por Juan Manuel Garayalde
I - Anarquismo Mítico e Filosófico
Como todo pensamento político, o anarquismo teve diferentes pontos de vista. Uma importante quantidade de intelectuais situam o nascimento do anarquismo no século XIX, quando podemos encontrar nas Metamorfoses de Ovídio, uma menção a um sistema política de características similares ao que se acharia no início de uma Idade de Ouro, onde não haveria leis, juízes nem nada que se pareça a isso para sancionar os cidadãos, posto que entre eles existia uma visão do mundo similar. Ainda assim, não podemos esquecer das comunidades anarquistas como os seguidores do Patriarca Gnóstico Carpócrates de Alexandria que fundou comunidades cristãs no norte da África e na Espanha no século II. Diferente do anarquismo filosófico do século XIX, que situa o anarquismo ao fim da história humana, como um processo evolutivo, tal como foi formulado de maneira similar o paraíso comunista de Karl Marx.
Dentro dessa corrente do século XIX, se destacaram autores como William Godwin, Proudhon, Max Stirner, Bakunin, etc. Stirner, o mais importante expoente do individualismo anarquista, foi contra não só o Estado, mas contra a Sociedade; foi mais longe que qualquer pensador anarquista convertendo o homem no Absoluto, o nada criador, em ser belicoso por natureza que luta pela propriedade de si mesmo, a "propriedade do único", rechaçando o Estado, a burguesia, as instituições sociais e educativas, a família, as leis. Destruir as ilusões para descobrir a si mesmo e ser dono de si mesmo.
Sua principal obra, "O Único e sua Propriedade", foi recebida com hostilidade por Karl Marx, que o viu como uma ameaça a todo seu materialismo dialético, pelo que se dedicará com esmero a refutar suas ideias. Assim, o anarquismo filosófico começa a ser visto como ameaça ao marxismo.
Posteriormente, será Bakunin que desafiará o crescimento do comunismo. Este pensador anarquista, marcará uma diferença em relação aos outros, posto que se dito movimento alcançou certa presença na luta social, foi graças a ele. É impensável o sindicalismo anarquista sem Bakunin (recordemos a FORJA na história argentina e a famosa "Semana Trágica" de 1919). A Europa, quiçá, jamais teria presenciado um movimento político anarquista organizado, se não tivesse sido pelo trabalho ativo de Bakunin.
II – Anarquismo, Liberalismo e Socialismo
O surgimento do anarquismo filosófico está ligado à crise social pós-medieval. A burguesia começa a estabelecer relações com as velhas aristocracias, enquanto demoliam os grêmios e associações que protegiam os pequenos produtores. Com o crescimento do comércio e as manufaturas, os antigos grêmios medievais eram um grande obstáculo a esse novo desenvolvimento. Os pequenos artesãos e produtores agrícolas começaram a se encontrar desamparados frente o crescimento da competência, ao passo que crescia os direitos monopolistas nas mãos de grandes empresas industriais, agrícolas e comerciais.
Surgiram na época de transição duas correntes de protesto: o Liberalismo Radical, que pretendia reformas parlamentárias para conter o poder do Estado, e o anarquismo. Os liberais (Locke) consideravam a propriedade como um direito natural, e atribuíam a responsabilidade ao Estado de proteger a mesma de ataques internos e externos, permitindo a livre troca de mercadorias. Os anarquistas, no entanto, diziam que o Estado protege a propriedade dos ricos, e que as leis favorecem a concentração da propriedade. Para os anarquistas, se devia criar uma sociedade igualitária de produtores pequenos e economicamente autônomos, livres de privilégios ou distinções classistas, onde o Estado seria desnecessário.
O anarquismo teve sua primeira grande derrota quando Marx assume a Primeira Internacional, depois de debates acalorados com Bakunin. Essa hegemonia se manteve até 1991, com a desintegração da URSS. Desde então, surgiram novas correntes do pensamento anarquista, mas de todas elas, a que aqui queremos resgatar por sua nova orientação é o anarquismo ontológico, que tem o britânico Peter Lamborn Wilson, mais conhecido como Hakim Bey, como seu principal expoente.
III – O Anarquismo Ontológico de Hakim Bey
Torna-se dificultoso definir o conceito de anarquismo ontológico, uma vez que é uma forma de encarar a realidade, onde não se necessita teorias fechadas em si mesmas, mas ações que tendem a tirar o homem de preconceitos modernos. O anarquismo ontológico é um desafio aberto a toda sociedade atual, onde o "Eu" é posto à prova, para ver se é capaz de questionar certos comportamentos e pensamentos que se manifestam mecanicamente. Sua linguagem principal é o que Hakim Bey chama de "terrorismo poético", uma forma brusca mas profunda de rejeitar as convenções de toda sociedade organizada em torno de ilusões.
Ante a crise espiritual que afeta principalmente o Ocidente, Hakim Bey propõe um nomadismo psíquico, um retorno ao paleolítico, sendo mais realista que simbólico esse último conceito. Como ele diz, "se busca a transmutação da cultura impura em ouro contestatário". Sua frase principal é "O caos nunca morreu", onde, para ele, seria o espaço onde a liberdade se vive plenamente, enquanto vê a Ordem como a apresentação de uma série de estruturas políticas, culturais, educativas e policiais; em si, limites impostos à mente que deve possuir plena liberdade da natureza. Essa ordem atual não faz mais que aprisionar o homem, leis de uma civilização que está parada no tempo, para congelar e matar o Espírito.
Bey nos diz que o Caos é derrotado por jovens deuses, moralistas, por sacerdotes e banqueiros, senhores que querem servos e não homens livres. Seguidor de grupos sufis não muito ortodoxos, apresenta a jihad espiritual, a rebelião contra a civilização moderna.
O modelo social de luta que apresenta Hakim Bey é o da quadrilha, do grupo de saqueadores que tem sua própria lei. Esse é o sentido do paleolítico, o grupo de caçadores e coletores que percorriam pelos bosques e desertos de uma terra antiga sem deuses tiranos.
Alguns poucos anos atrás, estreou um filme no qual um dos realizadores foi influenciado pelos escritos desse autor. O filme se chamava "O Clube da Luta", onde se descreve um homem submisso ao sistema econômico e moral, que se depara a uma ruptura mental que o leva a criar um mundo real onde poderia estar fora do sistema, burlando o mesmo continuamente.
Isso nos leva a estudar a contribuição que consideramos a mais importante da obra de Hakim Bey: o conceito de TAZ, ou seja, a Zona Autônoma Temporária.
IV - Zona Autônoma Temporária (TAZ)
Existe uma coincidência semântica com o pensador tradicionalista italiano, Julius Evola: Ambos autores utilizam o termo "rebelião" como força de reação aos sintomas de declínio espiritual e material do homem.
Para Hakim Bey, o projeto de uma revolução implica um processo de transformações onde se vai de uma situação caótica até uma nova Ordem. O escritor nos diz: "Como é que todo mundo sempre termina por endireitar-se? Por que sempre toda revolução segue uma reação, como uma temporada no inferno?" (1) Dessa maneira, uma Ordem dentro do Kali Yuga implicaria retornar a uma forma de conservadorismo decadente. Implica a frustração inicial de ideais revolucionários, ante as reações naturais dos que querem voltar as coisas ao normal, saindo do Caos.
H.B. utiliza os termos "rebelião", "revolta" e "insurreição", que implicariam "um momento que salta por cima do tempo, que viola a "lei" da história". Neste caso, estamos muito perto do conceito evoliano de "idealismo mágico”.
Completando essas ideias: enquanto a revolução é um processo que vai do caos a uma ordem determinada, a rebelião que apresenta H.B. é temporal, é um ato extra-ordinário, que busca mudar o mundo e não se adaptar a ele, que busca viver a utopia e não se conformar com uma ordem.
Mas, se não há uma ordem determinada a se criar por partes dos anarquistas ontológicos, de onde parte a rebelião e para onde ela retorna uma vez desatada? Aqui H.B nos fala da TAZ, as Zonas Autônomas Temporárias, que é um lugar físico que permite justamente um desenvolvimento da liberdade interior. Devemos esclarecer que a TAZ não é um conceito abstrato, mas real e histórico.. embora sempre quis se manifestar fora da História.
Um dos exemplos que H.B. trata é o da utopia pirata. Menciona fundamentalmente o período compreendido entre o século XVI e XVII. Na América, a zona do Caribe é muito conhecida por suas histórias de piratas, e o autor nos fala da famosa Ilha de Tortuga que foi um refúgio dos barcos piratas e de todos delinquentes que transitaram à margem da civilização. Era uma ilha ao norte do Haiti, com 180 km quadrados, com um mar rodeado de tubarões. Nesta ilha, não existia nenhuma autoridade, leis, códigos de comércio, impostos, e tudo aquilo ao que hoje estamos submetidos para poder pertencer a um determinado sistema social.
Um dos exemplos que H.B. trata é o da utopia pirata. Menciona fundamentalmente o período compreendido entre o século XVI e XVII. Na América, a zona do Caribe é muito conhecida por suas histórias de piratas, e o autor nos fala da famosa Ilha de Tortuga que foi um refúgio dos barcos piratas e de todos delinquentes que transitaram à margem da civilização. Era uma ilha ao norte do Haiti, com 180 km quadrados, com um mar rodeado de tubarões. Nesta ilha, não existia nenhuma autoridade, leis, códigos de comércio, impostos, e tudo aquilo ao que hoje estamos submetidos para poder pertencer a um determinado sistema social. Eles souberam criar um sistema fora do Sistema, ou seja, um anti-sistema, o caos, o lugar onde o anarquismo ontológico poderia encontrar uma causa para seu desenvolvimento. Se falarmos da gente que compunham os barcos piratas, descobrimos que eram de raças distintas: negros, brancos, asiáticos; distintas religiões, diferentes educações e classes sociais das quais foram deserdados; todos estavam em pé de igualdade, mas não uma igualdade coletivista, mas guerreira.
Esta TAZ, essa Zona Autônoma Temporária que foi a Ilha de Tortuga, não durou muitos anos, e essa é justamente a característica da TAZ, sua limitação no tempo, que segundo H.B. na melhor das hipóteses pode durar a vida de uma pessoa, mas não mais que isso, posto que o Sistema irá em sua busca para destruí-la. Vejamos como o autor defina a TAZ:
“O Taz é como uma revolta que não se envolve com o Estado, uma operação guerrilheira que libera uma área – de terra, de tempo, de imaginação – e então se autodissolve para reconstruir-se em qualquer outro lugar ou tempo, antes que o Estado possa esmagá-la.” (2)
É a estratégia da barricada que quando está a ser destruída, é abandonada e levantada em outro lugar. É o âmbito da internet, onde se entra para criticar o sistema através de uma página da web e quando essa cai, volta a aparecer em outro lugar.
Mas, sigamos com os exemplos históricos que H.B. utiliza para descrever o conceito de TAZ. Neste caso, citamos um parágrafo completo, com o objetivo de que se possa apreciar todos os elementos vulgares, artísticos, esotéricos e poéticos do pensador, que parece mesclar a realidade com a fantasia, com a utopia e com o oculto. Esta forma de escrever, que como mencionamos acima, é definido como "terrorismo poético":
“Por isso, dentre os experimentos do período entre-guerras eu me concentrarei na impulsiva República de Fiume, que é menos conhecida e não foi criada para durar.
Gabriele D’Annunzio, poeta decadente, artista, músico, esteta, mulherengo, doidivanas aeronauta pioneiro, bruxo negro, gênio e mal- educado, emergiu da Primeira Guerra Mundial como herói e com um pequeno exército à sua disposição e comando: os arditi. Ávido por aventura, ele decidiu capturar a cidade de Fiume, na Iugoslávia, e entregá-la para a Itália. Depois de uma cerimônia necromântica com sua amante num cemitério de Veneza, ele partiu para a conquista de Fiume, e foi bem-sucedido sem nenhum problema digno de ser mencionado. Porém a Itália recusou sua oferta generosa. O primeiro-ministro chamou-o de idiota.
Ofendido, D’Annunzio decidiu declarar independência e ver por quanto tempo conseguiria mantê-la. Ele e um de seus amigos anarquistas escreveram a Constituição, que instituía a música como o princípio central do Estado. A Marinha (composta por desertores e sindicalistas anarquistas dos estaleiros de Milão) se autonomeou Uscochi, em homenagem aos antigos piratas que em tempos passados viviam nas ilhas da região e saqueavam os navios venezianos e otomanos. Os modernos uscochi foram bem-sucedidos em alguns de seus golpes malucos: vários polpudos navios mercantes italianos de repente deram à República um futuro: dinheiro em seus cofres! Artistas, boêmios, aventureiros, anarquistas (D’Annunzio se correspondia com Malatesta), fugitivos e refugiados sem pátria, homossexuais, dândis militares (o uniforme era preto com a caveira e os ossos cruzados dos piratas - depois roubado pela SS) e excêntricos reformadores de toda espécie (incluindo budistas, teosofistas e seguidores do vedanta) começaram a aparecer em Fiume aos bandos. A festa não acabava nunca. Toda manhã, do seu balcão, D’Annunzio lia poesia e manifestos; toda noite havia um concerto, seguido por fogos de artifício. Nisso se resumia toda a atividade do governo. Dezoito meses mais tarde, quando o vinho e o dinheiro haviam terminado e a frota italiana finalmente apareceu e arremessou alguns projéteis contra o Palácio Municipal, ninguém tinha energia para resistir.
(...). Ela foi, de certo modo, a última das utopias piratas (ou o único exemplo moderno), e também, talvez, algo muito próximo da primeira TAZ moderna.” (3)
V – A TAZ na História Argentina
Chegando a este ponto, nos perguntamos: pode se falar um exemplo da TAZ em nossa história argentina? H.B. pode ter citado um exemplo para trazer em seu trabalho? A resposta é afirmativa, e encontramos nada mais e nada menos que em nossa obra-prima da literatura argentina: El Martín Fierro.
Essa obra, cujo protagonista é uma criação do autor, representa o confronto entre a "Civilização" e a "Barbárie", e forçando um pouco os termos, entre a Modernidade e a Tradição. O tempo em que se desenvolve o poema guacheso é durante o período da organização nacional, entendido este como a adaptação de um país de caráter católico, livre e guerreiro, ao sistema constitucional liberal, laico, de dessacralização do poder político em ideologias que sustentaram e reforçaram a Modernidade.
Martín Fierro é o arquétipo da "Barbárie": o homem que não aceita uma "Civilização" alheia a sua cultura, que quer obrigá-lo a adotar uma nova forma de vida, sob o risco de perdê-la se não obedecer. Por tal motivo, Martin Fierro foge para além da fronteira sul, para viver com os índios. Lemos na obra:
“Yo sé que los caciques/amparan a los cristianos,
y que los tratan de “hermanos”
Cuando se van por su gusto
A que andar pasando sustos …
Alcemos el poncho y vamos”.
A Fronteira, os acampamentos, são a TAZ que existiu na Argentina. Ali, os homens que estavam fora da lei, encontraram a liberdade: foram aqueles que desertavam do novo exército constitucional, ladrões de gado, assassinos, escravos, rapaz jovens que fugiam de suas casas optando pela liberdade que existia para além da fronteira. Também existiram exemplos de mulheres que encantadas com os índios, tiveram famílias, e que ao regressar à civilização, não puderam se acostumar e regressaram com os índios. Martín Fierro nos descreve a vida livre:
“Allá no hay que trabajar
Vive uno como un señor
De cuando en cuando un malón
Y si de él sale con vida
Lo pasa echado panza arriba
Mirando dar güelta el sol.”
A verdade é que não havia muita diferença entre o acampamento e o meio rural. A diferença começou a ampliar-se na medida que cresciam as leis e a coerção e se perdia a liberdade que o gaúcho conhecia. A fronteira passa a se tornar não só uma válvula de escapa para tensões sociais, mas também existenciais.
Mas do arquétipo passemos também a um exemplo concreto, a um homem que a literatura retratou várias vezes em novelas, contos e obras de teatro, ao qual se acrescentou muitos relatos acerca do lugar que utilizou para escapar da "civilização". O homem que escolhemos aleatoriamente se chamou Cervando Cardozo, conhecido como Calandria por sua bela voz para o canto. Foi um gaúcho que nasceu em 1839 e faleceu - morto pela polícia- em 1879. Teve uma vida como qualquer um de seu tempo, mas a diferença é que decidiu lutar quanto a institucionalização política do país começou a querer roubar sua liberdade. Ele se incorpora com a última montonera da histórica oficial, a comandada pelo caudilho entrerriano Ricardo López Jordán, ao que a histórica oficial o acusa de ter participado do assassinado do caudilho Justo J. de Urquiza, que até então era o principal responsável pela transformação política do país. Calandria combateu junto a López Jordan, e ao ser derrotado é obrigago a incorporar-se a um exército de fronteira. Calandria não aceita e deserta. Nasce assim sua vida de fora da lei, que a viverá dentro da província de Entre Rios na denominada Selva de Montiel, onde as forças policiais jamais poderiam capturá-lo.
Aqui entramos num novo TAZ: o bosque. Em muitas tradições, os bosques representam lugares proibidos, onde abundam espíritos, criaturas fantásticas e onde se corria perigo de encontrar uma morte horrenda. um dos exemplos mais conhecidos por todos são os bosques de Sherwood onde encontraram refúgio vários "fora da lei" que logo seguiriam o famoso Robin Hood.
Em nossa terra, os bosques representam o lugar onde os gaúchos rebeldes se escondiam, donde os feiticeiros, curandeiros, bruxas e deformes tinham seu covil. É também o local onde os aquelarres se realizavam, que bem expressados estão em nossas canções populares; por exemplo em La Salamanca de Artudo Dávalos, diz o refrão "Y en las noches de luna se puede sentir, / a Mandinga y los diablos cantar”, o Bailarín de los Montes de Peteco Carabajal, en su estribillo también dice: “Soy bailarín de los montes / nacido en la Salamanca".
Aqui faremos um breve aprofundamento desse tema de La Salamanca: originalmente, a lenda parte da Espanha, da região de Salamanca. Ali se encontravam as famosas grutas dos alquimistas, magos, cabalistas, gnósticos e outros, se reuniam em segredo para evitar a perseguição da Inquisição. Como ali se efetuaram todo tipo de ensinamentos de caráter iniciático, permaneceu uma lenda negativa impulsionada pelo clero católico da época, de que ali se invocava o demônio, e é por isso que todo o processo daquele que ingressa na Salamanca até chegar a frente do Diabo é de caráter iniciático. É por isso que se diz, na atualidade, que existem duas entradas para Salamanca com resultados diferentes, uma de ascensão e outra de descida. A Salamanca é para a TAZ argentina um modelo de iniciação, conquistando "a outra porta".
Retomando, a Selva de Montiel (chamada assim pelo aspecto impenetrável da mesma) foi o refúgio de muitos, como Calandria, que resistiram à mudança pelo apego à liberdade e à tradição. Estes rebeldes conservaram em pequena escala parte da figura que representaram em outro momento os Caudilhos, posto que tinham um respeito e compreensão para com o povo e esses acabaram sendo cúmplices silenciosos das aventuras desses forasteiros.
Cito aqui um trecho da peça "Calandria" de Martiniano Leguizamón, estreada em 1896. Nesse fragmento, se fala do gaúcho rebelde frente a tumba de sua mãe:
“¡Triste destino el mío! …. ¡Sin un rancho, sin familia, sin un día de reposo! … ¡Tendré al fin que entregarme vensido a mis perseguidores! … Y ¿pa qué? ¿Por salvar el número uno? … ¿Por el placer de vivir? … ¡No, si la libertad que me ofrecen no had ser más que una carnada! No; no agarro. ¡Qué me van a perdonar las mil diabluras que le he jugao a la polesía! ¡Me he reído tanto de ella y la he burlao tan fiero! … (Riendo) ¡La verdá que esto es como dice el refrán: andar el mundo al revés, el sorro corriendo al perro y el ladrón detrás del jues! … ¡Bah … si el que no nació pa el cielo al ñudo mira pa arriba!” (4)
Calandria não foi o único desses gaúchos rebeldes. Nosso Atahualpa Tupanqui foi um gaúcho rebelde nos anos 30. Depois da uma falida revolução radical que participou, fugiu para Entre Rios e se escondeu na Selva de Montiel. Foi nessa época que compôs a canção "Sin caballao y en Montiel".
Mas avancemos mais nessa construção da TAZ em nossa terra. Se o gaúcho rebelde é uma representação, em pequena escala, de Caudillo, onde podemos encontrar uma figura de tal magnitude que se encaixe com o modelo de anarquismo ontológico? Podemos encontrar verdadeiras surpresas em nossa história nacional. Uma delas é a do jovem Juvan Facundo Quiroga, o "Tigre de los Llanos", que pelas descrições que fizeram de sua pessoa, nos atrevemos a dizer que foi um dos primeiros líderes anarcas que houve em nossa história nacional.
Sarmiento, que conheceu Quiroga em sua etapa jovem - não a adulta onde se começaria a preocupar-se com a forma de organização a ser alcançada com a Confederação Argentina - em seu "Facundo", entre o ódio e a admiração escreve essas palavras sobre Quiroga:
“Toda la vida publica de Quiroga me parece resumida en estos datos. Veo en ellos el hombre grande, el hombre genio a su pesar, sin saberlo él, el César, el Tamerlán, el Mahoma. Ha nacido así, y no es culpa suya; se abajará en las escalas sociales para mandar, para dominar, para combatir el poder de la ciudad, la partida de la policía. Si le ofrecen una plaza en los ejércitos la desdeñará, porque no tiene paciencia para aguardar los ascensos, porque hay mucha sujeción, muchas trabas puestas a la independencia individual, hay generales que pesan sobre él, hay una casaca que oprime el cuerpo y una táctica que regla los pasos ¡todo es insufrible!. La vida de a caballo, la vida de peligros y emociones fuertes han acerado su espíritu y endurecido su corazón; tiene odio invencible, instintivo, contra las leyes que lo han perseguido, contra los jueces que lo han condenado, contra toda esa sociedad y esa organización de que se ha sustraído desde la infancia y que lo mira con prevención y menosprecio. (…) Facundo es un tipo de barbarie primitiva; no conoció sujeción de ningún género; su cólera era la de las fieras …” (5)
E como todo anarca, Quiroga não era um dos homens que queriam sentar em uma mesa no escritório a governa o que muito havia lhe custado conseguir. Suas batalhas nunca finalizaram. Citamos novamente a Sarmiento:
“Quiroga, en su larga carrera, jamás se ha encargado del gobierno organizado, que abandonaba siempre a otros. Momento grande y espectable para los pueblos es siempre aquel en que una mano vigorosa se apodera de sus destinos. Las instituciones se afirman o ceden su lugar a otras nuevas más fecundas en resultados, o más confortables con las ideas que predominan. (…)
“No así cuando predomina una fuerza extraña a la civilización, cuando Atila se apodera de Roma, o Tamerlán recorre las llanuras asiáticas; los escombros quedan, pero en vano iría después a removerlos la mano de la filosofía para buscar debajo de ellos las plantas vigorosas que nacieran con el abono nutritivo de la sangre humana. Facundo, genio bárbaro, se apodera de su país; las tradiciones de gobierno desaparecen, las formas se degradan, las leyes son un juguete en manos torpes; y en medio de esta destrucción efectuada por las pisadas de los caballos, nada se sustituye, nada se establece”. (6)
Aqui vemos com claridade os conceitos de H.B. de psiquismo nômade e de retorno ao paleolítico.
VI – Anarquismo Ontológico e Tradição
Até aqui, temos traçado um paralelo entre o conceito de TAZ de H.B e nossa história nacional. Nossa tarefa agora é ver aonde o anarquismo ontológico pode nos levar.
Esta postura acreditamos que é positiva para o impulso de um niilismo ativo, que consistirá em construir bases de ação que são a TAZ: sua ação é desconstrutora, de rejeição aos valores e estruturas do pensamento da Modernidade. O anarquismo ontológico tem sabido descobrir na história os forasteiros do sistema, e esse tema é uma eterna preocupação da filosofia política contemporânea. Por exemplo, um dos pensadores mais importantes do neoliberalismo, Robert Nozick, (7) recentemente falecido, nos fala de um estado de natureza onde passo a passo se vai construindo um Estado Liberal ideal para a sociedade atual. Nos fala de uma Associação de Proteção Dominante, onde uns trabalham e outros tomam o papel de defender a comunidade dos agressores externos. De lá, se passa para o Estado ultramínimo, que tem como objetivo justamente incorporar os forasteiros.. os foras da lei. Supostamente, para Nozick, os forasteiros se integrariam à sociedade ao lhes ser oferecida proteção gratuita para que possam viver em paz, o que chamou princípio de compensação. Essa tentativa teórica fracassou, sobrando-nos exemplos reais para comprovar historicamente. O anarca não necessita que nada o projeta. E é livre para viver e morrer em sua própria lei. (8)
O Anarquismo Ontológico tem tido uma importante repercussão entre os jovens, e essa ideia do TAZ foi levada ao cinema. O filme "O Clube da Luta", com Edward Norton e Brad Pitt como atores principais, nos apresenta uma atmosfera de uma geração de jovens sem ideais, com futuro incerto e, sobretudo, com a revelação absoluta de sua própria solidão no mundo. Ali, como em Doctor Jekill e Mister Hyde, há um homem que não se atreve a se libertar de suas próprias correntes, a viver o mundo sem tratar de controlá-lo.
Um filme como Clube da Luta nos mostra que estamos sós, que não há ninguém lá fora com os braços abertos nos esperando. Um dos personagens desse filme, Tyler Durden, em seu discurso onde inaugura sua TAZ, o Clube da Luta, vivendo em um edifício abandonado em ruínas e rodeado de jovens rebeldes, diz: "Eu vejo no Clube da Luta os homens mais inteligentes e fortes, vejo tanto potencial e vejo que isso se desperdiça. Meu Deus, uma geração vendendo gasolina, servindo mesas, escravos do colarinho branco e todos esses anúncios que promovem o desejar de carros e roupas com marcas de um tipo que nos dita como devemos nos ver. Fazemos trabalhos odiosos para comprar o desnecessário, filhos no meio da História sem propósito nem lugar..
Como nos disse com certeza H.B. "O capitalismo, que afirma produzia a Ordem mediante a reprodução do desejo, na verdade se origina na produção da escassez, e só pode se reproduzir na insatisfação, na negação e alienação". (9)
E, nesse Clube da Luta, os que se integram, justamente aprendem a lutar e não a fugir.. aprendem a reconciliar-se com seu próprio passado, a vencer o medo e a angustiosa realidade materialista; e, no fundo, sempre se manifestando uma luta existencial.
Julius Evola, em sua obra "O Arco e a Clava", em oposição a certos movimentos juvenis modernos, descreve uma nova orientação denominada anarquismo de direita; aqui, nos fala de sujeitos que não perdem seu idealismo depois de passar dos 30 anos. Jovens com uns entusiasmos e impulsos imensuráveis, "com uma entrega incondicional, de um desapego a respeito da existência burguesa e dos interesses puramente materiais e egoístas". (10) Uma geração que pode ser encontrar-se no presente, que assumem valores como a coragem, a lealdade, o desprezo à mentira, "a incapacidade de trair, a superioridade ante qualquer mesquinho egoísmo e ante qualquer interesse baixo" (11); todos valores que estão por cima do "bem" e do "mal", que não caem em um plano moral, mas ontológico. É manter-se de pé com princípios imerso em um clima social desfavorável, agressivo; capaz de lutar por uma causa perdida com uma força e energia sobrenatural, que termina inspirando o terror em seus rivais, e entre esses, talvez, a um que consiga despertar frente ao que acreditava como uma ameaça. Poucos homens como esses, seriam capazes de deter exércitos em algum penhasco da antiga Grécia, ou, nos tempos em que vivemos, tomar uma ilha do Atlântico Sul sem matar nenhum civil ou soldado inimigo.
Mas, ao contrário de H.B., a TAZ, o anarquismo ontológico só pode ser considerado como uma estratégia para a aceleração dos tempos; mas, dentro dessa TAZ, deverão recriar-se os princípios de uma Ordem, que deverá reconstruir o mundo arrasado baseando-se nos princípios da Tradição Primordial.
O que nos separará sempre da postura anarquista frente a tradicional é a aspiração de edificar um Estado Orgânico, Tradicional, e a confrontar um igualitarismo com as Hierarquias Espirituais. Como em um tempo estiveram unidos o anarquismo e o socialismo na estratégia revolucionária, no presente, o Anarquismo Ontológico segue o mesmo caminho postulado pelo pensador italiano Julius Evola, de cavalgar o tigre, de controlar o processo de decadência para estar presentes o dia em que o Tempo se detenha. Talvez, quando chegar esse dia, ambas posturas estejam unidas na tarefa de construir uma nova Civilização que será início de uma nova Era.
Em semelhança ao caso argentino, sem um Juan Facundo Quiroga que começou a desafiar a autoridade iluminista do Partido Unitário, na década de 20 do século XIX, submergindo o país na anarquia junto com outros caudilhos, não haveria chegado, uma década mais tarde, um Juan Manuel de Rosas a começar a edificar a Santa Confederação Argentina; ambos são partes do Ser e Devir; ambos partes da "Barbárie" em oposição ao anti-espírito alienante da "Civilização". O anarca e o Soberano Gibelino acabam juntos trazendo a alma do Deserto às cidades sem luz interior.
Não queremos concluir essa exposição sem voltar à nossa tradição folclórica, à TAZ que tentou resistir ao avanço da Modernidade. Hoje, aqui reunidos, temos formado uma TAZ. E quando cada um de nós se for e as luzes desse lugar se apagarem, a TAZ se dissolverá para logo se criar em outros lugares. O espírito rebelde de Martín Fierro está em nós vivendo através de todos esses anos.
Concluímos com um fragmento de um poema com o qual nos identificamos, dedicado ao gaúcho Calandria, que morreu lutando em sua própria lei e sonhando permanecer pra sempre livre em sua Selva de Montiel:
"En mí se ha reencarnado el alma de un matrero,
como la de Calandria, el errabundo aquél,
que amaba la espesura, igual que el puma fiero,
y que amplió las leyendas del bravío Montiel”
Notas:
(1) Hakim Bey. TAZ. Zona Temporalmente Autónoma. http://www.merzmail.net/zona.htm
(2) Hakim Bey. Ob. Cit.
(3) Idem.
(4) Leguizamón, Martiniano. Calandria. Del Viejo Tiempo. Edit. Solar/Hachette – Buenos Aires 1961. P..47.
(5) Sarmiento, Domingo F. Facundo. Civilización y Barbarie. Ed. Calpe – Madrid, 1924. p.106-107.
(6) Sarmiento, Domingo F. Ob. Cit. p. 123.
(7) Nozick, Robert. Anarquia, Estado y Utopía. FCE – Buenos Aires, 1991.
(8) Existe uma diferença entre o anarquismo (os "ismos") e o anarca, concepção que está mais próxima da filosofia da Max Stirner. O escritor mexicano José Luiz Ontiveros nos dá uma explicação da mesma: "O anarca é um autoexilado da sociedade. O anarca é, também, um solitário, que crê no valor incondicional e absoluto dos atos. Ao contrário do anarquista, o anarca deixou de confiar na bondade natural do ser humano e em utopias e fórmulas filantrópicas que salvam ou redimam a humanidade. Seu ser se funda no sentido original da palavra grega anarchos, "sem liderança", mas sua autoridade individualista reconhece princípios como a disciplina e a moral da guerra, seu combate é travado contra pelo menos dois ou três inimigos, seu habitat é o bosque, o fogo, a montanha onde o homem deve abandonar a máscara da sociabilidade, para retornar à experiência primeira, ao ser que se outorga a si mesmo a vontade". Ontiveros, José Luis. Apología a la Barbarie. Ediciones Barbarroja – España 1992. p. 38.
(9) Hakim Bey. Ob. Cit.
(10) Evola, Julius. El Arco y la Clava. Editorial Heracles – Buenos Aires 1999. p. 244.
(11) Evola, Julius. Ob. Cit. p. 245.