27/07/2015

Maurizio Lattanzio - O Comunismo Aristocrático

por Maurizio Lattanzio



Uma organização social, econômica e financeira deve, em primeiro lugar, se conformar a um princípio essencial: o elemento econômico (vinculado à ordem dos meios, caracterizado, pois, por sua instrumentalidade) deve estar subordinado ao princípio político (vinculado à ordem dos fins).

Assentada esta premissa, resulta necessário em seguida delinear as linhas essenciais e as articulações estruturais próprias da organização econômica e social do Estado.

Pudera parecer estranho que, no mesmo momento em que nos enfrentamos à exigência primordial de garantir a sobrevivência de nossa espécie, se desça à delineação de modelos organizativos econômico-sociais.

Perante isso, consideramos necessário fortalecer e difundir em sua totalidade o espectro teórico que reúne e expressa nossa alteridade racial, com o objetivo, pelo menos, de transmitir instrumentos político-culturais corrosivos e devastadores àqueles Camaradas que nos sigam e continuem nossa luta, perpetuando a ontologia da comunidade do povo na qual nos reconhecemos. Porém, algo talvez mais importante hoje, resulta igualmente necessário assinalar aqueles horizontes que, prescindindo da mais ou menos imediata atualidade prática, contribuam a romper, a separar as raízes enfermas através das quais flui o reflexo condicionado que, consciente ou inconscientemente, pode todavia nos induzir a dar ouvidos aos ecos de expressões que foram e são da direita.

O modelo organizativo que determinaremos e que tentaremos acima de tudo argumentar em suas possibilidades tradicionais, possui assim uma considerável eficácia "provocadora" político-psicologicamente, ainda que sem diminuir minimamente sua rigorosa conformidade com a cultura da tradição.

A organização estatal se configura como Estado popular, forma de comunismo aristocrático de tipo espartano e de inspiração platônica, caracterizado pela abolição da propriedade em qualquer de suas formas de manifestação.

Em nenhum caso se deve confundir a organização comunista da esfera econômica com o socialismo marxista, cujas proposições podem, por sua vez, se desenvolver inclusive no marco de uma sociedade que não seja integralmente ou estruturalmente comunista.

Habitualmente, o termo "comunismo" faz referência a ideologias que afirmam concepções fundadas sobre a estatização do ciclo produção-consumo; a terra, os meios de produção são propriedades do Estado e posse do povo que os utiliza segundo objetivos fixados pelas autoridades centrais, mediante o uso instrumental da planificação das necessidades e dos benefícios.

Hoje, o termo comunismo está associado automaticamente à ideologia marxista como sua consequência necessária sob o aspecto sócio-econômico. Há uma espécie de reflexo condicionado que induz a considerar o regime comunista da propriedade e do direito como monopólio exclusivo do marxismo. Semelhante reflexo resulta sem dúvida alguma estimulado pela incontestável relevância assumida pela ideologia marxista, que, ademais, aplicou de fato este esquema social e econômico no transcurso de seu desenvolvimento histórico-político durante o século XX. Mas isto não deve nos levar a erro: é bom saber que elaborações teóricas e aplicações práticas de caráter comunista remontam a épocas muito anteriores ao nascimento do socialismo marxista. (1)

À margem do regime comunista vigente na Esparta dórica, há que recordar especialmente o "comunismo platônico" teorizado precisamente por Platão na "República".

Na "República" de Platão, o regime comunista é ademais um privilégio que corresponde - em harmonia com sua função suprema - aos guardiões (fylakes), quer dizer, aos dois primeiros estamentos formados pelos sábios e pelos guerreiros, com estrita exclusão dos artesãos e dos camponeses. O regime comunista correspondente aos guardiões não se refere somente à propriedade, senão se estende também às famílias, com o fim de cimentar a absoluta coerência ética e por outra parte o absorvente serviço ao bem comum dos membros do corpo aristocrático. As relações entre jovens e velhos - cada um dos quais podia ser respectivamente o filho ou o pai do outro - ficarão estabelecidas sob um sólido tecido de solidariedade, alimentado pela desindividualização dos laços de sangue, e estendido ao conjunto da comunidade aristocrática. As uniões serão submetidas à disciplina do Estado segundo as regras da eugenia, enquanto as mulheres (as feministas chegaram atrasadas...), uma vez confiados seus filhos desde tenra idade aos modelos educativos implementados pelas instituições do Estado, poderão reempreender sua participação ativa na vida pública. Trata-se de uma ascese vertical, um volo imperiale, uma superação radical da sufocante amálgama feita de posse e desconfiança, hipocrisias e convenções, que caracterizam as relações interpessoais na podre e infame família burguesa.

"Um dia os trabalhadores viverão como os burgueses, mas por cima deles, mais pobre e mais simples, estará a casta superior. Esta será dona do poder". (2)

É um comunismo aristocrático e ascético, antidemocrático e anti-igualitário, que, por outra parte, não deixará de encontrar uma total ressonância nas prefigurações das sociedades comunistas não-marxistas ou cidades ideais surgidas no período renascentista ou ao redor do cristianismo das origens.

No livro segundo de sua obra principal, "Utopia", Thomas Morus descreve os contornos ideais da república perfeita. É a República de Utopia, na qual está abolida a propriedade privada e o uso dos bens está permitido a cada um segundo suas necessidades. Está suprimido também o uso do dinheiro, porque os bens se estimam por seu valor intrínseco e não como mercadoria de troca; e isso, a fim de evitar processos de acumulação e fenômenos especulativos. O trabalho é um dever social para todos, enquanto que as leis são poucas, simples e de fácil interpretação para todos. Em Utopia cada qual professa livremente a religião que deseja, mas todos admitem a existência de um ser supremo, a imortalidade da alma, o prêmio da virtude e o castigo do vício.

Na Cidade do Sol - notavelmente influenciada pelos modelos políticos de Platão e Thomas Morus - Tommaso de Campanella expressa suas aspirações relativas à política de "renovação dos séculos".

Os solares vivem em uma república - a "Cidade do Sol" - regida por um rei-sacerdote, o "Metafísico", e por três magistrados (Pan, Sir, Mor), isto é, "poder", "sabedoria" e "amor", que simbolizam os três atributos fundamentais do Ser desenvolvidos na "Metaphysica". Os solares praticam uma religião natural e possuem em comum a propriedade e as mulheres, enquanto que a procriação dos filhos está submetida a normas eugênicas. Segundo Campanella, a educação deve basear-se na experiência e em provas seletivas de aptidão, não em livros, do mesmo modo sua concepção política se funda em uma visão ético-religiosa e cósmico-mágica do universo.

No século XVIII, Morelly considera que a propriedade privada havia rompido a harmonia do estado de natureza, de cuja existência histórica Morelly, ao contrário de Rousseau, estava convicto. No estado de natureza reina a mais completa igualdade (com Morelly nos encontramos frente uma teorização comunista que, ainda não sendo marxista, resulta de qualquer modo já igualitária) e a comunidade de bens; a introdução da propriedade privada corrompe os costumes humanos e destrói suas inclinações naturais. O novo estado de natureza - cuja configuração comunista está descrita na Basiliade e no Códice - se caracterizará pela valorização da agricultura e do artesanato, enquanto que leis (anti)suntuárias impedirão a excessiva concentração de riquezas e os efeitos corruptores do luxo.

A influência de Morelly será notável com relação à ala mais radical da revolução francesa e no posterior socialismo utópico.

Charles Fourier acusa filósofos e políticos de adorarem duas perversas instituições da sociedade: o comércio privado e a família. Fundadas ambas na incoerência, quer dizer, sobre a fragmentação da sociedade em pequenos núcleos adversários e concorrentes, assim como sobre a mentira.

O comércio é o câncer da economia na medida em que representa uma atividade parasitária e fraudulenta dirigida a fomentar as condições favoráveis a qualquer atividade e manobra especulativa, do mesmo modo que a anarquia da produção e da circulação, o denominado "livre-comércio", é causa das crises econômicas mundiais.

No que concerne a família burguesa, baseada no egoísmo de casal e no matriarcado, esta pressupõe o crisol da hipocrisia e do convencionalismo, da esterilização das paixões e da miséria dos sentimentos (lógico e vergonhoso epílogo a um humorístico propósito de eternidade [sic] fundado sobre um "sim" dito perante um padre ou prefeito). Permita-nos sublinhar que hoje a família é isto, em um tempo no qual, por causa da "ausência de progenitores", extinguiu-se já qualquer função educativa da família em relação aos filhos, aos quais se transmite unicamente egoísmo, vileza e oportunismo. Não podendo ser outra coisa que uns fracos. A família burguesa? Uma carcaça em putrefação...

Para Fourier, o "trabalho sugestivo" deve se desenvolver dentro de comunidades denominadas "falanstérios", que estarão formados por um número de pessoas não superior a 1.600. Estas deverão desempenhar atividades genericamente relacionadas com o território circundante, ao extremo de se dotar também de uma pequena parte de indústria e de trabalho artesanal. Hostil a toda forma de socialismo igualitário e moralista, Fourier pensava que não era necessário suprimir a propriedade privada e a desigualdade social (a renda de cada associado é proporcional a seu trabalho, a seu talento e ao capital eventualmente investido), mas isto não deveria comportar o retorno de formas de competição e exploração ligadas à propriedade privada burguesa.

O Estado popular deverá constituir o tecido organizativo-institucional que acompanhe à obra de formação do "novo homem", preciosa substância celular do nunca extinto filão áureo da raça ário-europeia. Será necessário laminar e pulverizar os sustentáculos políticos, sociais e econômicos que mantém - qual sólidas plataformas - os processos de reposição das oligarquias burguesas e plutocráticas que dominam os regimes democrático-parlamentares.

Laços de clientelismo - entretecidos de forma implacável e enérgica dentro de uma sociedade na qual o homem brilha por sua ausência e predomina o vaga-lume - atados ao redor das burocracias do Estado, do partido e do sindicato; consolidados status sociais burgueses (porque se bem é certo que a burguesia é antes de tudo uma mentalidade - nisso estamos de acordo - não é apenas isso, dado que ela se expressa simultaneamente também na ostentação do poder e do privilégio particular mediante estratificações sociais muito definidas, concretas e socioeconomicamente caracterizadas); poderosas e determinantes concentrações de riqueza econômico-financeira obtidas de qualquer modo; são as bacterias nas quais e ao redor das quais se educam e nas quais, posteriormente, se espremem para sua engorda dentro das estruturas do Estado democrático os defensores, ou melhor ainda os servos que asseguram a hegemonia social do partido único da burguesia.

Trata-se de massa gregária à qual se faz passar fraudulentamente por classe dirigente, cujo único e muito difuso traço de identidade resulta artificiosamente conferido pela adesão às convenções sociais, aos ditados das modas culturais e a esse domínio da aparência no qual se funda e encontra respaldo e reconhecimento a micromoral utilitarista e os critérios de valoração quantitativos e materialistas do "último homem". E nos referimos aqui ao inseto travestido com máscaras grotescas que, na sociedade burguesa, em meio a esforços inumeráveis, parecem dotá-lo de um semblante mais ou menos humano.

No Estado popular a formação da aristocracia política aflui à margem de qualquer condicionamento econômico ou social proveniente da sociedade civil. A qualidade do homem se valorará pela capacidade de adesão a uma visão do mundo centrada sobre valores éticos e, ali onde se deem as condições espirituais.

A relação burguesia-sociedade, quer dizer a relação existente entre ocupante e espaço de ocupação, será substituída pela relação Estado-Comunidade do Povo, onde o primeiro resulta ser o evocador e a segunda o âmbito ao qual se dirige a chamada do Estado, a qual só uma minoria de eleitos responderá, melhor ainda, poderá responder, a fim de assegurar a reposição necessária, fisiológica, orgânica da aristocracia política do povo.

Integrados nas organizações políticas do Estado, os membros da comunidade, desde a mais tenra infância, estão situados em uma posição de paridade de condições nas quais não falham, em uma palavra não pesam, pré-concebidos status econômico-sociais mais ou menos favoráveis ou posições de privilégio adquiridas por qualquer meio. A impossibilidade técnica - garantida pela regulação comunista, que, não obstante, deverá conjugar-se com o nascimento de um novo tipo humano - de acumular individualmente bens econômicos instrumentais e de consumo, impedem que os membros do Estado popular façam depender sua hierarquia dentro das estruturas estatais da posse de riquezas materiais. Assim, se desenvolverá um processo de diferenciação hierárquica, enraizada na natureza física, intelectual, ética e espiritual (melhor ainda: racial) diferente de cada qual. E não ofensivas desigualdades baseadas na riqueza e na origem social, senão autênticas hierarquias qualitativas fundadas em uma diferente morfologia ontológica.

A organização comunista do Estado popular deverá criar espaços absolutamente livres em relação aos mecanismos e às dinâmicas contratuais e mercantis que caracterizam a sociedade burguesa, ou o que é o mesmo, deverá suscitar os pressupostos técnico-estruturais idôneos a fim de coroar a obra de desintoxicação com a qual o homem será libertado do veneno inoculado pela ética mercantil judaico-burguesa. Resulta imprescindível derrubar os pilares sobre os quais a "era econômica" se consolidou e prosperou, assinalando e destruindo as instituições econômicas e sociais que, objetivamente, constituíram o humus no qual o partido único da burguesia articulou sua ditadura hegemônica.

Um Estado que pretenda realizar sua essência aristocrática e hierárquica com o objetivo de permitir a seus membros o viver uma existência orgânica, não pode prescindir de acometer a soluções radicais que, situando-se mais além do niilismo, derroguem as fórmulas econômicas mercantis: "... deve ficar esterilizado o ambiente do qual o burguês extrai vida: tal é a razão de uma regulação econômica comunista!" (3)

O regime de comunismo de bens terá a missão de eliminar o diafragma econômico e contratual que, com a afirmação burguesa, constitui o único nexo vinculante entre um homem e outro. A supressão das articulações estruturais do capitalismo, uma vez confinada a economia a uma área marginal e inessencial (ergo: instrumental), criará um espaço livre capaz de permitir ao homem assumir e expressar sua real expressão e dimensão ético-espiritual. A inexistência de finalidades individualistas alheias ao Estado, tornará natural e lógica a abolição do regime de titularidade privada dos meios de produção, da riqueza imobiliária e da concentração financeira, elementos e interesses objetivamente estranhos com relação aos fins de Estado.

Não obstante, deve admitir-se que a função desempenhada pela propriedade privada na civilização clássica ou na romano-germânica medieval (4) não foi aquela atribuída nas sociedades burguesas: ou seja, uma entidade econômica e quantitativa objetivo de exploração produtiva, propiciadora de bem-estar material e dinheiro, passaporte que permite trepar na escala dos chamados (sic) "níveis sociais". Por outra parte, não se pode negar que o quadro econômico, caracterizado por uma relação equilibrada entre produção e consumo, não era em absoluto o do atual "demonismo produtivo", senão, ao contrário, apresentava singulares analogias e pontos comuns com que, hoje, poderiam ser atualizados no contexto de uma economia de tipo comunista.

A propriedade privada, salvo para o pensamento liberal-democrático (veja-se Locke), não representou nunca um valor por si mesmo: não teve jamais um crisma de "sacralidade" e de inviolabilidade; não possuiu nunca uma autônoma e intrínseca essência capaz de lhe conferir um valor que a eleve por cima de sua função meramente instrumental. Que fique bem claro: nós niilistas-revolucionários não temos fetiches a adorar, e a propriedade privada não é outra coisa que um dos ídolos do mundo burguês. A propriedade privada é hoje a projeção organizativa e estrutural do fracionalismo individualista-burguês. Para nós, o regime jurídico ao qual se submetem os bens materiais desempenha uma função dependente - por conseguinte: relativa e instrumental - frente à categoria do Político, a qual não admite nem consente a existência de magnitudes absolutas e intocáveis sobre o plano contingente da esfera sócio-econômica.

"Ao princípio se possuía riquezas porque se era poderoso. Agora se é poderoso porque se tem dinheiro. Só o dinheiro eleva o espírito sobre um trono. Democracia significa identidade perfeita entre dinheiro e poder".

Antes propriedade e riqueza expressavam posições de poder qualificadas sob o aspecto de grandeza interior; agora as posições de privilégio são consequência da solidez do patrimônio econômico e financeiro, adquirível mediante os típicos dotes da mentalidade mercantil judaico-burguesa.

Por conseguinte, existia um vínculo orgânico e imaterial entre personalidade e propriedade, entre função desempenhada e riqueza, entre dignidade pessoal e posse de bens. Deste modo, dotando à economia de um sentido que a transcendera, ela era impedida de tornar-se autônoma e se constituir em razão de si mesma, objetivo que esmaga, afoga e extingue toda forma de dignidade, de aspirações e de sensibilidade.

Estas observações deveriam ser suficientes para demonstrar o infundado de possíveis refutações esgrimidas por quem quisera ver na utopia comunista-aristocrática do Estado popular uma torpe imitação dos regimes socialistas, mais ou menos reais, de inspiração marxista.

Mas, por rigor expositivo, resulta interessante deter-se no conceito de comunismo.

Comunismo, na acepção marxista, não é copropriedade, porque esta é um modo de ser da propriedade, assimilável ao conceito de "communio" elaborado pelo direito romano. Só uma pessoa ou uma comunidade de pessoas ou uma entidade que possua um conteúdo ontológico (6) podem ser titulares de uma propriedade.

O Estado socialista que, segundo Lênin, está destinado a terminar "na lixeira da história", não pode ser titular dos bens da nação, posto que não é mais que mera superestrutura, carente de uma essência que pudesse dotá-lo de uma realidade ideal de tipo platônico. Para os marxistas, o Estado é um aparato burocrático-repressivo, um instrumento útil durante uma fase de transição no curso da qual deveria acontecer a passagem do socialismo ao comunismo. Assim pois, na sociedade marxista, a abolição da propriedade privada é em realidade expropriação da propriedade do povo em benefício da oligarquia técnico-burocrática, em cujas mãos se realiza a coincidência entre poder político e poder patrimonial. De fato, a propriedade sem proprietário não existe: a propriedade é do povo ou da oligarquia; a propriedade atribuída a instrumentos ou a fantasmas jurídicos isentos de conteúdo humano ou ontológico (o Estado marxista) é somente uma tela que oculta a exploração do povo por parte do poder oligárquico, que concentra em suas mãos o monopólio discreto dos bens de uma nação.

Nas concepções tradicionais, ao contrário, o Estado é o espaço das formas ideais, dos arquétipos ontológicos pré-existentes e superiores à realidade concreta que foi modelada neles e por eles. O Estado, portanto, "é", não constitui um instrumento senão um centro real de poder que pode, em consequência, ser titular dos bens da nação, dos quais concede a posse aos membros da comunidade do povo, que devem empregá-los de acordo com o bem comum.

A unicidade da Tradição informal (7) se expressa sobre o plano histórico mediante formas tradicionais distintas e múltiplas, que podem apresentar umas frente a outras características aparentemente divergentes. De onde, não se pode excluir a priori que a organização econômica de um ordenamento político inspirado nos valores da Tradição pode se configurar com perfis de tipo comunista.

Uma vez estabelecida a distinção entre o plano do político e o plano do econômico, este último poderá assumir as conotações organizativas mais variadas. A essência espiritual da Tradição não acarreta necessariamente sua manifestação concreta em um marco econômico institucional e organizativamente determinado a priori. Também um marco econômico estruturalmente comunista poderá ser sustentado e alimentado, impregnado e inspirado por valores tradicionais. A vida econômica será caracterizada por relações hierárquicas e solidaristas, pela coincidência entre vocação e profissão, e pela serena consciência de viver uma existência organicamente enlaçada com o Todo e conforme à própria natureza, a qual, por sua vez, permite uma consciente e responsável aportação à consecução dos fins do Estado.

O Estado não é capitalista nem comunista, porque, voltado a vincular-se a um plano de valores transcendentes o espaço econômico, não se identifica nem pode ser reconduzido, condicionado ou definido por uma determinada forma econômica organizada. A diferença qualitativa, ao contrário, deve ser buscada na influência que o princípio econômico exerce em uma sociedade, na autonomia decisiva e operativa e na capacidade de controle que o Estado possui em relação à economia. Não há que buscá-la certamente em diferenças de caráter técnico-organizativos.

"A verdadeira antítese não é pois aquela entre capitalismo e marxismo, senão a existente entre um sistema no qual a economia é soberana, mais além da forma que esta revista, e um sistema no qual fica subordinada a fatores extraeconômicos dentro de uma ordem muito mais vasta e completa, capaz de conferir à vida humana um sentido profundo e de permitir o desenvolvimento de possibilidades mais elevadas que ela".

Não existe conflito entre sistemas econômicos tecnicamente considerados, senão entre as diferenças posições que a economia ocupa em uma sociedade e entre as diversas estruturas internas dos tipos humanos que se situam frente a ela. Resulta pois fictícia a distinção entre diferentes sistemas de produção e distribuição de bens e da riqueza - reduzindo-se esta ao mero domínio organizativo-instrumental - quando o bem-estar das massas resulta o objetivo último em torno ao qual estes sistemas fazem convergir seus esforços.

Rechaçar conscientemente e não epidermicamente o dogma do determinismo marxista, com o qual se pretende modelar o homem e suas plenitudes espirituais, culturais e políticas sobre a base de relações de produção, significa atribuir importância fundamental não à esfera econômica considerada em si mesma, senão à posição ocupada por ela, à influência por ela exercida e à atitude com a qual o indivíduo se coloca frente ao fato econômico.

Em conclusão, consideramos o projeto comunista-aristocrático do Estado popular como um elemento já adquirido dentro do patrimônio cultural tradicional; assim, consideramos positivamente uma elaboração cultural que dote de um ulterior volume teórico a esta solução organizativa.

Não há necessidade de contrapor nenhum tipo de preconceito com relação às formas econômicas que assumirá a futura Restauração tradicional; em seu interior, inclusive o esquema organizativo do Estado popular poderá propor-se como solução funcional.

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(1) - O pensamento marxiano se orienta para a construção de um sistema sócio-econômico baseado na atribuição indiferenciada e igualitária do bem-estar material (bem-estar do qual, na época das especulações de Marx, gozavam só dentro da sociedade burguesa algumas classes sociais) ao conjunto da sociedade civil, na perspectiva da abolição do Estado, da total homogeneização social e da igualdade econômica. Na Suécia, Noruega, Dinamarca, por exemplo, se realizou - em um contexto estruturalmente distinto ao imaginado por Marx - o sonho messiânico da "sociedade sem classes" aspirado pelo intelectual judeu. Nessa sociedade desapareceram praticamente as diferenças sociais ou de classe, enquanto que o desfrute generalizado dos bens materiais ultrapassou amplamente o limite do supérfluo, no âmbito de um sistema social caracterizado pela presença de uma corrupta, obesa e satisfeita (inclusive ainda que o alcoolismo e os suicídios tenham uma incidência destacada) burguesia de massas, ofuscada e embrutecida por um estupefaciente materialismo prático muito mais absorvente socialmente que o chamado "socialismo real". Não existe questão social, enquanto que a religião protestante, longe de ser o "ópio do povo", é o fermento que permite às massas burguesas sublimar no Evangelho a visão mercantil, utilitarista e materialista da vida...poderia Marx desejar algo melhor?

(2) - Friedrich Nietzsche, Vontade de Poder

(3) - F.G. Freda, "A Desintegração do Sistema". O ambiente é o conjunto das condições físicas, químicas, biológicas nas quais se desenvolve a vida de uma comunidade de organismos. Na sociedade democrática, o ambiente é o conjunto das condições ou circunstâncias institucionais e estruturais, dos mecanismos econômicos e sociais que permitem ao burguês atuar em coerência com a própria mentalidade mercantil. Bancos e indústrias privadas, contratos e usura, livre iniciativa econômica e propriedade privada, representam os veículos jurídico-institucionais estrutural e funcionalmente adequados para a expansão infecciosa e a realização operativa da mentalidade burguês-capitalista. A supressão destas instituições econômicas e destas fórmulas jurídicas determinará o desarme material do burguês, privando-o do suporte instrumental idôneo para ativar suas potencialidades mercantis. Trata-se, definitivamente, da esterilização do ambiente, ao qual, não obstante, se deverá acrescentar organicamente uma eficaz terapia destinada a apagar a mentalidade burguesa, favorecendo, ao mesmo tempo, o nascimento e a afirmação do "homem novo".

(4) - Entre os antigos germânicos, assim como na civilização clássica e na romano-germânica medieval, a propriedade - empapada por valores espirituais, religioso e éticos e organicamente integrada no tecido social - concorre funcionalmente à conservação do equilíbrio econômico da comunidade do povo. A Sippe (correspondente à gens romana) dos antigos germânicos, conhecidos e descritos por Tácito em seu De Origine, situ, moribus et populis Germaniae, reúne em um contexto de relações sociais de tipo solidarista a um grupo orgânico de famílias descendentes de antepassados comuns de estirpe divina. No interior da Sippe o indivíduo não existe como subjetividade particularista de direito, senão que a própria identidade individual está radicada no grupo do qual forma parte orgânica integrante. Os membros do grupo gentílico cultivam as parcelas de terra circundantes, que não constituem uma propriedade individual senão pertencem solidariamente, como por outra parte os bosques e pastos, à Sippe. Fustel de Coulanges (A Cidade Antiga) escreve: "Conhecemos o direito romano da época das XII Tábuas; está claro que nessa época a alienação da propriedade estava permitida. Mas existem razões que nos levam a pensar que, no que concerne à época originária da Romanidade, a terra estivera submetida a um regime jurídico de inalienabilidade". O proprietário de um bem imóvel não é nunca um particular, mas uma família ou uma estirpe: "O indivíduo - escreve De Coulanges - recebe a terra somente em posse: pois de fato pertence também àqueles que morreram e aos que nascerão". No medievo romano-germânico o regime da propriedade está fundado sobre o benefício, que é a concessão de um determinado território por parte do senhor feudal ou do soberano a um vassalo a ele subordinado, no marco de uma ordem hierárquica piramidal de conteúdo ético e espiritual. Esta concessão não comporta direitos de propriedade senão somente o usufruto do bem (terra e castelos). Por sua vez, o vassalo - à margem de prover determinadas contribuições de caráter econômico (produtos da terra, etc.) - jura fidelidade pessoal a seu senhor pelo qual se compromete a combater em caso de guerra.

(5) - Oswald Spengler, "A Decadência do Ocidente"

(6) - "Ontologia" é um conceito introduzido no vocabulário filosófico a partir do século XVIII para assinalar a "ciência do ser", obrigação que Aristóteles atribui à filosofia primeira ou metafísica. A expressão "conteúdo ontológico" pode ser referida a uma entidade que "é" enquanto objeto de estudo por parte da "ontologia". A essência - por conseguinte: a realidade - pode constituir o fundamento da titularidade de um bem econômico. A propriedade de um bem não é, portanto, prerrogativa exclusiva de uma pessoa física ou de uma comunidade de pessoas, senão que pode ser atribuída a qualquer entidade que - mais além - da fictio iuris da pessoa jurídica (sic!) - tenha uma essência e, por isso, "conteúdo ontológico".

(7) - A Tradição informal, cujo plano se situa em uma dimensão cósmica transcendente, está constituída por uma única essência; esta se manifesta, desenvolve e atualiza sobre o plano histórico no marco de formas tradicionais organicamente diferenciadas, e, em consequência, adequadas à mentalidade e às disposições espirituais da comunidade na qual se desenvolve. A Tradição informal é o Princípio metafísico imanifesto ou totalidade da Possibilidade Universal. A manifestação do princípio metafísico implica em um processo de determinação no contexto de uma forma espacial, temporal e historicamente delimitada. A Tradição informal se diferencia e formaliza em seu modo de expressão, mas é única em sua essência transcendente.

(8) - Julius Evola, "Os Homens e as Ruínas"



17/07/2015

John Romaniello - Da Mitologia à Masculinidade: Como a Jornada do Herói Pode Te Ajudar a Se Tornar um Homem Melhor

por John Romaniello



Eu quero lhes contar sobre um livro que mudará suas vidas. O livro não é novo. Na verdade, ele foi publicado em 1949 sem muito estardalhar. E ainda assim, desde sua publicação, ele causou um impacto que pode ser visto nos filmes que vemos, nos livros que lemos, e até na vida que vivemos.

Esse livro influenciou milhares de escritores e cineastas em sua obra - mas ele não é sobre filmes ou escrita. Esse livro em particular também influenciou incontáveis indivíduos em suas próprias vidas, ajudando a moldá-los em pessoas melhores, mas ele não é um livro de auto-ajuda. É um livro sobre histórias, e sobre narração de histórias - as histórias que impulsionam nossas sociedades, e a maneia pela qual as contamos. E por causa das comunalidades dessas histórias, ele é fundamentalmente um livro sobre nós, e a maneira pela qual vemos o mundo.

Mais importante ainda, é sobre como podemos nos tornar homens melhores. O livro é sobre auto-atualização em sua essência e possui uma abordagem replicável que se aplica a todo homem.

O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell, é ostensivamente sobre mitos e mitologia. Mas as lições nesse livro podem nos ajudar a identificar e navegar os caminhos que tomamos para melhorar a nós mesmos e mudar nossas vidas, para nos tornarmos mais capazes de mudar, e melhores pessoas em geral.

Campbell, um professor na Universidade Sara Lawrence, estudou a sabedoria de cada cultura imaginável; ele olhou para tudo de religiões antigas à mitologia de religiões mais modernas como o Cristianismo, Judaísmo e Islã.

A pesquisa de Campbell o levou a focar em mitologia comparada; especificamente, ele olhou para o que os mitos de diferentes culturas tinham em comum, ao invés do que eles não tinham. Por todo lugar em que Campbell procurou, ele a encontrou: um único arco narrativo, a história ubíqua que cada cultura da Mesopotâmia à nossa sociedade ocidental moderna usa para transmitir informação, tradição e percepção terrena. Coletivamente, Campbell coloca essa informação em sua obra mais influente e seminal, O Herói de Mil Faces.

Pegando um termo de James Joyce, Campbell chamou esse padrão universal de monomito. Você pode conhecê-lo como a Jornada do Herói.

É um único mito, contado de mil maneiras diferentes; um único herói, com mil faces distintas. O monomito está em cada história que você já ouviu, na maioria dos filmes que você já viu - e está presente na sua vida, todo dia. E compreendê-lo pode fazer de você um homem melhor.

A Jornada do Herói e Por Que ela é Importante

O monomito começa com o personagem principal, ou Herói, em um lugar, e termina com ele em outro - tanto fisicamente como emocionalmente. Campbell afirma que este Herói é o mesmo, independentemente da história, e que ele aparece de diferentes formas. Isso é importante porque o herói pode ser a estrela do futebol ou o contado no cubículo nove. Os caminhos são diferentes, mas a jornada é a mesma.

Dentro de cada jornada, o Herói encontrará outros personagens que desempenham um papel essencial no crescimento. Campbell nomeou estes como arquétipos (o Arauto, o Mentor, a Deusa, o Trapaceiro, etc.), e eles aparecem na vasta maioria das histórias. É fácil encontrar um arquétipo uma vez que você saiba o que está procurando. Então, seja o herói Harry Potter ou Rei Artur ou Frodo, seu caminho é sempre bastante similar. Seja o mentor Dumbledore ou Merlin ou Gandalf, seu papel é sempre o de guiar o herói.

Essa estrutura aparece em todo lugar, mas é mais facilmente reconhecida em filmes e livros. Luke Skywalker começa sua jornada deixando seu lar em Tatooine, tendo grandes aventuras, e realizando seu potencial como Jedi. Os eventos podem ser diferentes, mas a jornada é a mesma assumida pelo Rei Artur. E é o mesmo exato curso que figuras proeminentes em histórias religiosas seguem. Campbell nos mostra quão preciso este conceito é, e como ele se repete de novo e de novo. E ele está acontecendo bem agora em sua vida, também.

Ainda não está convencido? Certo, vamos dar alguns exemplos e vamos olhar para os passos da Jornada do Herói. Enquanto o modelo de Campbell tem 17 fases, em prol da brevidade, eu prefiro a versão mais abreviada usada por Christopher Vogler em seu livro A Jornada do Escritor.



Agora, olhando para a figura, bem como para o esquema abaixo, você provavelmente pode ter uma boa ideia do que cada fase significa com base no nome; os exemplos servirão para convencer que tudo isso é aplicável a toda história que você já ouviu.

Fase da Jornada
Descrição
Exemplo
O Mundo OrdinárioO ponto de partida do HeróiDorothy Gale vivendo em sua fazendo (O Mágico de Oz)
O Chamado à AventuraO Herói percebe que há um mundo maior do qual ele pode fazer parteHarry Potter recebe uma carta de Hogwarts (Harry Potter e a Pedra Filosofal)
Recusa do ChamadoEm um momento de dúvida, o Herói decide não realizar a empreitadaLuke Skywalker diz a Obi-Wan Kenobi que ele não pode ir a Alderaan (Star Wars)
Encontro com o MentorOu o primeiro encontro com a figura do Mentor, ou o momento em que o Mentor encoraja o Herói a assumir a empreitadaDaniel LaRusso conhece o Sr. Miyagi (Karate Kid)
Cruzando o Primeiro LimiarO Herói passa do Mundo Ordinário ao Mundo Especial, e vê a diferença entre os doisO Narrador entra na casa de Tyler Durden pela primeira vez (Clube da Luta)
Testes, Aliados e InimigosO Herói começa a realizar tarefas que o ajudarão a se preparar para a jornada; ele também encontra amigos que o ajudarão e inimigos que tentarão detê-loFrodo deixa Valfenda com a Sociedade do Anel, e tem que aprender a como seguir na estrada conforme avança (O Senhor dos Anéis)
AproximaçãoPreparação interna e externa; usualmente inclui uma destinação imponenteNeo e Trinity reúnem um arsenal antes de partirem para resgatar Morpheus (Matrix)
O OrdálioO conflito central na história, o grande combate com o chefe, onde a possibilidade de morte é iminenteDorothy e seus amigos enfrentam a Bruxa Má em seu castelo (O Mágico de Oz)
Tomando a Espada/RecompensaTendo matado o inimigo, o Herói está livre para tomar o tesouro; às vezes é um item de grande valor, como o Santo Graal, ou uma pessoa, mas geralmente é algo mais abstrato, como o fim de uma guerraApós a morte do dragão Smaug, Bilbo e os anões estão livres para se apossarem de seu tesouro (O Hobbit)
Apotheosis e RessurreiçãoMuitas vezes, o Herói precisa apesar de todo seu crescimento, atingir um ponto de crise e se manifestar de uma só vez em um momento de iluminação chamado apotheosis; essa realização é o golpe mortal contra o velho "eu" e suas crenças, e o abraçar do novo; isso é pontuado por uma morte e ressurreição simbólicas (às vezes literais)O Narrador percebe que para que ele possa deter Tyler Durden, ele deve se matar - fazendo as pazes com sua própria morte ele aceita a mortalidade, e fica, por um momento, verdadeiramente em paz; ele atira contra si mesmo e vive, mas Tyler está morto (Fight Club)
A Estrada de VoltaO Mundo Especial, com todas as suas lições e aventuras, pode ter se tornar mais confortável que o Mundo Ordinário, e para alguns Heróis, retornar pode ser mais difícil que a partida inicialApós o Um Anel ser destruído, Frodo tem dificuldades para se adaptar a uma vida normal de hobbit no Condado (O Retorno do Rei)
Retorno com o Elixir e o Mestre de Dois MundosO Herói retorna ao lar mudado, e usa os dons recebidos e lições aprendidas na jornada para ajudar a melhorar outros; ao mesmo tempo, o Herói deve fazer as pazes com todas as mudanças pessoais pelas quais ele passou; ele deve reconciliar quem ele era com quem ele se tornouLuke, agora um Jedi, restaura o equilíbrio da Força, ajudando a trazer paz para a galáxia; concorrentemente, ele é capaz de resolver seu relacionamento com seu pai e seguir em frente (O Retorno de Jedi)
Mas a tese de Campbell não é simplesmente a de que quase toda cultura histórica encontrou uma maneira idêntica e eficaz de contar histórias; é a de que as comunalidades na narração existem porque elas são parte fundamental da experiência humana. O monomito não é apenas a estrutura de como contamos as empreitadas de heróis e personagens nas, histórias, é também como relacionamos essas histórias a nós mesmos, e, de uma maneira muito real, como compreendemos as coisas que estão acontecendo conosco.

Eu levaria isso ainda mais longe.

Eu acredito que apesar do monomito ser excepcional para narrar histórias, e portanto excepcional para explorar ideias culturais, ele pode ter um impacto tão grande quando aplicado a um indivíduo - quando aplicado a você. Colocando de forma mais direta, a Jornada do Herói é a lente perfeita pela qual ver qualquer mudança em sua vida - qualquer seja a nova jornada em que você esteja engajado, você passará por todas as fases do monomito conforme você cresce, se adapta, e finalmente cumpre seu objetivo.

Obviamente, eu não sou o único que sugere isso. Por anos, o modelo campbelliano tem sido usado por pessoas de várias áreas para ajudar o próximo a progredir; por exemplo, alguns terapeutas o usam com seus pacientes para ajudar a estruturar a psicanálise. Similarmente, ele é usado para ajudar pessoas a lidarem com o processo de pesar - afinal, as 5 fases do pesar tem seu espelho no monomito. Ainda outros o usam como esquema mental ou educação para o sucesso - ajudar pessoas a compreenderem onde elas estão na jornada não só ajuda a fornecer um senso de conforto e controle, mas também um caminho claro, tornando mais fácil, conceitualmente, ir para a próxima fase.

Como todas as mudanças em sua vida podem se encaixar nessa estrutura, quer você perceba ou não, a qualquer dado momento você estará passando por pelo menos uma dessas jornadas - e dominar a ideologia do monomito o tornará mais bem-sucedido. Porque a Jornada do Herói não é apenas uma lente para enxergar mudanças, mas também uma excelente tese operacional para impulsionar mudanças.

Aplicação Prática - A Jornada de um Marombeiro

Minha exposição a Joseph Campbell e à academia veio mais ou menos no mesmo período da minha vida. Eu era calouro na universidade e precisava de mudanças enormes na minha mente e no meu corpo. Eu estava 12 quilos acima do peso, clinicamente deprimido, e de modo geral simplesmente infeliz. Um início pouco auspicioso para minha história, mas é a verdade. Naquele ano, eu fui encarregado de ler O Herói de Mil Faces para uma aula sobre literatura utópica/distópica. Com as primeiras 30 páginas, já estava fascinado.

Naquele ponto, eu certamente não achava que encontraria uma metodologia de resolução de problemas, mas sendo um cara que era extremamente interessado em fantasia medieval e mitologia, Campbell me tocava enquanto contador de histórias. Ler o Herói foi imediatamente benéfico: ele tornou todos os outros livros que eu já estava lendo ainda mais acessíveis, e mais proveitosos. (E creia-me, aos 19, era difícil imaginar qualquer coisa que pudesse tornar reler O Senhor dos Anéis pela oitava vez ainda mais proveitoso - o Herói conseguiu isso).

Por volta dessa época, eu me matriculei em uma academia, passei por uma enorme transformação física, e mudei minha vida de várias maneiras. Não apenas construí um físico impressionante que abriu um número de portas profissionais desde modelo fitness e personal training à escrita, mas também aprendi uma variedade de lições que influenciaram cada aspecto de minha vida, e se tornaram bem-sucedidas de maneiras que eu não poderia imaginar.

Pode parecer um pouco bobo pensar que ficar em boa forma me ajudou a me sair melhor na escola e ter relacionamentos melhores, e ainda mais bobo que isso possa me ter ajudado a começar meu próprio negócio, viver a vida nos meus termos, e até escrever um livro. Mas é tudo verdade.

Talvez mais importantemente, minha transformação, e a estrada até ela, foi retraçado passo-a-passo da Jornada do Herói. Como eu disse, todas as mudanças podem se encaixar nesse modelo. Vamos dar uma olhada na minha.

O Mundo Ordinário - Eu era gordo e deprimido, mas não sabia muito mais. Como Harry Potter sob as escadas ou Frodo no Condado, meu Mundo Ordinário era minha vida quotidiana.

O Chamado à Aventura - No meu caso, foi realmente uma chamada telefônica. Naquele ponto na minha vida, eu estava trabalhando em uma loja varejista (na Gap, entre todos os lugares), e uma mulher me ligou encomendando 30 camisas pólo brancas para quando ela chegasse na loja. Resumindo, o marido dela estava abrindo uma academia a 5 minutos de distância da minha casa. Naquele momento, eu quis realizar uma mudança. Agora, "Eu preciso de 30 camisas pólo", não é tão dramático quanto "Ajude-me Obi-Wan Kenobi; você é minha única esperança", mas serviu.

Recusa do Chamado - Mudar é difícil. Às vezes o Herói tem mais medo de mudar do que de continuar a ser infeliz na sua situação, ou corpo. A maioria das pessoas que quer embarcar na jornada fitness (ou em qualquer jornada) jamais passa desse ponto; eles pensam que será difícil demais, ou que eles não podem mudar. Ou começam e simplesmente desistem. No meu caso, apesar de estar interessado em mudar, eu estava nervoso, e precisei de alguns dias antes de reunir coragem para ir dar uma olhada na academia.

Encontro com o Mentor - Heróis não conseguem fazer tudo sozinhos; todos precisamos de mentores. Quando eu finalmente entrei na academia, eu conheci o dono, Alvin. Ele tinha uma atitude encorajadora e um físico inspirador. Eu gostei dele imediatamente, e o deixei me guiar. No que concerne mudar seu corpo, este mentor não precisa ser necessariamente uma pessoa com a qual você tem contato direto; o papel de mentor também pode ser preenchido por um livro ou mesmo um site. O autor o ajudará sem mesmo conhecê-lo.

Cruzando o Primeiro Limiar - Atravessar limiares é algo que acontece ao longo de jornadas, e o primeiro é sempre o mais impactante. É o que separa o Mundo Ordinário do Mundo Especial. Quando eu me matriculei na academia e comecei a ler sobre musculação, foi como Dorothy chegando em Oz; havia tanta coisa para absorver que era intimidador.

Testes, Aliados, Inimigos - Conforme comecei minha jornada de transformação, eu rapidamente percebi que havia pessoas que queriam ajudar, e pessoas que não queriam. Algumas pessoas apoiarão seus objetivos físicos e evitarão tentá-lo; outros chamarão seus objetivos de tolos e vazios. Toda vez em que eu ia a uma festa ou jantar, eu tinha que lidar com o invariável, "Dá só uma mordida" ou "É só um gole". Essas coisas são tentadoras, mas para tornar minha transformação uma realidade, eu tinha que passar nesses testes.

Aproximação - Conforme eu me preparava para a batalha final - o verdadeiro grosso da transformação - eu tinha que me armar. Houve vários pequenos eventos durante essa época - limpar a geladeira e jogar todo o lixo fora, estocar com alimentos saudáveis, dominar a forma correta de exercícios e aprender sobre nutrição.

Ordálio Central - O Ordálio é sobre o ato da mudança, e a necessidade dela. Em relação a mudar meu corpo, este foi o programa de transformação de fato - aquele período de 16 semanas nas quais eu foquei ardentemente e fiz de meu objetivo dobrar meu corpo à minha vontade. Metaforicamente, o Ordálio é sobre a guerra entre a metade luminosa e a metade escura de nossa psique, e sua tentativa de equilibrá-las.

Apotheosis/Ressurreição - Qualquer um que tenha passado por uma grande transformação compreende que os resultados do Ordálio são bem intensos. Em quase todos os casos, você alcança uma sensação de percepção ampliada - não necessariamente iluminação suprema, mas, no mínimo, um desvelar de um mundo ou experiência previamente escondido de seus olhos. Em meu caso, essa foi a realização de que ter um bom físico era possível para mim, e que todos os benefícios de fazer parte desse "clube" eram meus. Enquanto instrumento narrativo, a apotheosis é sobre tornar-se similar a um deus, pelo menos por um momento; na maioria dos casos, isso só ocorre quando o personagem põe de lado toda resistência e se entrega plenamente à experiência. Naquele momento, você não será um deus, mas será uma fênix - seu novo e superior "eu" se erguendo das cinzas do antigo que você deixou para trás.

Tomando a Espada/Recompensa - Isso é o que você conquista após a batalha - algo para você. É quando os heróis se reúnem para dizer, "Nossa, olha o que fizemos". Pode ser uma celebração, uma cena de amor. Para mim, foi uma elevação da auto-estima e da saúde que acompanhavam meu novo corpo. Muito mais do que isso foi a crença em mim de que eu podia manifestar mudanças; eu havia conquistado isso que anteriormente eu achava impossível, o que instilou em mim uma crença inabalável de que eu poderia fazer o que quisesse.

A Estrada de Volta - Após a batalha em si terminar, o Herói deve retornar ao lar. Isso é às vezes mais difícil do que deixá-lo em primeiro lugar. A Estrada de Volta é emocionalmente atribulada, porque você teme perder tudo que ganhou durante a jornada. No meu caso, eu tive alguma trepidação de que uma vez que eu não estivesse na avidez do foco em uma transformação, eu reverteria ao meu antigo "eu".

Retorno com o Elixir - Na melhor das hipóteses, as recompensas não são apenas para o Herói, mas também para todos que o cercam. Frodo destruir o Um Anel trouxe paz à Terra-Média; Harry Potter destruir Voldemort fez o mesmo pelo mundo da magia. Bem, minha transformação infelizmente não acabou com guerras ou salvou o mundo, mas de fato ajudou várias pessoas. O ato de mudar me ajudou a me tornar uma versão melhor de mim mesmo; muitas de minhas melhores qualidades foram amplificadas. Eu me tornei mais feliz, e tornei outras pessoas mais felizes; eu também me tornei mais prestativo, mais dedicado, e (estranhamento) mais pontual. Minha transformação também inspirou outros a iniciarem suas próprias jornadas. Mais do que qualquer outra coisa, o conhecimento que eu adquiri ao longo dos anos - começando com quando eu fiz minha própria transformação - me permitiu tornar-me instrutor e autor, ajudando primeiro centenas, e eventualmente milhares de pessoas a mudarem suas vidas.

Mestre de Dois Mundos - A última fase da jornada é quando o Herói se torna o Mestre de Dois Mundos - ele é capaz de unir a luz e as trevas dentro de si. Metaforicamente, essa fase é sobre equilíbrio - sobre reconciliar quem você foi com quem você se tornou, e se permitir aceitar ambos. Para mim, foi sobre dominar a vida em meu novo corpo - compreendendo todos os benefícios que ele fornecia sem transbordar em qualquer direção. Essa foi uma continuação da Estrada de Volta, e foi sobre se mover lentamente para longe das coisas mais extremas e encontrar uma maneira de viver a vida e fazer as coisas que pessoas normais fazem, como ir a jantares e beber ocasionalmente uma cerveja. 

Eu deveria mencionar que à época em que eu realizei mina transformação física, eu não percebi que eu havia estado no que se poderia chamar de Jornada do Herói - minha familiaridade com Campbell era muito recente, e eu não fui capaz de ver os paralelos tão claramente. Não foi até eu começar minha jornada empresarial que eu compreendi que Campbell podia ser aplicado a tudo. Daquele ponto em diante, eu comecei a incorporar alguns aspectos da estrutura monomítica nos programas dos meus clientes e em minhas lições com eles; eu descobri que ensinar Campbell ajuda a transmitir informações sobre educação física, ou pelo menos a se fazer entender. E foi a partir dessa compreensão geral que eu escrevi meu livro, Homem 2.0: Engendrando o Alfa. E eu usei essa plataforma - um livro que se tornou bestseller do New York Times - para mostrar como usar a Jornada do Herói para conquistar a melhor forma de sua vida.

Fora da Academia: Outros Exemplos, e Como Campbell Te Afeta

É claro, uma jornada fitness é apenas um exemplo singular de como o monomito pode ser aplicado em sua vida. Uma vez que se conheça a estrutura geral, não é difícil planejar jornadas em todos os aspectos da vida - tudo de sua decisão a ingressar em uma universidade a seus relacionamentos amorosos.

Ele possui uma validade excepcional em relação ao amor, na verdade - simplesmente olhe para o enredo padrão de uma comédia romântica: rapaz conhece garota, rapaz perde garota, rapaz reconquista garota, poderia facilmente ser rapaz ouve o chamado da aventura, rapaz recusa o chamado da aventura, rapaz se aventura mesmo assim. Em todo caso, pela assistência de um mentor (poderia ser um amigo descolado ou uma figura parental), o Herói partirá em uma jornada de introspecção e sairá do outro lado digno da garota.

E um exemplo mais detalhado pode ser o de que você se casa, e se acomoda em uma vida conjugal (Mundo Ordinário). Sua esposa fica grávida (Chamado à Aventura). Você pira inicialmente (Recusa), mas está obviamente entusiasmado. Ao longo da gravidez, consultas com seus médicos (Encontro com o Mentor) o ajudam e a sua esposa (Aliados) a se preparar (Aproximação) para o nascimento da criança (Cruzamento do Limiar). Ser um pai é agora sua responsabilidade principal (Ordálio) e ao fim da jornada ali está seu filho - seu legado - que seguirá no mundo após você partir (Retorno com o Elixir).

Quer um exemplo profissional? Que tal isso: você perde seu emprego (Chamado à Aventura), e apesar de sentir sua perda e querê-lo de volta (Recusa do Chamado), você eventualmente decide que deseja seguir em uma nova carreira. Isso pode se dar de várias maneiras, vamos assumir que você busque a ajuda de um orientador empresarial (Encontro com o Mentor). Eventualmente, você decide começar seu próprio negócio, ou começar um blog - algo que você nunca fez antes (Atravessar o Primeiro Limiar). Há vários desafios ao longo do caminho, bem como sucessos e derrotas (Testes, Aliados, Inimigos). Siga esse passo até sua conclusão e você acaba criando algo - renda, um livro, um produto - (Recompensa) que te melhora (Apotheosis) e te permite melhorar o mundo (Retorno com o Elixir).

Fechando o Círculo

Enquanto a memória do monomito se deve certamente a sua aplicabilidade universal, talvez o maior benefício venha após ele ser aplicado. Como eu aludi acima, o próprio ato de mudança te modifica.

Esse princípio foi o que me permitiu dar o próximo passo em minha própria jornada e escrever Engendrando o Alfa como uma maneira de tornar a jornada relevante para todo homem e ajudá-los a ver o caminho que pode guiá-los a seus maiores objetivos - sejam físicos, emocionais ou sociais. O resultado tem sido um laboratório de testes no qual milhares de homens tem sido capazes de transformar suas vidas de maneiras jamais pensadas antes.

E é tudo por causa de Campbell. Compreender a Jornada do Herói é comparável ao momento no qual Neo compreende a Matrix. Isso te permite compreender o que está acontecendo e o motivo, e exatamente como você deve responder e reagir para tomar as melhores decisões possíveis. A vida desacelera, e quando isso acontece você pode acelerar e fazer escolhas melhores que finalmente levam à mudança.

Ao passar por uma enorme mudança, você irá se deparar com uma maior compreensão de si mesmo, e do que você é capaz. O sucesso é um hábito passível de ser aprendido, e o sucesso gera sucesso - quanto mais mudanças positivas pelas quais você passar, menos resistente à mudança e ao crescimento você se tornará.

Tudo que resta é uma simples pergunta: Você está pronto para se tornar o herói? Se sim, está na hora de reconhecer seu mundo ordinário, começar a jornada, e finalmente se tornar um homem melhor e a melhor versão de você.


12/07/2015

Gwendolyn Taunton - Excelência Socrática & O Princípio Aristocrático

por Gwendolyn Taunton



Se a hybris causa a queda de heróis, então é pela areté que eles se erguem. O conceito de areté é crucial para compreender as ideias de Sócrates e Platão, e através delas, o princípio aristocrático. Na obra de Sócrates e Platão areté é uma parte universal, mas inessencial da natureza humana, e as pessoas diferem no grau de areté que possuem. Areté - o princípio aristocrático - em sua escrita passa por uma transição específica, assumindo um aspecto etéreo e se tornando uma virtude. Isso torna a tarefa de dar uma definição ainda mais difícil. O que exatamente é virtude? Pode a virtude ser ensinada, ou ela é parte da composição psicológica de um indivíduo e portanto um traço genético inato? Nem Sócrates, nem Platão tiveram que contemplar a perspectiva de virtude e qualidades morais geneticamente transmitidas como hoje com nossos avanços em ciências biológicas. Nem tiveram eles que responder sobre se a personalidade é produto da natureza ou da criação. Eles só podiam trabalhar com a lógica para procurar por uma resposta, e nenhum dos dois acreditava que a areté (enquanto virtude) pudesse ser ensinada. A virtude é explicada como,

"[...] o que torna alguém membro da comunidade. Todos tem alguma virtude, e ele a adquire pela educação que começa na infância e continua ao longo da vida. Perguntar quem são os professores é como perguntar quem o ensinou a falar em sua língua nativa".

Isso implica que a virtude é uma perícia social inata similar ao uso da communitas por Victor Turner. É um tipo de inteligência social derivada de laços sociais naturalmente existentes. Isso, porém, é uma teoria mais complexa. Ainda que a virtude seja aprendida, parece que a capacidade para ela é inata, e que a capacidade para a virtude de um indivíduo difere proporcionalmente em relação aos outros. Sócrates parece ser da opinião de que a virtude não poderia ser ensinada para além de sua capacidade natural e diz isso a Protágoras. Porém, quando Meno pergunta a Sócrates como a virtude é adquirida, se por instrução ou de alguma outra maneira, Sócrates responde que ele não pode responder, porque ele ainda não sabe o que ela é, dizendo que "O fato é que longe de saber se ela pode ser ensinada, eu não tenho ideia do que é a própria virtude". Conquanto a virtude seja uma característica, ela é obtusamente resistente a uma definição, residindo em um platô abstrato singular, mesmo para Sócrates. Protágoras aponta que mesmo grandes estadistas são às vezes incapazes de transmitir sua virtude a seus filhos, de modo que fica decidido que a virtude não pode ser completamente hereditária. A virtude, portanto, começa a tomar uma existência metafísica, com Sócrates concluindo que ela deve ser algum tipo de intuição ou um tipo de sabedoria, dizendo que ela simplesmente vem ao homem "por inspiração divina sem que se tome consciência". Sócrates, então, diz ainda mais:

"Se então a virtude é um atributo do espírito, e um que não pode deixar de ser benéfico, ele deve ser a sabedoria; pois todas as qualidades espirituais por si mesmas não são nem vantajosas, nem danosas, senão por sua presença junto à sabedoria ou à tolice. Se aceitarmos este argumento, então a virtude, para que seja algo vantajoso, deve ser um tipo de sabedoria".

Segundo Sócrates, areté é tanto uma virtude como uma forma de sabedoria. Pode-se, portanto, concluir que a forma de aristocracia que ele defendia se baseava na excelência em sabedoria e virtude, com a moralidade exemplar funcionando como a evidência observável do direito de governar. A aristocracia socrática é, assim, "política ética". A ideia apresentada é a de que a ciência política democrática pressupõe que não há qualificações formais para o governo. Para todas as outras ocupações se é treinado para conseguir o emprego - mas para o governo não há treinamento ou legitimação certificada - Sócrates conclui, assim, que subconscientemente é pensado que as habilidades necessárias para a política não podem ser formalmente ensinadas, como ele delineia abaixo.

"Agora quando nos encontramos na Assembléia, então se o estado se depara com algum projeto de construção, eu observo que os arquitetos são convocados e consultados sobre as estruturas propostas, e quando é uma questão de construção de navios, os construtores navais, e daí em diante com tudo que a Assembléia considera como tema de aprendizado e ensinamento. Se qualquer outra pessoa tentar dar conselho, que eles não considerem um especialista, não importa quão bela ou rica ou nobre ela possa ser, não faz diferença: os membros o rejeitam barulhentamente e com desprezo, ainda que ele seja ou silenciado e desista, ou arrastado para fora ou arremessado pela polícia por ordem dos magistrados. [...] Mas quando é algo relacionado com o país que está a ser debatido, o homem que se levanta para aconselhar pode ser um construtor ou igualmente bem um ferreiro ou sapateiro, comerciante ou dono de navio, pobre ou rico, de boa família ou sem. Ninguém levanta contra qualquer um desses, contra aqueles que eu acabei de mencionar, que eis um homem sem qualificações técnicas, incapaz de apontar a quem seja como seu professor, e que ainda assim está tentando dar conselhos. A razão deve ser que eles não consideram que este seja um tema que possa ser ensinado".

Portanto a conclusão final de Sócrates é a de que os tipos de conhecimento especializado que não podem ser ensinados são a sabedoria e a virtude, e que estas são as duas qualidades mais importantes para um líder em potencial. O líder ideal, assim, é aquele que é perito em ambas: um filósofo. Sócrates ofereceu um terceiro caminho entre a política aristocrática e a democrática como sua audiência ateniense as entendiam. Essencialmente, essa é a dimensão prática dos filósofos-reis de Platão, ou o que Michael S. Kochin chamou de "política acadêmica". Segundo essa perspectiva, a política é um jogo de bajulação e propaganda, "não uma atividade adequada para pessoas 'belas', refinadas, ou para homens de verdade". Deve-se também entender que filosofia nesse contexto se relacionada a um grupo altamente educado, os maiores intelectuais de Atenas. O reino dos "filósofos-reis" não implica necessariamente na filosofia como a entendemos hoje, mas em todas as disciplinas acadêmicas - as ciências, bem como as artes e humanidades. Segundo Sócrates, os filósofos (e/ou intelectuais) devem ser compelidos a governar, e sua alternativa à democracia era uma aristocracia baseada na inteligência, na sabedoria e na educação, ao invés de na riqueza ou no direito de nascença. Isso é melhor descrito por Platão com a metáfora do navio:

"Imagine a seguinte situação em uma frota de navios, ou um único navio. O dono possui a vantagem sobre todos os outros a bordo por virtude de sua força, mas ele é um tanto surdo e míope, e seu conhecimento de questões navais é tão limitado quanto. Os marinheiros brigam entre si porque todos pensam poder ser o capitão, apesar do fato de que nenhum deles jamais aprendeu como. Eles estão sempre cercando o dono de perto, implorando para que ele lhes confie o leme. Eles pensam bem de qualquer um que contribua para a tomada de poder demonstrando perícia em conquistar ou subjugar o proprietário, e o descrevem como um marinheiro realizado, um verdadeiro capitão, um perito naval; mas criticam qualquer um que não seja assim como inútil. Eles são totalmente incapazes de compreender que qualquer capitão genuíno tem que estudar o ciclo anual, as estações, os céus, as estrelas e ventos, e tudo que é relevante para o trabalho, se ele quiser estar realmente equipado para ter uma posição de autoridade em um navio. Na verdade, eles consideram ser impossível estudar e adquirir conhecimento sobre como manejar um navio ou ser um bom capitão. Quando isso é o que acontece em navios, você não acha que os marinheiros de tais navios considerariam qualquer verdadeiro capitão como nada mais que um saco de vento com sua cabeça nas nuvens, sem qualquer utilidade para eles?".

Apenas um capitão adequadamente capaz possui habilidade para controlar o navio, mas impulsionado pela crença em igualdade absoluta, o proprietário é desafiado, não por aqueles que podem fazer um trabalho melhor, mas porque cada indivíduo acredita ter direito igual a fazer seu trabalho. A tripulação luta entre si por poder, mas nenhum deles busca adquirir o conhecimento que os tornaria aptos para controlar o navio. O narcisismo sobrepuja a sabedoria, ameaçando não apenas o proprietário, mas toda a tripulação. Desde essa perspectiva, políticos democráticos são representados como um grupo de incompetentes famintos por poder, ávidos por controle a qualquer costo, mas incapazes de preencherem o papel do líder educado e experiente.

Tão dolorosa quanto a ideia possa ser, democracia em excesso abre o caminho para o egoísmo, com todos acreditando serem merecedores de uma quantidade igual de poder simplesmente por virtude de sua existência. Para todas as outras posições importantes há requisitos formais - não para a política. As posições mais importantes no Estado tem a menor quantidade de requisitos formais. Esse é o centro do argumento apresentado contra a democracia - deixando a arena da política aberta para todos e o voto aberto para pessoas que não possuem a informação correta disponível para selecionar o melhor candidato, são apontados políticos que são incompetentes e possivelmente até prejudiciais à pólis. A seguinte regra lógica se aplica: homens medíocres produzem Estados medíocres, homens ruins produzem Estados ruins, mas o líder socrático indicado por sua excelência pessoal produzirá um Estado excelente. O Estado e o governo são o espelho do homem que os lidera.

O ideal é, portanto, uma aristocracia composta por especialistas qualificados e virtuosos e o que é chamado de "aristokratia" por Sócrates é realmente uma meritocracia de mente e espírito. A alternativa de Sócrates à democracia é uma elite inteligente e educada que supera a ideia de "classe" Para Sócrates a busca bem-sucedida de qualquer ocupação demandava o domínio de um conhecimento, perícia ou técnica particular; e isso era acima de tudo verdadeiro no que concerne a direção das questões da cidade, das quais a felicidade dos cidadãos necessariamente dependia. O princípio e raison d'etre de um Estado há de ser buscado não na mediocridade, mas na excelência, e não é por sua média que uma nação é medida mas por seu gênio. Platão também amarra essa ideia com o mito de Hesíodo dos metais para atribuir papeis sociais dentro do Estado. Todos os homens nascem da terra, mas com diferentes misturas de ouro, prata, cobre e ferro. Em uma óbvia analogia a isso, Platão também divide os possíveis sistemas de governo em cinco grupos distintos, "o primeiro é um monarca, tipicamente acompanhado por uma aristocracia, o segundo uma timocracia, ou uma aristocracia do talento, o terceiro uma oligarquia, o quarto uma democracia, e, finalmente, uma tirania". Conforme a qualidade das eras declina, também o faz a qualidade do governo e os méritos individuais dos governantes.

08/07/2015

Entrevista com Rafael Correa - A Via do Equador

por New Left Review, nº77

Tradução por Lucas Rodrigues



Entrevistador: Você pode nos dizer algo sobre sua formação pessoal e política? 

Rafael Correa: Nasci na cidade de Guayaquil, a maior e mais problemática do país. Durante 20 anos - dos 5 aos 24, isso é, desde que me entendi por gente - vivi no mesmo bairro, perigoso e duro. Meu pai vinha de uma família "fidalga", pelo lado do meu avô paterno, e de uma família campesina, pelo lado da minha avó paterna (sua mãe era filha ilegítima). Ele nasceu na fazenda Palmar, a maior da província da Província de Los Rios, uma fazenda que era propriedade da família Correa. Meu avô paterno, típico boêmio, quebrou a fazenda e aos 5 anos de idade meu pai se encontrou na miséria e, pior ainda, com seus pais divorciados, sem que o permitissem ver sua mãe de origem humilde. Minha mãe provinha de uma família de classe média de origem manabita, sem maiores problemas familiares mas com muitas limitações econômicas. Por ter que trabalhar para ajudar sua família, minha mãe não pôde terminar seus estudos no colégio, coisa que meu pai, um homem extremamente inteligente, tampouco conseguiu, devido aos problemas econômicos e familiares citados. Todavia, paradoxalmente eles sempre nos inculcaram o amor pelo estudo. Ambos eram funcionários privados, que ganhavam salários baixos e enfrentavam condições de trabalho instáveis, razões pelas quais nossa família era bem pobre, e só pudemos estudar em colégios bons graças a bolsas de excelência acadêmica. Éramos quatro irmãos: Fabrício, Pierina, eu e minha irmã Bernardita, que morreu quando eu tinha apenas 13 anos e ela 12; sua morte, porém, foi o golpe mais duro que recebi na minha vida. Quando eu tinha 8 anos meus pais se divorciaram, motivo pelo qual basicamente fui criado pela minha mãe, uma trabalhadora incansável. Pouco tempo depois disso, ela encontrou um emprego como gerente na principal rede de supermercados da cidade; era um trabalho duríssimo que incluía sábados, domingos e feriados e no qual ela permaneceu por uns 20 anos, porém que nos permitiu ter a melhor comida em casa. Quer dizer, levando em conta que sempre vivemos em uma casa alugada de madeira e cimento e que o quarto que dividia com meu irmão nem sequer tinha uma porta, meus pais me deram o melhor que podiam: saúde e educação.

Minha formação é enraizada na Teologia da Libertação e na Doutrina Social da Igreja Católica. Eu estudava na Universidade Católica de Santiago de Guayaquil, onde eu fui um militante em um grupo de esquerda no Departamento de Economia. Nós fomos o primeiro movimento de esquerda a ganhar a presidência da federação estudantil daquela Universidade, que era uma das mais conservadoras do país.  Isso foi em um período muito duro, sob a administração de Febres Cordero, um governo bem repressivo de direita [1]. Então eu fiz um ano de serviço voluntário em Zumbahua, uma região indígena em uma altitude de 3.600 metros, antes de ganhar uma bolsa para estudar na Europa. Em Louvain, eu também tomei parte na política estudantil, mas então eu me casei e fui aos Estados Unidos para estudar para um doutorado. Apesar de eu ter mantido minhas convicções de esquerda, eu não estava politicamente ativo. Algumas pessoas que se consideram da esquerda radical dizem que eu não sou da esquerda porque eu não estava ativo ao lado deles, mas isso é arrogância. Existem muitos espaços na esquerda nos quais se pode obter formação e agir, e a Teologia da Libertação e a Doutrina Social da Igreja são alguns desses espaços.  

E: O Equador passou por uma crise econômica em 1999-2000, a qual foi seguida por um período de turbulência política – os Presidentes Mahuad e Gutiérrez foram escorraçados dos cargos em 2000 e 2005, com figuras não eleitas ocupando o poder no meio tempo. Como você se juntou ao governo do sucessor de Gutiérrez em 2005?

RC: De vez em quando, voluntariamente, eu aconselhava Alfredo Palacio, quando ele era Vice-Presidente da República [2]. Eu nunca tinha me encontrado com Palacio, mas tinha mantido contato com ele através de um amigo mútuo, Rubén Barberán, que eu conhecia de nosso tempo como ativistas estudantis de esquerda [3]. Eu escrevi alguns artigos para o Vice-Presidente sobre a dolarização e sobre os fundos de petróleo, que foram bem recebidos. Quando Gutiérrez caiu e Palacio assumiu a presidência, ele nomeou-me Ministro da Economia e das Finanças.

E: O que o levou a se candidatar à presidência em 2006?

RC: Em meu curto tempo como Ministro das Finanças – cerca de cem dias – nós demonstramos que não é necessário fazer o de sempre: submissão ao FMI e ao Banco Mundial, pagando a dívida externa sem atentar a débitos sociais ainda pendentes. Isso criou um alto nível de expectativas por parte do público. Quando eu saí da pasta ministerial, houve protestos e manifestações – provavelmente os primeiros no país em apoio a um Ministro das Finanças! Eu inicialmente planejava voltar a ensinar na Universidade de São Francisco de Quito, mas fui dispensado bem antes do serviço começar porque, assim disse a hierarquia, eu era um político. Nesse ponto Ricardo Patiño e um grupo de colaboradores me disseram que nós não podíamos deixar as expectativas que tinham sido criadas, o sentimento que as coisas podiam ser feitas diferentemente, acabarem em mais um desapontamento [4]. Nós viajamos pelo país e formamos um movimento político para assegurar a presidência. Pois nós vimos claramente que para mudar o Equador, nós tínhamos de obter o poder político.

E: Por que você começou a chamar esse processo de Revolução Cidadã?

RC: Durante a campanha nós estávamos claramente conscientes de que o que estávamos propondo era uma revolução e uma mudança rápida nas estruturas existentes da sociedade equatoriana, para transformar o Estado burguês em um Estado verdadeiramente popular. Encarando a deslegitimazação da classe política, a qual não mais representava ninguém além de si mesma, dissemos a nós mesmos que éramos nós, enquanto cidadãos, que tínhamos de desvelar as inadequações. Nós decidimos, então, chamar esse processo de uma revolução dos cidadãos, uma revolta de cidadãos indignados. Nossa revolução antecipou em cinco ou seis anos o movimento dos indignados que está ocorrendo na Europa. Essa revolução também é profundamente bolivariana, sobretudo no que diz respeito à integração regional. E nós também nos inspiramos na revolução liberal de Eloy Alfaro, a única revolução real que ocorreu nesse país. Por isso Alfaro foi assassinado em 1912, de forma bárbara, porque realmente estava mudando as estruturas do país naquele tempo [5].

E: Você assumiu o cargo no início de 2007. Nesse mesmo ano, mais tarde, a economia mundial foi abalada pelo colapso de crédito que desembocou na crise financeira de 2008. Qual foi o impacto dessa crise no Equador e como seu governo procurou confrontá-la? 

RC: Nós fomos triplamente golpeados pela crise. Além das consequências comuns de uma crise – perda de mercados de exportação, diminuição do financiamento, etc. – houve um colapso nas remessas de imigrantes, que desde a crise de 1999 até a nossa ascensão ao poder eram o que sustentava o país. Também o preço do petróleo, um produto essencial da nossa economia, caiu. A despeito disso, em 2009, enquanto a economia da América Latina se contraiu 2%, nosso crescimento foi pequeno, menos de 1%, mas positivo. Modéstia aparte, isso foi ainda mais espantoso considerando que a economia foi dolarizada desde 2000, privando-nos de um instrumento central à política econômica. Como isso foi atingido? Através de uma combinação de conhecimento técnico e uma visão de bem comum – agindo em prol dos nossos cidadãos, e não do capital financeiro. Por exemplo, nós costumávamos ter um banco central autônomo, que é uma das grandes armadilhas do neoliberalismo, de forma que, qualquer que seja o governo no poder, as coisas continuem como são. Graças à Constituição de 2008, o banco central não é mais autônomo. Nós tiramos vantagem dos poucos benefícios que um sistema rígido e dolarizado oferece, como não precisar de reservas para lastrear uma moeda nacional. Quando o banco central era autônomo, ele tinha milhões de dólares nas reservas nacionais – sendo que o principal contribuinte era a previdência social – que seriam enviados para o além-mar, para a Flórida. Depois que a autonomia do banco foi posta sob controle democrático nós pudemos trazer essas reservas de volta ao país e usá-las para dinamizar a economia. No caso dos bancos privados enviarem dólares para o além-mar, nós impusemos um coeficiente de liquidez doméstico, obrigando-os a trazer o dinheiro de volta. Nós obtivemos um novo financiamento da China. Isso tudo significou que pudemos tomar medidas anti-cíclicas para mitigar os efeitos da crise. Não apenas não reduzimos o investimento público, nós o aumentamos. A mistura de medidas significou que nós pudemos crescer em 2009; de acordo com o CEPAL, o Equador foi um dos países que se recuperou mais rapidamente da crise, e no ano passado estava entre as economias de crescimento mais rápido na América Latina. 

E: Quais foram as vantagens e as desvantagens da dolarização instituída pelo Presidente Mahuad em Janeiro de 2000?

RC: A dolarização significou o suicídio monetário para o Equador – e não, tal como na Europa, para adotar uma moeda transnacional comum; aqui foi uma moeda externa que foi adotada. Conseqüentemente, nosso destino depende em larga medida da coincidência da política monetária dos Estados Unidos com as nossas necessidades. Nossa grande sorte nos anos recentes foi que, de modo geral, isso ocorreu. O enfraquecimento do dólar foi benéfico a nós, ao passo que países que não adotaram o dólar como sua moeda estão enfretando problemas: perda de competitividade nas exportações, apreciação real. Mas é necessário distinguir entre boa sorte e boas políticas. A  dolarização foi uma medida totalmente equivocada. Dentro desse erro, nós tivemos alguma sorte.

E: Em 2008, você montou uma comissão para renegociar a dívida pública do Equador, que pelo início do seu mandato tinha atingido cerca de 10,3 bilhões de dólares, cerca de um quarto do PIB. Qual era o pensamento por trás disso e qual foi seu efeito? 

RC: O custo da dívida externa era um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento do Equador. Em certo momento, pagar a dívida consumia 40% do orçamento, três vezes o que era gasto na esfera social – educação, saúde e essas coisas. A alocação de recursos demonstrava quem estava no comando da economia: banqueiros, credores, instituições financeiras internacionais. Nós organizamos a criação da Comisión para la Auditoría Integral del Crédito Público (CAIC); essa foi a primeira vez que uma instituição dessas foi criada na América Latina a partir da iniciativa de um governo, e não da sociedade civil. A Comissão provou além de qualquer dúvida o que já sabíamos: a dívida externa era imoral, um roubo. Por exemplo, os Fundos Globais de 2012 e 2030 foram vendidos no mercado secundário por 30% do seu valor, mas nós tivemos de pagá-los por 100% do valor. Se descobriram coisas atrozes nos documentos que tinham sido assinados pelos supostos advogados do país. Quando a Comissão olhou os contratos, ela também achou muita corrupção e conflitos de interesse. Dessa forma, em Dezembro de 2008 a CAIC decidiu que esse débito era imoral, e nós declaramos uma moratória unilateral sobre esses fundos. Isso aconteceu em um momento no qual nós estávamos em uma posição econômica forte – os preços do petróleo estavam altos, as exportações estavam crescendo – algo que foi premeditado. Isso significava que o valor do débito caiu, e nós forçamos nossos credores a negociar e vender seus fundos em uma audição holandesa. Nós conseguimos comprar de volta nosso débito por 32% ou 33% de seu valor, o que significava bilhões de dólares de economias para o povo do Equador, tanto em capital quanto em pagamento de juros. Isso liberou muitos recursos que nós pudemos então dedicar à esfera social; agora, a situação é a reversa da anterior – nós gastamos três vezes mais em educação, saúde, habitação que em questões de débito.

E: Os processos constitucionais populares foram um traço comum dos governos reformistas bolivarianos de esquerda da América Latina ao longo da década passada. Que forma adquiriu esse processo no Equador e que problemas sociais e políticos a Assembléia Constituinte de 2008 quis solucionar?

RC: A convocatória da Assembléia Constituinte foi nossa resposta ao grito de "Vão todos embora!" da insurreição popular - a "foragida" - que derrotou o governo de Lucio Gutiérrez em 2005. Quisemos concretizá-la de forma radical, porém democrática e constitucional. Os atores e partidos que nos tinham governado desde 1979 careciam de legitimidade democrática. Pretendíamos fixar as bases de um novo pacto de convivência que permitisse ao país sair do neoliberalismo, recuperar a soberania nacional sobre os recursos estratégicos e relançar o Estado ao primeiro plano da coordenação social. A convocatória de uma Assembléia Constituinte permitiu que as pessoas rapidamente confiassem em nós, apesar de não termos um partido organizado, e também recuperar o valor da palavra como parte substantiva da vida política de um país. Por isso obtivemos o apoio de 80% dos cidadãos no referendo que permitiu criar a Assembléia Constituinte. Essa foi a primeira grande derrota da direita e das forças reacionárias do país.

Uma vez instalada a Assembléia, o desafio era imenso. Se tratava de delinear as bases constitucionais em que repousaria nossa ação de governo e a ação do Estado e da sociedade durante as próximas décadas. Não fomos irresponsáveis ao ponto de pensar que essa Constituição só serviria ao nosso governo. Se tratou de um pacto intergeracional para forjar o Equador do presente e do futuro. O processo constituinte foi, nesse sentido, a batalha política mais transcendental que lutamos nesses cinco anos de governo. Desde essa perspectiva, eu valorizo, fundamentalmente, duas questões: a Constituição quem fez foram os equatorianos pensando a partir do Equador e para os cidadãos que aqui residem. Nos inspiramos em diversos ideais democráticos e experiências populares presentes no cenário global, porém o texto é uma resposta nacional a nossos problemas e utopias concretos. Nesse momento, fomos altamente inovadores e criativos nas nossas propostas delineadas no horizonte da constituinte. Idéias como os "direitos naturais", "a cidadania universal", o Equador como um "território livre de bases militares estrangeiras", entre outras, são idéias forjadas no calor dos debates entre os presentes em nossas assembléias e na sociedade. Talvez tenhamos sido ingênuos ou excessivamente idealistas em algumas questões, porém é isso que acontece em todo processo constituinte, o produzir um horizonte de aspirações que permita nos imaginar como país nos marcos de um projeto coletivo que nos torna coesos e nos traça um caminho.

O procedimento constitucional foi, pois, uma deliberação coletiva que logrou produzir um pacto de convivência forjada a partir de nossa experiência política específica, relacionado com nossos problemas enquanto nação e sob o reconhecimento de uma série de novos direitos, garantias e instituições que, nos marcos dos grandes princípios da revolução democrática moderna, supõe uma resposta política endógena, auto-determinada e imaginativa ao projeto de uma nação soberana, inserida no planeta e na região Sul do globo. Quiçá, o exemplo mais preciso de tudo isso é o que a Carta Magna denomina "morte cruzada": uma instituição própria de regimes parlamentaristas (a despeito de o nosso sistema político ser presidencialista), que permite, que em caso de conflitos entre os dois principais poderes do Estado (o Executivo e o Legislativo), um deles possa socilitar a cessação de funções do outro tendo como consequência a convocação imediata de eleições gerais para ambos poderes do Estado. Se trata de um arranjo que permite uma saída institucional às recorrentes crises políticas do país. Não devemos esquecer que entre 1996 e 2005 nenhum presidente logrou terminar o período de serviço para o qual foi eleito, e três deles foram derrubados em meio a grandes mobilizações sociais. Foi no calor do debate constitucional de 2007-2008 que pudemos encontrar esses tipos de arranjos institucionais "próprios" que, entre muitos outros, nos permitem sustentar a afirmação de que estamos em um processo democrático, entendido aqui como a capacidade dos povos para desenhar as instituições que lhes permitem o auto-governar.

Pudemos então avançar na reconstrução do Estado, depois do arrastão neoliberal que tinha feito em pedaços suas capacidades de ação pública. Esse Estado não é igual ao que se construiu nas décadas passadas: se trata de um Estado descentralizado, desconcentrado e aberto à participação popular, porém é um Estado forte com capacidade de governar e regular o mercado a serviço do bem comum. A partir daí é possível avançar para o que a Constituição denomina como "a construção de um sistema econômico justo, democrático, produtivo, solidário e sustentável baseado em uma distribuição justa dos benefícios do desenvolvimento, dos meios de produção e na geração de trabalho digno e estável". Conseguimos bloquear a privatização dos recursos naturais não renováveis do país; impulsionamos a idéia do bem viver acima da valorização de receitas tradicionais de crescimento e de desenvolvimento; aprofundamos a estrutura de direitos sociais e a possibilidade de participação social; delineamos o horizonte do direito universal à segurança social, sobretudo às pessoas ocupadas com o trabalho doméstico não remunerado; caminhamos ao reconhecimento da plurinacionalidade do Estado e das organizações, povos e nacionalidades como sujeitos de direito; introduzimos um amplo empoderamento dos migrantes internos; a gratuidade da educação superior; a primazia do poder civil sobre o ator militar; e o aprofundamento do sufrágio universal. A lista é vasta. Talvez tenha lembrado só alguns elementos.

A Constituição nos traça um horizonte, porém não resolve os problemas do país de modo automático. É um ponto de partida e não de chegada, como acredita certa esquerda dogmática que pensa que toda a receita de mudança e da felicidade estão contidas nas páginas do texto e que basta só aplicar o escrito. Não é assim. A verdadeira luta política começou a partir da aprovação do texto constitucional, em meio a um processo de transição institucional que pressupunha aprovar uma série de leis para dar forma material aos princípios constitucionais. A política não desaparece nem se resume a um texto constitucional. Não por acaso, a transição pós-constituinte tem sido mais tensa e conflitiva que o próprio processo constituinte. Não nos esqueçamos que, para aprovar uma lei prevista pela Constituição - a Lei de Serviço Público -, as forças mais retardatárias do países se mobilizaram contra o governo violentamente e colocaram em sobressalto a democracia. Isso foi o que aconteceu no dia 30 de Setembro de 2010. Sem uma mudança constitucional no marco de um processo constituinte, teria sido muito mais difícil avançar, porém o caminho da transformação é ainda maior e dependerá se teremos a possibilidade de seguir disputando a mudança de poder no país.

E: Quais políticas seu governo implementou para conseguir reduzir a desigualdade?

RC: A América Latina possui o título desonroso da região mais desigual do mundo, e os países andinos são a parte mais desigual dessa região. Esse é o porquê foi uma loucura aplicar o sistema neoliberal em países como o Equador nas décadas recentes, um sistema supostamente baseado na competitividade e na liberação do mercado. De que tipo de competição eles estavam falando? Foi um massacre. Agora nós estamos reduzindo a desigualdade, e com ela a pobreza também, através da combinação de quatro coisas. Em primeiro lugar, através de impostos maiores sobre os ricos. Nós instituímos um sistema de taxação muito mais progressivo, e agora as pessoas pagam realmente seus impostos – a arrecadação dobrou. Esses recursos, somados às receitas do petróleo e ao dinheiro poupado pela redução do peso da dívida, podem ser voltados à educação, à saúde e tudo mais. Esse é o segundo ponto: fornecer igualdade de oportunidades. As pessoas não mais precisam pagar pelo sistema de saúde ou pela educação, coisas que eram bem caras para os pobres – a matrícula escolar custava 25 dólares, mas agora é totalmente livre; algumas crianças recebem livros e uniformes também. 

Em terceiro lugar, escolhemos governar os mercados e melhorar o sistema trabalhista. O mercado é uma realidade que não podemos evitar; mas acreditar que o mercado deve designar e distribuir tudo é outra coisa. O mercado precisa ser governado pela ação coletiva. Estamos acabando com formas de exploração como a terceirização,  que tinha como pressuposto, através do uso da externalização, a generalização de práticas como o calote de salários mínimos, a não filiação ao seguro social e a imposição de jornadas de trabalho extenuantes. Estamos melhorando os salários reais – conseguimos colocar um fim ao abismo entre as rendas familiares e o custo da cesta básica. Entre 60% e 65% das famílias conseguiam pagar pela cesta básica no início do nosso mandato; agora, são 93%, o ponto mais alto na história do país. Nós inclusive demonstramos a falha da teoria econômica ortodoxa, que diz que para se gerar empregos é necessário baixar o salário real: aqui o salário real aumentou substancialmente, e nós temos uma das taxas de desemprego mais baixas da região – pouco menos de 5%. Nós também demos atenção à qualidade do emprego, garantindo que os negócios se adequassem às leis trabalhistas. Enquanto aumentamos os salários reais, abaixamos a remuneração ao capital. Nesse país, se alguém propusesse aumentar o salário de mínimo em alguns dólares era chamado de demagogo, mas ninguém estava surpreso com taxas de juros entre 24% e 45%. Nós reduzimos drasticamente as taxas para 8% e 9%, para o setor corporativo.

Em quarto lugar, nós distribuímos adequadamente nosso patrimônio social. Nós costumávamos dar de presente nosso óleo: antes do governo de Palacio, as companhias transnacionais ficavam com 85 de cada 100 barris, deixando-nos 15; agora nós renegociamos os termos dos contratos e as proporções foram revertidas. Outro exemplo: depois da crise econômica de 1999-2000, muitas empresas que eram usadas como garantia para empréstimos para particulares deveriam ter ido para as mãos do Estado; fomos nós que executamos essa cobrança e tomamos essas empresas para o Estado. No caso do Grupo Isaías, que era de propriedade da família de mesmo nome, recuperamos cerca de 200 empresas. Outros governos as privatizariam novamente, de forma que elas acabassem voltando às mesmas mãos de sempre. Nós usamos o sistema público de bancos para fornecer meios para que os próprios trabalhadores pudessem comprar partes dessas empresas, ou mesmo empresas inteiras.

E: Você mencionou um aumento na arrecadação de impostos – como isso foi conquistado?

RC: Através da combinação de credibilidade, controles e incentivos. Em Guayaquil nós temos um ditado que diz: “O macaco sabe em qual árvore subir”. No Equador, homens de negócios e banqueiros costumavam saber que, se eles não pagassem seus impostos, tinham amigos no governo que garantiam que não acontecesse nada. Quando se tornou claro que tinha chegado um governo em que eles não podiam mandar e desmandar, eles começaram a pagar seus impostos. Em segundo lugar, nós melhoramos fortemente os controles e, em termos de recursos humanos, o Serviço de Rendas Internas. Em terceiro lugar, incentivos: por exemplos, matamos dois coelhos com uma cajadada ao permitir às famílias deduções de impostos ao gastar em habitação, educação e saúde. Antes, um homem com seis crianças ganhando 20 mil dólares ao ano pagava o mesmo que um solteirão ganhando o mesmo valor; agora o sistema é mais justo. Ao mesmo tempo, para receber tais deduções todo mundo agora pede faturas para justificá-las, o que nos permitiu melhorar a coleta de impostos de profissionais liberais - médicos, advogados - e de contratos de aluguel, entre outras coisas. Outro exemplo vem do setor bananeiro: os produtores vendiam o equivalente a 600 milhões de dólares e pagavam 1 milhão em impostos, o que era ridículo. Nós então implementamos uma nova forma de calcular qual a taxa adequada, optando que a pagassem previamente; se qualquer um quisesse questioná-la - o que seria embaraçoso, já que significaria que ele basicamente estava perdendo dinheiro vendendo bananas -, se tornaria imediatamente objeto de uma auditoria.  Também houve muitas outras reformas que permitiram-nos coletar mais impostos. 

E: No que diz respeito a problemas de desenvolvimento, como você propõe equilibrar a exploração dos bens naturais do Equador com a preservação de sua incrível diversidade ecológica?

RC: É uma loucura dizer não aos recursos naturais, que é o que parte da esquerda está propondo - não ao petróleo, não à mineração, não ao gás, não à energia hidrelétrica, não às estradas. Essa é uma esquerda infantil, que só faz legitimar a direita. Na tradição socialista clássica, eu não sei onde Marx, Engels, Lenin, Mao, Ho Chi Minh ou Castro disseram não à mineração ou aos recursos naturais. Isso é uma novidade absurda, mas é como se ela tivesse se tornado uma parte fundamental do discurso da esquerda. E é ainda mais perigoso quando quem propõe tais coisas são pessoas que, supostamente, falam a mesma linguagem que você. Com tantas restrições, a esquerda não será capaz de oferecer qualquer projeto político viável.

Nós não podemos perder de vista o fato de que o principal objetivo de um país como o Equador é eliminar a pobreza. E para isso nós precisamos dos recursos naturais. Existem pessoas aqui que parecem mais dispostas a criar mais pobreza, desde que se deixe esses recursos no chão, ou que até enxergam a pobreza como algo folclórico - como se crianças nos altiplanos centrais devessem continuar morrendo de gastroenterite e a expectativa de vida devesse continuar em 35 anos. Isso é criminoso. Ademais, se você olhar para os países capitalistas que superaram a pobreza satisfatoriamente através do desenvolvimento - Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura -, todos eles impuseram altas doses de exploração do trabalho por um longo período, para conseguir acumular o talento humano, a ciência e a tecnologia necessários para impulsionar o desenvolvimento. Graças aos seus recursos naturais, a América Latina não precisa passar por esse tipo de exploração. Por exemplo, o Equador acabou de subir 16 lugares no ranking de competitividade do Fórum Econômico Mundial.  Eu não acredito muito nesses rankings, eles são uma mistura de ideologia e questões técnicas - desregulação de mercados, flexibilização do trabalho, etc. Mas nós subimos, principalmente por causa das melhorias em comunicações e infraestrutura. Tais melhoras foram possíveis graças aos nossos recursos naturais.  Países sem tais recursos podem ter tido de recorrer à exploração da força de trabalho. Isso é inaceitável. Nós nunca vamos permitir isso, e nós não temos de fazê-lo. O que nós precisamos fazer é explorar tais recursos do modo certo.

E: Mas houve vários desastres com petróleo e mineração.

RC: Claro, isso é verdade. Mas uma coisa é dizer que houve maus cantores, outra coisa é querer abolir uma canção. Aí está um outro argumento falacioso de partes da esquerda - qual seja, o de que porque as coisas foram feitas de forma ruim no passado, eles seguirão sendo feitas assim. Tudo pode ser uma maldição - o turismo sexual na Ásia, o jogo em Las Vegas, a agricultura que usa muitos agrotóxicos ou que importa plantas que prejudicam a flora nativa - mas existem boas formas de turismo e de agricultura. O petróleo causou muito dano, e a mineração praticamente destruiu países inteiros, mas as coisas não precisam ser dessa forma. O primeiro projeto de extração petrolífera completado pelo meu governo em Pañacocha, na Amazônia, incluiu diversas alternativas para o desenvolvimento limpo. Se nós explorarmos os recursos naturais cuidadosamente, podemos até ajudar o ambiente, de duas formas. Primeiro, se a riqueza prejudica o ambiente através do consumo de energia, a pobreza também o faz: eu não posso dizer a uma família pobre vivendo próxima a uma floresta que não corte suas árvores. Se nós reduzirmos a pobreza, preservamos o ambiente. Em segundo lugar, há uma série de confusões: a de que o petróleo destrói a floresta, por exemplo. O que causa mais dano à floresta? A expansão da fronteira agrícola. Para evitar isso, precisamos criar fontes alternativas de emprego e renda. Outra confusão é a idéia de que a mineração contamina reservas de água. Não é verdade: a principal fonte de poluição hídrica é o esgoto. O esgoto de Quito, por exemplo, ainda é jogado no Rio Machángara, agora totalmente contaminado. Para mudar essa situação nós precisamos de milhões de dólares. Nós podemos obter tais recursos da mineração. É isso que quero dizer com a idéia de que a exploração adequada dos recursos naturais pode ajudar a conservar a natureza ao invés de destruí-la. 

E: Em Dezembro de 2007, seu governo lançou a Iniciativa Yasuní-ITT, na qual depósitos de petróleo sob o Parque Nacional Yasuní na Amazônia deviam permanecer intocados, em troca de compensações. Você poderia explicar o pensamento por trás disso?

RC: As maiores reservas comprovadas de petróleo no país estão em Yasuní-ITT - aproximadamente 900 milhões de barris. Isso teria um valor de cerca de 14 bilhões, dinheiro necessário ao país para escapar da pobreza. Nós estamos dispostos a abrir mão disso, para continuar a gerar um bem ambiental público global. Mas nós precisamos ser compensados por isso. Não pedimos os 14 bilhões integrais, mas apenas uma porção disso. Como calculamos tal porção? Se o petróleo fosse extraído, isso significaria a emissão de mais de 400 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera. Então nós devemos ser pagos pelo valor desses 400 milhões de toneladas no mercado de carbono. Isso está de acordo com o que foi chamado de emissões "liquídas" evitadas. Kyoto tem uma lista de compra de coisas que devem ser compensadas - como desmatamentos, para o qual existe o programa UN-REDD - e eles continuam adicionando mais itens, mas que ainda não chegou a um conceito integrador sobre tais emissões, que é o que se deve compensar.

E: Uma ação coordenada internacionalmente sobre a mudança climática parece menos provável hoje do que há dez ou vinte anos atrás. Você vê alguma forma de reviver esse movimento?

RC: No final das contas, o problema é político. Quando ocorre uma crise, se deve agir no interesse de seres humanos ou do capital? Olhe a Espanha: existe dinheiro para salvar os bancos mas não as casas das famílias. Em um nível global, bens ambientais são gerados pelo Terceiro Mundo e consumidos de graça pelo Primeiro. Imagine por um momento que a situação fosse a inversa - que fossemos nós que poluíssemos o mundo e que a Amazônia estivesse nos EUA e na Europa. Eles nos invadiriam para reivindicar compensações, em nome da justiça, dos princípios da civilização, da lei internacional. Mas eles são os fortes, no caso, com exércitos, mísseis e tudo mais. Por que eles deveriam nos compensar? Enquanto as relações de poder não mudarem, haverá muita retórica e poucas ações. Alguns entusiastas dizem que com o que está acontecendo na América Latina, essas relações de poder serão mudadas a partir do Sul. Eu acho que isso é um erro: estamos muito distantes da capacidade de afetar as relações de poder globais. São os cidadãos do Norte que irão mudá-las. Esse é o motivo pelo qual houve tanta esperança levantada pelo movimento dos indignados e de Occupy Wall Street, os quais foram um despertar dos cidadãos do Primeiro mundo. Mas só após esses cidadãos terem se rebelado contra as estruturas prevalecentes nós sairemos da retórica e iremos à ação, para que compromissos reais possam ser feitos para evitar mudanças climáticas e preservar o único planeta que temos.

E: Qual tem sido seu raciocínio por trás de suas políticas para as universidades e o que pretendem conseguir com elas?

RC: Para poder responder com algum sentido a essa pergunta é indispensável contextualizá-la. O Equador viveu uma crise tripla, produto da ausência da gestão de um conhecimento emancipador por parte de suas elites econômicas e intelectuais: uma crise de seu modo de acumulação e redistribuição, crise da qualidade de sua democracia e crise de sustentabilidade ambiental. Poderíamos sublinhar que o que se viveu é resultado de um fracasso cognitivo. Isso é, o problema se localiza no sistema que gera e questiona o conhecimento e em sua falta de conexão com as necessidades do país. Por isso, um dos eixos programáticos nodais do governo é a transformação da educação superior, da ciência e da tecnologia.

Temos clara consciência de que o padrão de especialização da economia equatoriana tem limites estruturais. Assim, por mais bonança que experimentem os preços das commodities, nosso modelo primário exportador não nos garante nem independência nem soberania econômica no médio e longo prazo. Os países emergentes que têm tido êxito na superação da pobreza e da desigualdade cedo ou tarde apostaram em uma inversão que pretendia desenvolver bens e serviços com alto valor em conhecimento agregado.

Nós, os países do Sul, vivemos uma nova dependência frente ao conhecimento do Norte. A esquerda tem que compreender que a soberania de um país também depende de uma geração de conhecimento que esteja ligada à resolução dos problemas que o afligem e ao cumprimento de suas utopias. E está é a razão pela qual estabelecemos uma agenda ambiciosa, mas profundamente pertinente no que diz respeito ao que se requer da educação superior, a ciência, a tecnologia e a inovação no país. 

Existem duas dimensões nas nossas políticas para o ensino superior. Uma é social. Costumava-se dizer que a educação aqui era gratuita, mas ela não era de fato: universidades públicas cobravam mensalidades, o que significava que 1 bilhão em gastos públicos na educação pública - um investimento pesado para um país como o Equador - ia para os mais ricos. A Constituição de 2008 declarou que o ensino superior deveria ser completamente gratuito. Os resultados foram extraordinários - por exemplo, as taxas de inscrição de indígenas e afro-equatorenhos aumentaram exponencialmente, e 15 mil dos 104 mil estudantes ingressantes na universidade esse ano vinham de lares que recebiam o Bonus de  Desenvolvimento Humano, uma transferência governamental a famílias de baixa renda [6]. Nós não criamos o Bonus, nós o melhoramos tecnicamente; e eu estou convencido que transferências monetárias, apesar de certamente ajudarem, não vão acabar com a pobreza. Oportunidades acabarão com a pobreza, e o fato de que pessoas agora podem ir à universidade, que a educação está sendo democratizada, significa uma grande chance em termos de oportunidades. A segunda dimensão é a qualidade. Um dos erros da esquerda é confundir democracia com mediocridade - a idéia de que todo mundo deveria poder ir à universidade e que o Estado deveria pagar pelo que quer que eles escolham fazer. Por exemplo, nós costumávamos ter 49 faculdades de Direito, as quais nunca conseguiam se coordernar, gerando mais de 60 mil advogados para um país como o Equador. E, ainda assim, queriam que nós continuássemos subsidiando mais faculdades de Direito. Graças à credibilidade e ao apoio popular que temos, nós dissemos não: nós devemos financiar a educação de acordo com as necessidades do país. Esses jovens não estão sentados lá para usar os impostos da sociedade, eles devem ser preparados para transformá-la.

Durante o Outubro de 2010 nós adotamos uma nova Lei Orgânica sobre a Educação Superior, que introduziu exames de admissão nacionais. Eles foram pensados para testar as aptidões ao invés do conhecimento, para que estudantes pobres oriundos de más instituições tivessem a mesma chance de passar que os ricos. A Lei também introduziu avaliações da qualidade das universidades. Durante a primeira avaliação, 26 universidades avaliadas foram colocadas na categoria E, a mais baixa da escala. Isso significava que elas não eram universidades, nem de longe - aqui, uma garagem com uma lousa costumava ser chamada de universidade, era uma fraude perpetrada contra a sociedade. Essas 26 receberam um ano para melhorar, e quando a avaliação foi feita pela segunda vez, 14 foram reprovadas. Essas 14 foram fechadas - um evento sem precedentes na história da América Latina e talvez do mundo, especialmente quando se percebe que o fizemos com todas as garantias que concede nosso sistema democrático.

O fortalecimento do sistema de educação superior tem que vir de mãos dadas com a geração das condições que permitam a edificação do sistema nacional de inovação social e deve cobrir aqueles vácuos que atualmente o sistema universitário equatoriano possui. Por essa razão, o governo propôs na Lei Orgânica de Educação Superior de 2010, a criação de quatro novas universidades de nível mundial que permitam consolidar a sociedade de conhecimento em nosso país.

A Universidade de Yachay (cujo significado é "Aprende! Conhece!" em língua quéchua) é a primeira cidade universitária de conhecimento planejada [7] tanto na região quanto no país, e seu objetivo é produzir economias de escala para potencializar a inteligência coletiva do sistema inovação do país em articulação com as redes mundiais do conhecimento. Nesse espaço, além da universidade, se localizarão os institutos públicos de pesquisa, os centros de transferência tecnológica e as unidades de pesquisa e desenvolvimento das empresas privadas. Yachay pretende se converter em um hub do conhecimento que construirá redes com o sistema universitário nacional e internacional, mas articulando seu modelo de inovação com o aparato produtivo e com as necessidades regionais e do país. A cisão do sistema de educação superior e do sistema de inovação conduziria a um rotundo fracasso da aposta programática da construção da sociedade do conhecimento e da criatividade. A Cidade do Conhecimento Yachay será o espaço nacional no qual se coordenará a interação desses dois sistemas.

Equador, por ser um país muito diverso, conta com uma vantagem comparativa primordial, que é a informação contida nessa biodiversidade. A Universidade de Ikiam (que significa "natureza" na língua shuar) é a universidade regional amazônica, cujo objetivo é consolidar um centro universitário de prestígio mundial em um dos laboratórios vivos mais importantes com que conta nesse momento a humanidade. Nos referimos aqui à biodiversidade presente na Amazônia.

A Universidade Nacional de Educação (UNAE) constitui uma das principais necessidade do sistema educativo nacional. Um dos maiores erros das reformas educacionais na História do Equador foi a miopia frente à integralidade do sistema. Usualmente se aponta que o problema educativo do país está nas escolas e nos colégios. Todavia, no sistema de educação formal o centro da transformação recai sobre o docente, o qual se forma, por sua vez, no sistema nacional de educação superior. Os institutos técnicos e tecnológicos pedagógicos, assim como a maioria das faculdades do sistema universitário, ou não cobrem a demanda ou possuem graves problemas de qualidade.

Finalmente, a Universidade das Artes (UniArtes) pretende consolidar um sistema nacional de cultura e arte que, dando guarida às expressões culturais e artísticas que existem na sociedade, permita aumentar a criatividade média da população e democratizar o intercâmbio cultural e artístico em todos os rincões do país para construir o Estado intercultural e plurinacional em elaboração. Em escala mundial, a trágica construção de um sistema fordista de produção em série resultou na separação entre ciência e arte. A democracia e o sistema social, educacional e produtivo do Equador têm como objetivo a construção de uma sociedade do aprendizado, do conhecimento e da inovação social, cuja materialização deverá rearticular socialmente aquela interrelação, que jamais deveria ter sido quebrada, entre ciência e arte.  

Sustentamos que no Equador a qualidade da democracia, a transformação do aparato produtivo e a sustentabilidade ambiental dependem da construção do sistema nacional de inovação e da transformação do sistema nacional de educação superior. Me atreveria a dizer que a emancipação dos povos se enraiza na emancipação social do pensamento e do conhecimento. Essa é nossa estratégia programática.

E: Os movimentos indígenas equatorianos fizeram importantes contribuições à Revolução Cidadã, porém alguns, como o CONAIE, se mostram muito críticos de seu governo. Quais são as principais diferenças entre vocês e em que se pensou para solucionar essas desavenças?

RC: Deve-se entender a relação de nosso governo com o movimento indígena a partir de três momentos. O primeiro se localiza na campanha eleitoral de 2006, quando nossa Aliança País fez diversas aproximações entre si e a dirigência indígena do movimento Pachacuti para nos apresentarmos juntos nas eleições [8]. Fizemos isso apesar de saber que o movimento indígena estava desprestigiado após a sua participação no governo de Lucio Gutiérrez, um coronel que chegou ao poder em aliança com a esquerda e que traiu todos os princípios nos quais se baseava essa aliança: se proclamou o melhor amigo de Bush, seguiu apoiando o Plano Colômbia, quis assinar o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, nomeou um banqueiro como Ministro da Economia e seguiu uma linha neoliberal na economia nacional. O movimento Pachacuti participou com quatro ministros no gabinete de Gutiérrez e, apesar de ter se retirado da aliança sete meses depois, vários de seus dirigentes permaneceram em diversos cargos até o último dia desse governo. Depois dessa experiência, o Pachacuti passou a ser visto como mais um partido do establishment.

Apesar disso, como respeitamos a trajetória do movimento indígena, decidimos propor ao Pachacuti sair juntos, Aliança País e Pachacuti, na lista presidencial, a qual seria encabeçada pelo candidato que tivesse mais possibilidades de levar ao triunfo eleitoral (o qual definiríamos com a ajuda de uma pesquisa nacional), enquanto o outro ocuparia a vice-presidência. Eles não aceitaram, e alguns setores se mostraram muito hostis conosco depois dessa aproximação. Alguns dizem que a dirigência indígena, após sua passagem pelo governo de Gutiérrez, não estava disposta a aceitar um candidato externo ao movimento; pode ser que fosse isso, mas eu acredito que a dirigência estava se distanciando das bases e sabia que aceitar uma colaboração conosco pressupunha abrir a agenda política. Não aceitaram nossa proposta, e aí decidimos que a chapa seria com Lenín Moreno [9]. Foi uma decisão que, vista cinco anos depois, parece muito atinada, porque o Vice-Presidente foi o segundo mandatário de todos os equatorianos e não só de um setor da população. Seu trabalho em favor dos inválidos foi excelente e agora é uma figura muito querida em todo o país. Em 2006, nós passamos ao segundo turno com o bananeiro multimilionário Álvaro Noba com quase 23% dos votos, e Pachacuti obteve nessas mesmas eleições só 2% dos votos. O povo já não os via como uma força capaz de disputar a mudança.

E: E o segundo momento?

RC: O segundo momento foi em 2007-2008, na Assembléia Nacional Constituinte. A Aliança País obteve 80 dos 130 assentos da Assembléia, uma ampla maioria por si só. Todavia, debatemos cada um dos pontos da agenda indígena, apesar do Pachacuti ter muito poucos delegados na Assembléia. Como parte desse debate, declaramos o caráter plurinacional e intercultural do Estado equatoriano. Dez anos atrás, na Assembléia Constituinte de 1998, quando o movimento Pachacuti obteve 10% da representação, não conseguiram obter essa declaratória, quando eram mais fortes. Nós, ao contrário, sabíamos da legitimidade histórica dessa declaratória e sustentamos desde o primeiro dia da Assembléia a tese da plurinacionalidade. Isso não significava, todavia, apostar na fragmentação do Estado ou o fim da unidade nacional. A idéia sempre foi reconhecer a diversidade e a diferença para sermos mais integrados e coesos como nação, não para dar lugar a qualquer autonomia territorial que debilitasse o Estado Nacional. De igual modo se reconheceram os direitos da natureza, a possibilidade de formar circunscrições territoriais indígenas, o direito à água como bem público e a própria idéia da democracia comunitária.

Claro, os debates na Constituinte foram duros em diversos pontos. Não aceitamos o consentimento prévio, um mecanismo que previa que as comunidade deveriam fornecer a sua autorização ao Estado no caso deste querer usar os recursos estratégicos do País, e isso gerou muito descontentamento em setores próximos ao movimento indígena. Os recursos naturais são de propriedade pública, são bens comuns, e não podíamos permitir que comunidades pequenas, por mais legitimidade histórica que tivessem em seus territórios, fossem as pessoas jurídicas que dessem a última palavra em seu uso. Finalmente, a Constituição incorporou a figura da "consulta prévia", que consta no Convênio 169 da OIT [10]. Em todo caso, no referendo para aprovar a Constituição, celebrado no dia 28 de Setembro de 2008, o Pachacuti apoiou a tese do "Sim" e ganhamos todos com 63% dos votos populares. Apesar das diferenças com o movimento indígena, foi possível compartilhar muitas teses - a luta contra o neoliberalismo, por exemplo - e avançar no diálogo político. Isso foi o que acabou mais tarde devido à intransigência de alguns de seus dirigentes e sua visão fragmentada do país. Nós governamos para todos os equatorianos e equatorianas e não podemos ceder às pressões de minorias, por mais justificadas que possam parecer suas demandas.

O terceiro momento se inicia em 2009, com as eleições gerais que se realizaram nos marcos da nova Constituição. Aqui vemos dois elementos. Por um lado, se consolidaram certas alianças em determinados territórios com o movimento indígena; por exemplo, em Imbabura e Chimborazo, dois territórios de elevada população ameríndia, a Aliança País apresentou candidatos provenientes das organizações indígenas e triunfou folgadamente. Em outros territórios as alianças não se concretizaram, porém estabelecemos diversas relações com dirigentes médios e com as bases indígenas; essa foi nossa estratégia em vista da impossibilidade de diálogo com certos dirigentes índios. Por outro lado, desde 2009 se consolida uma visão corporativa e pouco flexível da dirigência do CONAIE. Eles estavam acostumados a ditar "ordens" que se supunha que os governos deveriam aceitar pelo mero fato de serem eles próprios que as emitiam. Não assumem o debate democrático e não aceitam que quando o povo elege um partido para governar ele o faz em função do programa político que apresentou. Eles acreditam que suas ordens são legítimas simplesmente porque foram vítimas. E isso não pode ser assim.

Nos debates sobre a Lei das Águas, a Lei de Mineração e outras leis, já era impossível debater com o movimento Pachacuti. Sua visão é fundamentalista e está muito influenciada por ONGs estrangeiras, com um discurso ecológico que não consegue entender as grandes necessidades do povo equatoriano. O Vice-Presidente boliviano acaba de escrever um livro sobre como as ONGs são corresponsáveis pela perda de soberania estatal em amplos territórios da Amazônia [11]. No Equador essa realidade não é diferente. No caso da Lei de Águas estávamos de acordo em 80% do corpo legal, porém o movimento Pachacuti se fechou na idéia de que o Orgão Estatal encarregado de dirigir o setor hídrico do país devia ser composto só por comunidades, seus membros e juntas de água. E a legitimidade democrática, onde entra? Como podemos ter um orgão público de regulação de um setor tão importante como a água sem a presença política do governo do Estado nacional? Aqui existem diferenças conceituais: nós não somos corporativistas; a dirigência indígena muitas vezes só quer instuições controladas por eles mesmos, mas nós vamos além dessa visão fragmentada do Estado. O resultado foi que, pelo fato do movimento Pachacuti fazer o jogo da oposição direitista na Assembléia, o Parlamento não aprovou a Lei de Águas e hoje ainda seguimos com a mesma lei aprovada pelos neoliberais na década de 90, isso é, uma lei que não permite ao Estado regular o setor hídrico. Esse é só um exemplo. Existem outros nos quais o Pachacuti sempre votou com a direita: não apoiaram a criação da ALBA (Aliança Bolivariana), não apoiaram a vigência do SUCRE [12] nem a arquitetura financeira regional, acabam por se abster sobre o rechaço do escandaloso laudo arbitral recentemente emitido pelo CIADI, que obriga o país a pagar mais de 2,2 bilhões de dólares à petroleira Oxy [13]. Por último, no dia 30 de Setembro de 2010, quando houve uma tentativa de desestabilização democrática, os dirigentes indígenas chamaram as suas bases para se mobilizar contra o Presidente e contra seu mandato democrático e constitucional. Não é fácil dialogar nessas condições.

Acredite, essa situação não me agrada. Eu vivi em minha juventude durante muito tempo em um dos territórios indígenas mais miseráveis do país. Ali aprendi alguma coisa de quechua, aprendi o rigor da vida camponesa indígena, realizei a alfabetização e o trabalho político de formação para gente que agora é dirigente da CONAIE. Entendo essa questão e creio que podemos fazer muito mais por esses setores, porém é difícil dialogar em tais condições de visão política estreita. Sempre tratei o movimento indígena de igual para igual, sem infantilizar os atores indígenas nem vitimizá-los, como sempre fizeram as ONGs e certa esquerda paternalista, e isso significa que por vezes posso ser duro com eles, como sou com qualquer outro ator. Não compartilhamos a visão do problema indígena como um problema só de indígenas que deve tratar-se a partir das instituições indígenas. Esse é o enfoque do multiculturalismo neoliberal que proliferou durante a década de 1990 na América Latina. O problema indígena é de todo o Estado equatoriano, e todas as instituições públicas devem contribuir para resolvê-lo independentemente de serem ou não dirigidas por indígenas. A partir dessa perspectiva demos grandes passos a favor da inclusão dos indígenas na educação, na Universidade, na saúde, entre outras conquistas. Onde se produziram as maiores reduções da pobreza foi entre a população indígena. Porém ainda falta muito por fazer.

E: Como vocês responderia aos críticos, tanto dentro quanto fora do Equador, que dizem que seu governo tolheu a liberdade de impressa?

RC: Existe tão pouca liberdade de imprensa que eles podem dizer isso e imprimir esse tipo de coisa todo os dias! A mídia sempre foi um dos poderes que dominam "de facto" os países latino-americanos. Foram eles que elegeram presidentes, ditaram políticas e forneceram julgamentos. Mas agora existem governos progressivos com grande legitimidade e apoio popular - no Equador, na Argentina, na Bolívia, na Venezuela - que não estão dispostos a se submeter ao poder midiático. E então a mídia, que percebe estar perdendo seus antigos privilégios, montou uma campanha permanente para desacreditar esses presidentes e seus governos, tanto pessoalmente quanto seus projetos políticos, no nível nacional e internacional. Os maiores noticiários no Equador são propriedades de umas poucas famílias oligárquicas, as quais sempre estiveram na direita e no passado apoiaram ditaduras. Trata-se de negócios tremendamente corruptos, que cresceram acostumados a ter o governo sob seu controle. Isso pode ser surpreendente para aqueles que não conhecem a imprensa latino-americana. Mas, por exemplo, pensemos no que aconteceu com Murdoch antes do Inquérito Leveson - se nós fizessemos um décimo daquilo, nós teríamos sido vistos como inimigos da liberdade de imprensa. As pessoas na Europa e nos EUA não entendem que até mesmo requisitar o pagamento de impostos por parte da imprensa é aqui visto como um ataque à liberdade de imprensa. Com o tipo de imprensa que existe aqui na América Latina, não se trata daquela coisa de jornalistas heróicos e perseguidos que denunciam a corrupção das autoridades políticas, mas quase sempre o inverso.

E: Em dois casos concretos, um artigo publicado no El Universo por Emílio Palácio após a falha da tentativa de golpe de Estado contra você em Setembro de 2010, e El Gran Hermano, um livro publicado nesse mesmo ano, nos quais se traziam provas de corrupção contra seu irmão, você levou a questão aos tribunais. Essas situações foram julgadas em seu favor. Porém, retrospectivamente, você acredita que foi sensato trazê-las aos tribunais?

RC: Em um Estado de Direito como o do Equador não se persegue aos jornalistas, se persegue aos delitos. Esse jornal cometeu delitos de difamação e injúrias dizendo que ordenei atirar sem prévio aviso contra um hospital cheio de civis. O que aconteceria na Inglaterra se um jornal publicasse que a Rainha é culpada de crimes de lesa-humanidade? Lá é algo inadmissível, aqui é liberdade de expressão. A lei proíbe a difamação e aqui existem cerca de 12 mil julgamentos relacionados a injúria. Porém quando se indicia por injúrias um jornal e um jornalista, pronto, se considera um atentado contra a liberdade de expressão. Pois bem, se acaso alguém se lembra da notícia, a revista Vanguardia processou nosso Ministro de Relações Trabalhistas por ter-lhes acusado de não cumprir a legislação em matéria de relações trabalhistas. A mídia faz todos os dias o que tanto critica. Pessoalmente estou de acordo com a penalização das injúrias; não entendo o motivo de, se alguém vai para a prisão por não pagar royalties, não se dever ir também por roubar a dignidade ou a honra de uma pessoa. Isso é uma dupla moral. Creio que uma forma de enfrentar esse poder midiático - seus excessos, sua corrupção, sua má fé - é aplicando a lei. E a lei deve ser igual para todos.

E: Pode ser que isso seja certo quando está em jogo uma questão política importante, porém, não seria sensato fazer exceções em certos casos?

RC: No caso do El Universo se esgotaram todos os meios. A Constituição obriga, quando há uma notícia inexata, a retificação imediata. Eles nunca quiseram retificar nada. Durante o julgamento, em primeira instância, em segunda instância e na cassação, sempre lhes disse: corrijam o erro e tudo acaba, aqui ninguém quer prender ninguém nem ficar rico com o dinheiro dos outros. Porém tamanha era a soberba dessa gente que contava com a cumplicidade dos meios internacionais e outros meios nacionais de comunicação. Por exemplo, a Universidade de Columbia acaba de condecorar ao El Universo, dizendo que foram julgados por me chamarem de ditador. Mentira! Me chamou de criminoso contra a humanidade e afirmou que ordenei que se disparasse contra um hospital cheio de civis [14]. 

E: Você mencionou a revista Vanguardia, recentemente inspecionada por fiscais do trabalho por ignorar as normas trabalhistas. Tendo em conta que ela é um orgão de opinião, não havia melhor forma de abordar tais infrações?

RC: É que não se trata de coisas independentes. Os meios de comunicação ignoram as obrigações trabalhistas porque se acreditam intocáveis. A verdade é que eu nunca me interei da ação contra a revista Vanguardia, nem sequer o ministro sabia. Quem foi responsável foi um funcionário de segundo escalão. Dado que já tínhamos feito mais de 3 mil inspeções laborais e mais de 300 coações, o funcionário pensou: por que devo fazer uma exceção à Vanguardia? Apreendemos os bens. Com os outros 300 não havia problema algum, mas quando apreendemos os bens de uma revista que havia infringido as leis trabalhistas, ATENTADO CONTRA A LIBERDADE DE EXPRESSÃO! Já chegou a hora de superar essa chantagem. É só mais uma empresa que não cumpriu suas obrigações para com os trabalhadores e a lei deve ser igual para todos. Crer que porque se abre uma empresa dedicada à comunicação já se está acima da lei é um atentado contra o Estado de direito.

E: Após a decisão de seu governo de conceder asilo a Julian Assange, o governo britânico ameaçou entrar na Embaixada do Equador e levá-lo utilizando a força; o Ministro de Assuntos Externos, William Hague, evidentemente acreditava ser Lord Palmerston [15]...

RC: Foi um erro homérico que legitimou ainda mais a postura do Equador.

E: O governo equatoriano ofereceu aos oficiais suecos a possibilidade de interrogar Assange? Se sim, o que responderam os suecos?

RC: Esse é um ponto essencial que o povo britânico e o povo sueco devem conhecer. Além de desprestigiar o nosso governo e o nosso presidente, por não nos termos submetido aos poderes imperiais, dizendo que aqui existe um ditador e tudo isso, se quis impor a versão de que nós queríamos criar obstáculos à justiça sueca. Mentira! Esgotamos meses de conversações para que, se Assange fosse extraditado à Suécia, se garantisse que ele não fosse extraditado a um terceiro país. Propusemos que o oficial sueco interrogasse Assange - a quem se quer interrogar apesar de não ser acusado de nada - na Embaixada do Equador em Londres. É algo permitido pela lei sueca e que já se fez em outros casos; até por vídeo é possível fazer! Talvez com uma boa dose de prepotência eles disseram "não, porque não temos vontade". Não queriam saídas para que se proseguisse a investigação do suposto delito, e como não nos garantiam que Assange não seria extraditado a um terceiro país se fosse para a Suécia, enxergamos claros indícios de perseguição política e de risco para sua vida, e decidimos outorgar-lhe o asilo, exercendo nossa soberania. O povo britânico e o povo sueco devem ter muito claro que aqui ninguém quis impedir a justiça sueca de agir; demos todas as facilidades, foram eles que não quiseram.

E: Em certo modo, quem possibilitou toda a operação "Cablegate" do Wikileaks foi Bradley Manning. O que se pode fazer para chamar a atenção da opinião pública para sua situação?

RC: Se aqui no Equador tivéssemos feito um décimo do que estão fazendo ao soldado Manning, diriam que somos ditadores, autoritários, incivilizados. E lá não se diz nada. Temos sérias presunções de que não se está cumprindo o princípio do devido processo, de que estão atentando contra os direitos de Manning, porém ele não solicitou asilo e não podemos interferir em um assunto que, nesse caso, é algo interno aos EUA. Os orgãos internacionais de defesa dos direitos humanos e a ONU tentaram fazer algo e enfrentaram grandes obstáculos. Não justifico o que Manning fez, nem sequer tudo o que Assange fez, porém o que buscamos é que se aplique o devido processo, que não haja perseguição política. O Equador não aceita a pena de morte e acredita que é um atentado contra os direitos humanos; assim como não podemos permitir que ninguém que tenha buscado o asilo no Equador se veja exposto à pena de morte por crimes políticos nos EUA. Também vemos grandes contradições. Se pode dizer que Manning roubou informações, mas Assange não roubou nada. Então, de que se acusa Assange? De ter difundido informações secretas dos EUA. Porém, por acaso os meios que compraram essas informações não as difundiram também? The New York Times, El País da Espanha, todos esses jornais, por que não surgem processos contra eles? De novo, é uma questão de poder. Assange é um simples cidadão, os outros são poderes midiáticos.

E: Havia revelações importantes sobre o Equador nos cabos infiltrados?

RC: Em princípio, de cerca de 3 mil cabos do Wikileaks sobre o Equador, a imprensa corrupta publicou apenas o que acreditava que não ia causar nenhum dano. Depois descobrimos muitas coisas que acusavam a essa mesma imprensa; o próprio embaixador dos EUA pediu que não mentissem, quando foram a ele os meios de comunicação no início de nosso governo para queixar-se de que não havia liberdade de expressão. Os cabos do Wikileaks também demonstram que os grupos midiáticos, Teleamazonas, que é do Banco Pichincha, TC Televisión e Gamavisión, que pertenciam aos Isaías, chegaram a um acordo: não nos atiremos panos sujos, não nos acusemos mutuamente! Se você se preocupa com a liberdade de imprensa, dê uma olhada nos cabos do Wikileaks e verá como a própria embaixada disse que aqui existe absoluta liberdade de imprensa, que existem abusos e excessos dos meios de comunicação e que há uma maracutaia entre eles para ocultar qualquer informação que lhes seja prejudicial [16].

E: No âmbito da política exterior, o Equador se destacou ao decidir não participar da Organização dos Estados Americanos a menos que se readmita Cuba. Qual a idéia por trás dessa política?

RC: Como podemos chamar de "Cúpula das Américas" uma Cúpula sem Cuba? Cuba foi deliberadamente excluída da OEA porque ali "não há democracia". Não há democracia liberal como a entende os EUA. Porém o Chile de Pinochet, uma ditadura militar sangrenta, que derrubou um governo democrático civil, nunca foi excluído da OEA. Até para isso há um padrão duplo! Como bem disse Fidel Castro, a OEA foi o Ministério das Colônias dos EUA. E a essa altura não podemos tolerar essa situação na América Latina. Por isso o Equador disse que não vai a nenhuma Cúpula das Américas enquanto Cuba não esteja presente. Não fomos à Sexta Cúpula em Cartagena, apresentamos nosso protesto; se discutiu o tema de Cuba e 31 dos 33 países (as exceções foram os EUA e o Canadá) disseram que na próxima Cúpula das Américas Cuba deve estar presente. Eu acredito que isso marcou um ponto importante na História da América Latina. Passamos do Consenso de Washington para o consenso sem Washington.

[1] León Febres Cordero foi presidente do Equador entre 1984 e 1988 pelo Partido Social Cristão. Em maio de 2008, Correa criou uma comissão para investigar a tortura, o desaparecimento e a execução sumária de opositores, supostamente pelas mãos de esquadrões da morte do governo na década de 1980.

[2] Alfredo Palacio foi Vice-Presidente de Lucio Gutiérrez entre 2003 e 2005, e assumiu a presidência quando esse último foi deposto em abril de 2005.

[3] Rubén Barberán foi Ministro do Bem Estar Social durante o governo de Palacio. 

[4] Ricardo Patiño, fundador da vertente equatoriana do Jubileu 2000, foi sub-secretário de Economia em 2005, quando Correa ocupava essa pasta ministerial; durante os mandatos de Correa foi Ministro da Economia, Ministro de Coordenação Política e desde Janeiro de 2010 é Ministro das Relações Exteriores do Equador. 

[5] Eloy Alfaro (1842-1912) foi o líder da revolução liberal equatoriana de 1895. Em seus dois mandatos como presidente (1895-1902 e 1906-1911) promulgou uma série de reformas modernizadoras, como a separação entre Estado e Igreja, a redistribuição de terra, a criação de instituições de educação primária, o perdão das dívidas  e a construção de ferrovias. As elites, compostas por donos de terras conservadores e a Igreja, mostraram sua firma oposição a elas. Em meio a desordens civis, ele e outros liberais foram executados de forma sumária, tiveram seus corpos arrastados pela cidade de Quito e queimados publicamente

[6] Introduzido em 2003 pelo governo Gutiérrez, após fundir dois programas anteriores.

[7] A extensão total da cidade do conhecimento de Yachay é de 4.300 hectares.

[8] A CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador) foi fundada em 1986 por mais de uma dúzia de organizações indígenas que incluíam representantes da Serra, da Amazônia e da Costa equatorianas. O Movimento de Unidade Plurinacional Pachacuti (MUPP) foi o veículo eleitoral lançado pelos indígenas e outros ativistas em 1995; a palavra quechua pachakutik, que significa "mudança"; "renascimento", "transformação" foi o nome de um governante inca do século XV e foi empregada também para designar a onda de protestos indígenas que varreram o país em Junho de 1990. 

[9] Lenín Voltaire Moreno Garcés (1953), antigo funcionário, ficou paraplégico em 1998 após sofrer um disparo de assaltantes.

[10] É uma referência ao Convênio 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais, adotado em 1989, que em seu artigo 15, cláusula 2, afirma que "No caso em que a propriedade dos minerais ou dos recursos do subsolo pertença ao Estado, ou existam outros direitos sobre os recursos presentes nas terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de determinar se os interesses desses povos serão prejudicados, e em que medida, antes de empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que possível nos benefícios que geram tais atividades, e receber uma indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades".


[11] Álvaro García Linera, Geopolítica de la Amazonía. Poder hacendal-patrimonial y acumulación capitalista, La Paz, 2012.

[12] SUCRE (Sistema Unitário de Compensação Regional); moeda virtual e unidade monetária comum adotada por membros da ALBA e do Equador em Novembro de 2008. 

[13] Em Outubro de 2012, o Centro Internacional de Ajuste de Disputas relativas a Investimentos (International Centre for Settlement of Investment Disputes), um organismo do Banco
Mundial, ordenou ao Ecuador o pagamento de 1,77 bilhões de dólares  à companhia petrolífera Oxy, mais os juros acumulados, em razão de uma disputa contratual de 2006; ver "Ecuador vs. US Oil: Quito loses a round", FT.com, 6 de Outubro de 2012.

[14] El Universo foi um dos cinco jornais premiados com o Prêmio Maria Moors Cabot de 2012 por reportagens sobre a América Latina; um dos outro ganhadores foi Teodoro Petkoff, cujo periódico, Tal cual, chegou a comparar o presidente venezuelano com Hitler.

[15] Henry John Temple, Visconde de Palmerston (1784-1865), foi um político britânico que ocupou o cargo de primeiro-ministro do Reino Unido. É conhecido por sua frase: "A Inglaterra não tem nem amigos nem inimigos permanentes. A Inglaterra tem interesses permanentes."


[16] Por exemplo, em Fevereiro de 2009 se afirmou em um cabo da Embaixada dos EUA em Quito que Correa disse, "não sem alguma razão", que os meios de comunicação "estavam de acordo com as elites políticas e econômicas" e constituíam, portanto, um obstáculo para a agenda de mudanças de sua Revolução Cidadã. Se assinalava que os "meios privados se defenderam solidariamente dos ataques [do presidente] e seguem informando e criticando Correa e seu governo". Conferir o cabo  09QUITO108, que se pode consultar em wikileaks.org [http://wikileaks.org/cable/2009/02/09QUITO108.html].