27/02/2016

Daria Dugina - Ideologia Americana na Sociedade Francesa

por Daria Dugina

Tradução por Lucas Novaes



INTRODUÇÃO:

As principais características da ideologia Americana são:

- Crença no progresso universal, o qual tem seu ápice na civilização capitalista ocidental (os Estados Unidos como seu líder indiscutível);
- Individualismo completo, negação de identidades coletivas (religiosa, nacional, étnica), destruição dos valores tradicionais: gênero (política de gênero), família tradicional;
- Engenharia e desenvolvimento técnico reconhecidos como o principal objetivo, o aspecto moral é insignificante e menor;
- Os Estados Unidos e o Ocidente possuem o direito moral de ditar o caminho que o resto das nações devem seguir e viver (hegemonia americana em escala global).

ESQUERDA-DIREITA (NA POLÍTICA E ECONOMIA)

Para que possamos ver como a ideologia americana é implementada no espaço europeu, é necessário considerar o esquema do sistema político das sociedades da Europa Ocidental; a divisão entre direita e esquerda (em política e economia). O modelo da divisão política partidária esquerda-direita apareceu na Assembleia Constituinte da França (em 1789) quando o lado direito da mesa da presidência foi ocupado pelos apoiadores da monarquia, os “Cavaliers”, os conservadores, e o lado esquerdo pelos revolucionários, anti-monarquistas e os democratas radicais.

As principais características da direita na política são a proteção dos valores tradicionais, conservadorismo, defesa de sucessos  do passado, identidade nacional, religiosa e étnica. Na esfera econômica, os representantes dos partidos de direita têm como objetivo proteger a propriedade privada (a declaração da propriedade privada e o princípio superior da posse privada da propriedade coletiva; estatal, nacional, comunal), construção de um mercado mundial livre sem fronteiras nacionais e estatais.

As principais características da esquerda são a negação da identidade (étnica, religiosa), a negação dos valores tradicionais, anti-conservadorismo e universalismo. Na esfera econômica, a esquerda favorece várias formas de domínio da propriedade coletiva acima da propriedade privada (nacionalização da propriedade privada).

A FRANÇA ATÉ 1968

Até 1968, a influência da ideologia americana na França era fraca, principalmente por meio dos esforços do presidente de Gaulle, o qual consistentemente aplicou políticas antiamericanas que tinha mcomo objetivo a construção de uma Europa continental e soberana do Atlântico até os Urais (Rimland).

- De Gaulle se opôs a entrada da Inglaterra na Comunidade Econômica Europeia; a União Europeia  seria construída sem a participação dos anglo-saxões;
- Ele removeu a base militar americana do território nacional francês;
- A liberação da França dos compromissos de defesa da OTAN (cancelamento das estruturas militares da Aliança em 1966), a retirada do Planejamento de Defesa e Grupo de Planejamento Nuclear do Comitê (França continua a participar das estruturas políticas da OTAN);
- Em 1965, De Gaulle anunciou a recusa do uso do dólar nos pagamentos internacionais e a transição para um único padrão de ouro;
- De Gaulle transformou a França em uma líder do movimento não-alinhado em face dos dois blocos da Guerra Fria, França escolhe a Terceira Via (Rimland como uma zona independente);
- Desobediência ao Império Americano (condenação das ações dos EUA contra os países da Indochina), apoio a Palestina em 1967 (a condenação das ações de Israel na Guerra dos Seis Dias em 1967).

O QUE ACONTECEU EM MAIO DE 1968?

A ideologia americana chegou à França em maio de 1968; estudantes radicais de esquerda participaram em demonstrações e motins, com milhões de estudantes indo as ruas. Ironicamente, nessa época, a França encarou um crescimento econômico nunca antes visto (apogeu do milagre econômico francês, conhecido como “Trente Glorieuses”).

A estrutura do "Maio Vermelho" possui diversas áreas distintas: 1) Anarquista (slogans: “Il est interdit d’interdire” – “É proibido proibir”, “Ni Dieu ni maître!” – “Nem Deus nem Mestres”), 2) Esquerda, “gauchisme” (“Travailleur: Tu as 25 ans mais ton syndicat est de l'autre siècle.” – “Trabalhador: Você pode ter apenas 25 anos, mas seu sindicato é do século passado”) 3) Esquerda liberal, a qual tinha como objetivo desestabilizar o regime de de Gaulle e removê-lo da autoridade.

Se a primeira área quase não tinha programas positivos, a segunda e especialmente a terceira área do “Maio Vermelho” possuíam uma visão clara do futuro da França, no qual a figura de De Gaulle não tinha lugar. Na França, o regime antiamericano de De Gaulle foi derrubado pelos movimentos de esquerda antiamericanos (demonstrantes de esquerda criticaram a intervenção dos EUA no Vietnam: “Imagine:! C’est la guerre et persona n’y va” – “Imagine: houve guerra e ninguém apareceu! ”). A juventude protestou contra a guerra do Vietnam e a política militar americana por ter influência da cultura anglo-saxã.

A ideologia americana apareceu na arena política francesa através dos protestos antiamericanos.

A FRANÇA DEPOIS DO “MAIO VERMELHO”

Depois de Maio de 1968, a ideologia americana começou a entrar na política francesa. Aparecia uma nova sociedade e o libertarianismo liberal se tornou a nova ideologia dominante, a qual tinha, como principal objetivo, a destruição do: 1) modelo social de esquerda (que era protegido pelo Partido Comunista Frances), e 2) o modelo moral da direita (criado por De Gaulle).

Gradualmente, as diferenças entre a esquerda e a direita foram se misturando na política e economia. A direita passou a agir apenas em prol do liberalismo burguês, do capitalismo, ignorando o conservadorismo, a esquerda – em favor do progresso e da globalização, ignorando a esfera econômica (as demandas da proteção dos direitos dos trabalhadores, superioridade coletiva sobre a propriedade privada).

A FRANÇA SOB O DITADO IDEOLÓGICO AMERICANO

Hoje, a França está sob uma verdadeira ditadura ideológica, hegemonia do “pensée unique”, a ideologia americana. Qualquer um que é contra o liberalismo de esquerda (neste caso, não está agindo sob influência do liberalismo de direita), torna-se “intocável”, marginalizado, o inimigo do sistema, suicida (indicativo da crescente atenção ao Front National, bsucas recentes em seu principal escritório durando mais de 24 horas). A ideologia dominante na França (ideologia americana) está baseada em uma combinação do liberalismo de mercado da direita e do globalismo de esquerda.

A França se tornou um país sob o controle total da ideologia americana durante a presidente de Sarkozy:

- Março de 2009 – A entrada da França na OTAN, a traição da herança gaullista, a submissão oficial da França ao controle do comando americano;
- Associação com liberais de esquerda;
- Auxiliando os EUA na derrubada de regimes anti-americanos no Oriente Médio (Líbia, 2011).

Desde 2012, Hollande tem consistentemente continuado com a política de seu predecessor (apesar de ser um representante da esquerda, Hollande ignora os valores da esquerda na economia; a taxa de desempego cresceu 10% em seu regime).

- Apoio a sanções contra a Rússia, ruptura do contrato de Mistral;
- Legalização do casamento homossexual.

ALTERNATIVA A IDEOLOGIA AMERICANA NA FRANÇA

Será que existe, hoje, na arena política francesa, uma alternativa real ao domínio da ideologia americana? Não, mas a intensa busca por ela já ocorre. A força política que se opõe à ideologia do sistema americano na França e que está  desenvolvendo alternativas é o partido Front National. A crítica da política migratória da União Européia, euroceticismo, um foco no conservadorismo e na preservação das tradições (família, casamento, religião), e a crítica da elite dominante atlantista francesa se refletem no espaço político e na vontade do povo francês, e é uma alternativa ao governo liberal de esquerda.

O Front National é percebido pelas forças políticas dominantes como uma ameaça ao sistema, um partido anti-sistema que une em seu programa os valores anti-liberais da esquerda (igualdade social, justiça, anticapitalismo) e os valores não-liberais da direita (conservadorismo, Estado forte, política anti-migração).

Em 2015, após as eleições regionais, tornou-se claro que o Front National não era apenas legítimo, mas também um força política. Isso assustou fortemente a esquerda liberal (partido socialista) e direita (partido republicano) e alavancou a criação de uma coalizão unificada da esquerda e da direita para eliminar o Front National da luta política.

24/02/2016

Sebastian J. Lorenz - Indo-Europeus: Mitologia, Antropologia e Ideologia

por Sebastian J. Lorenz


Os Mitos de "Sangue e Terra"

Desde a mais remota antiguidade, a origem nórdica tem fascinado à maioria dos povos de estirpe indo-europeia, que assinalaram ou usurparam o Norte como pátria ancestral em seu imaginário étnico coletivo. De fato, a etnografia clássica assinalava a Ilha de Scandia, por referência a um lugar indeterminado entre Escandinávia e o Mar Báltico, como "fábrica de nações e matriz engendradora de povos" (Vagina Gentium). Certamente, nas estruturas religiosas dos indo-germânicos ocupa um lugar-comum a referência a uma terra mitológica situada no norte, na qual seus deuses e heróis se forjam em uma dura luta contra a noite e o gelo eternos, utilizando poderes da natureza como o sol, o trono ou o fogo: o mito ário nasce, precisamente, da fenomenologia e simbologia solares como patrimônio da raça branca nórdica frente aos mitos da noite e das trevas das raças escuras.

E os germânicos não foram uma exceção. Mais que isso, as distintas formações étnicas surgidas, com certa simultaneidade, como reação perante a queda do Império Romano, como os godos, os suevos, os vândalos, os francos, os alamanos, os anglos, os saxões, os burgúndios ou os longobardos, assim como, posteriormente, os escandinavos (dinamarqueses, suecos, noruegueses), competiram entre si para demonstrar sua primazia, sua pureza racial, fazendo remontar suas linhagens a longas árvores genealógicas que se perdiam na tradição escandinava das lendas nórdicas. Precisamente, este orgulho genético da origem nórdica constituiu a base fundamental para a formação de unidades etnopolíticas em torno às elites germânicas que tomaram o relevo civilizador de Roma, espalhando-se por todos os rincões do Velho Continente e provocando o nascimento do estamento real e nobiliárquico que regeria os destinos da Europa durante a Idade Média como uma autêntica "aristocracia de sangue" (Geburtsadel).

Tácito, um escritor latino, ao que parece metade romano, metade gaulês, estava convicto que "os germânicos são indígenas e de modo algum estão misturados com outros povos, seja por resultado de migrações ou por pactos de hospitalidade". Nesse sentido, aderia à opinião "de que os povos da Germânia, ao não estarem degenerados por matrimônios com nenhuma das outras nações, lograram manter uma raça peculiar, pura e semelhante somente a si mesma. Daí que sua constituição física, no que é possível em um grupo tão numeroso, seja a mesma para todos: olhos ferozes e azuis, cabelos loiros, corpos grandes e capazes somente para o esforço momentâneo, não aguentam da mesma forma a fadiga e o trabalho prolongado, e muito menos a sede e o calor, se estão acostumados ao frio e à fome pelo tipo de clima e de território nos quais se desenvolvem". Devemos ter presente que Tácito utilizava a comparação racial entre romanos e germânicos com um objetivo de propaganda moralizante: a decadência e corrupção do Império Romano frente à originalidade e naturalidade dos costumes dos povos germânicos, longe do estado de barbárie e selvageria - tão humilhante para o nacional-socialismo, ainda que o próprio Hitler reconhecesse a superioridade da cultura greco-romana frente à celto-germânica - descrito pelos autores clássicos.

Não obstante, as alusões que faz Tácito aos judeus, que se constituirão na historiografia e na filosofia germânicas como antítese dos nórdico-ários, são bastante menos prosaicas: "Os costumes judaicos são tristes, sujos, vis e abomináveis, e devem sua persistência a sua depravação... Para os judeus é desprezível tudo o que para nós é sagrado e para eles é lícito o que nos repugna... Os judeus, entre si, mantêm uma enorme fidelidade, uma piedade manifesta; por sua vez, para todos os outros, tem um ódio mortal... Quando os macedônios tomaram o poder, o rei Antíoco procurou extirpar suas superstições e introduzir os hábitos gregos para transformar essa raça inferior!.

Muito tempo depois, o historiador Montanelli, também de origem itálica, narrando com sua particular ironia a invasão da Grécia pelos dóricos, povo indo-europeu considerado pelos pensadores nazistas como o melhor exemplo das essências árias, os descrevia como "altos, de crânio redondo e olhos azuis, de um valor e uma ignorância a toda prova. Tratava-se, certamente, de uma raça nórdica". E mais adiante continua sua crítica dizendo que "os dóricos tinham uma feia enfermidade: o racismo. E até nisso se confirma que se tratava de nórdicos, que o racismo sempre levaram e seguem levando no sangue: todos, até os que de palavra o negam. Por bem que fossem muito menos numerosos que os indígenas, ou talvez precisamente por isso, defenderam sua integridade biológica, não raro com autêntico heroísmo como em Esparta".

Comentários respectivos à margem, nas descrições anteriores, tão distantes no tempo, encontramos as bases que fundamentarão o mito racial do nacional-socialismo. Trata-se de povos de origem nórdica, cuja pátria originária se situaria na região europeia compreendida pela Alemanha setentrional, Escandinávia e os Países Bálticos. Sua constituição física não deixa lugar a dúvidas: altos, fortes, loiros e de olhos azuis, o clássico padrão nórdico. Por esta condição não se misturaram com outros povos, ou o fizeram com grupos da mesma família genética, celtas, eslavos, bálticos, itálicos, conservando a pureza de sua raça, inclusive quando entram em contato bélico ou colonizador com outras civilizações em busca do espaço vital necessário para assegurar sua sobrevivência racial. Por último, o racismo inato aos povos nórdicos, que ao longo da história será especialmente virulento com os povos de cor, os leva a defender sua integridade biológica, inclusive recorrendo à violência e à guerra, único ofício honrado para uma "raça ariana de senhores e conquistadores".

Os mitos do sangue e do solo (blut und boden), de uma raça nórdica herdeira da raça ária primigênia (urvolk), cuja pátria originária (urheimat) se situava precisamente no solar ancestral dos germânicos, em algum lugar ao norte da Europa, assim como a necessidade de conseguir terras suficientes que assegurassem um espaço vital (lebensraum) para a conservação, desenvolvimento e predomínio daquela raça nórdica sobre outros povos eurasiáticos, especialmente a custa dos eslavos (drang nach osten), constituem os dois axiomas fundamentais da ideologia racial nacional-socialista: raça e espaço (rasse und raum).

E, não obstante, os milhares de livros publicados sobre Hitler, nacional-socialismo, o Terceiro Reich, a Segunda Guerra Mundial e o holocausto, se limitam a estudar, desde distintas perspectivas políticas, econômicas, sociais ou militares, as consequências derivadas do mito racial nazista, sem nem mesmo entrar na análise da ideologia racial que as provocou. Fórmulas simples e concludentes como a ideia triunfante na Alemanha nazista, segundo a qual os germânicos eram os mais puros representantes de uma raça ária superior e os judeus a escala inferior da hierarquia racial bastam, em princípio, para explicar a guerra de aniquilação e destruição mais cruel que já viu a história da humanidade. Mas por trás desse simplismo, como falamos, subjazia ma autêntica ideologia racial que pretendia aplicar aos homens as mesmas leis de seleção e sobrevivência que regem a Natureza. E para isso, se adotaram uma série de medidas enquadradas em uma política biológica global e totalitária, que iam desde a eugenia ativa à reprodução seletiva, da eliminação dos elementos raciais e sociais indesejáveis à formação de uma elite racial aristocrática encarnada na Ordem das SS.

O mito ário não é, não obstante, uma invenção de Hitler e do nacional-socialismo, mas sim fruto da manipulação ideológica sobre um problema real da arqueologia e da linguística em relação com a existência das línguas e povos conhecidos como "indo-germânicos" ou "indo-europeus", dos quais os "arianos" não seriam mais que sua extrema ramificação oriental, mas aos quais se outorgou uma pureza e uma preeminência racial e atribuiu uma lendária origem nórdico-germânica. Mas o ideal racial não interessou somente aos cientistas, quase sempre próximos aos postulados ideológicos e raciais do nazismo, como Kossinna, Penka, Reche, Lenz, Fischer ou Wirth, mas também a grandes pensadores ou criadores alemães como Herder, Fichte, Hegel, Kant, Sombart, Weber, Schopenhauer, Nietzche, Wagner, Spengler, Jünger, Schmitt, Jung ou Heideger. Com estes precedentes ideológicos, de da mão de disciplinas auxiliares como a mitologia, a filologia, a arqueologia e a antropologia, os autores racistas, como Gobineau, Vacher de Lapouge, Woltmann, Chamberlain, Rosenberg, Günther, Clauss e Darré, construíram uma doutrina "ário-nórdica" que logo se identificou com a Alemanha nacional-socialista, mas que levava vários séculos fluindo pelas frágeis aberturas ideológicas do humanismo europeu.

O culto à raça ária, em suas versões germânica ou nórdica, que se foi consolidando na Europa desde princípios do século XIX, não adquiriu em nenhum dos nacionalismos racistas do continente a orientação biologista e genetista que alcançou na Alemanha. Da ideia de uma missão de domínio mundial para a salvação da humanidade, à qual o povo alemão parecia estar predestinado, se passou, sem transição alguma, à preocupação pela pureza do sangue germânico, cuja futura hegemonia universal se encontrava em perigo pelos efeitos nocivos e contaminantes de sangues impuros como o judaico, o eslavo ou o latino, messianismo racial, sem dúvida, que, não obstante não trazia sua causa de um ódio ou preconceito específico, mas de poderosas imagens coletivas que deformavam as características físicas e éticas daqueles, infra-humanizando-os e, inclusive, demonizando-os, em contraste com a beleza e honra germânicas, quando em realidade se tratava de uma manobra, muito trabalhada ideológica e filosoficamente, de proteção de determinados interesses econômicos, territoriais e militares que, finalmente, Hitler soube explorar adequadamente, se bem que com um fanatismo que, certamente, não teriam compartilhado seus principais inspiradores ideológicos.

Não obstante, a distinção entre uma "raça superior" e outras "inferiores", o racismo alemão se fundamentava em uma hierarquização racial arbitrária e cruel em cuja cúspide se situavam os descendentes de sangue nórdico-germânico. Segundo Blank (o velho e novo fascismo), "os nazistas proclamaram que a raça germânica (nórdico-ária) é portadora das melhores qualidades das raças humanas: a lealdade ao dever e à honra, valor e audácia, capacidade organizativa e potencial de criação. Quanto mais puro é o povo no aspecto racial, mais claramente pode expressar essas qualidades. Nenhuma raça na Terra está dotada das qualidades da raça germânica, que é a parte melhor, a superior, da raça nórdico-ária. Todas as outras raças são inferiores porque estão arruinadas pelas misturas com outras raças, que originaram nelas traços negativos. São inferiores aos alemães os escandinavos e os ingleses (estes últimos estão contaminados pelo espírito mercantilista e pela influência dos plutocratas); ainda mais inferiores são os franceses e os espanhóis; os seguem, em ordem decrescente, o povo italiano e o romeno, e mais abaixo, os eslavos. Entre os povos asiáticos, os japoneses são a raça eleita; abaixo deles estão os indianos e depois os coreanos e os chineses. Os negros são inferiores aos asiáticos. E nos cimentos da pirâmide racial estão os árabes, junto aos cimentos se encontram os ciganos e, por último, no fundo, à margem do conceito de raças aptas para a vida, estão os judeus, que segundo a terminologia hitlerista são "sub-humanos", "uma raça irremediavelmente viciada e que segue envenenando a outras raças viáveis".

Contudo, a definição de "ariano" na Alemanha nazista seguiu sendo tão imprecisa quanto premeditadamente vaga era também sua concepção na doutrina de Hitler, que utilizará o "arianismo" segundo as circunstâncias biopolíticas ou geopolíticas de cada momento em benefício de sua política racial e expansionista. Em princípio, a condição de "ariano" se predicava a qualquer alemão que não fosse judeu ou negro, nem de origem africana ou asiática, nem tivesse ascendentes de tais raças até a terceira geração. Mas esta circunstância pôde aplicar-se, em função dos acontecimentos da política internacional e da marcha da guerra, a todos os europeus que não tivessem tal ascendência, de tal forma que tão "ariano" podia ser um alto e loiro escandinavo, como um escuro e vivaz mediterrâneo.

Na prática quotidiana da Alemanha nazista, não obstante, a condição de "ariano" se media, não tanto atendendo a determinadas características antropológicas de origem, como ao grau em que uma pessoa podia demonstrar sua utilidade e serviço à comunidade racial alemã, de tal maneira que a pretendida pureza racial, deixando à margem o âmbito particular das SS, dependia exclusivamente do capricho da hierarquia nazista para decidir quem podia ser considerado como arianos puros ou não. Bastava que um alemão classificado como "racialmente ariano" se comportasse como um dissidente ou manifestasse qualquer dúvida perante o regime para que, imediatamente, fosse considerado como um "bastardo judaizado", ao menos de um ponto de vista espiritual e ideológico.

O antropólogo-raciólogo oficial do regime Hans F.K. Günther descrevia assim o que não sera senão um anseio: "A questão não radica em sermos mais ou menos nórdicos; a pergunta que devemos nos fazer é se temos ou não a valentia de legar às gerações futuras um mundo capaz de se purificar no sentido racial e eugênico". Tratava-se, nada mais e nada menos, que de um movimento orientado à "nordicização" (Aufnordung): "o movimento nórdico pretende voltar a despertar no povo alemão a força criadora que antes possuiu o germanismo, e isso se conseguirá por meio de um triunfo na natalidade dos elementos germânicos, isto é, de caráter nórdico". Os líderes nacional-socialistas, especialmente o próprio Hitler, eram perfeitamente conscientes de que o povo alemão não constituía uma raça pura e, muito menos, nórdica, pelo que essa foi adotada como um "modelo racial ideal" ao qual se devia chegar por todos os meios da ciência eugênica e da seleção racial. E a antropologia se converteu assim na ferramenta propagandística que clamava pela purificação da raça alemã. O ambicioso sonho nazista era transformar substancialmente a natureza biogenética do povo alemão.

Não obstante, o mito ário não foi nunca abandonado. Ao fim e ao cabo, aqueles povos ários, indo-germânicos ou indo-europeus, de origem nórdica, que com o contato com as culturas autóctones, provocaram, segundo o discurso nazista, o nascimento de grandes civilizações na Índia, Pérsia, Grécia, Roma e, inclusive, para os ideólogos afeitos ao nazismo, também no Egito pré-dinástico, China e as misteriosas culturas pré-colombianas, assim como a maioria dos Estados europeus medievais surgidos após as invasões germânicas, deviam se encontrar presentes, em maior ou menor medida, na composição biogenética de todos os povos europeus. E isso havia culminado na civilização europeia ocidental exportada a todos os continentes. Dessa forma, a "germanidade" se convertia no nexo comum que unia a todos os povos europeus e, em consequência, deviam ser os alemães, os mais puros representantes dos antigos germânicos, os chamados a cumprir a missão de unificar a Europa sob seu domínio racial e espiritual (Herrschertum).

Desde logo, as diversas ondas migratórias dos germânicos (Völkerwanderung) se estenderam desde os fiordes nórdicos até o mar mediterrâneo e as estepes russas. Eram germânicos os vândalos que passaram pela Península Ibérica e ocuparam de forma efêmera o Cartago no norte da África, como também o eram os visigodos (ou talvez fossem bálticos?) e os suevos instalados na Hispânia, os francos e burgúndios que deram lugar ao Império Carolíngio, os ostrogodos e os lombardos na Itália, os anglos, saxões e jutos que invadiram a Grã-Bretanha e, é claro, os alamanos, os saxões, os turíngios, os bávaros e outros povos que provocaram o nascimento dos países de língua alemã (Áustria e Alemanha), ou como os frísios, os holandeses, os dinamarqueses, os suecos e os noruegueses que ficaram perto de seus lugares de origem. Em todos os casos, salvo no norte da Europa, nas regiões escandinava, alemã setentrional e báltica, onde formarão o contingente humano majoritário, os germânicos se encontrarão em franca minoria em relação às populações autóctones, inferioridade quantitativa que souberam compensar privilegiadamente mediante sua constituição como uma aristocracia de sangue, uma casta senhorial e nobiliárquica somente apta para a arte de governar e fazer a guerra.

Posteriormente, se produziram vários episódios de re-0germanização da Europa: germânicos eram os povos nórdicos, conhecidos como normandos ou vikings, que voltaram a invadir as Ilhas Britânicas, ocuparam o noroeste da França (Normandia) e colonizaram a Islândia e a Groenlândia até alcançar o continente americano; germânicos nórdicos eram também os "rus" que fundaram os primeiros principados russos, os que se apossaram da ilha da Sicília e os que formaram a guarda "varyag" em Bizâncio. Germânicos, se bem que agora exclusivamente alemães, os que sob o auspício do Império e o ímpeto expansionista da Ordem dos Cavaleiros Teutônicos germanizaram extensas regiões da Hungria, Boêmia, Morávia, Eslovênia, Romênia, Polônia e os Países Bálticos; germânicos prolíficos, sem dúvida, que chegaram a constituir a República dos Alemães do Volga na extinta União Soviética. E, enfim, germânicos eram também (majoritariamente anglo-saxões, escandinavos, holandeses e alemães) os europeus que colonizaram a América do Norte, a África do Sul e a Austrália.

O denominador comum a todos eles são bem conhecidos: o expansionismo militar ou colonizador, a conservação do patrimônio biogenético mediante uniões intrarraciais e o estabelecimento de uma hierarquia sócio-racial que convertia aos germânicos em uma autêntica aristocracia, nobreza de sangue, e aos "inferiores" povos coabitantes, fossem ameríndios, africanos, semitas ou aborígenes australianos, em vítimas propiciatórias dos deslocamentos, submissões, da exploração ou do extermínio.

Pois bem, voltando àqueles povos primitivos de uma suposta raça nórdica - arianos, tochários, dórios, jônios, aqueus, macedônios, trácios, dácios, frígios, ilírios, latinos, celtas, bálticos, eslavos e germânicos - observamos retrospectivamente seu insistente costume de instalar-se, como uma aristocracia de senhores e guerreiros, nas culturas euro-mediterrâneas e indo-arianas, submetendo ou escravizando a seus povoadores, mas mantendo uma autêntica separação ou segregação racial a fim de preservar suas características étnicas (dórios espartanos, patrícios romanos, brâmanes hindus, nobres germânicos), até que as implacáveis leis da convivência humana impuseram a mestiçagem racial, a hibridização cultural e, por fim, a inevitável decadência racial e espiritual que, segundo Gobineau, acaba com todas as civilizações. Milhares de anos depois, o movimento nazista se propôs a recuperar a figura nórdica do ariano criador, conquistador, dominador e escravizador. E para culminar essa obra, o povo escolhido não podia ser outro que o germânico, o mais puro dos antigos nórdicos.

O fato histórico transcendental, que provocou tal explosão ideológica, é que em torno ao 5º milênio a.C., começa a grande expansão, a Grosswanderung, desde o norte da Europa, de uns povos aparentados cultural, linguística, religiosa e, nos arriscamos a supôr, também antropologicamente. Invadirão, em sucessivas ondas migratórias, toda Europa, chegando ao Mediterrâneo e ao norte da África, assim como às atuais Turquia, Armênia, Curdistão, Irã, Afeganistão, Paquistão, Índia e a parte ocidental da China. Fundarão, em contato com as populações autóctones de origem euro-mediterrânea e afro-asiática, as grandes civilizações que são fundamento do mundo que hoje conhecemos. São povos de guerreiros e conquistadores, que praticam um tipo de nomadismo depredador e que dominam a arte e o ofício da guerra, com suas armaduras, escudos, espadas e machados, a montaria de cavalo e a carruagem de combate. Se impõem com facilidade aos povos submetidos, pacíficos, sedentários e agrícolas que vivem, com escassa proteção, em vales, planícies, estepes e litorais, próximos aos mares, lagos e leitos de rio sobre os quais giram suas concepções domésticas da vida.

A chegada desses invasores implica em uma mudança notável: a sociedade se torna hierárquica, em cuja cúspide se situam os conquistadores, os quais, durante muito tempo, praticam uma separação radical, racial, social, cultural, confessional, com os indígenas, quando inauguram uma organização tri-funcional (senhores, guerreiros e camponeses ou servos) e um tipo de assentamento em forma de cidades fortificadas que se situam nos altos promontórios naturais. Os testemunhos dos povos submetidos nos legaram numerosas descrições de seu aspecto físico: altos, fortes, loiros e de olhos azuis. Descrições que, saltando as distâncias, correspondem ao tipo nórdico atual e que, obviamente, devem ter surpreendido, por pouco comuns, aos povoadores periféricos do mundo civilizado de então, de pequena ou média estatura e traços escuros. Mas, realmente, de onde vinham estes conquistadores? Quem eram? Como eram?

Uma Língua, Um Povo, Uma Pátria

Gustav Kossinna, e posteriormente também Adriano Romualdi, pensava que "a raça nórdica dolicocéfala deve ter se desenvolvido a partir dessas duas raças do Paleolítico Superior, a de Cro-Magnon e a de Aurinhaque-Chancelade, durante o começo do Neolítico ou o Mesolítico que segue à glaciação e se considera o início da Idade da Pedra". De fato, a arqueologia documenta um deslocamento do elemento cro-magnoide da Europa ocidental na direção do Báltico. Outros, como Hans F.K. Günther, negavam que a raça nórdica fosse o resultado de uma evolução, ou mais tecnicamente, de uma adaptação, do Cro-Magnon, que podia dar lugar à raça dálica ou fálica (dalo-faelid), sendo mais provável a mutação da Aurinhaque no território livre de gelo da Europa central. Mas ambos aceitaram de forma acrítica que os falantes da língua indo-europeia original pertenciam a uma raça nórdica de homens altos e loiros, que viviam na antiga região alemã e que em sucessivas ondas, invasões e conquistas levariam o progresso cultural, unido à superioridade biológica, às civilizações clássicas.

No que estavam de acordo, de Otto Reche a Hans Günther passando por Kossinna, é que foi a Europa do último período glacial o berço da raça nórdica e, portanto, dos indo-europeus, sendo ademais na atualidade, algo que passam por alto muitos autores, a região do mundo em que, à margem de outras migrações mais recentes, se encontra em maior número e com maior fidelidade o tipo humano nórdico, enquanto que a área que vai da Ásia Menor até a Ásia Central foi, frequentemente, a tumba de numerosos povos indo-europeus (hititas, anatólios, armênios, frígios, tocharianos, arianos e indo-iranianos em geral), na qual foram fagocitados deixando, talvez, sistemas linguísticos, organizações hierárquicas ou certas tradições religiosas, mas não seus traços físicos e antropológicos.

Concluindo, podemos aventurar, sempre no terreno da especulação história e não no da constatação antropológica e arqueológica, que o tipo de "homo sapiens" desenvolvido na Europa, seja o de Cro-Magnon ou o de Aurinhaque, apareceu em algum lugar da região compreendida entre os mares Báltico e Negro, originando as primeiras povoações pré-indo-europeias: as que permaneceram em seus lugares de origem, dando lugar ao tipo europeu oriental "caucásico"; as que emigraram para o sul da Europa em busca de terras férteis, que seriam os ancestrais do tipo europeu ocidental "mediterrâneo"; e as que emigraram para o norte à caça de animais conforme o gelo ia retrocedendo e descobrindo novas terras inóspitas, que seriam os antepassados do tipo europeu "nórdico". Nessa pátria secundária de neves perpétuas e tênues luzes adquiririam os traços físicos que, segundo parece, caracterizaram os povos indo-europeus que, posteriormente, certamente coincidindo com outra época intermediária de clima glacial, emigrariam novamente para o sul, chegando ao Mediterrâneo, e para o leste, alcançando o Índico, misturando-se com as populações pré-indo-europeias que lhes precederam.

A seguinte exposição não deixa de constituir mais uma hipótese, mas cumpre perfeitamente o papel de ponto de partida para compreender o complexo processo de formação e posterior migração de determinados conjuntos étnicos que a linguística englobou em torno ao conceito de "indo-europeus". Pois bem, em torno ao ano 13.000 a.C. começa o grande degelo no norte da Europa. Até o ano 10.000 a.C. os gelos já haviam se retirado até a área norte da região de Hamburgo; no ano 9.000 a.C. o gelo libera a região de Copenhague e no 7.500 a.C. a área de Estocolmo, completando-se o degelo e formando-se o mar Báltico; posteriormente, por volta do 5.500 a.C., a terra livre do gelo se eleva e as águas liberadas ocupam as zonas baixas, originando o mar do Norte e separando as Ilhas Britânicas e Escandinávia do resto do continente.

Os proto-nórdicos (pônticos, caucásicos, danubianos?) seguem às manadas de animais que migram para o norte, assentando-se na Europa setentrional, caçando e pescando, até que surge a agricultura neolítica oriunda da Ásia Menor, que penetra pelos Bálcãs e através do Mediterrâneo, alcançando o Danúbio e posteriormente o Báltico meridional. Os povoadores da cultura dos "campos de urnas" (Urnenfelderkultur) não constituem todavia um povo indo-europeu definido, mas um conjunto ainda indiferenciado dos paleo-europeus que permaneceram em seus lugares de origem, mas que até o ano 1.400 a.C. vão adquirindo uma fisionomia própria: ilírica, céltica, itálica, germânica. Começa então a grande migração para o sul, a Grossewanderung, e posteriormente, no período 1.200-1.000 a.C., partindo do Cáucaso e passando por Irã e Afeganistão, os indo-iranianos, dos quais os arianos seriam apenas um grupo diferenciado, chegam à Índia. Seu caráter guerreiro, a simbologia solar da suástica, a lembrança de uma pátria nórdica ancestral e seu característico blondismo, os converterão em um útil instrumento para construir uma mítica identificação com os jovens povos germânicos. Quanto à pátria originária (urheimat), segundo Alain de Benoist, existem atualmente duas teses majoritárias. A primeira delas é a nórdica ou germânica. Assim entenderam Hermann Wirth e Karl Penka, a quem devemos a equação "indo-europeu = dolicocéfalo loiro de olhos azuis", e para os quais a zona do Báltico não podia ser a pátria originária por estar habitada por "braquicéfalos racialmente inferiores", distintos dos autênticos arianos, "raça poderosa e enérgica como é a raça loira". Penka afirmará que "os arianos puros só estão representados por alemães do norte e pelos escandinavos, uma raça muito prolífica, de grande estatura, força muscular, energia e coragem, cujos esplêndidos atributos naturais lhes permitiram conquistar a raças mais fracas do leste, sul e oeste e impôr sua língua aos povos submetidos".

A segunda escola majoritária, que é também a mais corroborada pelas descobertas arqueológicas, defende a tese de uma pátria russo-meridional. A lituana Marija Gimbutas, seguindo este caminho, propôs as estepes do sul da Rússia, do Volga, como pátria original, utilizando o conceito da "cultura dos kurgans" (a primeira manifestação conhecida da cultura dos túmulos funerários) desenvolvida por volta do 5º milênio a.C. e que teve vários movimentos migratórios: 1) por volta do 5º milênio a.C. (ao redor do 4.400) a primeira onda alcançou a Europa balcânica e danubiana; 2) no milênio seguinte (entre o 3.500 e o 3.000 a.C.) se produz um deslocamento duplo, pelo Cáucaso rumo ao domínio indo-iraniano, por um lado, e rumo a Europa central, pelo outro; 3) no 3º milênio a.C. teve lugar uma penetração, que não seria a última, na direção do Mediterrâneo, alcançando a península anatólica e o noroeste africano.

Para Alain de Benoist, não obstante, as teorias sobre a localização de uma pátria original russo-meridional ou euro-setentrional não são irreconciliáveis. Para Ward Goodenoug, a cultura dos "kurgans" de Gimbutas não seria senão a extensão pastoril da cultura indo-europeia desenvolvida no norte da Europa; uma parte desse povo, depois de destruir a cultura paleolítica europeia, teria descido para o sul (o povo do machado de guerra) difundindo a cerâmica polida e a metalurgia do bronze. Os restos étnicos que permaneceram na Europa central formariam os contingentes das migrações posteriores. Essa teoria obteve a aprovação de um dos autores mais especializados na questão indo-europeia, James Mallory, que situa o lar ancestral em uma zona delimitada entre os rios Elba e Vístula, margeando ao norte com a península da Jutlândia e ao sul com os montes Cárpatos. Enquanto isso, a tese nórdico-europeia tem sido aceita, em datas recentes, por Harold Bender, Hans Seger, Schachermeyer, Gustav Neckel, Ernst Meyer, Julius Pokomy e, mais recentemente, por Nicolás Lahovary, Paul Thieme e Raim Chandra Jaim.

Em qualquer caso, ainda que a questão da pátria de origem dos povos indo-europeus siga sendo objeto de debates linguísticos e arqueológicos polêmicos e interessantes, a teoria sincrética que provoca menos rechaço entre os estudiosos situaria a urheimat na extensa zona compreendida entre o mar Netro e o Báltico, epicentro indo-europeu a partir do qual se deslocariam os vários povos em todas as direções, alguns deles avançando lentamente para o norte da Europa, consolidando uma série de povos nórdicos com o característico fenótipo claro e dando lugar a uma etnogênese que conformaria posteriormente os distintos conjuntos tribais proto e indo-germânicos. O outro grupo separado do tronco original, importanto também quantitativamente, se assentaria em todos os cantos do sul da Europa, adquirindo o fenótipo mais escuro típico dos povos mediterrâneos, matizado posteriormente pelas contribuições dos povos vindos do centro e norte da Europa.

O "problema indo-europeu" foi realmente uma questão de identidade estritamente europeia. Quando ainda se acreditava que a luz civilizadora vinha do Oriente, apareceram os "arianos" como povo originário e primigênio (ariervolk), cujas migrações posteriores para o Ocidente teriam colonizado toda Europa. Conforma ia se desprestigiando a crença em uma exótica origem asiática e se abria caminho para as teorias eurocêntricas mais realistas, na Alemanha, possuída por uma quase divina predestinação de sua missão universal para salvar a humanidade, se adotou o nome de "indo-germânicos", unindo as duas ramificações extremas daquele povo misterioso (indo-iranianos no leste, germânicos no oeste) que, posteriormente, fundamentando-se nas descrições físicas que os autores clássicos faziam dos indivíduos (altos, fortes, loiros e de olhos azuis), confirmadas pelas provas arqueológicas e antropológicas encontradas na Escandinávia, Alemanha setentrional e Báltico, então os nazistas cunharam a denominação exclusiva de "nórdicos", aproveitando que o Reno passa pela Germânia, como havia escrito um Tácito latino ofuscado pela decadência dos romanos frente à vitalidade dos bárbaros germânicos.

O "arianismo" teve em suas origens umas conotações românticas que pretendiam enviar uma mensagem moralizante sobre a decadência da cultura ocidental em comparação com o estado puro e virginal de uma civilização ariana anterior à história, mas não pré-histórica, senão para-histórica. O germanismo mais radical, não obstante, se apropriou da origem indo-europeia para proclamar e reivindicar seus direitos ao domínio mundial, convertendo o povo originário, mediante uma transmutação biogenética, na raça nórdica de senhores e conquistadores, selecionados naturalmente para a "arte de governar e fazer guerra". Estamos irremediavelmente diante de um autêntico "mito europeu", que começou fragilmente sua caminhada das mãos do darwinismo social para legitimar, entre as classes políticas e intelectuais, o supremacismo branco cúmplice do colonialismo depredador e das políticas discriminatórias, que faziam do europeu, especialmente dos nórdicos, o "prometeu da humanidade" (para empregar a conhecida expressão hitlerista) frente aos "escravos de uma sub-humanidade" luciferiana despossuída da evolução divina.

Dessa forma, no extremo oriental ocupado pelos "indo-europeus", nos encontramos com um povo misterioso que se denomina com o termo endoétnico "aryas", com o sentido de "nobre", ainda que haja autores, como o indólogo Paul Thieme que embaralham um termo exoétnico com o significado de "estrangeiro". Em todo caso trata-se dos conquistadores da Pérsia (Irã), Afeganistão, Paquistão e Índia. O livro sagrado Rig Veda reflete que se designavam a si mesmos com esse nome popular. O Avesta fala do Airyanem Vaejah (pátria solar dos arianos). Durante o Império Aquemênida, séculos mais tarde, os habitantes do Irã (evolução de Aryan) ainda utilizavam denominação idêntica e de alguns personagens se dizia que eram "arya-cica" (de origem ariana) ou "arya-putra, arya-kanya" (como títulos senhoriais). O nome do bisavô de Dario era Ariyaramma, e o próprio Dario se considerava "de estirpe ariana, rei dos arianos". O termo teria perdurado no nome moderno do Irã, também no da Irlanda (Eire) e no de Ironistão, nome que dão os ossetas caucásicos, descendentes dos alanos indo-iranianos, a sua pátria (em sua língua se chamam "iron"). No extremo ocidental, ademais, se conservou a denominação de "arianos" em alguns antropônimos como o celta "Ariomano", os germânicos "Ariovisto", "Ariomer" ou "Ariogais", o escandinavo "Ari", o celtibérico "Arial", o gótico "Ariarico", o latino "Ariolus" e, inclusive, os gregos "Ariel", "Arianna" e "Aris".

Um inciso. Em relação ao conceito de "indo-europeu", introduzido pelo britânico Thomas Young, tecnicamente impreciso, mas que teve a sorte de substituir ao de "indo-germânico", cuja utilização nacionalista e racista na Alemanha durante o Segundo e Terceiro Reich o condenou ao ostracismo, há que sublinhar que não deixa de ser uma construção artificiosa e imprecisa, sendo preferíveis, em qualquer caso, os de "alt-europeu" ou "paleo-europeu", no sentido de "europeu antigo", para designar o grupo étnico originário, enquanto aquele ficaria reservado ao âmbito da linguística comparada.

Fundamental na construção do mito ariano foi o romântico alemão Friedrich Schlegel, que pode ser considerado como o fundador da "indo-germanística". Estudioso do sânscrito e, por extensão, de todas as línguas indo-europeias aparentadas, em uma época em que se acreditava que a origem da raça branca estava no norte da Índia e que logo irradiou por todo Ocidente, parece que foi o criador do termo "ariano", fazendo-o derivar do sânscrito "arya", com suas notáveis correspondências no grego "aroi", relacionado com o de "aristós" (nobreza) e o de "areté" (virtude), o latino "herus" (senhor), o irlandês "air" (honrar) ou o alemão "ehre" (honra) ou "herr" (senhor). Durante todo o século XIX, os linguistas passaram da defesa da origem asiática desses povos para situá-lo em distintos lugares da Europa: a zona caucásica, as estepes russas, a região danubiana, os países bálticos, o setentrião alemão, a península escandinava, etc.

Posteriormente, o hindu Lokamanya Bal Gangadhar Tilak, baseando-se em uma série de tratados e rituais védicos (o Devayana e o Pitriyana), chegava a conclusões radicais sobre o lugar de origem dos arianos, que descreviam uma divisão do ano em duas partes, uma indeterminada e outra clara, como nas zonas polares onde se conhece um dia e uma noite de seis meses cada uma (seis meses de claridade e seis meses de escuridão, como nas regiões setentrionais). De fato, o Avesta informa igualmente que, na pátria originária dos arianos, o inverno contava com dez meses, enquanto que o verão só contava com dois. Para desenvolver sua tese, Tilak recorria também a inúmeros mitos gregos, romanos, germânicos, eslavos e indianos, que mencionavam uma região primitiva ártico-hiperbórea ou circumpolar, nas regiões próximas ao pólo ártico, caracterizada por uma noite interminável, na qual os estrangeiros conquistadores da Índia deviam ter tido seu primeiro lar.

Por sua parte, o Rig Veda descreve as lutas dos "aryas" (grandes, belos, de belo nariz) com os "dasyus" (pequenos, negros, sem nariz). Distingue entre uma "aryavarna" (cor ariana) e uma "dasavarna" (cor inimiga) ou um "krishanavarna" (cor escura). Os arianos são loiros, "hari-kesha" (de cabeça loira) ou "hari-shmasharu" (de barba loira), ou simplesmente "hari" (os loiros). Também os deuses e os heróis homéricos são descritos como loiros ou de cabelos dourados como o sol, de pele branca como a neve e de olhos com a íris azul como o céu. E assim também os latinos romanos, cujas primeiras elites (os ascendentes dos patrícios) mostravam um acentuado blondismo no cabelo ("rutilus", avermelhado, ou "flavus", loiro), olhos azuis ("caesius") e estatura elevada ("longus") que, por outra parte, impregnaram o ideal estético romano.

Dessa forma, o tipo físico predominante entre os antigos povos indo-europeus, dos arianos aos germânicos, se converteu logo em objeto dos comentários dos escritores clássicos, que eram coincidentes na notoriedade de seus corpos altos, ágeis e musculosos, pele branca-rosada, cabelos loiros ou ruivos e olhos azuis, no entanto, isso deve ser posto em relação com a novidade que seria para os olhos dos observadores mediterrâneos, de pigmentação escura, com a descoberta de traços físicos tão distintos aos seus, ainda que, sem dúvida, eram também os que correspondiam ao cânone da beleza clássica, certamente imposto pelos conquistadores nórdicos anteriores como os helenos, os ilírios e os latinos. Em qualquer caso, essas descrições corresponderiam ao elemento mais visível desses conjuntos populares multitribais, isto é, aos nobres chefes e guerreiros, dadas suas práticas endogâmicas, mas não ao resto da população, que seria o resultado de um amálgama multiétnico muito distante já do Herrenvolk (raça de senhores) glorificado pelos antropólogos afeitos ao nazismo.

Mas o mito já estava servido: o debate sobre a pré-existência de uma humanidade "ário-nórdica" superior, aberto talvez prematuramente, e fechado abruptamente pelos interesses e objetivos de uma doutrinação secular dirigida às novas gerações, formadas em uma frágil consciência europeia e presas de uma suposta culpabilidade derivada da vitimização causada por um estigma racial que não se consegue compreender, nem interpretar, pelos parâmetros humanistas e racionalistas entre os que se desenvolve, e se revolve, a mal chamada civilização ocidental.

Mas realmente, existiu um nexo intra-histórico e ideológico comum entre Darwin, Schlegel, Gobineau, Chamberlain, Wagner e Hitler? A resposta deveria ser rotundamente negativa. Não obstante, a forma pela qual Hitler, que se considerava herdeiro da refinada cultura europeia de tradição greco-romana frente à rudeza dos costumes nórdico-germânicos, soube vulgarizar, sintetizar, popularizar, ideologizar e, finalmente, explorar as constantes vitais da "arianidade" em busca de seus objetivos "bio-geo-políticos" de expansão territorial, colonização racial e dominação mundial, poderia nos fazer pensar na tangibilidade desse condutor inexorável a que chamamos destino. Algo em que crê o autor, ainda que a história, em ocasiões, esteja condenada a se repetir.

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16/02/2016

Claudio Mutti - A Geopolítica da Língua

por Claudio Mutti



"Nessas condições, só podem existir línguas vencedoras e línguas vencidas" (J.V. Stálin, Ao companheiro Kholopov, 28 de julho 1950).

Língua e Império

Se o termo geolinguística não fosse já utilizado pelos linguistas para expressar a geografia linguística ou linguística espacial, a saber, o estudo da difusão geográfica dos fenômenos linguísticos, ela poderia ser empregada para indicar a geopolítica da língua, quer dizer, o papel do fator linguístico na relação entre o espaço físico e o espaço político. Para sugerir esta possibilidade não está somente a existência de compostos nominais análogos, como a geo-história, a geofilosofia, a geoeconomia, mas também a relação da geopolítica da língua com uma disciplina designada por um de tais termos: a geoestratégia.

"Sempre foi a língua companheira do império": o nexo entre hegemonia linguística e hegemonia político-militar, assim naturalmente representado pelo gramático e lexicógrafo Elio Antonio de Nebrija (1441-1522), respalda a definição que o Marechal da França Louis Lyautey (1854-1934) deu da língua: "um dialeto que tem um exército e uma marinha de guerra". Na mesma ordem de ideias se inspira o general Jordis von Lohausen (1907-2002), quando afirma que "a política linguística é considerada como estando no mesmo plano da política militar" e diz que "os livros no idioma original desempenham no estrangeiro um papel às vezes mais importante que o dos cânones". De acordo com o geopolítico austríaco, de fato, "a difusão de uma língua é mais importante que qualquer outro tipo de expansão, já que a espada só pode delimitar o território e a economia aproveitá-lo, mas a língua conserva e preenche o território conquistado". É este, por outro lado, o significado da famosa frase de Anton Zischka (1904-1997): "Preferimos aos professores de línguas que aos militares".

A afirmação do general von Lohausen pode ilustrar-se com uma ampla gama de exemplos históricos, começando pelo caso do Império Romano, que entre seus fatores de potência esteve a difusão do latim: um dialeto campesino que com o desenvolvimento político de Roma se converteu, em competição com o grego, na segunda língua do mundo antigo; utilizado pelos povos do Império, não por mposição, mas induzidos pelo prestígio de Roma. Desde o princípio o latim serviu às populações submetidas para se comunicarem com os soldados, os funcionários oficiais e os colonos; em seguida se converteu no selo distintivo da comunidade romana.

Não obstante, no espaço imperial romano, que por meio milênio constituiu uma só pátria para diversae gentes (diversos povos, tribos) localizadas entre o Atlântico e a Mesopotâmia, e também entre Grã-Bretanha e Líbia, não correspondeu a uma língua única; o processo de romanização foi mais lento e difícil quando os romanos entravam em contato com territórios nos quais se falava a língua grega, expressão e veículo de uma cultura que gozava, nos ambientes da própria elite romana, de um enorme prestígio. O romano foi em substância um império bilingue: o latim e o grego, enquanto línguas da política, do direito e do exército, ademais das letras, da filosofia e das religiões, desenvolveram uma função supranacional, a qual os idiomas locais da ecúmene imperial não tinham a capacidade para desempenhar.

Seguramente é quase impossível separar claramente a linha da fronteira do domínio do latim e do grego ao interior do Império Romano, não obstante, podemos afirmar que a divisão do Império em duas partes e a sucessiva cisão se produziu ao longo de uma linha de demarcação coincidente, grosso modo, com a fronteira linguística, que reduziu à metade tantos os territórios da Europa como os do norte da África. Na Líbia, de igual maneira, ao longo dessa linha é onde se produziu recentemente a fratura que separou de novo a Tripolitana da Cirenaica.

Seguindo o mapa linguístico da Europa, se apresenta uma situação que Dante descreve identificando três áreas distintas: a do mundo germânico, onde se congrega também eslavos e húngaros; a da língua grega e aquela dos idiomas neolatinos; no interior dessa última, ele pode distinguir posteriormente três unidades particulares: o provençal (língua d'oc), o francês (língua d'oil) e o italiano (língua do sí). Mas Dante está longe de utilizar o argumento da fragmentação linguística para sustentar a fragmentação política, de fato, ele está convicto que só a restauração da unidade imperial poderia se realizar se a Itália, "o belo país onde o 'sim' soa", voltasse a ser "o jardim do Império". E o Império tem sua própria língua, o latim, porque, como diz o próprio Dante, "a língua latina é perpétua e incorruptível, e a língua vulgar é instável e corruptível".

Em uma Europa fragmentada linguísticamente, que o Sacro Império Romano queria reconstituir em unidade política, uma poderosa função unitária é desenvolvida também pelo latim: não pelo sermo vulgaris (latim vulgar), mas pela língua da cultura da res publica clericorum (república dos doutos). Este "latim escolástico", se queremos indicar sua dimensão geopolítica, "foi o portador para toda Europa, e inclusive para fora, da civilização latina e cristã: confirmando a ela, como na Espanha, na África (...), na Gália; ou incorporando a essa nova zona ou apenas tocada pela civilização romana: Alemanha, Inglaterra, Irlanda, para não falar também dos países nórdicos e eslavos".

As Grandes Áreas Linguísticas

Entre todas as línguas neolatinas, a que maior expansão alcançou foi a língua castelhana. Impulsionada pela bula de Alexandre VI, que em 1493 dividiu o Novo Mundo entre espanhois e portugueses, o castelhano se impôs nas colônias pertencentes a Espanha, desde o México até a Terra do Fogo; mas inclusive, depois da emancipação dos Estados particulares saídos das ruínas do Império da América, estes mantiveram o castelhano como língua nacional, razão pela qual a América Latina possui uma unidade cultural relativa e o domínio da língua espanhola também se estende sobre uma parte do território dos EUA.

Pelo que corresponde ao domínio da outra língua ibérica, para presenciar a extensão da área colonial que em outros tempos pertenceu a Portugal, bastará o fato de que a língua de Camões é "a língua romance que deu origem ao maior número de variedades crioulas, já que algumas estavam extintas ou em perigo de extinção": de Goa ao Ceilão, de Macau a Java, de Málaca ao Cabo Verde e Guiné. Entre os Estados que aceitaram a herança da fala portuguesa, se impõe hoje em dia o país emergente, representado pelo acrônimo BRICS: Brasil, com seus duzentos milhões de habitantes, frente aos dez milhões e meio de habitantes que vivem na antiga pátria-mãe europeia.

A expansão extraeuropeia do francês como língua nacional, ao contrário, foi inferior em relação ao que lhe caberia como língua da cultura e da comunicação. De fato, se o francês é a quinta língua mais falada no mundo por número de habitantes (uns duzentos e cinquenta milhões) e é a segunda mais estudada como língua estrangeira, se encontra por sua vez no nono posto por número de falantes nativos (aproximadamente setenta milhões; ao redor de centro e trinta se também se acrescentarem os indivíduos bilingues). Em todo caso, é o único idioma que se encontra difundido, como língua oficial, em todos os continentes: é língua de intercâmbio na África, o continente que inclui o maior número de entidades estatais (mais de vinte) nos quais o francês é a língua oficial; é a terceira língua na América do Norte; é utilizada também no Oceano Índico e no Pacífico Sul. Estados e governos que por diversas razões tem em comum o uso do francês, se agrupam na Organização Internacional da Francofonia (OIF), fundada em 20 de março de 1970 na Convenção de Niamey. 

Eminentemente eurasiática é a área de expansão da língua russa, língua comum e oficial de um Estado multinacional que, inclusive na sucessão das fases históricas e políticas que mudaram a dimensão territorial, segue sendo a mais extensa sobre a face da terra. Se no período soviético o russo poderia ser glorificado como "o instrumento da civilização mais avançada, da civilização socialista, da ciência progressista, a língua da paz e do progresso (...) língua grande, rica e poderosa (...) instrumento da civilização mais avançada do mundo" e, enquanto tal, de ensino obrigatório nos países da Europa oriental, depois de 1991 ela goza de um status diferente em cada um dos Estados sucessores da URSS. Na Federação Russa, a Constituição de 1992 consagra o direito de todo cidadão à própria pertença nacional e ao uso da língua correspondente e, ademais, garante a cada República a faculdade de se valer, junto à língua oficial russa, das línguas das nacionalidades que a constituem.

Se o russo está na primeira posição pela extensão do território do Estado do qual é o idioma oficial, o chinês tem a preeminência pelo número de falantes. Atualmente utilizado aproximadamente por um bilhão e trezentos milhões de pessoas, o chinês desde a antiguidade se apresenta cmo um conjunto de variações que tornam muito difícil aplicar-lhe o termo "dialeto"; se destaca entre todos o mandarim, um grupo grande e diversos que por sua vez se distingue em mandarim do norte, do oeste e do sul. O mandarim do norte, que tem seu centro em Pequim, foi tomado como modelo para a língua oficial (pǔtōnghuà, literalmente língua comum"). falada como língua mãe por mais de oitocentos milhões de pessoas. Oficialmente, a população da República Popular da China, que em sua Constituição se define como "Estado Plurinacional Unitário", se compõe de cinquenta e seis nacionalidades (minzu), cada uma das quais usa sua própria língua, e entre essas, a mais numerosa é a Han (92% da população), enquanto as outras cinquenta e cinco, que constituem o 8% restante, "falam pelo menos sessenta e quatro idiomas, dos quais vinte e seis tem uma forma escrita e são ensinados nas escolas primárias".

O hindi e o urdu, que podem ser considerados como continuações do sânscrito, são as línguas predominantes no subcontinente indiano, onde dez estados da União da Índia conformam o chamado "Cinturão Hindi" e onde o urdu é o idioma oficial do Paquistão. A diferença mais óbvia entre essas duas línguas consiste em que a primeira se serve da escrita devanagari, enquanto a segunda faz uso do árabe; sobre o plano léxico, o hindi recuperou uma certa quantidade de elementos sânscritos, enquanto o urdu incorporou muitos termos persas. Quanto ao hindi, se poderia dizer que desempenhou no subcontinente indiano uma função similar a do mandarim na China, posto que, formado sobre a base de um dialeto falado nas cercanias de Delhi (o khari boli), junto com o inglês, se converteu, entre as vinte e duas línguas mencionadas na Constituição da Índia, no idioma oficial da União.

O árabe, veículo da revelação corânica, com a expansão do Islã se difundiu muito mais além de seus limites originais: da Arábia até o norte da África, da Mesopotâmia à Espanha. Se caracteriza por uma notável riqueza de formas gramaticais e de uma finura de relações sintáticas, com tendência a enriquecer seu léxico aproveitando de vocábulos de dialetos e línguas estrangeiras, o árabe emprestou seu sistema alfabético para línguas pertencentes a outras famílias, como o persa, o turco, o urdu; codificado por gramáticos, se converteu na língua douta do dâr al-islâm, a qual substituiu o siríaco, o copta, os dialetos berberes; enriqueceu com inúmeros empréstimos o persa, o turco, as línguas indianas, o malaio, as línguas ibéricas; como instrumento de filosofia e ciência, influenciou as línguas europeias quando os califados de Bagdá e Córdoba constituíam os principais centros de cultura aos quais podia recorrer a Europa cristã. Hoje em dia, o árabe é de alguma maneira conhecido, estudado e usado, enquanto língua sacra e de prática ritual, no âmbito de uma comunidade que ultrapassa o bilhão de almas. Como língua materna, pertencem a esta aproximadamente duzentos e cinquenta milhões de pessoas, distribuídas sobre uma área politicamente fracionada desde Marrocos e Mauritânia e se estende até o Sudão e a Península Arábica. A tal denominador linguístico se referem os projetos de unidade da nação árabe formulados no século passado: "Árabe é aquele cuja língua materna é o árabe" se lê, por exemplo, no Estatuto do Baath.

A Língua do Imperialismo Estadounidense

Ao longo da primeira metade do século XX, a língua estrangeira mais conhecida na Europa continental foi o francês. No que concerne em particular a Itália, "só no ano de 1918 se estabeleceram cátedras universitárias de inglês e na mesma data se remonta a fundação do Instituto Britânico de Florença, que, com sua biblioteca e seus cursos de idiomas, logo se converteu no centro mais importante de difusão do idioma inglês a nível universitário". Na Conferência de Paz do ano seguinte, os EUA, que para então já se haviam introduzido no espaço europeu, impuseram pela primeira vez o inglês, junto com o francês, como língua diplomática. Mas para determinar a decisiva superação do idioma francês por parte do inglês, foi o êxito na Segunda Guerra Mundial que deu lugar à penetração da "cultura" anglo-americana em toda Europa Ocidental. Da importância assumida pelo fator linguístico em uma estratégia de dominação política, por outra parte, não era desconhecida pelo próprio Sir Winston Churchill, que declarou explicitamente em 6 de setembro de 1943: "O poder dominar a língua de um povo brinda ganhos que superam em abundância o despojar províncias e territórios ou o saque exploratório. Os impérios do futuro são aqueles da mente". Com a queda da URSS, na Europa Central e Oriental "liberadas", o inglês não só deslocou o russo, como também suplantou em grande parte o alemão, o francês e o italiano, que antes tinham ampla circulação. Por outro lado, a hegemonia do inglês nas comunicações internacionais se consolidou na fase mais intensa da globalização.

Dessa maneira, os teóricos anglo-americanos do mundo globalizado puderam elaborar, baseando-se no peso geopolítico exercido pelo idioma inglês, o conceito de "anglosfera", definida pelo jornalista Andrew Sullivan como "a ideia de um grupo de países em expansão que compartilham princípios fundamentais: o individualismo, a supremacia da lei, o respeito dos contratos e acordos, e o reconhecimento da liberdade como valor político e cultural primordial". Parece que quem introduziu o termo "anglosfera" no ano 2.000 foi um escritor estadounidense, James C. Bennett; em sua opinião "os países de fala inglesa guiarão o mundo no século XXI" (Por que as nações anglófonas liderarão o caminho no século XXI é o subtítulo de seu livro O Desafio da Anglosfera), já que o atual sistema de Estados está condenado a cair pelos golpes do ciberespaço anglófono e da ideologia liberal. O historiador Andrew Roberts, continuador da obra de historiografia de Churchill com Uma História dos Povos Anglófonos desde 1900, sustenta que o predomínio da Anglosfera se deve à luta dos países anglófonos contra as epifanias do fascismo (isto é, "a Alemanha guilhermina, o nazismo, o comunismo e o islamismo"), em defesa das instituições representativas e do livre-mercado.

Menos ideológica a tese do historiador John Laughland, segundo a qual "a importância geopolítica do idioma inglês (...) só é relevante em função da potência geopolítica dos países anglófonos. Poderia ser uma ferramenta por estes usada para reforçar sua influência, mas não é uma fonte independente dessa última, ao menos não da potência militar". A língua, conclui Laughland, pode refletir a potência política, mas não a pode criar.

Neste caso, a verdade está no meio. É certo que a importância de uma língua depende, muitas vezes, mas não sempre, da potência política, militar e econômica do país que a fala; é certo que as derrotas geopolíticas conduzem às linguísticas, é certo que "o inglês avança em detrimento do francês, já que os EUA na atualidade são mais poderosos que os países europeus, que aceitam que seja consagrada como língua internacional uma língua que não pertence a nenhum país da Europa continental". Não obstante, ainda existe uma verdade complementar: a difusão internacional de uma língua contribui para aumentar o prestígio do país em questão, aumenta a influência cultural e, eventualmente a política (um conceito, este, que poucos são capazes de expressar sem recorrer ao anglicismo soft power); com maior razão, o predomínio de uma língua na comunicação internacional dá um poder hegemônico ao mais potente entre os países que a falam como língua materna.

Em relação à difusão atual do inglês, "língua da rede, da diplomacia, da guerra, das transações financeiras e da inovação tecnológica, não há dúvida: esta situação proporciona aos povos de fala inglesa uma vantagem incomparável e a todos os demais uma desvantagem considerável". Como explica menos diplomaticamente o general von Lohausen, a vantagem que os EUA conseguiram da anglofonia "foi igual para seus comerciantes e para seus técnicos, seus cientistas e seus escritores, seus políticos e seus diplomatas. Enquanto inglês seja mais falado no mundo, os EUA mais poderão tirar vantagem da força criadora estrangeira, atraindo para si, sem encontrar obstáculos, ideias, escritos, invenções dos demais. Aqueles cuja língua materna é universal, possuem uma superioridade evidente. O empréstimo concedido à expansão dessa língua retorna centuplicado para sua fonte".

Que língua para a Europa?

Nos séculos XVI e XVII, depois do Tratado de Paz de Cateau-Cambrésis (1559) que havia sancionado a dominação espanhola na Itália, a língua castelhana, ademais de ser utilizada pelas Chancelarias de Milão e Nápoles, se difunde no mundo da política e das letras. O número de vozes italianas (e dialetais) nascidas nesse período por efeito do influxo do espanhol, é elevadíssimo. Entre todos estes hispanismos, não obstante, alguns foram utilizados só ocasionalmente e não podem ser considerados como de uso geral; ao contrário, tiveram uma vida efêmera e desapareceram sem deixar rastro; só uma minoria se converteu em parte permanente do vocabulário italiano. Depois da Paz de Utrecht (1713), que marcou o fim da hegemonia espanhola na península, a influência do castelhano sobre a língua italiana "foi muito menor que a de séculos anteriores".

É razoável supor que tampouco o colonialismo cultural de expressão anglo-americana colonial deva durar para toda eternidade; e de fato, alguns linguistcas já preveem que a atual fase de predomínio anglófono será seguida por uma fase de decadência. Ao estar vinculado à hegemonia imperialista estadounidense, o predomínio do inglês está destinado a sofrer de maneira decisiva pela transição da etapa unipolar à multipolar, pelo que o cenário que a geopolítica da língua pode prefigurar razoavelmente, é o de um mundo articulado segundo o multipolarismo das áreas linguísticas.

Em diferença ao continente americano, que apresenta uma clara repartição entre o bloco anglófono e aquele hispanófono e lusófono da parte central e sul do continente, a Eurásia é o continente da fragmentação linguística. Junto aos grandes espaços representados pela Rússia, China ou Índia, relativamente homogêneos sob o perfil linguístico, temos um espaço europeu caracterizado por uma situação de acentuado multilinguismo.

Portanto, teria sido lógico que os fundadores da Comunidade Econômica Europeia, se realmente queriam rechaçar uma solução monolinguística, deveriam adotar como línguas oficiais, entre aquelas dos países membros, as duas ou três mais faladas na área; talvez escolhendo, em previsão das sucessivas ampliações da CEE, uma trinca de línguas que representasse as três principais famílias europeias: a germânica, a românica e a eslava. Em seu lugar, o artigo 1 do regimento emitido em 1958, indica quatro línguas (francês, italiano, alemão e holandês) como as "línguas oficiais e línguas de trabalho das instituições da Comunidade", com o resultado de que as "línguas de trabalho são agora praticamente três: o francês, o alemão e...o inglês.

O fracasso da União Europeia impõe o submeter a uma revisão radical ao projeto europeísta e refundar sobre novas bases o edifício político europeu. A nova classe política que será chamada para afrontar essa tarefa histórica, não poderá evadir um problema fundamental como o da língua.

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Jordis von Lohausen, Les empires et la puissance, Editions du Labyrinthe, Arpajon 1996, p. 49.
Jordis von Lohausen, ibidem.
De vulgari eloquentia, VIII, 3-6.
Dante, Inf. XXXIII, 80.
Dante, Purg. VI, 105.
Dante, Convivio, I, 5.
Luigi Alfonsi, La letteratura latina medievale, Accademia, Milano 1988, p. 11.
Carlo Tagliavini, Le origini delle lingue neolatine, Pàtron, Bologna 1982, p. 202.
“Voprosy Filozofij”, 2, 1949, cit. in: Lucien Laurat, Stalin, la linguistica e l’imperialismo russo, Graphos, Genova 1995, p. 52.
Roland Breton, Atlante mondiale delle lingue, Vallardi, Milano 2010, p. 34.
Michel ‘Aflaq, La resurrezione degli Arabi, Edizioni all’insegna del Veltro, Parma 2011, p. 54.
I. Baldelli, in Bruno Migliorini – Ignazio Baldelli, Breve storia della lingua italiana, Sansoni, Firenze 1972, p. 331.
Andrew Sullivan, Come on in: The Anglosphere is freedom’s new home, “The Sunday Times”, 2 febbraio 2003.
John Laughland, L’Anglosfera non esiste, “I quaderni speciali di Limes”, a. 2, n. 3, p. 178.
Alain de Benoist, Non à l’hégémonie de l’anglais d’aéroport!, voxnr.com, 27 maggio 2013.
Sergio Romano, Funzione mondiale dell’inglese. Troppo utile per combatterla, “Corriere della Sera”, 28 ottobre 2012.
Jordis von Lohausen, ibidem.
Gian Luigi Beccaria, Spagnolo e Spagnoli in Italia. Riflessi ispanici sulla lingua italiana del Cinque e del Seicento, Giappichelli, Torino 1968.
Paolo Zolli, Le parole straniere, Zanichelli, Bologna 1976, p. 76.
Nicholas Ostler, The Last Lingua Franca: English Until the Return of Babel, Allen Lane, London 2010.

09/02/2016

Alain de Benoist - Confrontando a Globalização

por Alain de Benoist(1)



Tudo mundo está falando sobre globalização, um fenômeno ainda mais significativo por ser geralmente considerado inevitável e além do controle de qualquer um. O que isso significa? Ainda que haja muitas obras sobre este tema(2), o conceito permanece confuso. Para alguns, globalização é um desenvolvimento para além do Estado-Nação. Para outros, ela define um novo tipo de oposição entre capital e trabalho trazido pela ascensão do capital financeiro, ou uma nova separação entre trabalho especializado e trabalho não-especializado. Alguns a veem como a expansão do comércio mundial com a inclusão de novos jogadores do Sul (acompanhada pela estratégia de globalização de corporações multinacionais), enquanto outros enfatizam a ampliação de trocas causada pela revolução informacional. O que ela é realmente?

Em primeiro lugar, a globalização cultural deve ser distinguida da globalização econômica. Estes dois fenômenos se sobrepõem, mas não são a mesma coisa. Um dos traços mais óbvios da globalização econômica é a explosão das trocas financeiras. Hoje, o comércio internacional cresce mais rápido do que vários PNBs. Em 1990, as trocas internacionais eram já 15% dos negócios mundiais. Em apenas 5 anos, de 1985 a 1990, as exportações aumentaram em 13.9%. Entre 1960 e 1989, a troca de produtos manufaturados dobrou enquanto o fluxo de capital quadruplicou. Durante este tempo a natureza do fluxo financeiro mudou: o desenvolvimento contínuo do investimento estrangeiro direto foi acompanhado pela disponibilidade de capital de curto prazo. Esses investimentos diretos também estão crescendo mais rápido do que a riqueza mundial. A taxa anual de crescimento passou de 15% entre 1970 e 1985 para 28% de 1985 a 1990, enquanto durante este período os investimentos diretos quadruplicaram em volume, passando de 43 bilhões de dólares em 1985 para 167 bilhões em 1990. Uma economia global emergiu com uma fatia cada vez maior do PNB diretamente dependente das trocas estrangeiras e do fluxo de capital internacional.

O outro fator importante é obviamente o papel crescente dos computadores e eletrônicos. Ao reduzir os custos de transações de longa distância e permitindo a comunicação em "tempo real" em qualquer lugar do mundo, assim fornecendo instantaneamente informação crucial para a estruturação de preços, informação que costumava levar semanas para alcançar uns poucos centros financeiros, as novas tecnologias de comunicação tornaram possível um fluxo financeiro sem precedentes. O sol não mais se põe sobre os mercados de ações interligados. A moeda vai de uma ponta do globo à outra, procurando pelos melhores retornos na velocidade da luz. Essa globalização, porém, é exclusivamente financeira: o mercado monetário é o único no qual a arbitragem instantânea faz sentido.

Graças a essa mobilidade ampliada, tornada possível por computadores, transações em mercados monetários tem experimentado um crescimento fantástico. Eles agoram excedem um trilhão de dólares por dia. Estes fundos vem de holdings bancárias comerciais, corporações multinacionais, reservas de moeda flutuantes mantidas por bancos centrais criados especialmente para esse tipo de transação. A base do sistema é a troca de moeda que, dia após dia, ou mesmo hora após hora, pode resultar em ganhos consideráveis, muito acima dos derivados da atividade industrial ou comercial tradicional. Em antecipação às taxas de troca flutuantes, a computadorização permite o deslocamento virtual imediato de enormes quantias de moeda, quase completamente independente dos bancos centrais. É por isso que este novo fenômeno é chamado de "economia de cassino".

Alguns comentaristas situam as origens da globalização no início da década de 70, à época do choque duplo dos preços estratosféricos do petróleo e da crise do sistema monetário internacional. À época, a lentidão da produtividade e da taxa de crescimento, a saturação progressiva da demanda por bens de consumo duráveis, o fardo cada vez maior das limitações financeiras estrangeiros, junto ao abandono de taxas de câmbio fixas e a explosão do déficit comercial americano, levaram a um aumento em produtos financeiros puramente especulativos. Esse processo continuou até a década de 80, com a dívida pública crescente favorecendo o desenvolvimento de um vasto mercado de moeda, especialmente com a onda de desregulamentação que, começando com a Administração Reagan, rapidamente se espalhou para todas as nações desenvolvidas. À época, os Estados começaram a recuar face a integração financeira adotando os 3 Ds, descompartimentalização, descartando o intermediário e desregulamentação. Ao liberalizar o mercado de capitais, essa estratégia permitiu arbitragem a nível global e abriu mercados de consumidores e grandes corporações para negociadores estrangeiros. Então, no início dos anos 90, o súbito colapso da União Soviética e a transição brutal nos países outrora comunistas ao capitalismo irrestrito se traduziu no ingresso de mais 2.5 bilhões de pessoas no mercado global, enquanto ao mesmo tempo difundindo a ilusão de um planeta unificado dentro de um único bloco.

A Monopolização do Capital

Essa série de eventos deve ser situada dentro de uma cronologia mais ampla. Longe de ser uma aberração ou uma inovação radical, ou mesmo resultado de alguma conspiração, a globalização é simplesmente parte de uma dinâmica de longo prazo do capitalismo. Como Karl Marx já observou durante o século retrasado, "a tendência de criar um mercado global é parte do próprio conceito de capital"(3). Para Philippe Englehard, "a globalização é indubitavelmente apenas o encerramento da explosão da modernidade ocidental"(4). Ela justifica toda uma série de metamorfoses através da longa história da economia mercantil, uma economia baseada desde o início na troca aberta dentro de um clima de individualismo e universalismo, predicado em uma metafísica da subjetividade e do sucesso material. Ela começou com o desenvolvimento de negócios de longo prazo à época das cidades-Estado italianas no século XIV, continuou com as "grandes descobertas" e a revolução industrial, então com o colonialismo. Entre 1860 e 1873, a Inglaterra já havia tido sucesso em criar o início de um sistema comercial global. Em julho de 1885, Jules Ferry declarou à Câmara de Deputados que "fundar uma colônia significa criar um mercado". Ao contribuir para a desintegração de culturas e sociedades tradicionais na África e Ásia, o colonialismo permitiu a penetração de produtos ocidentais e abriu novos centros comerciais, uma prática que não seria abandonada até que perdesse sua lucratividade, i.e., quando as colônias começaram a custar mais do que arrecadavam(5).

O mercado enquanto instituição é em si mesmo indissociavelmente ligado com a internacionalização das trocas. Na teoria econômica clássica do século XVIII, a livre circulação de bens e serviços já é pressuposta como levando à equalização de sistemas de produção e padrões de vida. Enquanto tal, o capitalismo aparece como um nômado desde os primórdios. Assim, como Adda nota, a globalização "apenas traz o capitalismo de volta a sua vocação original, mais transnacional que internacional, que é jogar com fronteiras como com Estados, com tradições como com nações, para melhor subsumir todas as coisas sobe a lei singular do valor"(6). Porém a globalização também exibe um número de novos traços. Ademais do fato de que, na troca internacional, são agora produtos manufaturados que assumem precedência sobre matéria-prima, a esfera financeira adquiriu um grau extraordinário de autonomia em relação à produção econômica real. A grande desregulamentação dos mercados da década de 80 efetivamente anunciou a chegada de um capitalismo não mais primariamente industrial, mas especulativo. A massa monetária circulando no mundo hoje é estimado como sendo mais de 15 vezes o valor da produção. Essa "bolha" financeira agrega fundos dos setores privado, bem como do público, seja a administração da dívida pública por nações individuais ou fundos de pensão nacionais. Ela naturalmente encoraja lógicas especulativas e ilegais: drogas e corrupção se tornam partes integrais da nova ordem econômica.

Outra novidade é a universalização do mercado. Transações agora envolvem setores previamente independentes. Cultura, serviços, recursos naturais, propriedade intelectual são agora parte do mecanismo de livre-comércio. Todas as coisas são agora transformadas em moeda. O que entra no sistema como uma coisa viva sai como commodity, um produto morto. Ademais, os jogadores não são mais os mesmos. Ontem, esses jogadores eram primariamente nações. Hoje, eles são corporações multinacionais que dominam investimento e comércio, enquanto mercados financeiros ditam as regras e os bancos controlam um setor financeiro cada vez mais desconectado da economia real. Um mundo organizado ao redor de Estados-Nações está dando lugar para uma "economia mundial" estruturada por jogadores globais. Essa é uma transformação fundamental. Algumas décadas atrás, Estados-Nações eram ainda os esquemas políticos e sociais naturais para gerenciar os sistemas nacionais de produção. A competição capitalista se desenrolava basicamente entre nações. O traço dominante do sistema capitalista era, assim, a territorialização, i.e., sua ligação a uma nação industrializada particular. Apesar de em expansão, o mercado era primariamente nacional. Mesmo para companhias com subsidiárias estrangeiras, era crucial ter uma companhia-mãe localizada em uma nação poderosa. Economia e política basicamente coincidiam, tornando as decisões de política econômica nacional ainda mais importantes. Finalmente, o Terceiro Mundo ainda não havia se tornado parte do sistema industrial e havia um contraste marcado entre centros industriais e periferias.

Hoje, a integração global do capital rompeu muitos sistemas nacionais de produção e os reestruturou como tantos segmentos de um sistema de produção global. Os vários componentes de produção estão agora espalhados longe da localização geográfica da corporação e às vezes até independente de seu controle financeiro. Produtos incorporam componentes tecnológicos de tão variadas origens que não se pode reconhecer nem a contribuição específica de cada nação, nem a nacionalidade da força de trabalho que produz a mercadoria. Robert Reich nota que quando um americano compra um carro da General Motors por 20 mil dólares, menos de 800 dólares retornam a produtores americanos. A globalização está criando uma reorganização caracterizada primariamente por uma desterritorialização generalizada do capital. O "espaço de lugares" está sendo deslocado por um "espaço de fluxos". Em outras palavras, o território está sendo substituído pela rede(7), que não mais corresponde a um território particular, mas está inscrito em um mercado global, independente de quaisquer limitações políticas nacionais. Pela primeira vez na história, o espaço político e o espaço econômico não estão mais ligados. Este é o significado mais profundo da globalização.

O aparecimento de empresas industriais capazes de planejar seu desenvolvimento em uma escala global e implementar estratégias globais integradas é um dos traços mais característicos da globalização. Companhias multinacionais são aquelas que fazem mais da metade de seus negócios no exterior. Em 1970, havia 7 mil delas. Hoje há 40 mil e elas controlam 206 mil subsidiárias ao mesmo tempo que empregam apenas 3% da população mundial (por volta de 73 milhões de pessoas). O orçamento dessas corporações em 1991 era maior do que todas as exportações mundiais de bens e serviços (4.8 trilhões de dólares); elas controlam diretamente ou indiretamente 1/3 da renda mundial e o top 200 dessas companhias monopoliza 1/4 da atividade econômica mundial. Quase 33% do comércio mundial agora se dá entre subsidiárias das mesmas corporações, não entre diferentes corporações. Essas corporações em rede tem imensos recursos a sua disposição. O orçamento da General Motors (132 bilhões de dólares) é maior do que o PNB da Indonésia; o da Ford (100.3 bilhões de dólares) é maior que o PNB da Turquia; o da Toyota maior que o PNB de Portugal; o da Unilever maior que o PNB do Paquistão; o da Nestlé maior que o PNB do Egito, etc.

Essas corporações, cujas origem nacional é agora meramente uma referência formal, há muito tem aprendido a substituir objetivos de lucratividade mínima com objetivos que maximizam o ganho financeiro, quaisquer sejam as consequências sociais. Menos preocupados com a produção do que com controle de mercados e patentes, eles são acima de tudo grupos financeiros que colocam a maior parte de seus lucros em moeda ou em subprodutos, ao invés de distribuírem os lucros entre acionistas ou investi-los em atividades produtivas. Ademais, como elas são mais ricas que muitas nações, não é difícil para elas comprar políticos e corromper funcionários de governo. Para se tornarem mais competitivas, corporações multinacionais também desenvolveram uma nova estratégia. Para evitar desvalorizações massivas e brutais, como na década de 30, elas tem sido forçadas a buscar outras saídas para os excedentes de capital flutuante, já que os lucros de produção de investimentos clássicos não são mais suficientemente altos. A luta pela fatia de mercado os levou a incluir trabalhadores pouco qualificados e mal pagos na força laboral mundial para melhor maximizarem seus lucros(8).

Enquanto nações ocidentais anteriormente estiveram contentes em explorar os mercados internos de países meridionais, as companhias multinacionais estão agora ocupadas reexportando para mercados ocidentais produtos montados ou produzidos a baixo custo no sul. A globalização está ocorrendo pela repatriação de uma porção da atividade econômica em países meridionais, através de uma reorganização global dos ciclo de produção e da transformação de uma força de trabalho local em trabalhadores assalariados. Este fenômeno, chamado deslocamento, se tornou generalizado desde a década de 80 e é meramente a reorganização-extensão em escala global das relações de trabalho, outro passo na direção da criação de um mercado laboral global. Não é necessário dizer que, desde essa perspectiva, o livre movimento de moeda é essencial para desviar lucros para centros de tomada de decisão, um processo que tem o efeito duplo de reduzir a acumulação local e restringir o poder de compra(9).

Simultaneamente, da Ásia e, em menor medida, da América Latina e do antigo império soviético, novos jogadores estão começando a emergir no comércio global. No passado, abismos entre salários no norte e no sul refletiam diferenças similares em produtividade e qualidade. A emergência de novas nações industrializadas e o aparecimento súbito de multinacionais em algumas das nações meridionais alteraram radicalmente essa situação. Em 1995, a renda per capita em Cingapura já havia ultrapassado a da França. Essa tendência obviamente só continuará a crescer. O sucesso dessas nações recém-industrializadas de modo algum dá sustento às teses do liberalismo. O "milagre asiático" é primariamente um resultado de características culturais específicas, seja no Japão, na China, na Coreia ou Cingapura(10). Ele pode ser explicado em termos da engenhosidade das políticas industriais desses países. Longe de aceitar acriticamente a teoria das vantagens comparativas da especialização em produção de baixo custo imposta a eles, sem se preocupar com demanda real, eles focaram na produção de bens para os quais há alta demanda ao redor do mundo. É claro, a globalização modifica a competição entre nações. Tão logo as empresas e fundos possam se mover livremente no mundo, a competitividade de empresas nacionais não está mais automaticamente ligada ao de nações. O espaço transnacional nos quais essas grandes corporações operam não mais coincide com a organização ótima do espaço nacional. A posição de um país no mundo só é definida pelo nível de competitividade que seus produtos tem no mercado global, seus empresários estão obrigados a se posicionarem nesse mercado segundo a melhor razão custo/benefício. Pode-se até mesmo dizer que as nações não são nada mais que pontos no espaço de produção de grandes corporações. A própria noção de vantagem comparativa está se tornando obsoleta.

As nações não tem mais qualquer escolha senão retornar a políticas de competição pura, em detrimento da coesão social. Isso é precisamente o que aconteceu na Europa a partir da década de 80, primeiro sob a influência das teorias liberais de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, então como resultado do Tratado de Maastricht. Essa aceitação das demandas da globalização se traduziu em uma desregulamentação e liberalização generalizadas, com prioridade dada a mercados estrangeiros acima dos domésticos, a privatização de corporações estatais, a abertura para investimentos internacionais, o ajuste de salários e preços pelo mercado global, a eliminação progressiva de auxílios e subsídios, e, finalmente, a redução de gastos projetados para desacelerar a competição, como educação, previdência e proteção ao meio-ambiente. Uma após a outra, as nações europeias adotaram políticas estritamente monetaristas (chamadas de deflação competitiva) que se resumem em combater a inflação por meio de altas taxas de juros, cujo resultado mais claro tem sido um crescimento lento e a ampliação do desemprego. Taxado em um nível inferior aos salários, o capital financeiro, enquanto isso, contribui menos e menos para o bem-estar geral.

Ao mesmo tempo, a crise da dívida forçou países do Terceiro Mundo a fazer ajustes similares: os realinhamentos estruturais que o FMI e o Banco Mundial tem exigido levaram a maioria desses países a usar as mesmas receitas que as nações industrializadas, com resultados ainda mais catastróficos. As próprias organizações internacionais se tornaram instrumentos de globalização. O papel do FMI e do Banco Mundial é impôr a desregulamentação, gerenciar a flutuação de dinheiro e forçar as economias do Terceiro Mundo a se submeterem ao imperativo absoluto de manutenção da dívida. O G7 está tentando coordenar as políticas de gerenciamento de crise das grandes nações industrializadas, sem atacar os problemas fundacionais. Mas um papel bastante particular está reservado para as organizações que supervisionam o comércio mundial.

No passado, negociações comerciais entre nações lidavam com um pequeno número de práticas nacionais, como cotas de importação, tarifas alfandegárias, controle sobre transferência de fundos, etc. Hoje, o que está em jogo na diplomacia comercial vai muito além de questões de fronteiras. Negociações agora incluem instituições dentro de países: a estrutura de seu sistema bancário, os termos de seu direito à propriedade privada, sua legislação social, seus regulamentos sobre competição, concentração ou propriedade industrial. O princípio subjacente dessas negociações é que o comércio internacional vai unir nações com mais ou menos as mesmas instituições. Na tentativa de reduzir a incerteza e o risco de investimentos estrangeiros diretos ele encoraja sistemas de propriedade e regulações mais uniformes, geralmente consistentes com a legislação americana. O poder de negociação de corporações multinacionais é assim reforçado por um novo poder lobista que lhes permite demandar arranjos especiais em questões de regulação, salários ou impostos para aumentar a lucratividade e competitividade. Em última análise, "através de um número crescente de negociações locais e internacionais, as sociedades são confrontadas com a demanda por transformar suas regras e instituições domésticas para se conformar a um modelo imposto desde fora"(11).

As cláusulas do GATT ou da OMC vão muito além dos objetivos tradicionais de acordos de comércio justo. Seu objetivo primário é promover a mobilidade de capital. Os acordos que eles alcançam não realmente acordos de comércio justo tanto quanto acordos para a livre circulação de fundos, com a intenção de estabelecer novos direitos de propriedade internacional para investimentos estrangeiros e para criar novos limites às regulações nacionais e governamentais. Como Ian Robinson escreveu, "os acordos sobre livre circulação de fundos podem ser entendidos como instrumentos que, em nome da redução de obstáculos ao comércio, alteram ou permitem a renegociação de leis, políticas e práticas que bloqueiam o caminho rumo a uma economia global de mercado"(12).

Finalmente há outra novidade que facilita a compreensão da natureza da globalização cultural: o capitalismo não mais vende apenas commodities e bens. Ele também vendo sinais, sons, imagens, software, conexões e links. Ele não só enche casas: ele coloniza a imaginação e domina a comunicação. Nos anos 60, a sociedade de consumo prosperou em cima de bens materiais identificáveis como carros, eletrodomésticos, etc. O sistema que Benjamin R. Barber chama "McMundo", como em MacIntosh ou McDonald, é um mundo virtual resultante da intensificação de todos os tipos de transações transnacionais que convertem para homogeneizar estilos de vida. "Os adereços do sistema McMundo", diz Barber, "não são mais carros, mas o parque de diversões Eurodisney, a MTV, filmes de Hollywood, pacotes de software. Em resumo, conceitos e imagens, tanto quanto objetos"(13).

Essa commodificação generalizada torna o consumo de espetáculo-propaganda a única forma de integração social, enquanto ao mesmo tempo intensificando sentimentos de exclusão e tendências agressivas naqueles deixados de fora. Através de uma enxurrada de imagens e sons universais, ela contribui para a padronização de estilos de vida, para a redução de diferenças e particularidades, para a conformidade de atitudes e comportamentos, para a erradicação de identidades coletivas e culturas tradicionais. Mas mais do que isso, chega ao ponto de modificar nossa percepção do espaço e do tempo. Sob a rede de satélites estacionários, sob a influência de impérios econômicos que multiplicam alianças e fusões, sob o efeito de estradas de informação que levam a mesma subcultura global aos rincões mais longínquos da terra, o planeta está encolhendo. Dominados por um número cada vez menor de monopólios, que são mais e mais poderosos, o espaço em que commodities, investimentos e moeda circulam está sendo cada vez mais unificado. Ademais, enquanto até agora todas as sociedades viveram o tempo tanto como uma sucessão de momentos como duração subjetiva, essa distinção está se apagando. A revolução tecnológica do "tempo real" acelera a circulação de fluxos materiais e imateriais, sem qualquer possibilidade de um ponto de referência ou contextualização.

A revolução tecnológica do “tempo real” acelera a circulação de fluxo material e imaterial, sem possibilidade de um ponto de referência ou contextualização. Essa compressão do tempo torna o imediato o único horizonte restante de significado. Como René Char coloca, “abolir a distância mata”. A proximidade que novas tecnologias de comunicação cria acaba esmagando coisas e confundindo formas. Nós estamos realmente testemunhando uma redefinição da realidade. A internet é um bom exemplo. Enquanto a mídia clássica está limitada a mostrar o que acontece em outro lugar, a internet permite a seus usuários se transportarem virtualmente para este outro lugar. O ocupante do sistema McMundo assim vê ao mesmo tempo todo lugar e lugar nenhum. A internet inaugura um novo estilo de vida que se poderia chamar de nomadismo eletrônico, mas que é também um colonialismo eletrônico. Como Nelson Thall, sucessor de Marshall McLuhan na Universidade de Toronto, aponta, “no fim, o poder da internet é que ela permite ao mundo inteiro pensar e escrever como os norte-americanos”.

Assim a globalização não deve ser confundida com uma simples internacionalização, que foi o sistema criado e organizado pelas nações para definir as relações internacionais(14). Ela é melhor definida como a transição de uma economia internacional concebida como um agregado de economias nacionais e locais que diferem nas maneiras em que operam e são reguladas, para uma verdadeira economia planetária de mercado governada por um sistema de regras uniformes, no sentido de Karl Polanyi(15). Ela descreve “a crescente interdependência unindo todos os componentes do espaço para leva-los a uma uniformidade e integração cada vez mais restritivas” (16). Aqueles nos controles são os novos jogadores extra-estatais e extra-nacionais, cuja única ambição é maximizar seus lucros pelo planejamento da organização planetária de suas atividades, e pela eliminação de tudo que possa ser um obstáculo para sua liberdade de ação. Esses novos jogadores fortalecem sua autonomia a cada dia, e são portanto cada vez mais interdependentes, ao ponto de constituírem um único e imenso organismo de mercado.

Imiseração das Massas

Uma vez que a natureza exata da globalização seja compreendida, é fácil entender as consequências. A primeira é um aumento trágico da disparidade econômica. Hegel já havia dito que as sociedades ricas não são ricas o suficiente para reduzir a miséria excessiva que elas geram. Hoje, a pobreza não resulta mais da escassez mas da má distribuição de riqueza e de uma mentalidade psicológica e cultural que não pode conceber a riqueza senão em termos de trabalho e produção.

Entre 1975 e 1985, o produto mundial bruto aumentou em 40%; desde 1950, o comércio mundial aumentou em onze vezes; o crescimento econômico, quintuplicou. Porém, durante o mesmo período, tem havido um crescimento sem precedentes da pobreza, do desemprego, da desintegração social e da destruição ambiental. O verdadeiro PNB per capital no hemisfério sul hoje é apenas 17% do de sua contraparte no norte. O mundo industrial, que representa apenas ¼ da humanidade, possui 85% da riqueza mundial. As nações do G7 constituem 11% da população mundial, mas 2/3 do PNB do planeta. Apenas a cidade de Nova Iorque usa mais eletricidade do que toda a África Subsaariana. Entre 1975 e 1995, a riqueza americana aumentou apenas 60%, mas esse aumento foi monopolizado por 1% da população. Um último dado revelador: as posses dos 358 bilionários no planeta hoje são maiores do que a renda anual cumulativa dos 2.3 bilhões de indivíduos mais pobres, ou o equivalente de quase metade da humanidade. Isso significa uma coisa: quanto mais riqueza, mais pobreza, o que refuta a teoria liberal segundo a qual toda a sociedade acabaria se beneficiando dos lucros dos mais ricos. Na verdade, como ela dá um quase-monopólio às forças do mercado, a globalização contribui para o desenvolvimento de desigualdades e da exclusão social, assim ameaçando a coesão social.

Similarmente, o colonialismo continua por outros meios. A ajuda humanitária ao Terceiro Mundo aperfeiçoou a técnica da usura como meio de controle. A OMC está agora demandando que países do sul tratem investidores estrangeiros como se eles fossem locais, eliminando quaisquer obstáculos legislativos para o trabalho, meio-ambiente ou saúde. Onde quer que ajustes estruturais liberais tenham sido feitos, os resultados tem sido uma piora das condições de vida das massas e um aumento na instabilidade social. Uma consequência lógica de tudo isso é a fuga de capital, que permite a mensuração do caráter fundamentalmente parasitário da globalização. Quanto a países que se recusam a satisfazer essas demandas, eles são simplesmente marginalizados, ignorados e finalmente expulsos dos circuitos internacionais. Obviamente, essas consequências não são sentidas apenas em países do sul. No norte, a globalização se traduz em uma competição transnacional exacerbada que, por meio de exportações e investimentos diretos, está causando um nivelamento de salários e empregos. Todos os bens ou serviços produzidos localmente que possam ser produzidos em outro lugar estão vulneráveis às pressões exercidas pelo capital pela redução de salários e benefícios.

Do outro lado da alavanca, o capital humano decrescente e o envelhecimento progressivo da força de trabalho aumentaram os custos, dessa forma encorajando os empreendedores a relocarem suas operações para países cuja força de trabalho é menos cara e mais flexível. Como a produção competitiva de países em desenvolvimento é encontrada especialmente em áreas que demandam um trabalho não-especializado considerável, essa força de trabalho é encorajada e explorada no sul, e cada vez mais excluída do trabalho no norte, contribuindo para o aumento no desemprego estrutural. Na ausência de um número crescente de escoedouros comerciais, as companhias só podem alcançar o tamanho crítico de que precisam para sobreviver em mercados globais tomando fatias de mercado de seus competidores e pela melhora constante em seu nível de competição, o que se traduz em um movimento contínuo de reestruturação industrial e downsizing, com consequências sociais devastadoras.

Esses deslocamentos são só o começo. Em 1990, produtos manufaturados exportados pelos países recém-industrializados do sudeste asiático para os países desenvolvidos ainda representavam apenas 1.61% do PNB desses. Na França, as trocas comerciais com países recém-industrializados respondem por aproximadamente apenas 1% da taxa atual de desemprego. Mas essa tendência provavelmente é aumentar. Entre 1970 e 1990, a fatia que países emergentes tinham em mercados de ações de países avançados foi de .7% para 6.44%. Nessa taxa, ela poderia atingir 55% em vinte anos.

Enquanto a revolução industrial permitiu a integração do trabalho não-especializado, a globalização tende a excluir sistematicamente aqueles que não tem o tipo certo de know-how. Desde a perspectiva das tendências anteriores do capitalismo, isso representa uma ruptura fundamental que põe em questão todos os compromissos sociais adotados pelo Estado de Bem-Estar keynesiano. A globalização de salários e a globalização financeira se combinam para reverter o curso de políticas econômicas e sociais dominantes durante as décadas de crescimento pós-guerra. Durante os trinta anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, que correspondem ao apogeu do sistema fordista, o capitalismo havia entrado em acordo com as demandas sociais formuladas em sociedades industriais, bem como com a determinação de nações para criar as bases de uma ordem econômica internacional. O Estado de Bem-Estar foi o resultado desse compromisso histórico entre capital e trabalho. Foi um ajuste estratégico do capital para atender um número de demandas sociais. A globalização rompeu com esse contrato social. A partir da década de 70, a lógica econômica do capitalismo começou a se desconectar das preocupações sociais, o que levou ao questionamento da hierarquia de salários e dos mecanismos de coesão social.

Essa desconexão do econômico e do social caminham juntas do enfraquecimento da conexão entre o Estado de Bem-Estar e a classe média ao redor da qual o crescimento das décadas precedentes foi construído. A globalização está levando ao surgimento de um modelo ampulheta de sociedade, na qual a grande maioria dos ocupantes tendem a cair na direção do fundo, sucumbindo a uma existência precária, enquanto o dinheiro está polarizado nas esferas mais elevadas, assinalando a desestruturação das classes médias, ou seja, daquelas classes “que os capitalismos do início do século XX não só geraram, mas em cima das quais fundaram seu crescimento”(17). Durante os trinta anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, essas classes médias se consolidaram, levando à integração de porções cada vez maiores da população e assim à redução relativa de desigualdades.

Hoje, este modelo de uma classe média irreversivelmente em expansão é obsoleto. O resultado é uma profunda transformação das relações e interesses de classe dentro dos países capitalistas. Na verdade, a desestruturação das classes médias corresponde a uma desestruturação das classes baixas, que estão vendo seus mecanismos tradicionais de defesa obliterados. Os sindicatos são obviamente incapazes de pressionar empresas multinacionais, acostumadas a jogar com diferenças salariais no mercado mundial, como elas faziam com seus adversários tradicionais de negociação.

Essa mudança assinala uma regressão assombrosa, um retorno a situações de superexploração comparáveis àquelas que o movimento dos trabalhadores sofreu na aurora do capitalismo industrial. Apesar de sua filosofia da história falha, Marx pelo menos viu que a lógica da monopolização do capital leva à reificação das relações humanas. Pode-se apreciar a ironia da história. Precisamente quando o sistema comunista entra em colapso, as teses de Marx são parcialmente confirmadas não apenas na impiedosa lógica do lucro, mas no fato de que o desemprego e a pobreza estão novamente, como no século XIX, se tornando características estruturais da sociedade, que incerteza e exclusão social crescem a cada dia, que as rendas do capital se elevam conforme as rendas do trabalho decrescem, e que as garantias conquistadas pelos trabalhadores após décadas de luta estão agora sendo questionadas.

O Declínio do Estado

A última consequência da globalização é a crescente perda de poder dos Estados-Nações. Em vistas da mobilidade crescente do capital internacional, da globalização dos mercados, e da integração das economias, os governos nacionais estão vendo suas possibilidades de ação macroeconômica diminuírem em um piscar de olhos. Em questões monetárias, seu impacto já é quase nulo porque as taxas de juros e câmbio são agora controladas por bancos centrais independentes que tomam suas decisões segundos os mercados. Um país decidindo em uma redução unilateral em suas taxas de juros testemunharia imediatamente uma fuga de moeda para países oferecendo a possibilidade de ganhos maiores. Ao mesmo tempo, a amplitude de mobilização monetária dos bancos centrais tem se tornado inferior ao volume de transações: em julho de 1993, em um único dia de ataques especulativos contra o franco, o Banco da França perdeu todas as suas reservas cambiais. Em questões orçamentárias, os Estados veem sua margem de liberdade similarmente reduzida, graças a uma dívida pública ampliada que impede qualquer estímulo não-legislado. Finalmente, em relação a política industrial, os governos não tem solução para resistir à competição além de tentar atrair empresas estrangeiras por meio de subsídios e privilégios fiscais especiais, o que os deixa à mercê das multinacionais.

Porém, essas firmas não estão satisfeitas meramente com romper barreiras: elas também dobram o aparato legislativo criado para regular suas operações. Salários e impostos altos ou condições laborais custosas as fazem ir embora. O resultado é que “qualquer forma de regulação pode ser vítima das pressões do mercado simplesmente porque companhias multinacionais veem um custo”(18). O poder fiscal dos Estados, então, não é mais soberano, mas contratual, porque ele deve ser negociado com um capital cada vez mais errático sempre em uma posição melhor para ditar suas condições. “Nenhum governo, mesmo no norte”, explica Edward Goldsmith, “tem mais controle sobre corporações multinacionais. Se uma lei perturba sua expansão, elas ameaçam ir embora e elas podem fazê-lo imediatamente. Elas são livres para percorrer todo o planeta para escolher a mão-de-obra mais barata, o meio ambiente menos protegido por lei, os impostos mais baixos, e os subsídios mais generosos. Não há mais qualquer necessidade de elas se identificarem com uma nação ou permitirem que uma afiliação sentimental atrapalhe seus projetos. Elas estão totalmente fora de controle”(19). No fim, conclui Adda, “a globalização financeira pode ser analisada como um processo de contornar as regras instituídas pelos Estados mais desenvolvidos através de um sistema multilateral de regulações econômicas globais”(20).

A economia globalizada assim pesa tanto nos Estados-Nações que eles veem seus meios tradicionais de ação gradualmente relegados a modalidades de adesão. Confrontados por uma crescente dificuldade de controlar os ricos, eles se encontram privados de uma alavanca política essencial: o desenvolvimento coerente de seu território. Como todos os esforços orçamentários no âmbito social significam menos habilidade para competir economicamente, eles não podem mais preencher seu papel histórico de gerenciar compromissos sociais. Os políticos se tornam, assim, impotentes e o Estado muda de papel. De mediador social, ele agora apenas gerencia questões territoriais que estão fora de seu controle. Reduzido ao papel de espectador, ele é como “um funcionário que anota decisões tomadas em outro lugar”(21).

Tal mudança é revolucionária na medida em que solapa uma das fundações da política moderna: a soberania nacional. Segundo Badie: “a globalização destrói soberanias, corta através de territórios, abusa de comunidades estabelecidas, desafia contratos sociais e torna obsoletas conceitos anteriores de segurança internacional... Assim, a soberania não é mais o valor fundamental indisputável que era, enquanto a ideia de interferência externa lentamente, mas de forma garantida, muda de conotação”(22). Assim que o conceito de soberania é desafiado, porém, a questão da identidade vem em foco com toda a anonimidade social que ela traz consigo. Princípios democráticos também são ameaçados. Há uma ligação direta entre a perda de soberania nacional e o enfraquecimento da democracia. Por um lado, a globalização tende a generalizar múltiplas lealdades em detrimento da adesão cívica. Pelo outro, a legitimidade democrática da classe dominante é posta em questão assim que ela não possui mais os meios de intervir entre as demandas da capital e as necessidades sociais. Finalmente, a livre circulação de moeda também limita o controle democrático sobre a política econômica e social porque tal política também está sujeita a pressões externas que o governo não pode mais ignorar e porque há uma transferência de poder de tomada de decisões para jogadores econômicos globais irresponsáveis. A cidadania se torna assim irrelevante ao ponto de que passamos a imaginar o que “tomar o poder” significa hoje em dia.

A Dissolução do Modernismo

A globalização não é o que Ernst Jünger chamou de “Estado universal”(23), constituído pela fusão progressiva da “estrela vermelha” e da “estrela branca”, ou seja, Oriente e Ocidente. A globalização é o resultado de uma modernização que assume a forma de um ajuste estrutural buscando integrar cada sociedade no mercado mundial. Ela é um processo que se apresenta como uma resposta à crise da modernidade que nasce a partir do Iluminismo(24). Mas essa resposta consiste apenas em hipostatizar a economia de mercado, em transformar todo capital em capital financeiro, e em ampliar o poder da tecnociência. A ideia geral é que a ciência permitirá uma compreensão de tudo; a especialização técnica, a resolução de tudo; e o mercado, a compra de tudo. Mas não é assim que acontece. Polanyi previu que o mercado destruiria a sociedade. A hora chegou. O “comércio suave” que, segundo Adam Smith, supostamente pacificaria as relações humanas, transplanta a guerra para o coração das trocas. A ditadura do econômico, a primazia do setor privado na conduta das questões públicas, leva à dissolução de todos os laços sociais. O universo da desregulamentação generalizada leva a culturas do menor denominador comum: o mesmo modelo consumista. “O olho sem preconceitos”, notou Jünger há mais de 30 anos, “fica surpreso pelo vasto conformismo crescente, que pouco a pouco se estende por todos os países, não apenas como um monopólio por uma das potências competitivas, mas como um estilo de vida global”(25). “O choque contemporâneo da globalização é a consequência de um liberalismo universalista que, apesar das aparências, abomina diferenças. Seu programa implícito é a homogeneização do mundo através do mercado e, consequentemente, a erradicação dos Estados-Nações e das culturas... A chegada da sociedade liberal não pode suportar cultural slag ou a pertença comunitária. O programa liberal maximalista busca a erradicação das diferenças, seja quais forem sua natureza, porque elas criam um obstáculo para o grande mercado e para a paz social. Na verdade, não é apenas o resíduo cultural que é excessivo, mas o próprio fato social... Basicamente, a lógica da modernidade ocidental se situal no caráter universal acultural de todos os mercados”(26).

Mas globalização também não é universalidade. Em certos sentidos, ela é até mesmo o oposto, porque a única coisa que ela universaliza é o mercado, ou seja, um modo de troca econômica que corresponde a um momento histórico de uma cultura particular. Nesse sentido, a globalização é apenas o imperialismo do mercado ocidental se expandindo para cobrir todo o planeta, um imperialismo internalizado pelas mesmas pessoas que são suas vítimas. A globalização é a imitação em massa do comportamento econômico ocidental. Ela se resume em converter o planeta inteiro a essa religião do mercado, cujos teólogos e sumo-sacerdotes operam como se os únicos objetivos fossem a lucratividade(27). Esse não é um universalismo do ser, mas do ter. É um universalismo abstrato de um mundo fragmentado, onde indivíduos são definidos apenas por sua habilidade de produzir e consumir. O capitalismo propõe vencer onde o comunismo falhou: criar um planeta sem fronteiras, habitado por um “novo homem”. Mas esse novo homem não é mais o trabalhador ou o cidadão, mas o consumidor “conectado” que partilha do destino comum de uma humanidade indiferenciada conectada apenas pela internet ou pelo supermercado.

“O escritor portuquês Miguel Rorgar”, escreveu Zaki Laïdi, “uma vez definiu o universal como ‘um lugar sem muros’. Por isso, ele queria se referir a que os valores da universalidade não poderiam ser promovidos e defendidos a não ser que as pessoas já se sentissem conectadas em um lugar sólido, real. A globalização, porém, desenvolve uma dinâmica inversa. Os indivíduos se sentem desenraizados pela globalização. Se sentindo impotentes, eles erguem muros, mesmo que frágeis e risíveis”(28). A nível psicológico, os indivíduos se sentem agora despossuídos por mecanismos sobrepujantes, um ritmo cada vez mais veloz e limitações ainda mais pesadas, variáveis tão numerosas que eles não são mais capazes de entender onde se situam. Que isso acontece em uma época em que os indivíduos são mais solitários do que nunca, abandonados a sua própria sorte, quando todas as grandes cosmovisões desabaram, só intensifica esse sentimento de um vazio. “A globalização”, diz Laïdi, “estranhamento reproduz o mecanismo freudiano da massa nas garras da infecção e do pânico: infecção, na medida em que a globalização engendra conformismo e uniformidade; pânico porque todo mundo se sente sozinho, encarado por mecanismos além de sua compreensão”. Dessa forma, a globalização se assemelha a um quebra-cabeças de imagens fragmentadas. Ela não fornece qualquer visão do mundo e exclui qualquer representação, enquanto os poderes públicos, que a declaram irreversível, são incapazes até de alguma resistência simbólica a ela. “As profundidades do problema da globalização resultam da interação entre um mundo sem fronteiras e um sem marcadores... É essa dialética entre um mundo sem fronteiras e um mundo sem marcadores que explica a crise de significado e que reforça nossa percepção de um mundo desordenado”(29). Isso é reminiscente do que Peguy escreveu em 1914, logo antes de morrer: “todos são infelizes no mundo moderno”.

Quanto mais cresce a globalização, mais as sociedades tentam reconstruir sua particularidade. Mas elas tem grandes dificuldades em fazê-lo. Algumas inventam identidades a partir do ar. Outras tentam recriar uma dimensão interna artificial em um mundo em que tudo está se tornando puramente externo. Alimentados por todos os tipos de frustrações, muitos dão início a projetos marginais que levam irreparavelmente ao irredentismo e à xenofobia. O resultado é o que Benjamin R. Barber chamou de “Jihad versus McMundo”(30). Por um lado, um planeta na estrada da uniformidade, progressivamente homogeneizado pelo mercado e pela comunicação global; pelo outro, reagrupados sob o título conveniente de “Jihad”, um conjunto de espasmos identitários, de afirmações étnicas ou religiosas agressivas, que geram guerras civis e conflitos tribais por toda parte(31). Tal erupção de identitarismo convulsivo é compreensível, porque ele é apenas a consequência lógica da transformação de todo o planeta em uma “sociedade aberta”: abertura em excesso inevitavelmente leva a fechamento em excesso. A reinvenção do tribalismo, do clanismo ou do etnocentrismo pode ser assim interpretada como uma reação desesperada contra uma ameaça de despossessão.

Já que através de suas desculpas ambas reações desacreditam uma à outra, elas não podem ser sustentadas. Seria mais justo considera-las, com Barber, como epifenômenos da globalização que reforça e justificam mutuamente uma à outra. Ao fazê-lo, elas voltam seus excessos para fora e os redirecionam, da mesma maneira que a desigualdade crescente resultando das limitações de uma economia generalizada empurram os mais pobres para o extremismo. Uma vez que as guerras etnorreligiosas estejam terminadas, porém, a bandeira do McMundo retorna até com mais força. Ademais, de muitas maneiras, essas duas forças antagônicas são duas formas diferentes, a suave e a dura, da mesma tendência totalitária. Ambas conspiram para extinguir todas as formas de democracia e qualquer participação ativa na vida pública. Finalmente, só se pode ficar assombrado com o jeito com que certos movimentos fundamentalistas, sejam os Talibãs do Afeganistão ou aqueles envolvidos em conflitos étnicos africanos, rejeitam ideias ocidentais modernas em nome de seus valores tradicionais e ao mesmo tempo se abrem para todo tipo de produtos culturais e tecnológicos ocidentais: ouvir a CNN, vestir jeans, beber Coca-Cola.

Assim os extremos se encontram. Tão cedo quanto 1920, o linguista russo Nicolas S. Trubetzkoi apontou a relação paradoxal entre cosmopolitismo e chauvinismo. “Só se precisa considerar o chauvinismo e o cosmopolitismo”, ele escreveu, “para se perceber que não há diferença radical entre ambos, que eles são apenas dois aspectos do mesmo fenômeno”(32). O cosmopolitismo, ele acrescentou, só nega diferenças nacionais com base em uma ideia de humanidade derivada de um modelo específico. Ele só convida a humanidade civilizada a formar uma única entidade universalizando o modelo de uma civilização particular, nesse caso a civilização ocidental, implicitamente considerada o mais completo “estádio” de civilização. “Assim há um paralelismo entre o chauvinista e o cosmopolita... A diferença é simplesmente que o chauvinista leva em consideração um grupo étnico menor do que o cosmopolita”(33). Mas ambos sabem apenas uma coisa: “O que se assemelha conosco é melhor e superior ao que é diferente de nós”(34).

Uma Resposta Política: Europa Soberana

É claro que o crescimento ilimitado do capitalismo financeiro não é o único resultado da crise atual e que regulações são necessárias em todos os níveis para se responder aos desafios da globalização. Em primeiro lugar, os mercados financeiros podem ser regulados no nível internacional. Originalmente proposto por Tobin, a taxação dos movimentos financeiros de moeda já está ocorrendo. Um imposto de .05% sobre operações cambiais mundiais desencorajaria um número de operações especulativas de curto prazo e produziriam 150 bilhões de dólares por ano, o dobro da quantia atual de ajuda internacional. Assim, tal soma permitiria criar um fundo para proteção social ou para defesa ambiental. Também é possível visualizar organizações internacionais que gerenciaram a economia global diferentemente das existentes, cuja tarefa seria a de impor redistribuição substancial dos lucros da globalização para benefício daqueles mais vitimizados por ela. Engelhard propõe a criação de uma moeda global. O estabelecimento de uma moeda planetária flutuante, o retorno a um padrão valorativo internacional estável obviamente impediria a especulação que se alimenta primariamente das diferenças cambiais.

De qualquer maneira, se “o fenômeno da globalização é visto como a vingança da economia contra o social e o político”(35), é igualmente óbvio que uma resposta econômica à globalização não é o bastante. Então a questão é como preencher a fenda entre a incrível expansão da economia mundial e o fato de que não há organizações capazes de lidar com esse fenômeno. Se a política deve controlar e regular a economia, se segue que uma economia planetária deve ser confrontada politicamente a nível mundial. Em outras palavras, assim que a economia se expande globalmente, não deveria a política fazer o mesmo? Infelizmente, um Estado mundial é um delírio e criaria mais problemas do que resolveria(36).

Similarmente, opôr o Estado-Nação à globalização seria um duplo erro. Primeiro, porque a globalização espalha um processo de homogeneização a todo o planeta, que no passado as burocracias estatais já atingiram a nível nacional. Segundo, e mais importante, porque o Estado-Nação hoje opera a um nível de intervenção e decisão que está completamente paralisada pelo mero fato da globalização. Sujeito a limitações externas que excedem suas capacidades, o Estado-Nação simplesmente não é mais capaz de confrontar problemas globais sozinho. Acreditar que o Estado-Nação ainda pode decidir sobre a abertura ou fechamento de suas fronteiras para fluxos financeiros, acreditar que é possível reconstruir uma sociedade coesa protegida por muros que isolariam seus habitantes do mundo externo, é ou um sonho utópico ou uma mentira(37). 

A Europa política e, mais amplamente, a regionalização de um número de grandes conglomerados continentais, poderia efetivamente confrontar a globalização. Sem ser uma panaceia (porque há sempre o risco de que, pelo investimento direto, os países em questão possam estar em competição dentro de suas fronteiras com corporações estrangeiras multinacionais), a integração europeia permitiria a resposta a uma gama suficientemente grande de necessidades de mercado, ao mesmo tempo constituindo um polo de tamanho suficiente para confrontar os fluxos financeiros globais. O espaço econômico europeu é potencialmente o maior mercado do mundo em termos de população e poder global de compra. Uma autoridade política europeia, controlando e coordenando políticas orçamentárias e monetárias, tornaria mais fácil abandonar a política de crescimento externo, em oposição ao interno, sem abandonar a proteção social. Similarmente, uma única moeda usada com razoabilidade reduziria a prerrogativa do dólar e similarmente se tornaria um elemento de poder e de uma refundação da soberania.

Mas ainda é necessário lutar por uma Europa verdadeiramente soberana, onde cada estágio de integração de mercados nacionais seria acompanhado por uma maior habilidade de tomar decisões e não simplesmente constituir um espaço de câmbio livre? Hoje esse dificilmente seria o caso. As instituições europeias podem tão facilmente resistir à globalização quanto promove-la. Neste momento, os atos da Comunidade Europeia, que os Estados-membros impõem sobre si mesmos, não estão predicados em uma soberania europeia verdadeira(38). Finalmente, a vida diária permanece local, que é o único lugar em que políticos ainda podem ver os efeitos de suas políticas. Confrontados pela globalização da troca e pela universalização de signos, esse tsunami que apaga todas as diferenças e valores, o que perdura é a singularidade de formas: línguas, culturas e outros elos sociais pacientemente recriados dia após dia. Engelhard escreve sobre “a reabilitação da política passa, de um momento para o próximo, por uma reconstrução do social e do cultural, e vice-versa. Mas isso só é possível enquanto a cultura não seja vista como estática, mas como uma tensão criativa, portadora de significado e ao mesmo tempo um processo para aprofundar a arte de viver junto”(39). Jean Baudrillard recentemente comentou que “todas as culturas dignas desse nome se perdem no universal. Todas as culturas que universalizam a si mesmas perdem sua singularidade e morrem. Foi assim com aquelas que destruímos ao assimilá-las pela força, mas acontece o mesmo para a nossa com sua pretensão de universalidade”. Ele acrescentou: “tudo o que importa hoje o faz contra o universal, contra essa universalidade abstrata”(40). 

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1 - Face a la Mondialisation
2 - Ver Robert Reich, L’Économie Mondalisée (Paris: Dunod, 1993); Francois Chesnais, La Mondialisation du Capital (Paris: Syros, 1994); Jacques Adda, La Mondalisation de l’Économie, 2 Vol. (Paris: Decouverte, 1996); Samir Amin, Les Défis de la Mondialisation (Paris: L’Harmattan, 1996); Anton Brender,L’Impératif de Solidarité. La France Face à la Mondialisation (Paris: Decouverte, 1996); Jean-Yves Carfantan,L’Épreuve de la Mondialisation. Pour une Ambition Européene (Paris: Seuil, 1996;François Chesnais, ed., La Mondialisation Financière. Genèse, Coût et Enjeux (Paris:Syros, 1996); Elie Cohen, La Tentation Hexagonale. La Souverainaité à l’Épreuve de la Mondalisation (Paris: Fayard, 1996); Philippe Engelhard,L’Homme Mondial. Les Sociétés Humaines Peuvent-elles Survivre? (Paris: Arlea, 1996).
3 - Philippe P. Engelhard, Principes d’une Critique de l’Économie Politique (Paris:Arléa, 1993).
4 - Ibid., p. 543.
5 - "O resto dos eventos", disse Marcel Mauss em 1920, "vai no sentido de uma crescente multiplicação de empréstimos, trocas, identificações tudo até os detalhes da vida moral e material". Ver sua "La Nation", em Oeuvres, Vol. 3: "Cohésion Social et Divisions de la Sociologie," (Paris: Minuit, 1969), p.625.
6 - Adda, op. cit., Vol. 1.
7 - Bertrand Badie, La Fin des Territories (Paris: Fayard, 1996).
8 - Charles-Albert Michalet, Le Capitalisme Mondial (Paris: PUF, 1985).
9 - "A liberalização das transferências internacionais de capital", escreve Samir Amin, "a adoção de câmbios flutuantes, a alta taxa de juros, o déficit na balança americana de pagamento, a dívida externa do Terceiro Mundo, e a privatização, constituem uma política perfeitamente racional que oferece ao capital flutuante a válvula de escape para a especulação, assim mascarando até mesmo o perigo maior de uma desvalorização massiva do capital excedente". Ver “Les Vrais Enjeux de la Mondialisation,” in Politis-La Revue (October-December 1996), p. 70
10 - Como Engelhard nota, "os sistemas culturais daqueles povos foram os menos brutalizados pela modernidade ocidental ou, pelo menos, eles se abriram para ela e o fizeram com cuidado, e com um olho nas melhores performances econômicas. Tal é o caso com o Japão, mas também com certos povos do sudeste asiático e da China". Ver Principes d’une Critique, op. cit., p. 23.
11 - Suzanne Berte, “Le Rôle des Etats dans la Globalisation,” in Sciences Humaines(September- October 1996), p. 55.
12 - “Mondalisation et Démocratie: un Point de Vue Nord-Américain,” inM(March-April 1996), p. 16.
13 - “Internet et Tchador, Même Combat,” in La Vie (November 14, 1996), p. 58 .See also Benjamin R. Barber, Jihad versus McWorld (Paris: Desclée de Brouwer, 1996).
14 - Marcel Mauss já havia notado que, "o internacionalismo digno desse nome é o oposto do cosmopolitismo. Ele não nega a nação. Ele a situa. Inter-nação, isso é o oposto de a-nação". Ver ‘La Nation et l’Iinternationalism’ (1920), in Oeuvres, Vol.3, op. cit., p. 630.
15 - The Great Transformation (New York: Octagon Books, 1975 [1944]).
16 - Bertrand Badie, “Mondialisation et Société Overte,” in Après-demain (April-May, 1996), p. 9.
17 - Pierre-Noel Giraud, L’Inégalité du Monde. Économie du Monde Contemporain(Paris: Galimard-Folio, 1996).
18 - Robinson, op. cit., p. 19.
19 - “Seconde Jeunesse pour les Comptoirs Coloniaux,” in Le Monde Diplomatique(April 1996).
20 - Ibid., Vol. 1, p. 94.
21 - Ricardo Petrella, in Le Monde Diplomatique (May 1995). Sobre a maneira pela qual a globalização reduz o poder dos Estados-Nações, ver também Kenishi Ohmae, The Borderless World (New York: Harper Collins, 1990); Vincent Cable, “The Diminishing Nation-State,” in Daedalus (Spring 1995); Kenishi Ohmae, ed., The Evolving Global Economy:Making Sense of the New World Order (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1995).
22 - “Mondialisation et Sociétée Overte,” op. cit., p. 9.
23 - Jünger sugeriu que "a diferença entre a estrela vermelha e a branca é apenas a tremulação que acompanha a ascensão de uma estrela no horizonte. Que ela ascenda aos céus, e que a unidade seja desvelada". Ver L’Etat Universal (Paris: Gallimard, 1962), p. 35.
24 - Gustave Massiah, “Quelles Reponses a la Mondialisation?” in Après-demain(April-May 1996), p. 6.
25 - Ibid., p.34.
26 - Engelhard, Principes d’une Critique, op. cit., pp. 199, 250 and 256. "Da mesma maneira que diferenças em riqueza, talento ou o que seja, são inelimináveis, é necessário que os indivíduos se tornem absolutamente os mesmos... Essa falta de diferença ocasionalmente insuportável é latente no paradigma neoclássico, que postula a separabilidade absoluta de preferências individuais. Em outras palavras, minhas coisas tem que ser independentes e incomparáveis em relação às do vizinho... Essa falta de diferença, que culmina na absoluta separabilidade de escolhas pessoais, está fortemente ligada à negação da cultura. Em efeito, toda pertença cultural ou comunitária se resume a reduzir preferências pessoais a ser parte de um grupo". Ibid., pp. 251 and 256.
27 - Sobre isso, ver Philippe Lancon, “L’Économie, comme Theologie de la Contri-tion,” in Liberation (June 3, 1996), p. 5.
28 - “Qu’est-ce que la Mondialisation?” in Liberation (July 1, 1996), p. 6. See alsoZaki Laïdi, Un Monde Prive de Sens (Paris: Fayard, 1996); “Pour une Pedagogie de laMondialisation,” in Après-demain (April-May 1996).
29 - “Pour une Pedagogie de la Mondialisation,” op. cit. p. 4.
30 - Jihad versus McWorld, op. cit.
31 - Essas são as reações convulsivas que levaram às teses de Samuel Huntington, segundo as quais o mundo está rumando para uma guerra cultural ou civilizacional. Ver "The Clash of Civilizations?" em Foreign Affairs (verão 1993); e The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order (New York: Simon & Schuster, 1996). Essa tese deve ser considerada com reticências, já que a cultura determina a especificidade de conflitos menos do que "a especificidade de conflitos condiciona o papel da cultura e a percepção que os atores tem dela". Ver Panajotis Kondylis, in Frankfurter Allgemeine Zeitung, citado em CourrierInternational (October 10, 1996), p. 42.
32 - L’Europe et l’Humanité (Mardaga: Liege-Siprimont 1996), p. 47.
33 - Ibid., p. 49.
34 - Ibid., p. 65.
35 - Adda, op. cit., Oeuvres, Vol. 1, p. 62
36 - Danilo Zolo, Cosmopolis. La Prospettiva del Governo Mondiale (Milan:Feltrinelli, 1995).
37 - Resistir à globalização não implica necessariamente em uma reasserção da territorialidade típica do Estado-Nação. Um grande número de dinâmicas sociais particularistas se opõem à territorialidade. Só se precisa considerar o exemplo do fundamentalismo islâmico, que desafia todo fundamento em nações particulares. Similarmente, solidariedades identitárias, religiosas, étnicas, linguísticas ou culturais são transnacionais. Desde essa perspectiva, ameaçado ao mesmo tempo pela globalização e pelas novas formas de particularismo, o Estado-Nação aparece mais ou menos como um horizonte identitário obsoleto. See Bertrand Badie, “Entre Mon-dalisation et Particularismes,” in Sciences Humaines (May 1996), pp. 22-25.
38 - Ver Arlette-Doat, “Les Institutions Européennes: Pôle de Résistance ou Facteurd’Accélération?” in Après-domain (April-May, 1996), pp. 44-45.
39 - Engelhard, Principes d’une Critique, op. cit., p. 365.
40 - “Le Mondial et l’Universel,” in Libération (March 18, 1996), p. 7.