30/01/2018

Alain de Benoist - O que é Soberania?

por Alain de Benoist



O conceito de soberania é um dos mais complexos na ciência política, com muitas definições, algumas totalmente contraditórias.[1] Geralmente, a soberania é definida de uma entre duas maneiras. A primeira definição se aplica ao poder público supremo, que tem o direito e, em teoria, a capacidade de impor sua autoridade em última instância. A segunda definição refere-se ao titular do poder legítimo, que é reconhecido como tendo autoridade. Quando a soberania nacional é discutida, a primeira definição se aplica, e se refere em particular à independência, entendida como a liberdade de uma identidade coletiva para agir. Quando a soberania popular é discutida, a segunda definição aplica-se e a soberania está associada ao poder e à legitimidade.

Soberania e Autoridade Política

A nível internacional, a soberania significa independência, ou seja, não-interferência de poderes externos nos assuntos internos de outro Estado. As normas internacionais baseiam-se no princípio da igualdade soberana dos Estados independentes; o direito internacional exclui a interferência e estabelece regras universalmente aceitas. Assim, a soberania é eminentemente racional, se não dialética, uma vez que a soberania de um Estado depende não apenas da vontade autônoma de seu soberano, mas também da sua posição em relação a outros Estados soberanos. Nesta perspectiva, pode-se dizer que a soberania de um único Estado é a conseqüência lógica da existência de vários Estados soberanos.[2]

É, portanto, um grave erro assumir que a soberania é possível apenas no âmbito do tipo clássico de Estado, ou seja, um Estado-nação, como fazem os representantes da escola "realista", como Alan James e F.H. Hinsley, ou teóricos neomarxistas como Justin Rosenberg.[3] Não se deve confundir os conceitos de nação e Estado, que não necessariamente caminham juntos, ou assumir que o conceito de soberania foi formulado claramente apenas nos termos da teoria do Estado. Mais perto da verdade, está a afirmação de John Hoffman de que "a soberania tem sido um problema insolúvel desde que se associou ao Estado".[4] Mesmo que um conceito de soberania não existisse antes do século 16, não se segue que o fenômeno não existia na realidade política, e que ele não poderia ter sido conceitualizado de forma diferente. Por exemplo, Aristóteles não menciona a soberania, mas o fato de que ele insiste na necessidade de um poder supremo mostra que ele estava familiarizado com a idéia, uma vez que qualquer poder supremo -  kuphian aphen com os gregos; summum imperium com os romanos - é soberano por definição. A soberania não está relacionada a nenhuma forma particular de governo ou a qualquer organização política particular; pelo contrário, é inerente a qualquer forma de autoridade política.


O problema da soberania apareceu no final da Idade Média, quando a questão colocada não era mais apenas a melhor forma de governo ou os limites da autoridade política, mas a relação entre o governo e as pessoas, ou seja, a relação entre governante e governado em uma comunidade política. Esta é a pergunta que Jean Bodin (1520-1596) tentou responder em La Republique, publicada em 1576.[5] Bodin não inventou a soberania, mas ele foi o primeiro a fazer uma análise conceitual e propor uma formulação sistemática. Ele não iniciou este projeto observando um Estado real, mas tentando restaurar a ordem pública, que foi prejudicada pelas guerras religiosas e legitimando a emancipação dos reis franceses em relação ao Papa e ao imperador. É por isso que a doutrina de Bodin naturalmente constituiu a ideologia dos reinos territoriais que procuram se independizar do império e transformar o poder obtido em domínio real sobre os senhores feudais.

Jean Bodin: Ideólogo dos Reinos Territoriais

Em La République, Bodin começa lembrando aos leitores que a soberania (majestas), o fundamento de todo o seu sistema, é uma prerrogativa da autoridade, sendo ela mesma um dos pressupostos da política. Como a maioria dos autores de seu tempo, ele afirma que um governo é forte apenas quando é legítimo e enfatiza o fato de que as ações de um governo sempre devem estar de acordo com certas normas, que são determinadas pela justiça e pela razão. No entanto, ele entende que tais considerações não bastam para esclarecer a idéia de poder soberano. Assim, ele afirma que a fonte do poder está na lei, e que a capacidade de criar e quebrar leis pertence apenas ao soberano: o poder de legislar e de governar é o mesmo. A conclusão que Bodin alcança é radical: como o príncipe não está sujeito às suas próprias decisões ou decretos, ele está acima da lei.

Esta fórmula já era o trabalho de juristas romanos: "Princeps legibus solutus" [O príncipe não está vinculado pela lei]. Bodin escreve: "Aqueles que são soberanos não devem estar sujeitos à autoridade de ninguém. . . . É por isso que a lei diz que o príncipe deve ser excluído do poder da lei. . . . A lei do príncipe depende exclusivamente de sua vontade pura e sincera". [6] Neste caso, é um poder soberano que permite ao príncipe impor leis que não se aplicam a ele, porque o exercício do poder não o obriga a ter o consentimento de seus súditos - a soberania é totalmente independente dos súditos sobre os quais as leis são impostas. Richelieu mais tarde dirá que "o príncipe é o mestre das formalidades da lei".

Por causa desse poder legislativo, a autoridade suprema teve que ser única e absoluta, e é por isso que a definição de soberania de Bodin é o "poder absoluto e perpétuo de uma república" [7], isto é, esse poder é ilimitado na esfera dos assuntos humanos. A soberania é absoluta no sentido de que o soberano não está sujeito à lei; pelo contrário, ele pode decretar e anular as leis à vontade. Por outro lado, a capacidade de fazer leis exige que a soberania seja absoluta ("ela não pode ser cortada em pedaços", diz Bodin), porque o poder de legislar é indivisível. O restante das prerrogativas políticas do soberano depende dessa afirmação inicial. Pode-se dizer que a característica fundamental da soberania é que ela concede ao príncipe, que está sujeito somente à sua vontade, o poder de não estar vinculado ou dependente de ninguém. Seu poder não é delegado, temporário ou dependente de ninguém; se seu poder dependesse de alguém além dele mesmo, internamente ou externamente, ele não teria o poder de fazer lei. Ele não seria mais soberano.

Assim, a soberania de Bodin é totalmente exclusiva: ao conferir ao rei o papel de legislador único, concede ao Estado uma autoridade ilimitada e original. Consequentemente, um Estado soberano é definido como aquele cujo príncipe não depende de ninguém além de si mesmo. Isso implica que uma nação se forma dentro de um Estado, e que ela é identificada com esse Estado. Para Bodin, um país pode eventualmente ser definido em termos de sua história, sua cultura, sua identidade ou sua moral, mas, politicamente, o que constitui um Estado como tal é a sua soberania: o poder absoluto que forma a república como entidade política, única e absoluta. O Estado deve ser um e indivisível, porque ele representa o monopólio legislativo do soberano. As autonomias locais são permitidas, mas apenas se não elas restringirem a autoridade do príncipe. Na verdade, elas são sempre mais limitadas. O Estado é uma mônada, enquanto o príncipe é "separado do povo", isto é, colocado em um isolamento que faz fronteira com o solipsismo.

Obviamente, essa nova teoria da soberania era crucial. Por um lado, dissociou a sociedade civil da sociedade política, um tema que se tornou crucial no início do século XVIII; por outro, estabeleceu as bases para o Estado-nação moderno, que se caracteriza pela indivisibilidade e absolutidade do seu poder. Com Bodin, a teoria política tornou-se moderna.

Para Bodin, a soberania é inseparável da idéia de uma sociedade política que elimina laços e lealdades particulares e baseia-se nas ruínas de comunidades concretas. Implícitamente, o vínculo político já cria um contrato governamental no qual todas as mediações entre membros da sociedade (indivíduos) e poder são eliminadas. Essa ruptura entre as comunidades pré-políticas e a sociedade política foi adotada primeiro pela monarquia absoluta, e depois pelo Estado-nação. O Estado é definido principalmente pelo seu caráter homogêneo, e essa homogeneidade pode ser natural (cultural ou étnica) ou sintética (através da relegação das diferenças coletivas para dentro da esfera privada). Em outras palavras, dado o igualitarismo implícito decorrente do fato de que o modelo se baseia em um vínculo direto e incondicional entre governante e governado, o conceito de soberania de Bodin redefiniu o "povo" como sendo exclusivamente composto de indivíduos, igualmente alienados do poder soberano.

Absolutismo Divino se torna Absolutismo Real

Não é difícil detectar os fundamentos religiosos da doutrina de Bodin. A compreensão de Bodin sobre o poder político é meramente uma transposição profana da maneira absoluta em que Deus e o Papa exercem o poder sobre os cristãos, embora ele denuncie o conceito medieval de poder como meramente uma delegação da autoridade de Deus. Para Bodin, o príncipe já não se sente satisfeito de manter o poder por "direito divino". Ao se conceder o poder de decretar e anular leis, ele age como Deus. Ele forma uma entidade distinta, governando o corpo social da mesma maneira que Deus governa o cosmos. Assim, a retidão absoluta do soberano é nada mais do que a transposição para a esfera política do deus cartesiano, que pode fazer tudo, exceto desejar o mal. Sub-repticiamente, a soberania tornou-se infalível. Em outras palavras, Bodin torna a soberania profana tirando-a de Deus, e torna-a novamente sagrada de forma profana: ele se despede da soberania monopolística e absoluta de Deus e acaba com a soberania monopolista e absoluta do Estado. Toda a modernidade reside nesta ambiguidade: por um lado, o poder político é secularizado; por outro lado, o soberano, agora identificado com o Estado, torna-se uma pessoa à qual se concede um poder político quase divino. Isso confirma a teoria de Carl Schmitt, segundo a qual: "Todos os conceitos significativos da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados". [8]

É importante notar que a teoria da soberania de Bodin não implica nenhum tipo particular de regime. Bodin prefere a monarquia, uma vez que o poder está naturalmente mais concentrado, mas enfatiza que o exercício da soberania é igualmente compatível com a aristocracia e a democracia, embora o perigo da divisão de poder seja muito maior. É igualmente significativo que a aparência de uma soberania indivisível, excluindo limites ou controles, fosse acompanhada pela forte intervenção de juristas estatais. O herdeiro direto dos juristas do século XIII, cujo trabalho permitiu que a realeza se impusesse aos senhores feudais, Bodin identifica o poder político com a capacidade de fazer leis. No entanto, ele acrescenta que o soberano, embora não esteja vinculado pelas leis que ele decreta, ainda pode ser vinculado por um contrato, um tratado ou mesmo por seus súditos no que hoje se chama Constituição. Como Julien Freund observa: "Isso faz Bodin ver a soberania não mais apenas como um fenômeno de poder, mas também de direito". [9] E isso é o que permite que certos liberais se afirmem seguidores de Bodin.

O problema com a soberania é posto de forma diferente com Thomas Hobbes (1588-1679). Embora, na teoria de Bodin, a ideia da soberania absoluta seja orientada explicitamente contra o poder feudal, o que implica a concessão ao princípe de autoridade independente do consentimento de seus súditos, para Hobbes, ela resulta de uma meditação sobre o caráter destrutivo do "estado de natureza". Como é bem conhecido, Hobbes foi o primeiro a invocar um contrato social baseado na racionalidade dos indivíduos. Ele diz que os indivíduos decidiram entrar na sociedade e colocaram-se sob a autoridade de um príncipe para acabar com a "guerra de todos contra todos", que é característico do "estado da natureza". Assim, Hobbes introduziu o conceito de consentimento dos governados, mas as conclusões que tirou disto foram ainda maiores do que Bodin. Enquanto Bodin mantém uma certa dualidade entre o soberano e as pessoas, Hobbes apaga-a completamente. Ao entrar na sociedade, os indivíduos concordam em renunciar inteiramente à sua soberania em favor do príncipe, o que é o oposto do contrato social de Rousseau. Com Hobbes, o preço da segurança é a obediência; as pessoas estão fundidas dentro do soberano, cuja autoridade é assimilada com as vontades individuais. Assim, pode-se dizer que o Estado "engole" as pessoas (ao contrário de Rousseau, onde, através da vontade geral, as pessoas "engolem" o Estado).

Thomas Hobbes: Soberania Reforçada

Não só desvinculado da reciprocidade do contrato, já que ele não o assinou, mas, como seu poder é derivado da vontade racional de todos, o soberano tem o direito de exigir total obediência de todos. Uma vez que sua legitimidade decorre do fato de que os membros da sociedade abandonaram sua soberania voluntariamente, ele não depende de pessoas nem de situações, mas se apoia no direito e na lei. O povo não pode se opor a ele, já que não devendo nada a ninguém, ele não pode ser despojado de sua autoridade. Melhor ainda, ele é o único que mantém a liberdade ilimitada do estado da natureza. Sua soberania é, portanto, igualmente indivisível e absoluta. Tal como acontece com Bodin, a soberania para Hobbes é completamente unitária e identificada com o Estado; qualquer divisão ou fragmentação do poder é considerada a causa da instabilidade e da separação política. [10]

De fato, há uma situação paradoxal nesta formulação moderna de soberania. Na verdade, Bodin e Hobbes distinguem entre tirania e soberania, mas só conseguem fazê-lo porque especificam os limites objetivos da soberania, ao mesmo tempo que a definem como indivisível e absoluta. [11] Essa limitação poderia residir na obrigação do principe de respeitar certas leis naturais ou divinas, ou na finalidade do poder (servir o bem comum sem violar os direitos dos membros da sociedade), ou nos critérios do exercício legítimo do poder: para Bodin, é a lei; para Hobbes, resulta do consentimento individual. Esta conclusão teórica inteiramente inesperada surge mesmo a partir da dinâmica do absolutismo.

Outra contradição em Bodin decorre do fato de que, na medida em que a soberania constitui uma autoridade ilimitada, a comunidade política presumidamente constitui a relação entre governante e governado, apesar da distinção entre eles, já que é precisamente essa relação que dá ao príncipe o poder para promulgar leis de forma soberana. Em outras palavras, quanto mais autônomo o Estado, mais problemático é o exercício da soberania. Por outro lado, se a esfera pública tem autoridade ilimitada sobre a esfera privada, a distinção entre os dois torna-se relativa. Essa contradição cria um fosso crescente entre a soberania do Estado e a soberania popular.

A Revolução Francesa: Continuidade e Não-Ruptura

A Revolução Francesa preservou o próprio conteúdo do conceito de soberania incorporado na monarquia absoluta, e teve crédito por devolvê-lo à nação. Daí a dificuldade para a tradição republicana de conciliar os dois primeiros artigos da Declaração de Direitos, que afirmavam a preeminência dos direitos individuais universais, com o terceiro artigo, segundo o qual a nação é a autoridade suprema: "Reside o princípio da soberania essencialmente na nação; nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que não emana dela". A idéia de soberania absoluta não só permaneceu constante do Ancien Régime até a Revolução, mas a idéia revolucionária da preeminência da soberania nacional também foi enfatizada desde o início do movimento, ou seja, antes de 1792 ou 1793 e, portanto, antes do partido jacobino chegar ao poder.[12] O momento-chave pode ser atribuído à decisão unilateral do povo ("teirs-état") em 1789 de iniciar um processo de verificação dos mandatos dos deputados, o que deslanchou o processo de transformação dos estados gerais em uma assembléia nacional, bem como o processo que conduziu à soberania política dos deputados.

Uma discussão surgiu sobre a questão de saber se as pessoas comuns deviam estar representadas em uma Assembléia Popular ou em uma Assembléia Nacional. A facção de Siéyès, que exortou as comunas a constituir uma "Assembleia Nacional", opôs-se à facção de Mirabeau, que propôs o nome de "Assembleia dos Representantes do Povo". A rivalidade entre as duas facções revelou uma dificuldade em definir a "nação". Eventualmente, a proposição de Siéyès foi aceita, enquanto a de Mirabeau foi rejeitada como prejudicial ao direito da nação. Siéyès considerou que a nação era "um corpo de membros, vivendo sob uma lei comum", um corpo rigorosamente homogêneo, cujo fundamento está separado de qualquer determinação pré-política. Era a este corpo, e somente a este corpo, que a soberania deveria ser devolvida: "A nação está antes de tudo, é a origem de todos. Sua vontade é sempre legal, é a própria lei ".[13] Em 17 de junho de 1789, o nome "Assembléia Nacional" foi adotado, com base no pressuposto de que a representação da nação deve ser "una e indivisível". Como a vontade geral estava incorporada no corpo legislativo, seguia-se que a representação nacional É a nação. A partir deste momento, a soberania tornou-se um atributo da nação e foi transferida do "topo" para a Assembleia Nacional. Posteriormente, a "nação" correspondia ao espaço da soberania coletiva encarnada na Assembleia Nacional. Fundamentalmente, a soberania revolucionária não se originou com o aparecimento do corpo eleitoral, mas simplesmente representava uma transferência da soberania real: a nação era soberana, era um fato consumado e adquiriu legitimidade antes mesmo de o estatuto do cidadão ser discutido.

A Constituição de 1791 foi ainda mais longe. Ela especificou que "a soberania é indivisível, inalienável e imprescritível" (Capítulo III, artigo 1). Na verdade, em agosto de 1791, durante o debate sobre a revisão final deste artigo, uma versão anterior submetida à Assembléia atribuiu à soberania apenas a qualidade da indivisibilidade. Robespierre exigiu que a inalienabilidade fosse adicionada. [14] Em 7 de setembro de 1791, Siéyès declarou: "A França não deve ser uma assembléia de nações pequenas, governada separadamente em democracia; não é de modo algum uma coleção de estados; é uma entidade única, edificada por partes integrantes". Subsequentemente, em 25 de setembro de 1792, a França declarou-se "una e indivisível". Os corpos intermediários e as comunidades populares básicas eram considerados ilegítimos. Um ano depois, essa posição foi reiterada pelos jacobinos em sua denúncia do "perigo federalista". Assim, os revolucionários tentariam livrar-se de todos os dialetos linguísticos e exigiriam a supressão das antigas províncias e sua substituição por departamentos geometricamente iguais .[15]

"O Povo" se torna uma Abstração

Uma vez que o conceito de "nação" foi legitimado, o conceito de "o povo" tornou-se uma abstração. Este foi o preço que "o povo" teve que pagar por declarar-se "soberano". Como Boroumand observa: "Se 'o povo', como realidade objetiva, não pode ser admitido na esfera da soberania nacional, que é uma entidade metafísica por excelência, então a sua metamorfose em uma entidade ideal lhes permite participar na lógica da soberania nacional sem pôr em perigo a existência transcendente da 'nação' encarnada na representação". [16] Em outras palavras, "o povo" é percebido como uma manifestação do princípio da unidade e da indivisibilidade, mas sem qualquer pressuposto de serem compostos por comunidades particulares e entidades distintas. A idéia de uma nação como uma entidade unitária e transcendente, cuja unidade e indivisibilidade são necessariamente independentes de qualquer princípio externo, acabou por restabelecer a noção de um povo jusqu'à s'y substituer [que se substituiu], que permaneceu uma tradição no direito comum francês até hoje. Finalmente, o conceito revolucionário de soberania tornou a nacionalidade e a cidadania sinônimos: já não havia nenhum nacional que não fosse um cidadão (exceto pela privação de direitos civis) ou qualquer cidadão que não fosse nacional. Sendo tão "indivisível" e unitário, "o povo" se tornou uma abstração. É por isso que, mesmo hoje, a França não é um estado federal e não pode reconhecer a existência de um povo bretão ou corso.

Assim, o mesmo conceito de soberania, entendido como o "poder absoluto e eterno" de uma república e a fonte de todos os direitos e deveres da cidadania, obtidos tanto durante o Ancien Régime quanto na Revolução. A soberania jacobinista não é mais restrita do que a soberania de Bodin. Os revolucionários denunciaram o "federalismo" nos mesmos fundamentos da monarquia absoluta, quando, por exemplo, a monarquia censurava os protestantes por procurarem "cantonizar" a França seguindo o modelo suíço. Eles demonizaram e lutaram contra as particularidades locais da mesma maneira pela qual o poder real tentou limitar a autonomia dos senhores feudais por qualquer meio possível. Para legitimar a justiça revolucionária, eles empregaram os mesmos argumentos que Richelieu usou para defender o poder discricionário do príncipe. A Revolução opunha a soberania nacional ao absolutismo real, não desafiando o absolutismo, mas transferindo as prerrogativas absolutas do rei para a nação.

Como Mona Ozouf escreve: "Certamente, as pessoas da Revolução parece ter se separado do Velho Mundo inventando uma sociedade de indivíduos livres e iguais. Mas, na realidade, herdaram do absolutismo uma idéia muito mais antiga e mais limitadora: a ideia da soberania nacional, isto é, uma ordem mítica e transcendente de indivíduos. E essa idéia rapidamente descobriu sua eficácia quando a soberania nacional tomou o lugar vazio da soberania absoluta do rei. . . . O Terror, longe de ser o expediente do desespero criado de uma república em perigo, está inscrito na lógica deste elemento do Ancien Régime". [17] Na verdade, mesmo que a evidência sugira que o Terror violou os direitos naturais de indivíduos, de modo algum violou os direitos da nação, que alegava garantir e preservar. Como Boroumand também escreve: "As semelhanças entre absolutismo e jacobinismo são explicáveis. Se os reflexos e métodos políticos eram os mesmos antes e depois de 1789, isso significa que eles foram movidos pelo mesmo princípio: a soberania da nação". [18] Assim, como Henri Mendras observou, "o que foi justificativa no século XVI tornou-se na França uma doutrina absoluta, um princípio intangível para a monarquia durante dois séculos, e depois para as constituições após 1791. Este princípio era uma ficção jurídica, uma abstração encarnada no rei, um princípio absoluto; o rei desapareceu, a República continuou". [19]

O pensamento político liberal também voltou nesse ponto da história, quando ele reconheceu a associação contraditória no cânone constitucional revolucionário entre a afirmação da universalidade dos direitos humanos e o princípio da soberania da nação. Mas ele procedeu na direção inversa da que prevaleceu naquele momento. Procurou descobrir na teoria dos direitos humanos os fundamentos de uma limitação da soberania nacional ou, mais precisamente, os fundamentos de uma transferência de soberania da esfera política para a legal. Na verdade, com a exceção dos seguidores do positivismo jurídico de Hans Kelsen (que restabelece a vida pública apenas como um sistema de normas), os liberais não se recusam a discutir o conceito de soberania, mas tendem a elevá-lo ao nível da política, para atribuí-lo à lei e, muitas vezes através da lei, ao nível de "moralidade". Nesse sentido, eles poderiam aprender com Bodin, que atribuiu grande importância à lei, apesar de ter atingido conclusões completamente opostas.

Liberais inventam a Soberania "Ética" e Jurídica

Em princípio, essa tentativa é problemática desde o início, uma vez que o direito e a política não são a mesma coisa. Assim, o conceito de soberania nunca pode ser expresso inteiramente em termos jurídicos. Por um lado, e ao contrário do que é aceito hoje, o que é moralmente correto não é sinônimo do que é politicamente desejável. Por outro lado, a capacidade de julgar sem recurso é inútil sem a capacidade de decidir sem recurso e aplicar o que é decidido, o que a lei não pode garantir por si só. Como Julien Freund observa: "O direito tem uma esfera específica, tal como a política, e elas não coincidem, e é por isso que ocorrem conflitos entre os dois. . . . Nenhum sistema judicial é capaz de abolir a vontade política original e arbitrária do governante. Este raciocínio é suficiente em si mesmo para responder definitivamente à questão do caráter jurídico da soberania. . . . A razão jurídica decorre do procedimento, não do poder, ou seja, a 'soberania da lei' existe para legitimar o poder, não para constituí-lo". [20]

A teoria liberal da limitação da soberania pela lei - em efeito, a soberania da lei - geralmente está ligada ao desejo de uma administração puramente legal e racional dos assuntos humanos. A política, que é considerada inevitavelmente dependente de "decisões" irracionais e arbitrárias, é desqualificada, uma vez que a esfera política nega a autonomia e, portanto, a essência do direito. A tentativa de suprimir a soberania primeiro com o poder legislativo, então com a lei em si, acaba por ser uma "despolitização" da vida pública. Por conseguinte, o titular do poder não é mais do que um executor; no pior dos casos, apenas uma figura de testa-de-ferro. A esfera democrática da vontade do povo pode ser ignorada, uma vez que contradiz as normas jurídicas e morais que são consideradas superiores. No campo das relações internacionais, o resultado foi que tornou-se impossível reconhecer a igualdade política entre as diferentes soberanias nacionais e resolver as disputas internacionais coletivamente. Essa contradição levou, por sua vez, ao "direito de intervenção", que também pretende limitar a soberania política por uma norma legal e, em última instância, por valores "morais". Por exemplo, Daniel Cohn-Bendit e Zaki Laïdi declararam que "a soberania ética é uma nova maneira de pensar sobre a soberania", e eles definiram essa nova forma como "a recusa de permitir que alguém reivindique a soberania para objetivos contrários às liberdades básicas e direitos humanos".[21] Esse tipo de discurso, que é usado regularmente para justificar "guerras humanitárias", ou seja, a agressão militar que finge ser "justa" coloca imediatamente a questão de quem, além dos Estados soberanos, deve limitar concretamente a soberania política. Por definição, apenas aqueles que têm os meios para fazê-lo podem exercer o "direito de intervenção". Mas, então, a lei se torna subordinada ao poder, o que contradiz a teoria. Longe de desaparecer, a soberania política torna-se um privilégio daqueles suficientemente fortes para fazer cumprir a lei.

Carl Schmitt é um dos principais críticos do conceito liberal de soberania, no qual o Estado está subordinado ao Direito, e a decisão é alcançada exclusivamente através da discussão, enquanto a vida pública é estritamente separada de uma "esfera privada" em grande parte despolitizada. Schmitt demonstra que este conceito é fundamentalmente antidemocrático, em primeiro lugar, porque tende a desencorajar uma participação maior na vida pública e, em segundo lugar, porque rejeita opções democráticas que possam se opor às normas jurídicas e constitucionais atuais. Schmitt também afirma que a soberania jurídica, baseada em uma coleção de normas e procedimentos, é, por definição, incapaz de indicar quem deve decidir em um estado de exceção. A soberania então volta ao problema de identificar a instância (ou pessoa) com a capacidade de impor sua vontade em uma situação concreta - independentemente, até mesmo da lei. Como o estado de exceção revela mais precisamente esta instância, Schmitt conclui: "Soberano é aquele que decide no estado de exceção" .[22] Esta é uma questão de quem decide se existe um estado de exceção e quem decide nesta situação . Como Freund conclui: "Quando a exceção não é coberta por regras ou normas, é necessário uma instância além da lei para decidir o que deve ser feito. Essas situações sempre estarão presentes, especialmente porque são imprevisíveis" .[23] Do ponto de vista schmittiano, pode-se dizer que nunca há uma interrupção da soberania. Quando uma instância deixa de ser soberana, outra imediatamente toma seu lugar. Não é necessariamente uma instância estatal, mas ela é sempre superior. Isso explica por que o soberano real nem sempre é reconhecido ou chamado de "soberano". A hegemonia, exercida em um contexto de poder e com efeitos muitas vezes exteriores à lei, também é uma forma de soberania. Assim, a soberania sempre existe no mundo real. Abandonar o conceito não apagará a realidade, mas apenas a ocultará.[24]

Johannes Althusius: Soberania Dividida

O conceito de soberania de Bodin inspirou sucessivamente a monarquia absoluta, o jacobinismo revolucionário, o nacionalismo estatal, a ideologia republicana, o fascismo e os regimes totalitários. Isso explica por que hoje essa visão da soberania pode ser encontrada em grupos políticos totalmente opostos: republicanos "nacionalistas" e nacionalistas xenófobos, revolucionários e contrarrevolucionários e entre esquerdistas e direitistas.[25] Todos esses grupos têm em comum um apego à noção de soberania e, acima de tudo, à crença de que a soberania não pode ser concebida senão no sentido de Bodin. No entanto, a idéia de soberania expressada por Johannes Althusius em sua principal obra, Politica methodice digesta (1603), é completamente diferente.

Um adversário de Bodin, Althusius (1557-1638) baseia seu argumento em Aristóteles ao descrever o homem como um animal social naturalmente inclinado à solidariedade e reciprocidade mútuas - o que ele chama de comunicação de bens, serviços e direitos. Para Althusius, a ciência política é uma descrição metódica das condições da vida social; ele usa a palavra "simbiose" para descrever como funciona. Denunciando a idéia de um indivíduo auto-suficiente, ele argumenta que a sociedade é primeiro, uma relação entre seus membros (ou "simbiotes") e, segundo, baseada em uma série de pactos políticos e sociais concluídos sucessivamente de baixo para cima por uma multidão de associações autônomas, naturais e institucionais (ou "consociações"), tanto públicas como privadas: famílias e lares, guildas e corporações, comunidades civis e corpos seculares, cidades e províncias, etc. Essas "consociações" se agrupam em uma ordem do mais simples para o mais complexo. Em cada nível, os indivíduos interagem, não como unidades isoladas, mas como membros de uma comunidade já existente, que nunca abandona a totalidade de seus direitos a favor de uma sociedade maior. Neste contexto, Althusius examina a noção de representação num sentido completamente diferente do pensamento liberal: para Althusius, o contrato social não é um ato único resultante de vontades individuais livres, mas sim uma aliança integradora (foedus) - um processo contínuo de comunicação "simbiótica" de indivíduos definidos, acima de tudo, pela sua pertença mútua.

O Povo delega mas ele não abre mão da Soberania

A sociedade global, que Althusius chama de "comunidade simbiótica integral", é definida como uma organização que ascende de uma pluralidade de comunidades fundadas em associações anteriores e múltiplas participações e eliminando poderes sobrepostos. O corpo político é o resultado desse processo de unir comunidades, onde cada nível sucessivo tira sua legitimidade e sua capacidade de agir a partir da autonomia dos níveis inferiores.[26] O objetivo da ação pública é especificar os níveis de solidariedade mútua e autonomia dos participantes coletivos, cujo consentimento é atualizado e organizado em uma dialética aberta do geral e do particular, a idéia básica sendo "o que diz respeito a todos deve ser aprovado por todos" ("quodomnes tangit, ab omnibus approbetur"). A este respeito, pode-se falar de "um sistema ascendente de federalização consecutiva" [27] ou uma "democracia consociativa"(Arendt Lijphart).

Para Althusius, a soberania ou "majestade" pertence ao povo em perpetuidade. Não pode ser prescrita, porque reside inalienavelmente na comunidade popular, e porque "não há poder pessoal absoluto em uma comunidade". As pessoas podem delegê-lo, mas não podem perdê-lo. "O direito de majestade", escreve Althusius, "não pode ser cedido, abandonado ou alienado por seus proprietários. . . . Este direito foi estabelecido por aqueles que participam neste reino coletivamente, e por cada um deles individualmente. Eles são os que o criam; sem eles, não poderia ser estabelecido nem mantido. Eu concedi à política o direito de majestade, mas a atribuí ao reino, ou seja, à república ou ao povo", diz Althusius, acrescentando que "não se preocupa com o clamor de Bodin".

Longe de estar separada do povo, a soberania dele emana. O príncipe deriva sua função apenas do direito inalienável do povo de se governar. Não há outra autoridade senão investida no povo - nenhuma autoridade na forma de transferência de poder do povo para o príncipe, mas sim, sob a forma de uma delegação de poder que o povo nunca deixa de possuir intrinsecamente e substancialmente. Em outras palavras, o príncipe exerce seu poder sob o controle do povo, e ele deve usá-lo para o bem comum, o que continua sendo seu principal objetivo. [28] Assim, o príncipe não governa a sociedade como se fosse alienado dela ou independente dela. Ele não é o proprietário, mas o administrador da soberania: ele possui apenas o direito desta soberania. Esta mesma idéia pode ser encontrada em Rousseau, mas com uma diferença crucial: Rousseau admite apenas que, em termos de sua teoria da vontade geral, uma sociedade fundamentalmente unitária e homogênea é baseada na negação absoluta de qualquer "sociedade parcial", [29] enquanto o sistema de Althusius é baseado na participação e representação de todas as identidades particulares.

Portanto, a soberania não é absoluta; pelo contrário, pode ser distribuída e compartilhada. Inspirados tanto pelo modelo imperial, pelas antigas "liberdades" germânicas comunais quanto pelo funcionamento das associações comuns e cooperativas das antigas cidades hanseáticas [30], Althusius conclui que, em cada nível da sociedade, são necessárias duas séries de órgãos: uma, representando as comunidades inferiores, que são estabelecidas para manter o poder que podem exercer de forma concreta; a outra, representando o nível superior, cujas atribuições são sempre limitadas pela primeira. Cada nível inferior designa seus governantes, que também são seus representantes vis-à-vis o nível superior, e a delegação deste poder pode ser retirada a qualquer momento. Dada a natureza condicional dessa delegação, o poder do nível superior é sempre dependente do consentimento dos níveis mais baixos. O Estado é superior a cada um dos níveis abaixo dele, mas não à unidade de todos. O príncipe, como já se viu, exerce poder soberano através da delegação com base em um pacto recíproco, no qual ele é considerado o representante da pessoas, enquanto as pessoas mantêm o poder de delegar. O poder do príncipe é supremo, pois ele tem a maior autoridade, mas esta autoridade também está limitada pela autonomia das "consociações", o que o impede de infringir seus próprios poderes particulares. O princípio da soberania é preservado, mas está subordinado ao consentimento mútuo.

O Entrelaçamento dos Níveis de Poder

Para Althusius, a soberania não é sinônimo de autoridade omnicompetente. Ela somente representa o nível de poder com a maior capacidade de decidir e executar uma determinada tarefa. O soberano não pode agir voluntariamente sem ser responsabilizado. Ele tem um poder mais extenso, mas ele pode usá-lo apenas para o que foi concedido. Em cada nível, há uma "troca de soberania", ou seja, uma diferenciação de instâncias e um compartilhamento de jurisdições, que são arranjadas da menor para a maior. Enquanto a soberania de Bodin é ao mesmo tempo uma pirâmide e uma circunferência, com uma superfície orientada para o centro, a soberania de Althusius é estruturada como um labirinto e baseia-se no princípio essencial de que "o vassalo do meu vassalo não é meu vassalo", ou seja, isso implica pluralidade, autonomia e o entrelaçamento de níveis de poder e autoridade.

O modelo de Bodin prevaleceu desde o Tratado de Vestfalia (1648), e é precisamente neste modelo que o Estado-nação, a forma política mais comum da modernidade, foi construído. Uma das conseqüências dessa evolução foi que aqueles que queriam rejeitar esse modelo, julgando-o como implicitamente totalitário, mas não tendo outro conceito, muitas vezes têm sido propensos a rejeitar qualquer noção de soberania.

Este é o caso de Jacques Maritain, para quem a soberania não pode ser concebida senão como um fenômeno que transcende absolutamente o corpo político e que exerce seu poder independentemente dele, razão pela qual o rejeita. Maritain escreve: "A soberania é incompatível com a democracia". Inaplicável em relação ao povo e ao Estado, ela implica que o poder se sobrepõe ao corpo político e que ela "absorve" aqueles que são governados. Assim, ele conclui que: "Os conceitos de soberania e absolutismo foram forjados juntos na mesma bigorna. Eles precisam ser banidos em conjunto". [31]

Os defensores da soberania hoje cometem o mesmo erro que Maritain. Eles assumem que uma soberania que é compartilhada, distribuída ou limitada, uma soberania que não tem permissão para se tornar um poder ilimitado, incondicional e absoluto, não merece o nome, e eles chegam precisamente à conclusão oposta. Eles dizem favorecer a soberania, mas uma baseado na mesma definição.

Federalismo e Subsidiariedade

Como Chantal Delsol observou, na realidade "hoje a soberania de Bodin é apenas superficial. Na verdade, ela não tem uma existência concreta nem uma legitimidade rastreável". [32] A idéia do Estado-nação, que reinou na Europa desde a Paz da Vestefália até a primeira metade do século XX, está chegando hoje ao fim; duas guerras mundiais revelaram seus limites. A erosão tanto do topo como da base do Estado-nação significa o fim da modernidade; em termos políticos, o fim da Era Vestfaliana. [33] Se referir em conclusão ao que foi chamado de "mal de Bodin" [34] não deve ser entendido como uma intenção de renunciar à soberania, mas, antes, redefini-la de uma perspectiva diferente, inspirada por Althusius.

No passado, o tipo althusiano de soberania já inspirou certas construções imperiais ou multinacionais. Seus traços podem ser encontrados em teóricos austro-marxistas como Otto Bauer e Karl Renner e apoiadores de um "Estado federativo de nacionalidades", em que a soberania é distribuída entre diferentes níveis da vida política. [35] Mas, hoje, o federalismo é particularmente receptivo a uma noção de soberania intimamente associada aos princípios de autonomia e subsidiariedade. Na década de 1930, Maritain preferiu uma Europa federal e pediu a substituição da "estatolatria que reina hoje" pelo reconhecimento pelos Estados de "uma autonomia relativa, mais forte do que a existente hoje em dia, às comunidades menores, existentes nos Estados-nação". [36]

Uma verdadeira chave para o sistema de Althusius, o princípio da subsidiariedade, exige que as decisões sejam tomadas no nível mais baixo possível por aqueles que sustentam as suas conseqüências mais diretamente. Isso implica que as unidades políticas menores mantêm jurisdições autônomas substanciais e que elas são representadas coletivamente em níveis superiores de poder. A descentralização não é a questão. Na descentralização, ao poder local é dado apenas a autoridade que o poder central quer conceder; essa autoridade é apenas uma delegação desse poder central, que continua sendo o núcleo substancial da política em uma estrutura estritamente piramidal da sociedade. Para a subsidiariedade, o inverso é verdadeiro: os níveis locais não delegam o poder para níveis mais elevados; em vez disso, eles delegam responsabilidades e tarefas que eles próprios não podem realizar; eles não cedem jurisdições que não podem assumir, uma vez que resolvem à sua maneira todos os problemas que podem, e sustentam as conseqüências de suas próprias decisões e escolhas. Assim, a subsidiariedade representa uma partilha da soberania: cada nível de autoridade assume as tarefas que pode. Uma das conseqüências é que cada comunidade deve ser capaz de decidir de forma independente quais bens e serviços quer ter, ao invés de ter uma oferta padronizada de bens e serviços que lhe são impostas.

Europa: Uma Comunidade de Comunidades

A subsidiariedade se opõe ao conceito de soberania de Bodin, que se baseia não no critério da suficiência, mas no de capacidade superior: o Estado central deve ter autoridade para si próprio, uma vez que, em princípio, é presumido ser superior. O conceito de soberania de Bodin é mais compatível com um regime ditatorial do que com um regime democrático. No entanto, mesmo neste último caso, a única oportunidade que ela oferece aos seus cidadãos é escolher os seus representantes. Em contrapartida, o princípio federalista da subsidiariedade é incompatível com qualquer forma de ditadura e é mais democrático, porque reconhece não só a capacidade de indivíduos e grupos para escolher seus representantes, como também a sua capacidade de participar na vida pública e decidir por eles próprios e para si mesmos. Como Delsol observou: "A sociedade francesa hoje em dia é democrática, mas não é subsidiária, porque deixa muito pouco espaço para a independência de ação por grupos e prefere confiar no Estado central para entender o que já foi decidido democraticamente". [37] O princípio da subsidiariedade implica autonomia e responsabilidade, enquanto o conceito de soberania de Bodin, fundado em um princípio oposto a grupos organizados, consagra heteronomia, a irresponsabilidade e o assistencialismo generalizado.

Há mais de meio século atrás, Michel Glady escreveu: "Para seguir o caminho para o federalismo real, é necessário abandonar o Estado-nação como base da sociedade, ou seja, pôr fim ao imperialismo e à estatolatria. . . . Somente a fórmula comunal prova-se flexível, ser humana e tornar possível evitar vários obstáculos."[38] Do ponto de vista da subsidiariedade, a verdadeira unidade política e social, que é superior mesmo à região, é na verdade, a comuna. Mendras alcança a mesma conclusão: "Os franceses demonstram um apego indefensável à democracia direta: o prefeito é uma figura pública popular, como são populares todos os políticos que mantêm contato com seu eleitorado local. Assim, é a partir da comuna que uma teoria da legitimidade política poderia ser reconstruída em um orden ascendente - não descendente". [39]

Nessa perspectiva, a existência de grupos e comunidades com interesses particulares não prejudica o bem comum. Em vez disso, a extensão dos procedimentos democráticos dificulta as facções que agem em detrimento do interesse comum. Assim, a nação é definida como uma comunidade de comunidades, que não só pode participar de uma comunidade maior de tipo supranacional, mas cujas comunidades particulares podem optar por ter um contato mais próximo com outras comunidades. Enquanto o ponto de vista jacobino faz da soberania a garantia da unidade nacional, o princípio da subsidiariedade torna a preservação do pluralismo a garantia da soberania. Uma Europa bem concebida, ou seja, uma Europa federal, não seria o agente da dissolução das soberanas existentes, mas sim o instrumento de seu renascimento como meio de soberania européia concebido e praticado de forma diferente.


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1 - Cf. Charles Merriam, History of Theory of Sovereignty since Rousseau (New York: Columbia University Press, 1900); Perry Anderson, Lineages of the Absolute State (London: New Left Books, 1974); Jens Bartelson, A Genealogy of Sovereignty (Cam-bridge: Cambridge University Press, 1995); Bertrand de Jouvenel, De la souveraineté (Paris: Génior, 1955); In Defense of Sovereignty, ed. by W. J. Stankiewicz (London: Oxford University Press, 1969); Joseph Camillieri and Jim Falk, The End of Sovereignty? (Aldershot: Edward Elgar, 1992); A. H. Chayes, The New Sovereignty (Cambridge: Harvard University Press, 1995); State Sovereignty as Social Construct, ed. by Thomas J. Biersteker and C. Weber (Cambridge: Cambridge University Press, 1996); Bertrand Badie, Un monde sans souveraineté. Les États entre ruse et responsabilité (Paris: Fayard, 1999). A discussão desse assunto se tornou tão confusa que a noção de soberania está perdendo seu caráter político, como é o caso com Patricia Mishe, que afirma que apenas o mundo é soberano ("Ecological Security and the Need to Reconceptualize Sovereignty," em Alternatives No. 14, pp. 390-391), ou com Robert Garner, que deseja estender a soberania aos animais ("Ecology and Animal Rights. Is Sovereignty Anthropocentric?" em Laura Brace and John Hoffman, eds., Reclaiming Sovereignty [London: Pinter, 1997]).

2 - Este é o ponto de partida do debate entre a escola "realista" clássica, que define a soberania como "poder centralizado, exercendo sua autoridade sobre um território" (Hans J. Morgenthau, Politics among Nations. The Struggle for Power and Peace (New York: Alfred A. Knopf, 1948)), e a chamada escola "dependalista".

3 - Alan James, Sovereign Statehood (London: Allen & Unwin, 1986); F. H. Hinsley, Sovereignty (Cambridge: Cambridge University Press, 1986); Justin Rosenberg, The Empire of the Civil Society (London: Verso, 1994).

4 - John Hoffman, Sovereignty (Buckingham: Open University Press, 1998), e Beyond the State (Cambridge: Polity Press, 1995). Ver também, Andrew Vincent, Theories of the State (Oxford: Basil Blackwell, 1987), p. 32

5 - Jean Bodin, The Six Bookes of a Commonweale, uma reimpressão facsimile da tradução inglesa de 1606, corrigida e suplementada à luz de uma nova comparação com os textos francês e latino, editado com uma introdução por Kenneth Douglas McRae (Cambridge: Harvard University Press, 1962).

6 - Ibid., II, 2.

7 - Ibid., I, 8.

8 - Carl Schmitt, Political Theology: Four Chapters on the Concept of Sovereignty, traduzido por George Schwab (Cambridge, MA, and London: The MIT Press, 1985), p. 36

9 - Julien Freund, L'essence du politique (Paris: Sirey, 1965), p. 118

10 - Hobbes escreve no Leviathan (1651): "A kingdome divided in itself can not stand."

11 - Ver Preston King, the Ideology of Order. A Comparative Analysis of Jean Bodin and Thomas Hobbes (London: Frank Cass, 1974), p. 79

12 - Essa compreensão é um dos méritos do livre recém-publicado de Ladan Boroumand, que chegou a esta conclusão após um estudo meticuloso dos textos. Ver Ladan Boroumand, La guerre des princies. Les assemblées révolutionnaires faces aux droits del'homme et à la souveraineté de la country, May 1789-july 1794 (Paris: Ecole des hautesétudes en sciences sociales, 1999).

13 - Emmanuel-Joseph Siéyès, Qu'est-ce que le tiers-état? [1788] (Geneva: Droz, 1970), p. 180

14 - A assembleia divergia de Rousseau neste ponto. Rousseau definia a soberania em termos de inalienabilidade, ao invés de indivisibilidade ("ver a soberania como separada é errôneo," ele escreveu, já que ele a via a partir de uma perspectiva diferente). Por um lado, ele fala em inalienabilidade não em termos do poder soberano exercido em nome da "nação", mas sim, em termos do povo que, até hoje, mantém seu poder através de seus representantes. Por outro lado, ele faz da indivisibilidade uma característica do poder soberano, que ele considera como essencialmente homogêneo, enquanto os revolucionários o devotavam ao povo assimilado à nação. Boroumand nota: "Onde, para Rousseau, o exercício da soberania é inalienável, para a Revolução, ela é indivisível, o que justifica seu monopólio por representação. E onde, para Rousseau, a extensão da soberania é indivisível, para a Revolução, ela é inalienável, o que justifica a autoridade ilimitada da soberania e, consequentemente, a fusão de poderes".  Ladan Boroumand, La guerre des principes, op cit. p. 171.

15 - Ver R. Debbasch, Principle of the Révolutionnelre d'une et d'Indivisibilité de la république (Paris: Economica, 1988); e Lucien Jaume, Le discours jacobin et la démocratie (Paris: Fayard, 1999).

16 - Ladan Boroumand, La guerre des Principes, op. cit., pp. 165-166.

17 - Prefácio a ibid., P. 10

18 - Ibid., p. 535.

19 - Henri Mendras, Le Mal de Bodin. A la recherche d'une souveraineté perue, "em Le Débat (May-August, 1999), p. 72.

20 - Julien Freund, L'essence du politique, op. cit., pp. 119-120.

21 - Daniel Cohn-Bendit e Zaki Laïdi, in Libération (June 6, 1999).

22 - Carl Schmitt, Political Theology, op cit., P. 5.

23 - Julien Freund, L'essence du politique, op. cit., p. 125

24 - Cf. Paul Hirst, "Carl Schmitt's Decisionism," em Chantal Mouffe, ed., The Challenge of Carl Schmitt (London: Verso, 1999), pp. 7-17.

25 - Por exemplo, Joseph de Maistre, que foi influenciado por Bodin, escreveu que "qualquer tipo de soberania é absoluta por natureza", ou seja, de certa forma, é sempre despótica, já que nada pode ser superior ao soberano e a soberania não pode ser limitada sem ser destruído.Ver De la souveraineté du peuple. Un anti-contrat social (Paris: Presses Universitaires de France, 1992, p. 179). De acordo com Maistre, em contraste com muitos de seus discípulos, a Revolução Francesa é explicada, sobretudo, pela evolução da monarquia em direção ao absolutismo, uma evolução que torna o poder insuportável ao mesmo tempo que afeta simultaneamente a nobreza e o terceiro estado, cujas funções respectivas eram indispensáveis para o bom funcionamento da sociedade. Essa idéia seria explorada por Tocqueville. Maistre observa com precisão que "a soberania é baseada no consentimento humano, porque se um determinado povo decidir desobedecer, então a soberania desapareceria, seria impossível imaginar o estabelecimento da soberania sem imaginar pessoas que concordam em obedecer" (Ibid., p. 92).

26 - Cf. Alain de Benoist, "Johannes Althusius, 1557-1638," in the Crisis (March 1999), pp. 2-34. Cf. também Chantal Delsol, L'État subsidiaire (Paris: Presses Universitaires de France, 1992); e "Souveraineté et subsidiarité, ou l'Europe contre Bodin", in La Revue Tocqueville (1998), p. 2

27 - Thomas O. Hueglin, "Le Fédéralisme d'Althusius dans un monde post-westphalien in L'Europe en formation (Spring 1999), p. 33; e Community - Federalism - Subsidiarity (Waterloo: Wilfrid University Press, 1999).

28 - Como Tomás de Aquino escreve, "Something done for the common good goes to the people or to someone who represents the people" ("alicujus gerentis totius multidunis").

29 - Jean-Jacques Rousseau, The Social Contract, II, 3.

30 - Cf. Otto von Gierke, Das deutsche Genossenschaftsrecht, 4 Vols. (Berlin: Weidmann, 1898-1913); Perry Anderson, Lineages of the Absolute State, op. cit., pp. 27-28; Andrew Vincent, Theories of the State (Oxford: Basil Blackwell, 1987), p. 34

31 - Jacques Maritain, L'Homme et l'Etat em Oeuvres Complètes, Vol. 9 (Paris: Universitaires, Friborg et Saint Paul, 1982), p. 539

32 - Delsol, L'État subsidiaire, op.cit., P. 53

33 - Cf. Gene Lyons and Michael Mastanduno, Eds., Beyond Westphalia? (Baltimore: John Hopkins University Press, 1995). O modelo vestfaliano é criticado igualmente por Daniel Deudney, que se opõe ao "modelo de Filadelfia", com o qual o nome de James Madison está associado e que dominou os EUA durante o período entre a criação da União e o início da Guerra da Secessão. Neste modelo, todos os jogadores coletivos são "membros constituintes do soberano". Ver Daniel Deudney, "Binding Sovereigns. Authorities and Structures and Geopolitics in Philadelphia System," in Thomas Bierksteker e Cynthia Weber, eds., State Sovereignty as Social Construct (Cambridge: Cambridge University Press).

34 - Mendra, "Le mal de Bodin", op. cit., pp. 71-89.

35 - Cf. Tom Bottomore and Patrick Goode (ed.), Austro-Marxism (Oxford: Claren-don Press, 1978); Karl Renner, La nation, mythe et réalité (Nancy: Presses Universitairesde Nancy, 1998).

36 - "Europe and the Federal Idea," em The Commonweal, April 19 and 26, 1940; versão estendida em Jacques Maritain, L'Europe et l'idee federale (Paris: Mame, 1993), pp. 15-47. A incompatibilidade do federalismo com o conceito de soberania de Bodin tem sido bastante enfatizada, notavelmente por  Harold Laski (Studies in the Problem of Sovereignty, New Haven: Yale University Press, 1917); The State in Theory and Practice (London: George Allen & Unwin, 1935 ), e também por Robert Dahl, Who Governs? (New Haven: Yale University Press, 1961).

37 - Michel Glady, "A hauteur d'homme. Des frontieres au fédéralisme, em L'Ordre nouveau (November 1934), p. 10.

38 - Mendras, “Le ‘mal de Bodin’,” op cit., p. 86.

39 - Delsol, Souveraineté et subsidiarité, ou l'Europe contre Bodin, op cit., P. 50.