14/01/2011

A Escolha do Trágico

por Ramón Bau

O desenvolvimento da Pessoa

Se um “ser humano” procura apenas o prazer e a felicidade na sua vida, se o objectivo é viver placidamente logrando satisfazer ao máximo as necessidades físicas e psicológicas, nesse caso de pouco lhe pode servir continuar a ler estas linhas. A visão “utilista” do homem, visto como “máquina económica” (inclusive considerando a palavra “económica” não só no sentido monetário mas no sentido de satisfação de necessidades), que pretende conseguir os meios para viver feliz, reproduzir-se e obter prazer, está num caminho absolutamente diferente do nosso.

O mundo como Representação, diria Schopenhauer, é o mundo da aparência, do superficial e material, que tem como cúspide a ciência, o mais perfeito conhecimento do Representativo. Mas atrás do conhecimento esconde-se a Utilidade, primeiro degrau inevitável em direcção ao inferior, em plena representação ilusória da realidade, para cair, por fim, na Felicidade e no Prazer como únicos fins capazes de se alcançar nesse caminho do aparente.

Quando se pergunta a alguém qual o seu objectivo na vida, são cada vez mais os que respondem “ser felizes”, e a essência dessa “felicidade” é a ausência de dor, o cumprimento das necessidades (as “utilidades”) e a Posse de elementos representativos, materiais, capazes de dar esse prazer. E em todos os casos satisfazer necessidades psicológicas como segurança e auto-estima, sem nenhuma referência a cumprir algum Dever ou melhorar a sua qualidade humana.

Frente a esse caminho centrado no material, há outra forma de entender o desenvolvimento pessoal, o que Schopenhauer chamou a “Vontade”, que implica a compreensão da dimensão perecedoura de tudo o que é Representativo e pretender uma acção transcendente, algo que nos eleve sobre o humano. É a luta como caminho heróico, não egoísta nem útil. 

Quando um ser humano aceita que a sua vida tem como objectivo a sua elevação a Pessoa, acto nunca acabado, uma luta permanente entre as tendências para o Prazer do superficial e a Vontade de sobrehumanidade, é nesse momento que se necessita de Wagner. Herói não é quem comete actos extraordinários mas quem vive a própria vida como um acto contrário ao egoísmo utilista. O acto heróico é um desafio da Vontade à Utilidade, e é sempre um acto Trágico.

O Sentimento e a Arte formam esse caminho para a essência real interior, frente às aparências dos feitos materiais. Assim, podemos assumir na nossa vida um objectivo “normal”, “representativo”, ou pretender assumir a construção da Pessoa, o caminho heróico contra o “possuir” e o prazer material, e de alguma forma, nesse caso, assumir a Tragédia como essência da vida superior. Para quem recorde “Siegfried”, Fafner “possui” o Ouro, e essa posse “fá-lo feliz”, dorme e descansa porque “tem tudo” na sua posse do material. Essa é a felicidade “humana” de quem não procura ser “pessoa”.

A Tragédia como essência da Pessoa

O “heróico” não é o mero acto singular de valor mas antes assumir a vida como um acto Trágico. De certa forma o debate é entre o Vulgar e o Trágico, entre a Utilidade e o Heróico, entre Representação e Vontade. Uma pessoa tem a possibilidade de orientar a sua vida para o “útil”, ou seja esforçar-se por cumprir as suas necessidades e desejos. O Sentido Trágico da Vida consiste em superar essa tentação e orientar a vida contra o egoísmo, na seriedade e na superação. E este caminho é uma Tragédia em si mesmo.

Não há que entender o “Trágico” como triste ou pessimista, significação saída precisamente da visão utilista da vida. Para o utilismo tudo o que é heróico é doloroso, implica uma renúncia ao prazer imediato do material, de alguma forma é “triste e pessimista”. Em parte o “Trágico” significa sempre Dor, renúncia ao prazer que dá a Posse e cumprimento dos egoísmos. Mas não significa tristeza, de todo. 

Calderón escreve jocosamente:” Bem-aventurado o que vive enganado”, que é a expressão máxima da Representação, da “utilidade”. Quem assume a essência e não se deixa enganar pela representação superficial, aparente, da vida, está condenado a não ser “feliz”, a sofrer, pois a felicidade do “vulgar” baseia-se fundamentalmente em viver “enganado”(no “dormir” da Posse de Fafner), em não aprofundar, em enganar a essência da pessoa com argumentos de utilidade superficial. Uma vez dizia-me um amigo “se a minha mulher me enganar não quero saber, pois assim não terei sofrimento”. Ou dito mais duramente: se não conheço o “trágico” poderei desfrutar do “cómico”. Se bloqueio a minha sensibilidade profunda poderei desfrutar das alegres aparências dos bens, dos prazeres instantâneos que dá a Posse face à tragédia que dá o Sentimento. Possuir dá um instante de prazer, sentir permite uma essência superior, mas ao mesmo tempo abre a consciência ao sofrimento, ao trágico. Prazer frente a Dever, o Cómico frente ao Trágico.

Unamuno escreveu “O Sentido Trágico da Vida”, um livro para expressar este caminho, “a vida é tragédia e a tragédia é luta perpétua, sem vitória nem esperança dela”. De certa forma a morte marca o fim do trágico…”a vida é tragédia” mas a morte é a confirmação do valor da Tragédia face ao Cómico. Se não aproveitamos esse esplendor de vida entre dois vazios, se não temos Vontade de Poder nesse segundo de vida pessoal, o significado dessa vida é jocoso, é Cómico, somos nada e vamos para o nada. Só o sentido Trágico, o esforço para ser sobre-homens, pode dar sentido a esse instante de vida. Dar-lhe sentido pelo prazer e a utilidade do representativo é rebaixar a nossa qualidade humana.

Para Schopenhauer o sentido trágico resume-se na renúncia, no eliminar dos desejos egoístas. Para Nietzsche na Vontade de Poder, em superar-se através da Vontade. O egoísmo, para Nietzsche, não é impor a vontade própria mas orientar essa vontade para o baixo e o miserável em vez de para a potência e a superação. 

Para a religião a Tragédia é a Compaixão pela dor do mundo. Cada um trata de procurar uma solução para a sua tragédia pessoal. É neste sentido que a Tragédia é a essência pura da Arte, é a forma extrema de fazer surgir os sentimentos mais profundos e menos egoístas, menos úteis.

E a Política, não a “política” miserável do imediato, deve ser um acto Heróico para dar a todos a possibilidade da Arte do Trágico. Ou seja, estabelecer as condições materiais e sociais que permitam a cada homem da comunidade poder desenvolver, se o quiser, a sua personalidade e rebelar-se contra o domínio do seu prazer material, despertar o seu Sentimento face ao seu desejo de Posse, alcançar pela arte a sobrehumanidade.

No Trágico narram-se os desafios da Vontade sobre o devir dos homens. Na Tragédia o herói levanta-se e observa a Vontade que o insulta e persegue, está inclusive disposto a renunciar à vontade de viver pela sua Honra (a sua Vontade de superação). Com ele o herói não só redime as suas culpas individuais mas combate o rebaixamento vulgar da humanidade, mostra-nos o caminho da redenção.