao longo da década passada. Que forma adquiriu esse processo no Equador e que problemas sociais e políticos a Assembléia Constituinte de 2008 quis solucionar?

RC: A convocatória da Assembléia Constituinte foi nossa resposta ao grito de "Vão todos embora!" da insurreição popular - a "foragida" - que derrotou o governo de Lucio Gutiérrez em 2005. Quisemos concretizá-la de forma radical, porém democrática e constitucional. Os atores e partidos que nos tinham governado desde 1979 careciam de legitimidade democrática. Pretendíamos fixar as bases de um novo pacto de convivência que permitisse ao país sair do neoliberalismo, recuperar a soberania nacional sobre os recursos estratégicos e relançar o Estado ao primeiro plano da coordenação social. A convocatória de uma Assembléia Constituinte permitiu que as pessoas rapidamente confiassem em nós, apesar de não termos um partido organizado, e também recuperar o valor da palavra como parte substantiva da vida política de um país. Por isso obtivemos o apoio de 80% dos cidadãos no referendo que permitiu criar a Assembléia Constituinte. Essa foi a primeira grande derrota da direita e das forças reacionárias do país.

Uma vez instalada a Assembléia, o desafio era imenso. Se tratava de delinear as bases constitucionais em que repousaria nossa ação de governo e a ação do Estado e da sociedade durante as próximas décadas. Não fomos irresponsáveis ao ponto de pensar que essa Constituição só serviria ao nosso governo. Se tratou de um pacto intergeracional para forjar o Equador do presente e do futuro. O processo constituinte foi, nesse sentido, a batalha política mais transcendental que lutamos nesses cinco anos de governo. Desde essa perspectiva, eu valorizo, fundamentalmente, duas questões: a Constituição quem fez foram os equatorianos pensando a partir do Equador e para os cidadãos que aqui residem. Nos inspiramos em diversos ideais democráticos e experiências populares presentes no cenário global, porém o texto é uma resposta nacional a nossos problemas e utopias concretos. Nesse momento, fomos altamente inovadores e criativos nas nossas propostas delineadas no horizonte da constituinte. Idéias como os "direitos naturais", "a cidadania universal", o Equador como um "território livre de bases militares estrangeiras", entre outras, são idéias forjadas no calor dos debates entre os presentes em nossas assembléias e na sociedade. Talvez tenhamos sido ingênuos ou excessivamente idealistas em algumas questões, porém é isso que acontece em todo processo constituinte, o produzir um horizonte de aspirações que permita nos imaginar como país nos marcos de um projeto coletivo que nos torna coesos e nos traça um caminho.

O procedimento constitucional foi, pois, uma deliberação coletiva que logrou produzir um pacto de convivência forjada a partir de nossa experiência política específica, relacionado com nossos problemas enquanto nação e sob o reconhecimento de uma série de novos direitos, garantias e instituições que, nos marcos dos grandes princípios da revolução democrática moderna, supõe uma resposta política endógena, auto-determinada e imaginativa ao projeto de uma nação soberana, inserida no planeta e na região Sul do globo. Quiçá, o exemplo mais preciso de tudo isso é o que a Carta Magna denomina "morte cruzada": uma instituição própria de regimes parlamentaristas (a despeito de o nosso sistema político ser presidencialista), que permite, que em caso de conflitos entre os dois principais poderes do Estado (o Executivo e o Legislativo), um deles possa socilitar a cessação de funções do outro tendo como consequência a convocação imediata de eleições gerais para ambos poderes do Estado. Se trata de um arranjo que permite uma saída institucional às recorrentes crises políticas do país. Não devemos esquecer que entre 1996 e 2005 nenhum presidente logrou terminar o período de serviço para o qual foi eleito, e três deles foram derrubados em meio a grandes mobilizações sociais. Foi no calor do debate constitucional de 2007-2008 que pudemos encontrar esses tipos de arranjos institucionais "próprios" que, entre muitos outros, nos permitem sustentar a afirmação de que estamos em um processo democrático, entendido aqui como a capacidade dos povos para desenhar as instituições que lhes permitem o auto-governar.

Pudemos então avançar na reconstrução do Estado, depois do arrastão neoliberal que tinha feito em pedaços suas capacidades de ação pública. Esse Estado não é igual ao que se construiu nas décadas passadas: se trata de um Estado descentralizado, desconcentrado e aberto à participação popular, porém é um Estado forte com capacidade de governar e regular o mercado a serviço do bem comum. A partir daí é possível avançar para o que a Constituição denomina como "a construção de um sistema econômico justo, democrático, produtivo, solidário e sustentável baseado em uma distribuição justa dos benefícios do desenvolvimento, dos meios de produção e na geração de trabalho digno e estável". Conseguimos bloquear a privatização dos recursos naturais não renováveis do país; impulsionamos a idéia do bem viver acima da valorização de receitas tradicionais de crescimento e de desenvolvimento; aprofundamos a estrutura de direitos sociais e a possibilidade de participação social; delineamos o horizonte do direito universal à segurança social, sobretudo às pessoas ocupadas com o trabalho doméstico não remunerado; caminhamos ao reconhecimento da plurinacionalidade do Estado e das organizações, povos e nacionalidades como sujeitos de direito; introduzimos um amplo empoderamento dos migrantes internos; a gratuidade da educação superior; a primazia do poder civil sobre o ator militar; e o aprofundamento do sufrágio universal. A lista é vasta. Talvez tenha lembrado só alguns elementos.

A Constituição nos traça um horizonte, porém não resolve os problemas do país de modo automático. É um ponto de partida e não de chegada, como acredita certa esquerda dogmática que pensa que toda a receita de mudança e da felicidade estão contidas nas páginas do texto e que basta só aplicar o escrito. Não é assim. A verdadeira luta política começou a partir da aprovação do texto constitucional, em meio a um processo de transição institucional que pressupunha aprovar uma série de leis para dar forma material aos princípios constitucionais. A política não desaparece nem se resume a um texto constitucional. Não por acaso, a transição pós-constituinte tem sido mais tensa e conflitiva que o próprio processo constituinte. Não nos esqueçamos que, para aprovar uma lei prevista pela Constituição - a Lei de Serviço Público -, as forças mais retardatárias do países se mobilizaram contra o governo violentamente e colocaram em sobressalto a democracia. Isso foi o que aconteceu no dia 30 de Setembro de 2010. Sem uma mudança constitucional no marco de um processo constituinte, teria sido muito mais difícil avançar, porém o caminho da transformação é ainda maior e dependerá se teremos a possibilidade de seguir disputando a mudança de poder no país.

E: Quais políticas seu governo implementou para conseguir reduzir a desigualdade?

RC: A América Latina possui o título desonroso da região mais desigual do mundo, e os países andinos são a parte mais desigual dessa região. Esse é o porquê foi uma loucura aplicar o sistema neoliberal em países como o Equador nas décadas recentes, um sistema supostamente baseado na competitividade e na liberação do mercado. De que tipo de competição eles estavam falando? Foi um massacre. Agora nós estamos reduzindo a desigualdade, e com ela a pobreza também, através da combinação de quatro coisas. Em primeiro lugar, através de impostos maiores sobre os ricos. Nós instituímos um sistema de taxação muito mais progressivo, e agora as pessoas pagam realmente seus impostos – a arrecadação dobrou. Esses recursos, somados às receitas do petróleo e ao dinheiro poupado pela redução do peso da dívida, podem ser voltados à educação, à saúde e tudo mais. Esse é o segundo ponto: fornecer igualdade de oportunidades. As pessoas não mais precisam pagar pelo sistema de saúde ou pela educação, coisas que eram bem caras para os pobres – a matrícula escolar custava 25 dólares, mas agora é totalmente livre; algumas crianças recebem livros e uniformes também. 

Em terceiro lugar, escolhemos governar os mercados e melhorar o sistema trabalhista. O mercado é uma realidade que não podemos evitar; mas acreditar que o mercado deve designar e distribuir tudo é outra coisa. O mercado precisa ser governado pela ação coletiva. Estamos acabando com formas de exploração como a terceirização,  que tinha como pressuposto, através do uso da externalização, a generalização de práticas como o calote de salários mínimos, a não filiação ao seguro social e a imposição de jornadas de trabalho extenuantes. Estamos melhorando os salários reais – conseguimos colocar um fim ao abismo entre as rendas familiares e o custo da cesta básica. Entre 60% e 65% das famílias conseguiam pagar pela cesta básica no início do nosso mandato; agora, são 93%, o ponto mais alto na história do país. Nós inclusive demonstramos a falha da teoria econômica ortodoxa, que diz que para se gerar empregos é necessário baixar o salário real: aqui o salário real aumentou substancialmente, e nós temos uma das taxas de desemprego mais baixas da região – pouco menos de 5%. Nós também demos atenção à qualidade do emprego, garantindo que os negócios se adequassem às leis trabalhistas. Enquanto aumentamos os salários reais, abaixamos a remuneração ao capital. Nesse país, se alguém propusesse aumentar o salário de mínimo em alguns dólares era chamado de demagogo, mas ninguém estava surpreso com taxas de juros entre 24% e 45%. Nós reduzimos drasticamente as taxas para 8% e 9%, para o setor corporativo.

Em quarto lugar, nós distribuímos adequadamente nosso patrimônio social. Nós costumávamos dar de presente nosso óleo: antes do governo de Palacio, as companhias transnacionais ficavam com 85 de cada 100 barris, deixando-nos 15; agora nós renegociamos os termos dos contratos e as proporções foram revertidas. Outro exemplo: depois da crise econômica de 1999-2000, muitas empresas que eram usadas como garantia para empréstimos para particulares deveriam ter ido para as mãos do Estado; fomos nós que executamos essa cobrança e tomamos essas empresas para o Estado. No caso do Grupo Isaías, que era de propriedade da família de mesmo nome, recuperamos cerca de 200 empresas. Outros governos as privatizariam novamente, de forma que elas acabassem voltando às mesmas mãos de sempre. Nós usamos o sistema público de bancos para fornecer meios para que os próprios trabalhadores pudessem comprar partes dessas empresas, ou mesmo empresas inteiras.

E: Você mencionou um aumento na arrecadação de impostos – como isso foi conquistado?

RC: Através da combinação de credibilidade, controles e incentivos. Em Guayaquil nós temos um ditado que diz: “O macaco sabe em qual árvore subir”. No Equador, homens de negócios e banqueiros costumavam saber que, se eles não pagassem seus impostos, tinham amigos no governo que garantiam que não acontecesse nada. Quando se tornou claro que tinha chegado um governo em que eles não podiam mandar e desmandar, eles começaram a pagar seus impostos. Em segundo lugar, nós melhoramos fortemente os controles e, em termos de recursos humanos, o Serviço de Rendas Internas. Em terceiro lugar, incentivos: por exemplos, matamos dois coelhos com uma cajadada ao permitir às famílias deduções de impostos ao gastar em habitação, educação e saúde. Antes, um homem com seis crianças ganhando 20 mil dólares ao ano pagava o mesmo que um solteirão ganhando o mesmo valor; agora o sistema é mais justo. Ao mesmo tempo, para receber tais deduções todo mundo agora pede faturas para justificá-las, o que nos permitiu melhorar a coleta de impostos de profissionais liberais - médicos, advogados - e de contratos de aluguel, entre outras coisas. Outro exemplo vem do setor bananeiro: os produtores vendiam o equivalente a 600 milhões de dólares e pagavam 1 milhão em impostos, o que era ridículo. Nós então implementamos uma nova forma de calcular qual a taxa adequada, optando que a pagassem previamente; se qualquer um quisesse questioná-la - o que seria embaraçoso, já que significaria que ele basicamente estava perdendo dinheiro vendendo bananas -, se tornaria imediatamente objeto de uma auditoria.  Também houve muitas outras reformas que permitiram-nos coletar mais impostos. 

E: No que diz respeito a problemas de desenvolvimento, como você propõe equilibrar a exploração dos bens naturais do Equador com a preservação de sua incrível diversidade ecológica?

RC: É uma loucura dizer não aos recursos naturais, que é o que parte da esquerda está propondo - não ao petróleo, não à mineração, não ao gás, não à energia hidrelétrica, não às estradas. Essa é uma esquerda infantil, que só faz legitimar a direita. Na tradição socialista clássica, eu não sei onde Marx, Engels, Lenin, Mao, Ho Chi Minh ou Castro disseram não à mineração ou aos recursos naturais. Isso é uma novidade absurda, mas é como se ela tivesse se tornado uma parte fundamental do discurso da esquerda. E é ainda mais perigoso quando quem propõe tais coisas são pessoas que, supostamente, falam a mesma linguagem que você. Com tantas restrições, a esquerda não será capaz de oferecer qualquer projeto político viável.

Nós não podemos perder de vista o fato de que o principal objetivo de um país como o Equador é eliminar a pobreza. E para isso nós precisamos dos recursos naturais. Existem pessoas aqui que parecem mais dispostas a criar mais pobreza, desde que se deixe esses recursos no chão, ou que até enxergam a pobreza como algo folclórico - como se crianças nos altiplanos centrais devessem continuar morrendo de gastroenterite e a expectativa de vida devesse continuar em 35 anos. Isso é criminoso. Ademais, se você olhar para os países capitalistas que superaram a pobreza satisfatoriamente através do desenvolvimento - Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura -, todos eles impuseram altas doses de exploração do trabalho por um longo período, para conseguir acumular o talento humano, a ciência e a tecnologia necessários para impulsionar o desenvolvimento. Graças aos seus recursos naturais, a América Latina não precisa passar por esse tipo de exploração. Por exemplo, o Equador acabou de subir 16 lugares no ranking de competitividade do Fórum Econômico Mundial.  Eu não acredito muito nesses rankings, eles são uma mistura de ideologia e questões técnicas - desregulação de mercados, flexibilização do trabalho, etc. Mas nós subimos, principalmente por causa das melhorias em comunicações e infraestrutura. Tais melhoras foram possíveis graças aos nossos recursos naturais.  Países sem tais recursos podem ter tido de recorrer à exploração da força de trabalho. Isso é inaceitável. Nós nunca vamos permitir isso, e nós não temos de fazê-lo. O que nós precisamos fazer é explorar tais recursos do modo certo.

E: Mas houve vários desastres com petróleo e mineração.

RC: Claro, isso é verdade. Mas uma coisa é dizer que houve maus cantores, outra coisa é querer abolir uma canção. Aí está um outro argumento falacioso de partes da esquerda - qual seja, o de que porque as coisas foram feitas de forma ruim no passado, eles seguirão sendo feitas assim. Tudo pode ser uma maldição - o turismo sexual na Ásia, o jogo em Las Vegas, a agricultura que usa muitos agrotóxicos ou que importa plantas que prejudicam a flora nativa - mas existem boas formas de turismo e de agricultura. O petróleo causou muito dano, e a mineração praticamente destruiu países inteiros, mas as coisas não precisam ser dessa forma. O primeiro projeto de extração petrolífera completado pelo meu governo em Pañacocha, na Amazônia, incluiu diversas alternativas para o desenvolvimento limpo. Se nós explorarmos os recursos naturais cuidadosamente, podemos até ajudar o ambiente, de duas formas. Primeiro, se a riqueza prejudica o ambiente através do consumo de energia, a pobreza também o faz: eu não posso dizer a uma família pobre vivendo próxima a uma floresta que não corte suas árvores. Se nós reduzirmos a pobreza, preservamos o ambiente. Em segundo lugar, há uma série de confusões: a de que o petróleo destrói a floresta, por exemplo. O que causa mais dano à floresta? A expansão da fronteira agrícola. Para evitar isso, precisamos criar fontes alternativas de emprego e renda. Outra confusão é a idéia de que a mineração contamina reservas de água. Não é verdade: a principal fonte de poluição hídrica é o esgoto. O esgoto de Quito, por exemplo, ainda é jogado no Rio Machángara, agora totalmente contaminado. Para mudar essa situação nós precisamos de milhões de dólares. Nós podemos obter tais recursos da mineração. É isso que quero dizer com a idéia de que a exploração adequada dos recursos naturais pode ajudar a conservar a natureza ao invés de destruí-la. 

E: Em Dezembro de 2007, seu governo lançou a Iniciativa Yasuní-ITT, na qual depósitos de petróleo sob o Parque Nacional Yasuní na Amazônia deviam permanecer intocados, em troca de compensações. Você poderia explicar o pensamento por trás disso?

RC: As maiores reservas comprovadas de petróleo no país estão em Yasuní-ITT - aproximadamente 900 milhões de barris. Isso teria um valor de cerca de 14 bilhões, dinheiro necessário ao país para escapar da pobreza. Nós estamos dispostos a abrir mão disso, para continuar a gerar um bem ambiental público global. Mas nós precisamos ser compensados por isso. Não pedimos os 14 bilhões integrais, mas apenas uma porção disso. Como calculamos tal porção? Se o petróleo fosse extraído, isso significaria a emissão de mais de 400 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera. Então nós devemos ser pagos pelo valor desses 400 milhões de toneladas no mercado de carbono. Isso está de acordo com o que foi chamado de emissões "liquídas" evitadas. Kyoto tem uma lista de compra de coisas que devem ser compensadas - como desmatamentos, para o qual existe o programa UN-REDD - e eles continuam adicionando mais itens, mas que ainda não chegou a um conceito integrador sobre tais emissões, que é o que se deve compensar.

E: Uma ação coordenada internacionalmente sobre a mudança climática parece menos provável hoje do que há dez ou vinte anos atrás. Você vê alguma forma de reviver esse movimento?

RC: No final das contas, o problema é político. Quando ocorre uma crise, se deve agir no interesse de seres humanos ou do capital? Olhe a Espanha: existe dinheiro para salvar os bancos mas não as casas das famílias. Em um nível global, bens ambientais são gerados pelo Terceiro Mundo e consumidos de graça pelo Primeiro. Imagine por um momento que a situação fosse a inversa - que fossemos nós que poluíssemos o mundo e que a Amazônia estivesse nos EUA e na Europa. Eles nos invadiriam para reivindicar compensações, em nome da justiça, dos princípios da civilização, da lei internacional. Mas eles são os fortes, no caso, com exércitos, mísseis e tudo mais. Por que eles deveriam nos compensar? Enquanto as relações de poder não mudarem, haverá muita retórica e poucas ações. Alguns entusiastas dizem que com o que está acontecendo na América Latina, essas relações de poder serão mudadas a partir do Sul. Eu acho que isso é um erro: estamos muito distantes da capacidade de afetar as relações de poder globais. São os cidadãos do Norte que irão mudá-las. Esse é o motivo pelo qual houve tanta esperança levantada pelo movimento dos indignados e de Occupy Wall Street, os quais foram um despertar dos cidadãos do Primeiro mundo. Mas só após esses cidadãos terem se rebelado contra as estruturas prevalecentes nós sairemos da retórica e iremos à ação, para que compromissos reais possam ser feitos para evitar mudanças climáticas e preservar o único planeta que temos.

E: Qual tem sido seu raciocínio por trás de suas políticas para as universidades e o que pretendem conseguir com elas?

RC: Para poder responder com algum sentido a essa pergunta é indispensável contextualizá-la. O Equador viveu uma crise tripla, produto da ausência da gestão de um conhecimento emancipador por parte de suas elites econômicas e intelectuais: uma crise de seu modo de acumulação e redistribuição, crise da qualidade de sua democracia e crise de sustentabilidade ambiental. Poderíamos sublinhar que o que se viveu é resultado de um fracasso cognitivo. Isso é, o problema se localiza no sistema que gera e questiona o conhecimento e em sua falta de conexão com as necessidades do país. Por isso, um dos eixos programáticos nodais do governo é a transformação da educação superior, da ciência e da tecnologia.

Temos clara consciência de que o padrão de especialização da economia equatoriana tem limites estruturais. Assim, por mais bonança que experimentem os preços das commodities, nosso modelo primário exportador não nos garante nem independência nem soberania econômica no médio e longo prazo. Os países emergentes que têm tido êxito na superação da pobreza e da desigualdade cedo ou tarde apostaram em uma inversão que pretendia desenvolver bens e serviços com alto valor em conhecimento agregado.

Nós, os países do Sul, vivemos uma nova dependência frente ao conhecimento do Norte. A esquerda tem que compreender que a soberania de um país também depende de uma geração de conhecimento que esteja ligada à resolução dos problemas que o afligem e ao cumprimento de suas utopias. E está é a razão pela qual estabelecemos uma agenda ambiciosa, mas profundamente pertinente no que diz respeito ao que se requer da educação superior, a ciência, a tecnologia e a inovação no país. 

Existem duas dimensões nas nossas políticas para o ensino superior. Uma é social. Costumava-se dizer que a educação aqui era gratuita, mas ela não era de fato: universidades públicas cobravam mensalidades, o que significava que 1 bilhão em gastos públicos na educação pública - um investimento pesado para um país como o Equador - ia para os mais ricos. A Constituição de 2008 declarou que o ensino superior deveria ser completamente gratuito. Os resultados foram extraordinários - por exemplo, as taxas de inscrição de indígenas e afro-equatorenhos aumentaram exponencialmente, e 15 mil dos 104 mil estudantes ingressantes na universidade esse ano vinham de lares que recebiam o Bonus de  Desenvolvimento Humano, uma transferência governamental a famílias de baixa renda [6]. Nós não criamos o Bonus, nós o melhoramos tecnicamente; e eu estou convencido que transferências monetárias, apesar de certamente ajudarem, não vão acabar com a pobreza. Oportunidades acabarão com a pobreza, e o fato de que pessoas agora podem ir à universidade, que a educação está sendo democratizada, significa uma grande chance em termos de oportunidades. A segunda dimensão é a qualidade. Um dos erros da esquerda é confundir democracia com mediocridade - a idéia de que todo mundo deveria poder ir à universidade e que o Estado deveria pagar pelo que quer que eles escolham fazer. Por exemplo, nós costumávamos ter 49 faculdades de Direito, as quais nunca conseguiam se coordernar, gerando mais de 60 mil advogados para um país como o Equador. E, ainda assim, queriam que nós continuássemos subsidiando mais faculdades de Direito. Graças à credibilidade e ao apoio popular que temos, nós dissemos não: nós devemos financiar a educação de acordo com as necessidades do país. Esses jovens não estão sentados lá para usar os impostos da sociedade, eles devem ser preparados para transformá-la.

Durante o Outubro de 2010 nós adotamos uma nova Lei Orgânica sobre a Educação Superior, que introduziu exames de admissão nacionais. Eles foram pensados para testar as aptidões ao invés do conhecimento, para que estudantes pobres oriundos de más instituições tivessem a mesma chance de passar que os ricos. A Lei também introduziu avaliações da qualidade das universidades. Durante a primeira avaliação, 26 universidades avaliadas foram colocadas na categoria E, a mais baixa da escala. Isso significava que elas não eram universidades, nem de longe - aqui, uma garagem com uma lousa costumava ser chamada de universidade, era uma fraude perpetrada contra a sociedade. Essas 26 receberam um ano para melhorar, e quando a avaliação foi feita pela segunda vez, 14 foram reprovadas. Essas 14 foram fechadas - um evento sem precedentes na história da América Latina e talvez do mundo, especialmente quando se percebe que o fizemos com todas as garantias que concede nosso sistema democrático.

O fortalecimento do sistema de educação superior tem que vir de mãos dadas com a geração das condições que permitam a edificação do sistema nacional de inovação social e deve cobrir aqueles vácuos que atualmente o sistema universitário equatoriano possui. Por essa razão, o governo propôs na Lei Orgânica de Educação Superior de 2010, a criação de quatro novas universidades de nível mundial que permitam consolidar a sociedade de conhecimento em nosso país.

A Universidade de Yachay (cujo significado é "Aprende! Conhece!" em língua quéchua) é a primeira cidade universitária de conhecimento planejada [7] tanto na região quanto no país, e seu objetivo é produzir economias de escala para potencializar a inteligência coletiva do sistema inovação do país em articulação com as redes mundiais do conhecimento. Nesse espaço, além da universidade, se localizarão os institutos públicos de pesquisa, os centros de transferência tecnológica e as unidades de pesquisa e desenvolvimento das empresas privadas. Yachay pretende se converter em um hub do conhecimento que construirá redes com o sistema universitário nacional e internacional, mas articulando seu modelo de inovação com o aparato produtivo e com as necessidades regionais e do país. A cisão do sistema de educação superior e do sistema de inovação conduziria a um rotundo fracasso da aposta programática da construção da sociedade do conhecimento e da criatividade. A Cidade do Conhecimento Yachay será o espaço nacional no qual se coordenará a interação desses dois sistemas.

Equador, por ser um país muito diverso, conta com uma vantagem comparativa primordial, que é a informação contida nessa biodiversidade. A Universidade de Ikiam (que significa "natureza" na língua shuar) é a universidade regional amazônica, cujo objetivo é consolidar um centro universitário de prestígio mundial em um dos laboratórios vivos mais importantes com que conta nesse momento a humanidade. Nos referimos aqui à biodiversidade presente na Amazônia.

A Universidade Nacional de Educação (UNAE) constitui uma das principais necessidade do sistema educativo nacional. Um dos maiores erros das reformas educacionais na História do Equador foi a miopia frente à integralidade do sistema. Usualmente se aponta que o problema educativo do país está nas escolas e nos colégios. Todavia, no sistema de educação formal o centro da transformação recai sobre o docente, o qual se forma, por sua vez, no sistema nacional de educação superior. Os institutos técnicos e tecnológicos pedagógicos, assim como a maioria das faculdades do sistema universitário, ou não cobrem a demanda ou possuem graves problemas de qualidade.

Finalmente, a Universidade das Artes (UniArtes) pretende consolidar um sistema nacional de cultura e arte que, dando guarida às expressões culturais e artísticas que existem na sociedade, permita aumentar a criatividade média da população e democratizar o intercâmbio cultural e artístico em todos os rincões do país para construir o Estado intercultural e plurinacional em elaboração. Em escala mundial, a trágica construção de um sistema fordista de produção em série resultou na separação entre ciência e arte. A democracia e o sistema social, educacional e produtivo do Equador têm como objetivo a construção de uma sociedade do aprendizado, do conhecimento e da inovação social, cuja materialização deverá rearticular socialmente aquela interrelação, que jamais deveria ter sido quebrada, entre ciência e arte.  

Sustentamos que no Equador a qualidade da democracia, a transformação do aparato produtivo e a sustentabilidade ambiental dependem da construção do sistema nacional de inovação e da transformação do sistema nacional de educação superior. Me atreveria a dizer que a emancipação dos povos se enraiza na emancipação social do pensamento e do conhecimento. Essa é nossa estratégia programática.

E: Os movimentos indígenas equatorianos fizeram importantes contribuições à Revolução Cidadã, porém alguns, como o CONAIE, se mostram muito críticos de seu governo. Quais são as principais diferenças entre vocês e em que se pensou para solucionar essas desavenças?

RC: Deve-se entender a relação de nosso governo com o movimento indígena a partir de três momentos. O primeiro se localiza na campanha eleitoral de 2006, quando nossa Aliança País fez diversas aproximações entre si e a dirigência indígena do movimento Pachacuti para nos apresentarmos juntos nas eleições [8]. Fizemos isso apesar de saber que o movimento indígena estava desprestigiado após a sua participação no governo de Lucio Gutiérrez, um coronel que chegou ao poder em aliança com a esquerda e que traiu todos os princípios nos quais se baseava essa aliança: se proclamou o melhor amigo de Bush, seguiu apoiando o Plano Colômbia, quis assinar o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, nomeou um banqueiro como Ministro da Economia e seguiu uma linha neoliberal na economia nacional. O movimento Pachacuti participou com quatro ministros no gabinete de Gutiérrez e, apesar de ter se retirado da aliança sete meses depois, vários de seus dirigentes permaneceram em diversos cargos até o último dia desse governo. Depois dessa experiência, o Pachacuti passou a ser visto como mais um partido do establishment.

Apesar disso, como respeitamos a trajetória do movimento indígena, decidimos propor ao Pachacuti sair juntos, Aliança País e Pachacuti, na lista presidencial, a qual seria encabeçada pelo candidato que tivesse mais possibilidades de levar ao triunfo eleitoral (o qual definiríamos com a ajuda de uma pesquisa nacional), enquanto o outro ocuparia a vice-presidência. Eles não aceitaram, e alguns setores se mostraram muito hostis conosco depois dessa aproximação. Alguns dizem que a dirigência indígena, após sua passagem pelo governo de Gutiérrez, não estava disposta a aceitar um candidato externo ao movimento; pode ser que fosse isso, mas eu acredito que a dirigência estava se distanciando das bases e sabia que aceitar uma colaboração conosco pressupunha abrir a agenda política. Não aceitaram nossa proposta, e aí decidimos que a chapa seria com Lenín Moreno [9]. Foi uma decisão que, vista cinco anos depois, parece muito atinada, porque o Vice-Presidente foi o segundo mandatário de todos os equatorianos e não só de um setor da população. Seu trabalho em favor dos inválidos foi excelente e agora é uma figura muito querida em todo o país. Em 2006, nós passamos ao segundo turno com o bananeiro multimilionário Álvaro Noba com quase 23% dos votos, e Pachacuti obteve nessas mesmas eleições só 2% dos votos. O povo já não os via como uma força capaz de disputar a mudança.

E: E o segundo momento?

RC: O segundo momento foi em 2007-2008, na Assembléia Nacional Constituinte. A Aliança País obteve 80 dos 130 assentos da Assembléia, uma ampla maioria por si só. Todavia, debatemos cada um dos pontos da agenda indígena, apesar do Pachacuti ter muito poucos delegados na Assembléia. Como parte desse debate, declaramos o caráter plurinacional e intercultural do Estado equatoriano. Dez anos atrás, na Assembléia Constituinte de 1998, quando o movimento Pachacuti obteve 10% da representação, não conseguiram obter essa declaratória, quando eram mais fortes. Nós, ao contrário, sabíamos da legitimidade histórica dessa declaratória e sustentamos desde o primeiro dia da Assembléia a tese da plurinacionalidade. Isso não significava, todavia, apostar na fragmentação do Estado ou o fim da unidade nacional. A idéia sempre foi reconhecer a diversidade e a diferença para sermos mais integrados e coesos como nação, não para dar lugar a qualquer autonomia territorial que debilitasse o Estado Nacional. De igual modo se reconheceram os direitos da natureza, a possibilidade de formar circunscrições territoriais indígenas, o direito à água como bem público e a própria idéia da democracia comunitária.

Claro, os debates na Constituinte foram duros em diversos pontos. Não aceitamos o consentimento prévio, um mecanismo que previa que as comunidade deveriam fornecer a sua autorização ao Estado no caso deste querer usar os recursos estratégicos do País, e isso gerou muito descontentamento em setores próximos ao movimento indígena. Os recursos naturais são de propriedade pública, são bens comuns, e não podíamos permitir que comunidades pequenas, por mais legitimidade histórica que tivessem em seus territórios, fossem as pessoas jurídicas que dessem a última palavra em seu uso. Finalmente, a Constituição incorporou a figura da "consulta prévia", que consta no Convênio 169 da OIT [10]. Em todo caso, no referendo para aprovar a Constituição, celebrado no dia 28 de Setembro de 2008, o Pachacuti apoiou a tese do "Sim" e ganhamos todos com 63% dos votos populares. Apesar das diferenças com o movimento indígena, foi possível compartilhar muitas teses - a luta contra o neoliberalismo, por exemplo - e avançar no diálogo político. Isso foi o que acabou mais tarde devido à intransigência de alguns de seus dirigentes e sua visão fragmentada do país. Nós governamos para todos os equatorianos e equatorianas e não podemos ceder às pressões de minorias, por mais justificadas que possam parecer suas demandas.

O terceiro momento se inicia em 2009, com as eleições gerais que se realizaram nos marcos da nova Constituição. Aqui vemos dois elementos. Por um lado, se consolidaram certas alianças em determinados territórios com o movimento indígena; por exemplo, em Imbabura e Chimborazo, dois territórios de elevada população ameríndia, a Aliança País apresentou candidatos provenientes das organizações indígenas e triunfou folgadamente. Em outros territórios as alianças não se concretizaram, porém estabelecemos diversas relações com dirigentes médios e com as bases indígenas; essa foi nossa estratégia em vista da impossibilidade de diálogo com certos dirigentes índios. Por outro lado, desde 2009 se consolida uma visão corporativa e pouco flexível da dirigência do CONAIE. Eles estavam acostumados a ditar "ordens" que se supunha que os governos deveriam aceitar pelo mero fato de serem eles próprios que as emitiam. Não assumem o debate democrático e não aceitam que quando o povo elege um partido para governar ele o faz em função do programa político que apresentou. Eles acreditam que suas ordens são legítimas simplesmente porque foram vítimas. E isso não pode ser assim.

Nos debates sobre a Lei das Águas, a Lei de Mineração e outras leis, já era impossível debater com o movimento Pachacuti. Sua visão é fundamentalista e está muito influenciada por ONGs estrangeiras, com um discurso ecológico que não consegue entender as grandes necessidades do povo equatoriano. O Vice-Presidente boliviano acaba de escrever um livro sobre como as ONGs são corresponsáveis pela perda de soberania estatal em amplos territórios da Amazônia [11]. No Equador essa realidade não é diferente. No caso da Lei de Águas estávamos de acordo em 80% do corpo legal, porém o movimento Pachacuti se fechou na idéia de que o Orgão Estatal encarregado de dirigir o setor hídrico do país devia ser composto só por comunidades, seus membros e juntas de água. E a legitimidade democrática, onde entra? Como podemos ter um orgão público de regulação de um setor tão importante como a água sem a presença política do governo do Estado nacional? Aqui existem diferenças conceituais: nós não somos corporativistas; a dirigência indígena muitas vezes só quer instuições controladas por eles mesmos, mas nós vamos além dessa visão fragmentada do Estado. O resultado foi que, pelo fato do movimento Pachacuti fazer o jogo da oposição direitista na Assembléia, o Parlamento não aprovou a Lei de Águas e hoje ainda seguimos com a mesma lei aprovada pelos neoliberais na década de 90, isso é, uma lei que não permite ao Estado regular o setor hídrico. Esse é só um exemplo. Existem outros nos quais o Pachacuti sempre votou com a direita: não apoiaram a criação da ALBA (Aliança Bolivariana), não apoiaram a vigência do SUCRE [12] nem a arquitetura financeira regional, acabam por se abster sobre o rechaço do escandaloso laudo arbitral recentemente emitido pelo CIADI, que obriga o país a pagar mais de 2,2 bilhões de dólares à petroleira Oxy [13]. Por último, no dia 30 de Setembro de 2010, quando houve uma tentativa de desestabilização democrática, os dirigentes indígenas chamaram as suas bases para se mobilizar contra o Presidente e contra seu mandato democrático e constitucional. Não é fácil dialogar nessas condições.

Acredite, essa situação não me agrada. Eu vivi em minha juventude durante muito tempo em um dos territórios indígenas mais miseráveis do país. Ali aprendi alguma coisa de quechua, aprendi o rigor da vida camponesa indígena, realizei a alfabetização e o trabalho político de formação para gente que agora é dirigente da CONAIE. Entendo essa questão e creio que podemos fazer muito mais por esses setores, porém é difícil dialogar em tais condições de visão política estreita. Sempre tratei o movimento indígena de igual para igual, sem infantilizar os atores indígenas nem vitimizá-los, como sempre fizeram as ONGs e certa esquerda paternalista, e isso significa que por vezes posso ser duro com eles, como sou com qualquer outro ator. Não compartilhamos a visão do problema indígena como um problema só de indígenas que deve tratar-se a partir das instituições indígenas. Esse é o enfoque do multiculturalismo neoliberal que proliferou durante a década de 1990 na América Latina. O problema indígena é de todo o Estado equatoriano, e todas as instituições públicas devem contribuir para resolvê-lo independentemente de serem ou não dirigidas por indígenas. A partir dessa perspectiva demos grandes passos a favor da inclusão dos indígenas na educação, na Universidade, na saúde, entre outras conquistas. Onde se produziram as maiores reduções da pobreza foi entre a população indígena. Porém ainda falta muito por fazer.

E: Como vocês responderia aos críticos, tanto dentro quanto fora do Equador, que dizem que seu governo tolheu a liberdade de impressa?

RC: Existe tão pouca liberdade de imprensa que eles podem dizer isso e imprimir esse tipo de coisa todo os dias! A mídia sempre foi um dos poderes que dominam "de facto" os países latino-americanos. Foram eles que elegeram presidentes, ditaram políticas e forneceram julgamentos. Mas agora existem governos progressivos com grande legitimidade e apoio popular - no Equador, na Argentina, na Bolívia, na Venezuela - que não estão dispostos a se submeter ao poder midiático. E então a mídia, que percebe estar perdendo seus antigos privilégios, montou uma campanha permanente para desacreditar esses presidentes e seus governos, tanto pessoalmente quanto seus projetos políticos, no nível nacional e internacional. Os maiores noticiários no Equador são propriedades de umas poucas famílias oligárquicas, as quais sempre estiveram na direita e no passado apoiaram ditaduras. Trata-se de negócios tremendamente corruptos, que cresceram acostumados a ter o governo sob seu controle. Isso pode ser surpreendente para aqueles que não conhecem a imprensa latino-americana. Mas, por exemplo, pensemos no que aconteceu com Murdoch antes do Inquérito Leveson - se nós fizessemos um décimo daquilo, nós teríamos sido vistos como inimigos da liberdade de imprensa. As pessoas na Europa e nos EUA não entendem que até mesmo requisitar o pagamento de impostos por parte da imprensa é aqui visto como um ataque à liberdade de imprensa. Com o tipo de imprensa que existe aqui na América Latina, não se trata daquela coisa de jornalistas heróicos e perseguidos que denunciam a corrupção das autoridades políticas, mas quase sempre o inverso.

E: Em dois casos concretos, um artigo publicado no El Universo por Emílio Palácio após a falha da tentativa de golpe de Estado contra você em Setembro de 2010, e El Gran Hermano, um livro publicado nesse mesmo ano, nos quais se traziam provas de corrupção contra seu irmão, você levou a questão aos tribunais. Essas situações foram julgadas em seu favor. Porém, retrospectivamente, você acredita que foi sensato trazê-las aos tribunais?

RC: Em um Estado de Direito como o do Equador não se persegue aos jornalistas, se persegue aos delitos. Esse jornal cometeu delitos de difamação e injúrias dizendo que ordenei atirar sem prévio aviso contra um hospital cheio de civis. O que aconteceria na Inglaterra se um jornal publicasse que a Rainha é culpada de crimes de lesa-humanidade? Lá é algo inadmissível, aqui é liberdade de expressão. A lei proíbe a difamação e aqui existem cerca de 12 mil julgamentos relacionados a injúria. Porém quando se indicia por injúrias um jornal e um jornalista, pronto, se considera um atentado contra a liberdade de expressão. Pois bem, se acaso alguém se lembra da notícia, a revista Vanguardia processou nosso Ministro de Relações Trabalhistas por ter-lhes acusado de não cumprir a legislação em matéria de relações trabalhistas. A mídia faz todos os dias o que tanto critica. Pessoalmente estou de acordo com a penalização das injúrias; não entendo o motivo de, se alguém vai para a prisão por não pagar royalties, não se dever ir também por roubar a dignidade ou a honra de uma pessoa. Isso é uma dupla moral. Creio que uma forma de enfrentar esse poder midiático - seus excessos, sua corrupção, sua má fé - é aplicando a lei. E a lei deve ser igual para todos.

E: Pode ser que isso seja certo quando está em jogo uma questão política importante, porém, não seria sensato fazer exceções em certos casos?

RC: No caso do El Universo se esgotaram todos os meios. A Constituição obriga, quando há uma notícia inexata, a retificação imediata. Eles nunca quiseram retificar nada. Durante o julgamento, em primeira instância, em segunda instância e na cassação, sempre lhes disse: corrijam o erro e tudo acaba, aqui ninguém quer prender ninguém nem ficar rico com o dinheiro dos outros. Porém tamanha era a soberba dessa gente que contava com a cumplicidade dos meios internacionais e outros meios nacionais de comunicação. Por exemplo, a Universidade de Columbia acaba de condecorar ao El Universo, dizendo que foram julgados por me chamarem de ditador. Mentira! Me chamou de criminoso contra a humanidade e afirmou que ordenei que se disparasse contra um hospital cheio de civis [14]. 

E: Você mencionou a revista Vanguardia, recentemente inspecionada por fiscais do trabalho por ignorar as normas trabalhistas. Tendo em conta que ela é um orgão de opinião, não havia melhor forma de abordar tais infrações?

RC: É que não se trata de coisas independentes. Os meios de comunicação ignoram as obrigações trabalhistas porque se acreditam intocáveis. A verdade é que eu nunca me interei da ação contra a revista Vanguardia, nem sequer o ministro sabia. Quem foi responsável foi um funcionário de segundo escalão. Dado que já tínhamos feito mais de 3 mil inspeções laborais e mais de 300 coações, o funcionário pensou: por que devo fazer uma exceção à Vanguardia? Apreendemos os bens. Com os outros 300 não havia problema algum, mas quando apreendemos os bens de uma revista que havia infringido as leis trabalhistas, ATENTADO CONTRA A LIBERDADE DE EXPRESSÃO! Já chegou a hora de superar essa chantagem. É só mais uma empresa que não cumpriu suas obrigações para com os trabalhadores e a lei deve ser igual para todos. Crer que porque se abre uma empresa dedicada à comunicação já se está acima da lei é um atentado contra o Estado de direito.

E: Após a decisão de seu governo de conceder asilo a Julian Assange, o governo britânico ameaçou entrar na Embaixada do Equador e levá-lo utilizando a força; o Ministro de Assuntos Externos, William Hague, evidentemente acreditava ser Lord Palmerston [15]...

RC: Foi um erro homérico que legitimou ainda mais a postura do Equador.

E: O governo equatoriano ofereceu aos oficiais suecos a possibilidade de interrogar Assange? Se sim, o que responderam os suecos?

RC: Esse é um ponto essencial que o povo britânico e o povo sueco devem conhecer. Além de desprestigiar o nosso governo e o nosso presidente, por não nos termos submetido aos poderes imperiais, dizendo que aqui existe um ditador e tudo isso, se quis impor a versão de que nós queríamos criar obstáculos à justiça sueca. Mentira! Esgotamos meses de conversações para que, se Assange fosse extraditado à Suécia, se garantisse que ele não fosse extraditado a um terceiro país. Propusemos que o oficial sueco interrogasse Assange - a quem se quer interrogar apesar de não ser acusado de nada - na Embaixada do Equador em Londres. É algo permitido pela lei sueca e que já se fez em outros casos; até por vídeo é possível fazer! Talvez com uma boa dose de prepotência eles disseram "não, porque não temos vontade". Não queriam saídas para que se proseguisse a investigação do suposto delito, e como não nos garantiam que Assange não seria extraditado a um terceiro país se fosse para a Suécia, enxergamos claros indícios de perseguição política e de risco para sua vida, e decidimos outorgar-lhe o asilo, exercendo nossa soberania. O povo britânico e o povo sueco devem ter muito claro que aqui ninguém quis impedir a justiça sueca de agir; demos todas as facilidades, foram eles que não quiseram.

E: Em certo modo, quem possibilitou toda a operação "Cablegate" do Wikileaks foi Bradley Manning. O que se pode fazer para chamar a atenção da opinião pública para sua situação?

RC: Se aqui no Equador tivéssemos feito um décimo do que estão fazendo ao soldado Manning, diriam que somos ditadores, autoritários, incivilizados. E lá não se diz nada. Temos sérias presunções de que não se está cumprindo o princípio do devido processo, de que estão atentando contra os direitos de Manning, porém ele não solicitou asilo e não podemos interferir em um assunto que, nesse caso, é algo interno aos EUA. Os orgãos internacionais de defesa dos direitos humanos e a ONU tentaram fazer algo e enfrentaram grandes obstáculos. Não justifico o que Manning fez, nem sequer tudo o que Assange fez, porém o que buscamos é que se aplique o devido processo, que não haja perseguição política. O Equador não aceita a pena de morte e acredita que é um atentado contra os direitos humanos; assim como não podemos permitir que ninguém que tenha buscado o asilo no Equador se veja exposto à pena de morte por crimes políticos nos EUA. Também vemos grandes contradições. Se pode dizer que Manning roubou informações, mas Assange não roubou nada. Então, de que se acusa Assange? De ter difundido informações secretas dos EUA. Porém, por acaso os meios que compraram essas informações não as difundiram também? The New York Times, El País da Espanha, todos esses jornais, por que não surgem processos contra eles? De novo, é uma questão de poder. Assange é um simples cidadão, os outros são poderes midiáticos.

E: Havia revelações importantes sobre o Equador nos cabos infiltrados?

RC: Em princípio, de cerca de 3 mil cabos do Wikileaks sobre o Equador, a imprensa corrupta publicou apenas o que acreditava que não ia causar nenhum dano. Depois descobrimos muitas coisas que acusavam a essa mesma imprensa; o próprio embaixador dos EUA pediu que não mentissem, quando foram a ele os meios de comunicação no início de nosso governo para queixar-se de que não havia liberdade de expressão. Os cabos do Wikileaks também demonstram que os grupos midiáticos, Teleamazonas, que é do Banco Pichincha, TC Televisión e Gamavisión, que pertenciam aos Isaías, chegaram a um acordo: não nos atiremos panos sujos, não nos acusemos mutuamente! Se você se preocupa com a liberdade de imprensa, dê uma olhada nos cabos do Wikileaks e verá como a própria embaixada disse que aqui existe absoluta liberdade de imprensa, que existem abusos e excessos dos meios de comunicação e que há uma maracutaia entre eles para ocultar qualquer informação que lhes seja prejudicial [16].

E: No âmbito da política exterior, o Equador se destacou ao decidir não participar da Organização dos Estados Americanos a menos que se readmita Cuba. Qual a idéia por trás dessa política?

RC: Como podemos chamar de "Cúpula das Américas" uma Cúpula sem Cuba? Cuba foi deliberadamente excluída da OEA porque ali "não há democracia". Não há democracia liberal como a entende os EUA. Porém o Chile de Pinochet, uma ditadura militar sangrenta, que derrubou um governo democrático civil, nunca foi excluído da OEA. Até para isso há um padrão duplo! Como bem disse Fidel Castro, a OEA foi o Ministério das Colônias dos EUA. E a essa altura não podemos tolerar essa situação na América Latina. Por isso o Equador disse que não vai a nenhuma Cúpula das Américas enquanto Cuba não esteja presente. Não fomos à Sexta Cúpula em Cartagena, apresentamos nosso protesto; se discutiu o tema de Cuba e 31 dos 33 países (as exceções foram os EUA e o Canadá) disseram que na próxima Cúpula das Américas Cuba deve estar presente. Eu acredito que isso marcou um ponto importante na História da América Latina. Passamos do Consenso de Washington para o consenso sem Washington.

[1] León Febres Cordero foi presidente do Equador entre 1984 e 1988 pelo Partido Social Cristão. Em maio de 2008, Correa criou uma comissão para investigar a tortura, o desaparecimento e a execução sumária de opositores, supostamente pelas mãos de esquadrões da morte do governo na década de 1980.

[2] Alfredo Palacio foi Vice-Presidente de Lucio Gutiérrez entre 2003 e 2005, e assumiu a presidência quando esse último foi deposto em abril de 2005.

[3] Rubén Barberán foi Ministro do Bem Estar Social durante o governo de Palacio. 

[4] Ricardo Patiño, fundador da vertente equatoriana do Jubileu 2000, foi sub-secretário de Economia em 2005, quando Correa ocupava essa pasta ministerial; durante os mandatos de Correa foi Ministro da Economia, Ministro de Coordenação Política e desde Janeiro de 2010 é Ministro das Relações Exteriores do Equador. 

[5] Eloy Alfaro (1842-1912) foi o líder da revolução liberal equatoriana de 1895. Em seus dois mandatos como presidente (1895-1902 e 1906-1911) promulgou uma série de reformas modernizadoras, como a separação entre Estado e Igreja, a redistribuição de terra, a criação de instituições de educação primária, o perdão das dívidas  e a construção de ferrovias. As elites, compostas por donos de terras conservadores e a Igreja, mostraram sua firma oposição a elas. Em meio a desordens civis, ele e outros liberais foram executados de forma sumária, tiveram seus corpos arrastados pela cidade de Quito e queimados publicamente

[6] Introduzido em 2003 pelo governo Gutiérrez, após fundir dois programas anteriores.

[7] A extensão total da cidade do conhecimento de Yachay é de 4.300 hectares.

[8] A CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador) foi fundada em 1986 por mais de uma dúzia de organizações indígenas que incluíam representantes da Serra, da Amazônia e da Costa equatorianas. O Movimento de Unidade Plurinacional Pachacuti (MUPP) foi o veículo eleitoral lançado pelos indígenas e outros ativistas em 1995; a palavra quechua pachakutik, que significa "mudança"; "renascimento", "transformação" foi o nome de um governante inca do século XV e foi empregada também para designar a onda de protestos indígenas que varreram o país em Junho de 1990. 

[9] Lenín Voltaire Moreno Garcés (1953), antigo funcionário, ficou paraplégico em 1998 após sofrer um disparo de assaltantes.

[10] É uma referência ao Convênio 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais, adotado em 1989, que em seu artigo 15, cláusula 2, afirma que "No caso em que a propriedade dos minerais ou dos recursos do subsolo pertença ao Estado, ou existam outros direitos sobre os recursos presentes nas terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de determinar se os interesses desses povos serão prejudicados, e em que medida, antes de empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que possível nos benefícios que geram tais atividades, e receber uma indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades".


[11] Álvaro García Linera, Geopolítica de la Amazonía. Poder hacendal-patrimonial y acumulación capitalista, La Paz, 2012.

[12] SUCRE (Sistema Unitário de Compensação Regional); moeda virtual e unidade monetária comum adotada por membros da ALBA e do Equador em Novembro de 2008. 

[13] Em Outubro de 2012, o Centro Internacional de Ajuste de Disputas relativas a Investimentos (International Centre for Settlement of Investment Disputes), um organismo do Banco
Mundial, ordenou ao Ecuador o pagamento de 1,77 bilhões de dólares  à companhia petrolífera Oxy, mais os juros acumulados, em razão de uma disputa contratual de 2006; ver "Ecuador vs. US Oil: Quito loses a round", FT.com, 6 de Outubro de 2012.

[14] El Universo foi um dos cinco jornais premiados com o Prêmio Maria Moors Cabot de 2012 por reportagens sobre a América Latina; um dos outro ganhadores foi Teodoro Petkoff, cujo periódico, Tal cual, chegou a comparar o presidente venezuelano com Hitler.

[15] Henry John Temple, Visconde de Palmerston (1784-1865), foi um político britânico que ocupou o cargo de primeiro-ministro do Reino Unido. É conhecido por sua frase: "A Inglaterra não tem nem amigos nem inimigos permanentes. A Inglaterra tem interesses permanentes."


[16] Por exemplo, em Fevereiro de 2009 se afirmou em um cabo da Embaixada dos EUA em Quito que Correa disse, "não sem alguma razão", que os meios de comunicação "estavam de acordo com as elites políticas e econômicas" e constituíam, portanto, um obstáculo para a agenda de mudanças de sua Revolução Cidadã. Se assinalava que os "meios privados se defenderam solidariamente dos ataques [do presidente] e seguem informando e criticando Correa e seu governo". Conferir o cabo  09QUITO108, que se pode consultar em wikileaks.org [http://wikileaks.org/cable/2009/02/09QUITO108.html].