28/11/2011

Ulisses, Alexandre e Eurásia

por Claudio Mutti


Há algum tempo relia o canto XXVI do Inferno de Dante (o célebre canto de Ulisses). Como provavelmente recordareis, em certo momento o Ulisses dantesco recorda a arenga com a qual convenceu seus companheiros de expedição para atravessarem as Colunas de Hércules: "O frati, dissi, che per cento milia - perigli siete giunti all'occidente (...)" (1). Esforçando-me em vislumbrar algo daquele sentido alegórico que, por declaração expressa de Dante, tenha ficado oculto por trás do sentido literal, aventurei a seguinte conjectura: o Ocidente evocado por Ulisses na sua pequena oração é provável que não esgote seu significado na acepção espacial e geográfica do vocábulo "Ocidente", que designa o lugar do "Sol que morre" (Sol occidens), o lugar onde acaba o cosmos humano e começa o "mondo sanza gente" (2), o reino das trevas e da morte.

É portanto provável que o Ocidente dantesco, tendo em conta a polivalência do símbolo, assinale também uma fase temporal, assim pois um sentido ulterior do discurso de Dante seria que seus companheiros, enquanto "vecchi e tardi", tenham chegado "a l'occidente" de sua existência, isto é à proximidade da morte. (3)

E assim como eles representam à humanidade europeia, como não compreender, simultaneamente, que a Europa devia chegar - e de fato teria chegado precisamente na época de Dante, nos inícios do século XIV - à proximidade dessa fase histórico-cultural que, segundo o que disse René Guénon, "representou na realidade a morte de muitas coisas"?

Porém Ocidente, o lugar das trevas, é também um símbolo disso que Martin Heidegger denominou "o escurecimento do mundo". "Mundo" - explica o próprio Heidegger - "deve entender-se sempre em sentido espiritual", pois, "o escurecimento do mundo implica uma despotencialização do espírito". E a situação da Europa, continua Heidegger, "resulta muito mais fatal e irremediável enquanto a despotencialização do espírito provem dela mesma".

Esta despotencialização do espírito, este escurecimento do mundo, teve, segundo Guénon, seu momento decisivo com o final da grande civilização medieval (a última civilização relativamente normal conhecida pela Europa) e com o início da cultura imanentista e laica do Renascimento. Segundo Heidegger, "ainda que tenha sido preparado desde o passado, este (o escurecimento do mundo) manifestou-se definitivamente partindo das condições espirituais da primeira metade do século XIX", verbigratia: mediante o triunfo do racionalismo contemporâneo, do materialismo, do individualismo liberal.

Em qualquer caso, podemos afirmar que este escurecimento do mundo marchou em paralelo com o que foi recentemente denominado "a ocidentalização do mundo".

O inferno, no fundo do qual acabou esse Ulisses dantesco que abandonou a Europa para adentrar nas trevas ocidentais, é um Ocidente perene (lei da balança!), porque a luz não ilumina ali jamais. Dante escapa dessa eterna treva ocidental e infernal graças à orientação de Virgílio, o poeta do Império, o poeta de um Império que, como diz-se em Paraíso, VI, 4-6, está por sua própria origem vinculada a Europa: "cento e cent'anni e più l'uccel di Dio - ne lo stremo d'Europa si ritenne, - vicino a'monti de' quai prima uscìo". (4)

Em efeito, devemos recordar que, segundo Dante, a Águia imperial ("l'uccel di Dio") teve sua origem "ne lo stremo d'Europa", isto é na atual Anatólia, ali onde alçava-se Tróia. Por outra parte, também Europa, a donzela "dall'amipio volto" que foi amada por Zeus e que deu seu nome a nosso continente, era originária da margem oriental do Mediterrâneo.

Seria interessante parar para considerar que para os gregos e para os romanos, e ainda depois para os homens do medievo, a imagem geográfica de Europa estendia-se para o oriente muito mais que na idade moderna e na contemporânea; porém isto seria outro discurso. (5)

Nós, que estamos aqui para falar do "destino de Europa", devemos ao contrário perguntar: quem assinalará a Europa, nos umbrais do terceiro milênio, o caminho para sair do Ocidente e voltar "a riveder le stelle"?

A primeira tarefa consiste em efetuar um esclarecimento. Devemos portanto reestabelecer os verdadeiros termos da relação que se estabelece entre Europa e Ocidente, relação de natural oposição e de antagonismo; devemos refutar uma escandalosa sinonimia que, imposta pelos vencedores ocidentais da Segunda Guerra Mundial, foi aceita pelos europeus da forma mais acrítica e ignorante.

O conceito Ocidente é relativamente novo e resulta sinônimo quase de modernidade; por conseguinte, como visão do mundo, Ocidente é essencialmente outro em relação ao espírito que preside as manifestações da civilização europeia tanto na Antiguidade como no Medievo.

É certo que a civilização ocidental trata costumeiramente de identificar suas próprias raízes com alguma das fases histórico-culturais através das quais configurou-se a Europa, quer dizer, a antiga Grécia, o mundo romano, ou a cristandade latino-germânica.

Não obstante, é preciso objetar que, se a modernidade é "desencanto do mundo", resulta quando menos aventureiro apresentar como antecedente da civilização ociental à cultura grega, isto é uma cultura que não produz somente antecipações do pensamento moderno como o racionalismo sofístico e o mecanicismo atomista, mas que expressa-se também (e sem dúvida em maior medida e com maior intensidade) nos Mistérios órficos e eleusinos, na teologia da história de Heródoto, na metafísica dos pré-socráticos, de Platão, e de Aristóteles, na poesia religiosa de Ésquilo e Píndaro, na teurgia e na mística dos platônicos.


E nem ao menos está claro em função de que lógica o Ocidente teria direito a remeter-se à civilização romana, que em realidade funda-se precisamente sobre aquilo que é mais escandaloso desde o ponto de vista da modernidade, a saber: sobre a identificação do âmbito religioso com o jurídico e político. Uma identificação que posteriormente voltou a dar-se acaso sob o Islã, mas de nenhum modo na civilização ocidental.

Por outro lado, o Império de Roma, como posteriormente também o Império Bizantino, e o Império dos Otomanos, não foi um império ocidental, senão uma grande síntese mediterrânea e, em certa medida, eurasiática. Inclusive o Sacro Império Romano pareceu recuperar uma dimensão deste gênero, quando, com Frederido da Suábia, a corte imperial transferiu-se a Palertmo e o Imperador estendeu sua autoridade sobre Jerusalém e outras partes da Palestina. A própria Alemanha, que enquanto imagem histórica do Império medieval seguiu sendo até 1945 das Reich, o Império, buscou sempre seu próprio espaço não na direção do ocidente, mas na direção do oriente.

Voltando a Ulisses, recordo ter lido em alguma publicação que o Odisseu homérico, "foi o viajante da modernidade". Uma vulgaridade deste tipo, que revela a necessidade da modernidade de inventar-se uma galeria de antepassados, é possível precisamente porque a essência do Odisseu homérico, protótipo do homo europaeus, foi tergiversada pela própria modernidade.

De fato, para a percepção moderna Odisseu não é o que era para os gregos, a saber: o anèr polytropos que, alentado pela nostalgia das Origens e auxiliado por Athena, quer dizer pelo Intelecto divino, luta contra as forças inferiores e, após um longo cativeiro na ilha ocidental de Eea, retorna a uma pátria "central", a uma "terra do meio", que simboliza essencialmente a perfeição primordial do estado humano.

A modernidade desfigurou o Odisseu homérico convertendo-o em um herói cultural a sua própria imagem e semelhança; assim, colocado diante de um espalho deformador, o homo europaeus devolve-nos a imagem falaciosa do homo occidentalis.

Existe logo uma variente "filosófica" para chamá-la de algum modo, da mesma vulgaridade: o Odisseu que descreve a Penélope o leito matrimonial talhado com a madeira da oliveira (o leito de Odisseu é em realidade o símbolo homérico do Axis Mundi) segundo Horkheimer e Adorno seria, vejam só, o "protótipo do burguês (que) tem, em sua esperteza um hobby", aquilo de "faça você mesmo". Os autores da Dialética do Iluminismo completamente ignorantes do autêntico significado do herói homérico, acreditaram poder identificar, por trás da máscara de Odisseu, o rosto do burguês ocidental que dá início ao desenvolvimento racionalista liberando-se da superstição e exercitando seu domínio sobre a natureza e sobre os homens.

O Odisseu dos rabinos da Escola de Frankfurt converte-se desse modo na metáfora desse poder racional de domínio que organiza-se como saber sistemático e tem como sujeito ao burguês ocidental, "nas formas sucessivas - assim escrevem eles - do escravista, do livre empreendedor, do administrador". Não obstante, tal metáfora baseia-se em uma típica redução do superior ao inferior, posto que Adorno e Horkheimer identificam indevidamente o intelecto (princípio de ordem universal) com a razão (faculdade especificamente humana, limitada, relativa, e individual). Agora bem, Odisseu, protótipo do homo europaeus, é concretamente um símbolo do intelecto, quer dizer, do princípio espiritual que transcende a individualidade e com ela o conjunto de elementos psíquicos e corporais, representados no poema homérico pelos companheiros do herói.

O périplo da Escola de Frankfurt, nascido pela iniciativa de um grupo de judeus liberais, conclui seu ciclo desembocando finalmente em uma explícita adesão ao judaísmo. Pouco antes de morrer, Horkheimer recomendu "o retorno a Jeová" e a "eterna espera" de um Messias que, dito pelo próprio Horkheimer, não virá nunca. Esta posição será retormada e desenvolvida pelos chamados nouveaux philosophes André Glucksmann e Bernard Henri-Lévy.

Agora, no que concerne à irredutibilidade do Odisseu homérico, protótipo do homo europaeus, à visão judaica e à visão moderna, remetemo-nos às palavras de um autorizado representante do pensamento judaico-cristão, Sérgio Quinzio, o qual em Radici Ebraiche del Moderno afirma que não somente a concepção grega do tempo, senão também a concepção grega do espaço é circular, dado que o espaço odisíaco transcorre de Ítaca a Ítaca. O tempo e o espaço dos gregos - escreve Quinzio - "são o tempo e o espaço do eterno retorno, nos quais nada realmente novo pode suceder. Vice-versa, como o tempo judaico é linear, assim também o espaço judaico é linear, vai desde a terra da escravidão à terra prometida".

Pelo demais, já Emmanuel Levinas havia contraposto em termos de antítese irredutível o retorno odisíaco e o êxodo bíblico, assim como as figuras de Odisseu e de Abraão: o Abraão da representação bíblica, naturalmente, porque bem distinta resulta a figura do Profeta Ibrahim tal como é traçada no Corão; o qual rechaça de plano (ad. es. III, 60) (6) a caracterização judaica e cristã do Patriarca de Ur, fazendo deste último um representante da Tradição Primordial. "Ao mito de Ulisses que retorna a Ítaca - escreve Levinas em La Traccia dell'Altro - gostaríamos de contrapôr a história de Abraão que deixa para sempre sua pátria por uma terra ainda desconhecida e que proíbe a seu criado voltar a levar seu filho até àquele ponto de partida".

Evocando a este Abraão bíblico e antiodisíaco, protótipo dos "pais peregrinos" que abandonaram a Europa para estabelecer-se no continente ocidental, Levinas deu forma ao contramito do desenraizado: uma espécie de "contramito fundador" da Civilização ocidental, na qual tem um peso relevante o que René Guénon chama o "aspecto 'maléfico' e desviado do nomadismo". Em qualquer caso, Levinas teve o mérito de contrapôr explícitamente ao protótipo mítico do homo europaeus o protótipo contramítico e antitradicional do homo occidentalis.

Assim com toda justiça, foi dito que a Odisséia, junto à Ilíada, constitui o que qualificou-se como a Bíblia dos Gregos, do mesmo modo que a Eneida será a Bíblia dos Romanos. Se queremos usar uma linguagem consequente com esta metáfora, devemos afirmar que Homero foi o primeiro profeta da Europa, e que seus poemas constituíram a mais antiga revelação religiosa manifesta aos europeus.



Em uma página repleta de pathos nietzscheano, o grande filólogo clássico e historiador das religiões Walter Otto descreve a visão homérica contrapondo-a implícitamente à judaico-cristão, nos seguintes termos: "Homero converte-se na Bíblia dos Helenos (...) Também sua revelação teve um grande eco, porém muito mais viril, mais fiel à vida, mais respeitosa com a realidade que a mensagem de espíritos transtornados, em contenda consigo mesmo e com a vida. A religião na qual o povo devia ser instruído havia sido primeiramente relevada ao coração dos mais nobres e dos mais gentis. (...) A religião de Homero era religião revelada segundo a opinião certa e humana de que todo grande pensamento é filho da divindade" (W. Otto, Spirito classico e mondo cristiano, La Nuova Italia, Firenze, 1973, p.25).

Em um escrito de 1931 que, investigando as origens do espírito europeu, identifica na herança homérica a prefiguração de nossa identidade de europeus, Walter Otto volta a falar de Homero: "Ele não é portanto somente o mestre que criou na Europa a primeira grande poesia, dando por escrito a lei vivente da arte poética europeia. Não é tampouco somente o destinado a elevar-se a expressão do ser grego de modo tão grande e profundo que sua obra converte-se em gênio formativo de toda a nação. Ele é também para nós, ainda hoje, não obstante os avatares históricos, aquele que proclama admiravelmente a vida e o mundo. (...) De fato, através dele o espírito grego, e com ele o europeu, encontrou sua primeira expressão, que permanece válida até a data. E se compreendessemos de modo correto sua palavra, quiçá também o significado da ciência e da filosofia gregas mostraria-nos seu mais profundo significado". (W. Otto, Lo Spirito Europeu e la Saggezza dell'Oriente, SEB, Milano, 1997, p.11).

Junto a Homero, o outro grande mestre da antiguidade européia é Platão. Não por casualidade outro filósofo judeu e liberal, Karl Popper, assignou a Platão o papel de pai espiritual da corrente de "inimigos da sociedade aberta", uma corrente que partindo do pensamento platônico chega aos totalitarismos do século XX.

Popper à parte, a República de Platão resulta fundamental com relação ao reconhecimento da originária Weltanschauung européia, porque em dita obra encontramos exposta de forma transparente e orgânica essa doutrina da trifuncionalidade que, segundo Georges Dumézil, constituiu a característica própria de todas e cada uma das sociedades indo-europeias, tanto da Europa como da Ásia.

Como é sabido, os estudos realizados por Dumézil no domínio da história das religiões e da linguística demonstraram que os povos indo-europeus mais além do parentesco idiomático, possuem uma estrutura mental específica e uma concepção pecular do fato religioso, da sociedade, da soberania, das relações entre o homem e a Divindade. Em definitiva, Dumézil sacou à luz uma comum Weltanschauung indo-europeia, uma visão do mundo plena de implicações teológicas e político-sociais, segundo a qual a comunidade pode viver e prosperar graças somente à colaboração e à solidariedade das três funções de soberania, força, e fecundidade. A primeira função (a soberania) corresponde ao sagrado, ao poder, e ao direito; a segunda (a força) corresponde à atividade guerreira; a terceira (a fecundidade) corresponde à produção e à distribuição dos bens materiais.

Agora, se na estrutura religiosa e social ilustrada por Dumézil manifesta-se uma exigência fundamental da mais profunda mentalidade indo-européia; se a denominada "ideologia trifuncional" é uma característica inerente à mentalidade do europeu; se ela é uma dessas estruturas latentes que resultam indissociáveis da cultura e do espírito de um povo e se conservam de algum modo através das gerações, tão é assim que ainda na Idade Média a composição da sociedade era estabelecida pelas três categorias dos oratores, bellatores, e laboratores e que tal tripartição sobreviveu de alguma forma até a Revolução Francesa - então seria lícito fazer a seguinte pergunta: Em que medida a concepção trifuncional pode encarnar uma via para voltar a pensar o mundo e a vida em termos adequados a nossa qualidade de europeus?

Sobre esta interrogação não seria supérfluo refletir seriamente. De momento, bastaria fazer notar que a organização liberal-capitalista da sociedade é típica não da civilização europeia, mas da civilização ocidental. O lema de tal organização poderia ser a frase proverbial que circula nos EUA: Whatever is good for General Motors is also good for the USA. (7)

De fato, o liberal-capitalismo, surgido da Revolução Francesa com a rebelião da terceira função, o Terceiro Estado, contra as outras duas, representa por uma parte o poder efetivo do elemento econômico sobre o político e sobre o militar, enquanto que por outro lado transporta uma penetração da mentalidade mercantil nas camadas da sociedade. Uma sociedade normal, ao contrário, é aquela na qual governa a função soberana; uma sociedade é aquela na qual o política prevalece sobre o econômico.

O próprio conceito de Europa deve ser contemplado à luz da ideologia trifuncional. Mais além das simples relações comerciais (terceira função), mais além dos problemas próprios da defesa comum (segunda função), a Europa deve afrontar a questão principal, que é a de sua soberania (primeira função).

Este projeto somente pode extrair seu sustento de uma única fonte: nossa tradição mais autêntica. Em 1935 Martin Heidegger dizia dos alemães de então o que hoje poderia dizer dos europeus em geral: "Este povo poderá forjar para si um destino somente se é capaz de provocar em si mesmo uma ressonância (...) e se souber captar sua tradição de forma criadora. (...) E se a grande decisão concernente a Europa não deve realizar-se no sentido de uma aniquilação, somente realizar-se-á mediante o desdobramento, a partir deste centro, de novas forças históricas espirituais".

Em outros termos: se Europa tem todavia um futuro e se nós queremos encontrar uma solução europeia para seu futuro, devemos voltar-nos para nossas origens, interrogar aos mestres mais antigos de nossa cultura e - acreditamos poder acrescentar - colocar em marcha aquelas idéias que constituem a herança espiritual especificamente europeia.

Alguém poderia objetar que o ponto de vista do supracitado Walter Otto, resumível em uma fórmula do tipo "A Weltanschauung homérica ou seja europeia", deve ser atualizado e substituído por aquele que encontramos sintetizado no célebre título de Novalis, A Cristandade ou seja Europa. Em todo caso, o corolário de tais fórmulas, que reivindicam ambas a Europa, poderia ser "A modernidade ou seja Ocidente". Em realidade, como recorda Franco Cardini em "Nós e o Islã" (8), "o conceito Ocidente é relativamente novo e parece de per si inseparável do de modernidade".

Se enquanto visão do mundo Ocidente é sinônimo de modernidade e é por isso essencialmente outro em relação ao espírito que regeu as manifestações da civilização europeia na antiguidade e na idade média, também como elemento do simbolismo geográfico Ocidente opõe-se à Europa de forma radical.



Aqui convém colocar em evidência uma realidade elemental, que a cultura convertida em hegemônica tentou escurecer a todo custo. Basta dar uma olhada em qualquer atlas geográfico para dar-se conta de que o Ocidente do mapamundi terrestre coincide com o continente americano e com as águas oceânicas que o rodeiam. Europa não é Ocidente, poruqe encontra-se no hemisfério oriental e é parte integrante dessa unidade continental chamada Eurásia. Assim, se Europa tem uma relação de continuidade ou de contrato natural com outras partes do mundo, estas não são América, senão Ásia e África. Tudo isso, ainda sem dizê-lo, o próprio Cardini nos induz a pensar quando abre uma interrogação desse tipo: Porém o equador é realmente uma linha divisória também em termos culturais ou econômicos - e de poder- mais nítida do meridiano atlântico que separa o continente europeu do americano?

A tese da localização ocidental de nosso continente é por outra parte desmentida pela configuração geográfica das construções imperiais que unificaram zonas mais ou menos amplas do espaço europeu. Os impérios de Alexandre, de Roma, de Bizâncio, dos Otomanos, foram grandes sínteses eurasiáticas e mediterrâneas. Inclusive o Sacro Império Romano pareceu recuperar uma dimensão desse gênero, quando com Frederico II da Suábia, a corte imperial trasladou-se a Palermo e o próprio Imperador estendeu sua autoridade sobre Jerusalém e outras zonas da Palestina. A própria Alemanha, que enquanto imagem histórica do Império medieval seguiu sendo até 1945 das Reich, o Império, buscou sempre seu próprio espaço não na direção do ocidente, mas do oriente.

Mais além da extensão no espaço que alcançaram realmente e da incidência temporal dos efeitos dela derivados, todas as ações políticas que trataram de unificar o continente contribuíram a consolidar o tecido eurasiático, mais além das divisões políticas, das diferenças étnicas, e das contraposições culturais.

Se é certo que os mitos implicam uma série de significados sobrepostos ao literal, não seria de todo ilegítimo buscar nesse difundido arquétipo que fala-nos do desmembramento de um deus (Prajapati, Osírios, Zagreus, etc.) e da posterior origem do cosmos a partir de seus membros dispersos, um significado relacionado com a origem da geografia terrestre. O que são em realidade o conjunto das terras emersas, senão um corpo, dividido nessas quatro ou cinco partes que convimos em chamar continentes?

Tratemos primeiramente de estabelecer o número destes últimos, porque é possível enumerar quatro (Eurásia, África, Oceania, América) ou quiçá cinco (Eurasia, África, Oceania, América setentrional, América meridional). A partir de seu número, poderemos aplicar à geografia de nosso planeta uma analogia ou outra. De fato, para um esquema quaternário valerá o simbolismo dos quatro elementos constitutivos do cosmos (ar, água, fogo, terra), enquanto que o eixo central corresponderá ao elemento invisível e central, a quintessência, o éter.

Para um esquema quinário, vice-versa, será possível aplicar o simbolismo do corpo humano. Em tal caso, se imaginamos aos cinco continentes como partes de um corpo análogo ao do ser humano, poderíamos dizer que Eurásia constitui a parte central e essencial, a que contem a cabeça e o tronco, alojando dentro de si pois o coração, o cérebro e todos os demais órgãos vitais, enquanto que os outros quatro continentes (África, Oceania, e as duas Américas) representam as quatro extremidades do corpo.

Efetivamente, todas as regiões mais importantes desde o ponto de vista da economia espiritual encontram-se concentradas na Eurásia. A partir de centros eurasiáticos irradiaram-se as influências tradicionais que alcançaram posteriormente o resto do planeta: desde o xamanismo siberiano mais arcaico, que através de migrações pré-históricas estendeu-se pelas duas Américas, até a revelação corânica que selou o ciclo tradicional da atual humanidade e difundiu-se igualmente mais além dos limites da Eurásia. E isto para citar somente duas, a mais antiga e a mais recente, entre as formas tradicionais que manifestaram-se originariamente no solo eurasiático.

Porém quisera concluir apresentando para vossa reflexão outro mito, do qual desprende-se toda a futilidade do conceito de Ocidente entendido como realidade em si mesma, enquanto que resulta a posteriori afirmada a conformidade da idéia do Império no espaço eurasiático.

Trata-se do mito de Alexandre e particularmente da caracterização que dele foi realizada desde a tradição islâmica, a qual na Sura da Caverna do Corão assigna ao "Bicorne" uma função não somente imperial, senão também escatológica (9). Segundo o simbolismo posto em relevo desde este específico contexto tradicional, a marcha empreendida por Alexandre Magno ao longo da linha oeste-leste traduz no plano geográfico essa modalidade "expansivva" que a doutrina islâmica denomina "amplitude". Agora bem, "amplitude" e "exaltação" são dois termos que correspondem às duas fases da Viagem Noturna do Profeta Maomé, paradigma do caminho iniciático que alcança a realização suprema.

De fato, Fadlallah al-Hindi afirmou: "Seja a exaltação seja a amplitude alcançaram sua perfeição no Profeta, que Deus o bendiga e dê-lhe a Paz". Porém aqui é preciso acrescentar que, segundo um dito tradicional do próprio Profeta, Alexandre foi entre todos os homens o mais semelhante a ele. E isto não somente porque Alexandre cruza a terra em sua extensão horizontal, de oeste a leste, senão também porque, segundo outro dito atribuído ao Mensageiro de Deus, depois da fundação de Alexandria do Egito, o Macedônio foi levado ao céu por um anjo. Por outra parte, as histórias relativas a descida de Alexandre ao fundo do mar e a sua ascensão celestial até a esfera do fogo tiveram ampla difusão quer seja no Oriente como na Europa medieval.

Desse modo, a figura de Alexandre pode remeter-se, pelos significados que transporte, a uma doutrina íntegra do Sacro Império, pois ele, tendo desenvolvido todas as suas possibilidades segundo os dois sentidos horizontal e vertical, é ao mesmo tempo possuidor da realeza e do sacerdócio, é simultaneamente rex e pontifex. E sua figura coloca-se no fundo do espaço eurasiático, que constitui não somente o cenário histórico, senão a projeção espacial mesma correspondente à idéia do Império.

NOTAS

(1)NdelT.- "OH hermanos –dije-, que tras cien mil / peligros a occidente habéis llegado(...)"(XXVI, 112-13). Divina Comedia. Seguiremos siempre la traducción y edición de Giorgio Petrocchi y Luis Martínez de Merlo, Cátedra, Madrid, 1998;
(2)NdelT.- "... el mundo inhabitado" (XXVI, 117);
(3)NdelT.- "Viejos y tardos ya nos encontrábamos/ al arribar a aquella boca estrecha/ donde Hércules plantara sus columnas (...)" (XXVI, 106,108)
(4)NdelT.- "más de cien y cien años se detuvo /en el confín de Europa aquel divino/ pájaro, junto al monte en que naciera(...)"
(5)NdelT.- Resulta curioso que actualmente, en la estela de cierto discurso de Estado francés, algunos pájaros no precisamente divinos, graznen contra la supuesta "europeidad" geográfica y –sobre todo- política de Turquía, confundiendo sus propios prejuicios étnico-religiosos euro-sionistas con los orígenes sagrados indo-arios de la civilización europea;
(6)NdelT.- Debe tratarse de un error tipográfico. En realidad, las aleyas dedicadas a Ibrahim/Abraham comienzan en III, 65 y ss. Por ejemplo: "Abraham no fue judío ni cristiano, sino que fue hanif [monoteísta primordial], sometido a Dios, no asociador." (III, 67) Alcorán, edición y traducción de Julio Cortés y Jacques Jomier, Herder, Barcelona, 1986)
(7)NdelT.- Lo que es bueno para la General Motors es bueno para los Estados Unidos.
(8)NdelT.- Existe traducción española: Franco Cardini. "Nosotros y el Islam. Historia de un malentendido", Crítica, Barcelona, 2002;
(9)NdelT.- Alcorán, XVIII, 83-98;

27/11/2011

Por uma Interpretação Antropo-Ontológica do Pensamento Nietzscheano

por Alejandro Felix Raimundo



Neste trabalho tenta-se estabelecer uma relação entre a antropologia filosófica de Arnold Gehlen e a filosofia de Nietzsche. À luz da mesma é possível interpretar o pensamento nietzscheano desde um ponto de vista antropo-ontológico. A metodologia a seguir neste artigo consistirá em pôr em manifesto as semelhanças entre Nietzsche e Gehlen ao mesmo tempo que a importância que tem as considerações antropológicas dentro do conjunto da obra nietzscheana.

Em primeiro lugar há que dizer que foi o próprio Gehlen o primeiro em assinalar Nietzsche como um dos antecedentes de sua concepção antropológica, como assim também a possibilidade de interpretar as categorias fundamentais do pensamento nietzscheano desde a concepção deficitária do homem, como prova o seguinte parágrafo:

"...no mero 'existir' poderia estar realizando-se uma tarefa de uma importância infinita e cujo mandamento (essencialmente incognoscível porque nós somos esse mandamento) somente poderia aludir-se simbólicamente. A idéia nietzscheana do eterno retorno (que nunca foi realmente entendida), do eterno retorno, da vontade de poder, encontram aqui sua localização. Tomadas ao pé da letra possuem escasso sentido e são somente apêndices da filosofia de Schopenhauer e do darwinismo. Para ele eram símbolos que caracterizavam de algum modo um 'plus de vida' e queriam determinar mais concretamente essa obrigação indeterminada".

Não cabe dúvida de que Gehlen propõe uma maneira peculiar de ler Nietzsche. Neste trabalho tentar-se-á demonstrar a existência de um núcleo básico de coincidências entre ambos autores, ainda que evitar-se-á fazer uma análise minuciosa do pensamento de Gehler por entender que o mesmo excede as possibilidades de um trabalho desta extensão.
A tarefa consistirá em mostrar a conexão existente entre alguns pontos fundamentais dos pensamentos de um e outro.

1 - A Primazia da Práxis

Em Der Mensch - Seine Natur und seine Stellung in der Welt (1940) encontramos uma antropologia filosófica pura, uma concepção da essência do homem cujos conceitos são muito específicos e somente aplicaveis a seu objeto de estudo. O ponto de partida desta concepção é a tese nietzscheana de que o homem é "o animal não fixado". Gehlen diz que isso significa duas coisas: por um lado que não há nenhuma explicação do que seja o homem e por outro lado que o ser humano está inacabado, que não está estabelecido com firmeza.

Gehlen apresenta-nos o ser humano como um ser práxico, quer dizer como um ser que atua, trata, negocia, e que, por sobre todas as coisas, deve dar uma interpretação de si mesmo. Gehlen apresenta o homem como um projeto único da natureza que contradiz a tendência geral da evolução, a qual vai no sentido de uma crescente especialização, quer dizer de adaptar os organismos a um meio ambiente formado por uma série de não-especializações que desde o ponto de vista biológico constituem "primitivismos".

Gehlen entende que apesar de a concepção deficitária do homem ter sido intuída, e inclusive desenvolvida por muitos autores, nenhum foi capaz de captar o verdadeiro lacance da mesma. Isto deve-se a que não foi visto o princípio da descarga (Entlastung), o qual consiste na capacidade típica do homem de transformar suas carências características em oportunidades de prolongação da vida. O pensamento básico de Der Mensch é o seguinte: "...as carências da constituição humana (carências que representam um enorme gravame de sua capacidade de viver sob condições por assim dizer animais) são transformadas pelo homem, por si mesmo e com a ação em meios de sua existência, conjugando-se assim em último termo o destino do homem à ação e sua incomparável situação especial".

Todas as funções da vida humana, como por exemplo a linguagem, a fantasia, as pulsões, etc, são para Gehlen manifestações desta condição fundamental do ser humano: a de ser uma tarefa para si mesmo. Isso deixa assentada definitivamente a primazia da práxis vital sobre toda forma de conhecimento ao tempo que evita o recurso a categorias metafísicas para explicar a existência humana, como por exemplo as que veem a diferença entre o homem e o animal no espírito. Já no que concerne a este ponto é possível advertir uma significativa coincidência entre Nietzsche e Gehlen, devido a que também em Nietzsche encontramos um permanente esforço por apresentar todas as categorias do conhecimento (inclusive aquelas que aparecem como mais abstratas) como um resultado da particular organização vital do ser humano. A respeito resulta significativa sua afirmação de que: "...não existe em absoluto um mundo verdadeiro, por conseguinte há uma aparência perspectivística cuja origem encontra-se em nós (na medida em que temos necessidade de um mundo mais estreito, simplificado, contínuo)." Nietzsche considera que o conhecimento somente é possível como vontade de ilusão, como vontade de poder, já que o conhecimento é impossível no devir devido à natureza caótica, informulável, contraditória deste.

O conhecimento é visto por Nietzsche como um produto da humana necessidade, se nos atemos a sua afirmação de que:

"...essa necessidade de formar conceitos, espécies, formas, fins, leis - um mundo de casos idênticos - não deve-se compreender no sentido de que nós seríamos capazes de fixar um mundo verdadeiro; senão enquanto necessidade de preparar um mundo onde nossa existência seja possível, nós criamos deste modo um mundo calculável, simplificado, compreensível".

Para Nietzsche as categorias de sujeito, objeto, substância, espírito, etc, são ficções lógicas resultantes das condições de existência do ser humano. Neste ponto já resulta possível ver uma marcada afinidade entre seu pensamento e o de Gehlen, já que em ambos encontramos um perspectivismo antropocêntrico que põe de manifesto constantemente a relação existente entre a práxis que caracteriza a existência humana e as categorias mediante as quais o homem interpreta sua existência. Também encontramos em ambos uma preocupação em pôr de manifesto a relação existente entre os fenômenos corpóreos e as manifestações espirituais da existência huamana; porém já neste ponto pode-se advertir uma diferença enter ambos, já que enquanto em Nietzsche o corpo é visto como o fundamental, em Gehlen encontramos uma lei estrutural que está na base de todos os atos que o ser humano realiza, quer seja estes físicos ou psíquicos.
2 - Uma revisão do conceito nietzscheano do corpo desde a perspectiva da condição deficitária do homem

Nietzsche considera essencial tomar o corpo como ponto de partida de todas as análises e considerá-lo como fio condutor. Ele é o fenômeno mais rico, e o que permite o mais claro exame. Isso não significa que haja em Nietzsche um imediatiasmo, uma adesão imediata aos sentidos e ao corpo, como muitos já pensaram, mas sim que o corpo, enquanto constitui o assento da vontade de poder, resulta ser o fio condutor que permite a Nietzsche levar a cabo sua "filosofia do martelo", sua tarefa desconstrutiva dos cimentos sobre os quais apoiavam-se a ética e a filosofia do Ocidente, como por exemplo a tese sobre a autonomia do espírito. Esta tese não somente parece-lhe equívoca, senão também perniciosa para a vida. Em um aforisma de Aurora que leva por título justamente "o preconceito do espírito puro", adverte-nos que:

"Onde quer que haja reinado a doutrina da 'espiritualidade pura', destruiu-se, por seus excessos, a força nervosa, produzia almas sombrias, rígidas e oprimidas, que ademais acreditavam conhecer a causa deste sentimento de miséria e esperaval poder suprimir esta causa: 'É preciso que ela seja encontrada no corpo!' Está ainda muito florescente, assim pensavem!, enquanto que na realidade o corpo, por suas dores, não cessava de elevar-se contra o contínuo desprezo que era-lhe demonstrado...seu sistema alcançava seu apogeu quando consideravam o êxtase como ponto culminante da vida e como pedra de toque para condenar todo o terreno".

O mesmo pensamento aparece expressado no conhecido aforismo de Assim Falou Zaratustra que leva por título "Dos Desprezadores do Corpo". No mesmo Nietzsche afirma que o corpo é a grande razão, a serviço da qual trabalha a pequena razão, à qual os desprezadores do corpo chamam "espírito".
Nietzsche considera que o corpo tem suas próprias valorações, as quais não somente antecedem às valorações conscientes senão que também as determinam. As valorações surgem de nossas condições de existência ou da crença que temos nelas, em caso de que qualquer destas duas coisas modifique-se nossas valorações também terão que fazê-lo, portanto, as valorações não são exclusivas do ser humano, senão que a capacidade de escolher o mais importante, o mais útil, ou o mais urgente está presente em todos os seres vivos é mais o fato mesmo de estar vivo já implica a necessidade de valorar.

A prioridade do corpo sobre o espírito resulta em Nietzsche tão marcada que em Para Além do Bem e do Mal emprega imagens corpóreas para referir-se ao espírito, quando diz que "aquilo a que mais se parece o espírito é a um estômago". Resulta induvidável que Nietzsche, ao mesmo tempo que nega à consciência, à razão, e ao espírito toda existência autônoma, proporciona uma nova imagem do corpo, o qual aparece como determinante, como o lugar originário da experiência humana. Esta nova imagem do corpo com a qual o filósofo maneja, permite-lhe desenvolver uma tarefa crítica que constitui uma verdadeira fisiologia do conhecimento a qual já aparece em A Origem da Tragédia e mantem-se como uma constante presença durante todas as etapas de seu pensamento, até alcançar sua máxima expressão nos fragmentos póstumos.

É necessário esclarecer que esta fisiologia do conhecimento não representa de modo algum uma adesão de Nietzsche ao paradigma mecanicista. Nietzsche não pretende explicar a atividade da consciência valendo-se do princípio de causalidade, senão enfocando-a desde uma perspectiva vitalista que vê ao mundo como um conjunto de centros de força e resistência em permanente luta entre si. Acaso o exemplo mais concludente do que esta fisiologia do conhecimento representa seja o seguinte aforisma:

"...a distinção e transferência lógicas como critério da verdade ('verdadeiro é aquilo que é percebido clara e dinstintamente' - Descartes): com isso faz-se desejável e verossímil a hipótese mecanicista do mundo [...]de onde sabe-se que a verdadeira conformação das coisas está em conformidade com nosso intelecto? Não será diferente? Que a hipótese que dá-lhe em nível máximo a sensação de poder e segurança é preferida, apreciada, e consequentemente designada como verdadeira por ele? - O intelecto coloca seu poder e capacidade mais livre e mais forte como critério do mais valioso, portanto do verdadeiro [...]os graus máximos no desempenho despertam, com referência ao objeto, a crença em sua realidade, a sensação de força, de resistência, persuade de que há algo a que oferece-se resistência".

É preciso assinalar uma coincidência fundamental entre Nietzsche e Gehlen: ambos pensam que o instinto mais básico; o que está na base de todo fazer e querer é, justamente por sê-lo, o menos reconhecido, pois na prática acolhemos sempre seu mandato. Esta coincidência fundamental não deve fazer com que percamos de vista, não obstante, uma diferença não menos importante: Nietzsche leva a cabo uma inversão do ponto de vista dominante na filosofia ocidental, o qual vía nas idéias, o pensamento, ou o espírito, ao mais próprio do ser humano; Gehlen, entretanto, abre uma nova perspectiva que mostra a conexão existente entre a inferioridade e a exterioridade do ser humano, sem conceder prioridade a nenhum dos termos da relação. Podemos ver no pensamento de Nietzsche uma antecipação da antropologia de Gehlen, porém não podemos perder de vista que Gehlen, diferentemente de Nietzsche, não reage contra uma tradição filosófica, mas sim inaugura uma nova forma de pensar, capaz de arrojar luz sobre todos os aspectos da existência do homem sem dar prioridade a nenhum deles.



3 - A experiência do dionisíaco como manifestação da condição humana

Até agora assinalaram-se uma série de pontos de contato bastante notórios entre os pensamentos de Nietzsche e Gehlen; porém é possível assinalar coincidências muito mais significativas entre ambos autores. Um bom ponto de partida para esta tarefa pode encontrar-se na tentativa de interpretar desde a condição deficitária humana a problemática do dionisíaco em Nietzsche. A tese que terá de defender-se é a seguinte: a ambígua situação existencial caracterizada ao mesmo tempo pelo desgarramento e pela exubereância que a figura de Dionísio representa guarda muitos pontos de contato com a condição humana, tal como esta foi interpretada por Arnold Gehlen. Já em A Origem da Tragédia, o dionisíaco pode ser entendido como um conceito com o qual alude-se a uma atitude fundamentalmente afirmativa perante a existência. Esta atitude contrapõe-se à atitude reativa que caracteriza o ideal ascético. O dionisíaco vem assim a opor-se não somente às religiões reativas que negam a afirmação da vida, mas também à ciência moderna que, na opinião de Nietzsche, tem no pensamento de Sócrates sua primeira manifestação.

O pessimismo dos fortes que encontramos em A Origem da Tragédia representa um dizer sim à vida tendo plena consciência dos aspectos mais terríveis e dolorosos desta. Esta atitude que encontramos em Nietzsche é, em seus traços essenciais, bastante semelhante à que Gehlen expressa por meio da categoria de "obrigação indeterminada", a mesma expressa a necessidade de afirmar a vida em toda circunstância, recorrendo para isso aos meios que considerem-se necessários, os quais não estão determinados de antemão, mas ao invés dependem da interpretação que dê o homem de sua própria vida. A mesma conjunção de carências e superávil pulsional que observa Gehlen no ser humano é expressado por Nietzsche com sua tematização do dionisíaco; a nudez própria de Dionísio corresponde-se plenamente com a indeterminação essencial da vida humana; e nas diversas epifanias do Deus pode-se encontrar um símbolo da plasticidade característica da vida humana.

Também resulta importante ter em conta a observação nietzscheana de que Dionísio sente uma grande afinidade pelos seres humanos; já que assim como este Deus representa na ordem do divino uma forma de vida sumamente particular; o homem representa uma forma de vida atípica, um projeto único da natureza, essa é a razão fundamental da afinidade existente entre os homens e este Deus. Porém a esta razão há que somar outra, não menos importante que a anterior: "Dionísio é o Deus do inacabado nascimento", segundo a expressão de Maria Zambrano, e nisto também é possível assinalar uma coincidência com a condição deficitária do homem em Gehlen, já que este autor toma como pont ode partida de sua antropologia, a idéia de que o homem é um ser inacabado que constitui uma tarefa para si mesmo.

Aprofundando um pouco mais na análise é possível encontrar coincidências ainda mais sutis entre Nietzsche e Gehlen; assim, por exemplo, o fato de que o autor de A Origem da Tragédia expôs em dito livro uma questão que também vai ser tematizada por Gehlen em Der Mensch: a relativa à determinação do significado que adquire a moral desde o ponto de vista da vida. Nietzsche advertiu a existência de um conceito propriamente grego da moral, o qual opõe-se à moral predominante no Ocidente, a qual vê ao ato maligno como uma consequência da má vontade porém não logrou, nem em A Origem da Tragédia, nem em nenhuma de suas obras posteriores, dar uma explicação satisfatória do modo no qual relaciona-se a moral com o conjunto das relações humanas, em virtude que que faltava-lhe, precisamente, uma categoria como a lei da descarga de Gehlen, uma categoria capaz de atrevessar todas as operações humanas. Na obra de Gehlen, por sua vez, sim podemos ver uma resposta convincente a esta questão, a qual pode encontrar-se para citar só dois exemplos, nas páginas 75-76 de Der Mensch, e no capítulo 9 de Moral und Hypermoral.

O próprio Nietzsche deixa aberta a possibilidade de interpretar a religião dionisíaca desde o ponto de vista antropológico, quando em Para Além do Bem e do Mal menciona a simpatia que Dionísio tem pelos seres humanos, ao mesmo tempo que a possibilidade de que os Deuses tomem aos homens como medida, em virtude de que "nós os homens somos mais humanos". Se aceitamos a possibilidade de interpretar o dionisíaco desde o ponto de vista antropológico, podemos pensar também que a antropologia de Gehlen é a mais adequada a este propósito, em virtude das já assinaladas coincidências entre Nietzsche e Gehlen, e de outro fato cuja importância não pode subestimar-se: o fato de que ambos tiveram no pensamento de Herder um poderoso motivo de inspiração.

4 - A filosofia de Nietzsche como uma metafísica antropo-ontológica

As críticas que Nietzsche formula contra as noções que tem dominado a história da ética e da metafísica ocidentais compreendem-se melhor se tem-se em conta que em Nietzsche encontramos uma crítica demolidora da noção apofântica de verdade. Não há, diz o filósofo "...espírito, nem razão, nem pensamento, nem consciência, nem alma, nem vontade, nem verdade, todas são ficções inservíveis. Não trata-se de 'sujeito' e 'objeto', senão de uma determinada espécie animal que somente prospera sob uma certa exatidão relativa e, acima de tudo, regularidade de suas percepções (de modo tal que possa capitalizar a experiência)".

O intelecto não tem, na opinião de Nietzsche, outro valor que não seja o meramente antropológico, por isso recorda-nos: "quão lamentável, sombrio, e efêmero, sem fins e abstratamente, encontra-se o intelecto dentro da natureza. Houve eternidades durante as quais não existiu, quando desapareça, nada haver-se-á perdido, pois nosso intelecto não tem missão ulterior fora da vida humana, é puramente humano, e somente seu possuidor e gerador toma-lhe pateticamente como se fosse o eixo do mundo".

Nietzsche manifesta que na base de todos os conceitos, leis, espécies, formas, e fins com os quais lidamos está nossa necessidade de preparar um mundo no qual nossa existência resulte possível. Não existe uma distinção entre um mundo verdadeiro e um aparente, senão uma distinção entre o mundo fenomênico e o mundo informe e informulável do caos das sensações. O mundo dos fenômenos é o resultado da interpretação que o homem faz do devir valendo-se das categorias da lógica e da metafísica, as quais são o produto de suas necessidades vitais. Esta circunstância faz possível pensar que em Nietzsche encontramos uma continuação da metafísica da finitude que teve seu ponto de partida em Kant. Em efeito, também para Nietzsche vai ser impossível um conhecimento que não esteja intermediado por nossas categorias. A novidade do aporte nietzscheano é a idéia de que também o sujeito é uma ficção resultante das condições de existência do ser humano e não uma estrutura a priori que constitua uma condição de possibilidade da experiência, como ocorria no caso de Kant.

O mundo é interpretado por Nietzsche como um conjunto de centros de força e resistência, como um conjunto de quantum de poder, e o conhecimento é um produto mais da interação (ação e reação) entre esses centros de poder. As condições vitais nas que cada ser vivo desenvolve-se, determinam o tipo de conhecimento que este vai experimentar. O homem também forma parte desses quantum de poder, e, portanto, é um ser perspectivístico; porém, lamentavelmente, pretende conferir a seu próprio ponto de vista o caráter da objetividade. A confusão produziu-se porque:

Em vez de ver na lógica e nas categorias da razão, meios para a disposição do mundo com fins de utilidade ("inicialmente" pois para um falseamento útil) acreditou ter nelas o critério da verdade, ou bem da realidade. O "critério da verdade" foi, de fato, simplesmente a utilidade de um tal sistema de falseamento por princípio; e dado que um gênero animal não conhece nada mais importante que conservar-se, poder-se-ia falar aqui efetivamente de "verdade", a ingenuidade consistiu em tomar a idiossincrasia antropocêntrica como medida das coisas.

De acordo com o que Nietzsche expressa, a lucidez consistiria em tomar consciência da impossibilidade de refundar nossa própria perspectiva. Em tal sentido, o perspectivismo do autor deveria conduzir necessariamente ao antropocentrismo. Não obstante, neste ponto de vista adverte-se uma tensão no pensamento de Nietzsche, se nos atemos a sua afirmação de que: 

"...a vontade de poder é o que dirige também ao mundo inorgânico, não pode-se eliminar o 'efeito a distância', algo atrai outra coisa, algo sente-se atraído, esse é o fato fundamental".

A vontade de poder, enquanto é apresentada aqui como a força que está na base de todo acontecer, resulta um conceito muito forte, ainda quando não tem um significado ontológico. A ambiguidade está dada pelo fato de que Nietzsche confere à vontade de poder muita importância, ao mesmo tempo que nega a relação de correspondência entre os conceitos e a realidade. A pergunta que impõe-se é: Qual é o critério para medir o valor dos conceitos e categorias dos quais Nietzsche vale-se? Uma possível resposta a esta questão pode encontrar-se nas seguintes quatro teses:
1 - Todo ser vivo é perspectivístico, isto equivale a dizer que organiza sua vida de acordo com suas próprias valorações, as quais estão determinadas por suas necessidades biológicas e pelo horizonte vital no qual se move.

2 - O homem, devido a sua particular organização vital, esquece que é também um ser perspectivístico, e absolutiza sua própria experiência vital.

3 - Nietzsche, mediante um procedimento que se absteve de confessar, porém que não é outro que a reflexão, logrou pôr em descoberto a falácia que representa tal maneira de raciocinar.

4 - Esse esclarecimento das condições de existência de nossa própria espécie que leva a cabo a consciência crítica por meio da reflexão, funda a possibilidade de um pensamento de índole antropo-ontológica, original e insólita.

Ao longo de toda sua obra, Nietzsche realiza um labor genealógico com o qual põe em descoberto os impulsos que constituem a base da religião, da ética, e da metafísica. A tese que aqui defende-se é que o produto final dessa tarefa é uma metafísica que tem, como já antecipara-se, uma estrutura antropo-ontológica.

A fim de não cair em um reducionismo, há que dizer que o perspectivismo, a impossibilidade de sair do plano da interpretação e transcender o jogo das máscaras faz que em Nietzsche não haja qualquer conceito transparente. Essa é a razão pela qual o homem mesmo tem que ser visto como uma interpretação. Nos fragmentos póstumos o filósofo diz-nos que o que designamos como a palavra 'homem' é: "...uma pluralidade de forças que encontram-se em uma hierarquia [...] o conceito 'indivíduo' é errado. Estes seres não existem isoladamente, o que mais pesa, aquilo em que recai a ênfase é algo mutante, a constante produção de células, etc, deriva em um câmbio constante do número desses seres..."

O "homem" é para Nitzsche uma ficção na medida em que é um conceito que utiliza-se para referir-se a uma realidade múltipla. Para o filósofo o ser humano é um ser de conteúdo múltiplo através do qual põem-se em movimento enormes forças. O fato de que a perspeciva antropológica resulte privilegiada deve-se somente ao fato de que não podemos refundá-la, em virtude de que é nossa perspectiva; a idéia que Nietzsche propõe-nos é que: "há que assumir todos os movimentos, todos os 'fenômenos', todas as 'leis' como sintomas de um acontecer interior e servir-se até o final dessa analogia".

O homem também forma parte do jogo de máscaras ao qual reduz-se o conhecimento no contexto de da filosofia do "como se"; "homem" é definitivamente um conceito para referir-se a uma multiplicidade que, como tal resulta inexprimível por meio da linguagem, isto equivale a dizer que também a palavra "homem" é uma máscara. Aqui parece apresentar-se uma aporía, em virtude de que o lugar desde o qual julga-se acerca do valor das ficções (o homem) é também uma ficção; porém dita aporía desaparece se tem-se em conta o seguinte: ainda no contexto da filosofia do "como se", ainda respeitando a paixão nietzscheana pela simulação, é necessário ter um critério para avaliar; e parece possível afirmar que o mesmo encontra-se na tomada de consciência acerca da perspectiva desde a qual o ser humana interpreta o devir.

Ainda quando evite-se chegar a uma conclusão definitiva a respeito do pensamento de Nietzsche, ainda quando adote-se o pensamento do caminho e da demora provisória, é preciso que os conceitos ponham-se em movimento; e para isso é necessário que haja um princípio que ative-os. Se a obra de Nietzsche não é uma sucessão de críticas e argumentos carentes de unidade, é preciso que a tarefa que Nietzsche leva a cabo com o fim de dessacralizar as certezas mais arraigadas da metafísica e da ética faça-se desde um lugar determinado. Neste trabalho afirma-se que dito lugar existe, e que encontra-se na perspectiva de nossa própria espécie, ainda quando a mesma deva também ser sujeia a crítica, tarefa que somente pode ser levada a cabo por meio da reflexão.

25/11/2011

Julius Evola - O Imperador Juliano

por Julius Evola


É alentador dar com trabalhos eruditos que vão mais além dos preconceitos e distorções que caracterizam a maioria dos pontos de vista dos historiadores contemporâneos. Este é o caso de Raffaello Prati, que traduziu ao italiano e introduziu ao público os escritos especulativos do imperador romano Juliano Flavius, intitulados coletivamente "De Deuses e Homens".

É destacável que Prati empregara o termo "imperador Juliano" em lugar da expressão predominante de "Juliano, o Apóstata". O termo "apóstata" é dificilmente apropriado neste caso, posto que melhor deveria ser aplicado àqueles que abandonaram as sagradas tradições e os cultos que eram a verdadeira alma da antiga grandeza de Roma e aos que aceitaram uma fé nova, que não era a da estirpe romana ou latina senão de uma origem asiática e judaica. Deste modo, o termo "apóstata" não deveria caracterizar àqueles que, como Juliano Flavius, ousaram ser fiéis ao espírito da tradição, tratando de reafirmar o ideal solar e sagrado do império.

A leitura dos textos publicados, que foram escritos por Juliano em sua barraca de campanha, entre longas marchas e batalhas (como tratando de sacar novas energias de seu espírito para afrontar eventuais dificuldades), deveria servir de proveito aos que seguem a corrente de opinião que define o paganismo, em seus componentes religiosos, como mais ou menos sinônimo de superstição. De fato, Juliano, em sua tentativa de restaurar a Tradição, opôs ao cristianismo uma visão metafísica. Os escritos de Juliano permitem-nos ver, por trás dos elementos alegóricos e externos dos mitos pagãos, uma substância de qualidade superior.

"Sempre que os mitos sobre assuntos sagrados sejam absurdos segundo o pensamento racional, sendo gritados em voz alta, como foram, chamam-nos a não crer neles literalmente, senão a estudá-los e seguir a pista de seu significado oculto... Quando o significado é expressado de modo incongruente há uma esperança de que os homens descuidem do significado mais óbvio (aparente) das palavras, e que a pura inteligência possa ascender à compreensão da natureza inequívoca dos deuses que transcende todos os pensamentos atuais".

Este deveria ser o princípio hermético empregado pelos que estudem os antigos mitos e teologias. Não obstante, quando os eruditos utilizam termos depreciativos como "superstição" ou "idolatria", vem demonstrar que são mentalmente fechados e de má-fé.

Portanto, na revaloração da antiga tradição sagrada de Roma, tentada por Juliano, é o ponto de vista esotérico da natureza dos "deuses" e seu "conhecimento" o que finalmente importa. Este conhecimento corresponde a uma realização interior. Desde esta perspectiva, os deuses não são retratados como invenções poéticas ou como abstrações de teologias filosóficas, senão como os símbolos e as projeções de estados transcendentes de consciência.

Deste modo, o próprio Juliano, como iniciado nos mistérios de Mitra, viu uma relação estreita entre um conhecimento superior de si mesmo e a via que conduz ao "conhecimento dos deuses"; esta é uma nobre meta que não impediu-lhe dizer que inclusive o domínio sobre as terras de Roma e as bárbaras empalidece em comparação.

Isto leva-nos novamente à tradição de uma disciplina secreta através da qual o conhecimento de si mesmo é transformado radicalmente e fortalecido por novos poderes e estados internos, que são simbolizados na teologia antiga por vários numina. Esta transformação diz-se que ocorre após uma preparação inicial, consistente em viver uma vida pura e na prática do ascetismo e finalmente recebendo experiências especiais que estão determinadas por ritos iniciáticos.

Hélios é o poder ao qual Juliano dedica seus hinos, cujo nome invoca inclusive em suas últimas palavras, quando morre ao pôr do Sol em um campo de batalha na Ásia Menor. Hélios é o Sol, o qual não é concebido como um corpo físico, senão como símbolo de uma luz metafísica e de um poder transcendente. Este poder manifesta-se na humanidade e naqueles que foram regenerados, como soberano nous e como uma força mística do alto. Nos dias antigos e inclusive na própria Roma, através da influência persa, considerava-se que esta força estava estritamente associada com a dignidade real. O autêntico significado do culto imperial romano que Juliano tentou restaurar e institucionalizar por cima e contra o cristianismo, somente pode ser apreciado dentro deste contexto. O motivo central no culto é: o autêntico e legítimo líder é o único que está dotado de uma superioridade sobrenatural ontológica e o qual é imagem do rei celestial, chamado Hélios. Quando isso ocorre (e somente então), a autoridade e a hierarquia estão justificadas; o regnum é santificado; e um centro luminoso de gravidade vem a fundar-se, o qual atrai para si a um número de homens e forças naturais.

Juliano ansiava por realizar este ideal "pagão" dentro de uma hierarquia imperial estável e unitária, dotada de um fundamento dogmático, um sistema de disciplinas e leis e uma classe sacerdotal. A classe sacerdotal supunha-se ter como líder o próprio imperador, o qual, tendo sido regenerado e elevado por cima das meras condições mortais graças aos Mistérios, encarnava simultaneamente a autoridade espiritual e o poder temporal. De acordo com este ponto de vista, o imperador era tido como o Pontifex Maximus, um termo antigo recuperado por Augusto. Os pressupostos ideológicos sobre os quais fundamenta-se a visão de Juliano, são: 1) a natureza, é entendida como formada por um todo harmônico e penetrada por forças vivas, porém invisíveis; 2) um monoteísmo professado pelo Estado; 3) um corpo de "filósofos" (seria mais apropriado chamá-los homens sábios) capazes de interpretar a teologia tradicional da antiga Roma e de atualizá-la mediante ritos iniciáticos.

Esta visão está em duro contraste com o primitivo dualismo cristão, exemplificado pela frase de Jesus que diz: "dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César". Esta frase leva finalmente ao cristianismo rechaçar a render homenagem ao imperador em qualquer outro rol que não seja o de um governante. Este rechaço, ocasionalmente, foi considerado como uma manifestação de anarquia e de subversão, e culminou na perseguição estatal contra os cristãos.

Desgraçadamente o tempo não estava maduro para a realização do ideal de Juliano. Uma realização semelhante teria requerido a participação ativa, mediante sinergia, de todos os estratos da sociedade assim como um relançamento da antiga Weltanschauung em termos mais vibrantes. Em lugar disso, dentro da sociedade pagã deu-se uma separação irreversível entre forma e conteúdo.

Inclusive o consenso que havia conseguido o cristianismo foi um signo fatal da decadência dos tempos. Para uma ampla maioria do povo, falar acerca de deuses como experiências internas ou considerar os princípios solares e transcendentes acima mencionados como requisitos necessários para o império era nada mais que uma ficção ou mera "filosofia". Em outras palavras, o que faltava era uma fundação existencial. Ademais, Juliano enganou-se crendo que seria capaz de transformar certos ensinamentos esotéricos em forças formativas políticas, culturais e sociais. Devido a sua verdadeira natureza, esses ensinamentos estavam destinados, não obstante, a cair unicamente dentro da competência de círculos restritos.

Isso não deveria levar-nos à conclusão de que, ao menos em princípio, existiria uma contradição entre a visão de Juliano e o ideal de um Estado forjado na aplicação destes elementos espirituais e transcendentes. A própria existência histórica de uma sucessão de civilizações que foram centradas em uma espiritualidade "solar" (abarcando desde o antigo Egito e ao antigo Irã, até o Japão anterior à Segunda Guerra Mundial) deveria demonstrar que esta contradição não existe em realidade. Deveria dizer-se mais acertadamente que Roma, nos tempos de Juliano, carecia já da substância humana e espiritual capaz de estabelecer as conexões e relações de participação que caracterizam a uma nova hierarquia viva que possa criar um organismo imperial totalitário merecedor do nome pagão.

O célebre texto de Dimitri Merezhkovsky, "Morte dos deuses", reúne de modo admirável e sugestivo o ambiente cultural dos tempos de Juliano com seus presságios de um ocaso dos deuses.

Após um longo parêntese, alguns elementos da antiga Tradição foram destinados a ressurgir. Graças à emergências das dinastias germânicas nos palcos da história europeia, foi possível falar de novo de restauratio imperii, na forma do Sacro Império Romano Germânico medieval. Isso é certo especialmente se consideramos a tradição guibelina que tratou de reclamar para o Império, contra as demandas hegemônicas da Igreja de Roma, uma dignidade sobrenatural não inferior à que a própria Igreja desfrutava.

Atendendo a isso, é importante para um exame mais próximo ter em conta o que foi ocultado na literatura cavalheiresca, na assim chamada lenda imperial e também em outros documentos. Tratei de reunir e interpretar adequadamente todas estas fontes em nossa obra "O mistério do Graal e a tradição guibelina do império", ano 1937.

24/11/2011

A Música do Futuro

por Christopher Pankhurst

Um interregnum é um tempo de máxima possibilidade. Aprumados como estamos entre o fim da velha cultura europeia e a possibilidade de uma nova e renascida cultura europeia é útil refletir um pouco sobre a direção que nossa nova cultura deve tomar.

Que a velha cultura morreu será óbvio para qualquer um que tenha alguma sensibilidade para tais questões. A grande tradição musical que alcançou seu ápice com Bach, e que subsequentemente buscou expressão através do gênio individual de Beethoven e Schubert, teve sua marcha fúnebre nas Metamorphosen de Strauss. Essa obra intensamente triste para cordas evocava a grandeza destruída das casas de ópera alemães em que Strauss teve tantos sucessos, e que, como a própria tradição musical, estavam em ruínas na década de 40. Atonalidade, serialismo, jazz, todas passeavam arrogantemente e em certo sentido vingativamente sobre a tuma da tradição ocidental. Agora, na segunda década do século XXI, a feiúra tornou-se tão onipresente que nós estamos em risco de esquecer o que torna a beleza digna em primeiro lugar.



A tradição musical europeia era tão grandiosa, tão intensamente bela, que alguns apoiadores da cultura europeia querem reviver o cadáver e fazê-lo, como um zumbi demente, reviver seus maiores sucessos. Nós devemos ser claros em reconhecer que não importa quão sublime a música de nossa cultura passada foi, ela agora pertence a uma cultura que morreu. Não importa quão triste possa ser pensar que essa grande tradição jamais cantará novamente, nós não devemos ser indevidamente sentimentais no que concerne tais questões. Tudo morre, e nossa velha cultura europeia não é exceção.

Isso não quer dizer que devamos deixar de reconhecer a grandeza de nossa tradição. Ao contrário, nós devemos honrar nossos ancestrais falecidos e aprender com eles. O que não podemos suportar é qualquer engajamento em uma verborragia inútil de ressurreição cultural. Não haverá retorno da velha tradição musical europeia. Uma insistência doentia na superioridade da cultura defunda sobre todas as formas presentes resulta em um tipo de necrofilia cultural, e tende ao tipo de enervação cultura que está sendo explícitamente resistida. Resumidamente, é algo fútil.

Não houve uma gênese única para nossa cultura musical, mas o Concílio de Trento (1545-1653) é às vezes tomado como sendo a parteira do contraponto. Nessa conferência eclesiástica a questão do contraponto foi discutida. A questão era controversa porque era sentido por alguns que o contraponto estava sendo utilizado para mera ornamentação, com valor de entretenimento. Enquanto o cantochão permitia clareza completa nas linhas vocais da escritura, o contraponto tendia (assim argumentava-se) a obscurecer o texto pelo emprego de técnicas musicais elaboradas que demandavam adulação por si mesmas. A música era feita para ser um mero veículo da adoração a Deus. Lendas relatam que o compositor Palestrina persuadiu o Concílio dos méritos do contraponto compondo uma missa que utilizava essa técnica de modo tão belo que eles aceitaram sua aplicação como uma arte adequada à adoração.

Em todo caso, o contraponto, ou polifonia, veio a ser o modo quintessencialmente europeu de expressão em forma musical. Enquanto o resultado do Concílio permitiu ao gênio de Bach emergir em toda sua glória ele também, inadvertidamente e tortuosamente, levou à atual degeneração da música. Por que? Porque a decisão do Concílio inaugurou a possibilidade da composição musicial poder existir por conta própria, apartada da busca do numinoso.

O propósito de toda arte Tradicional é encontrar expressão para a apreensão numinosa, recriar o inefável através de um simulacro simbólico. Tão logo este imperativo retire-se da função criativa os apetites e desejos do homem tornam-se uma matéria válida para a expressão artística. O resultado final de tal processo, inevitavelmente, é o tipo de egoísmo degenerado mascarada como arte que nós vemos em todo lugar no Ocidente hoje.

Esse declínio de uma arte numinosa a uma arte pessoal pode ser mapeado de diversas formas mas, para o século XX, a emergência de numerosos modismos avant garde na música clássica é um bom exemplo. Para a maioria das pessoas, atonalidade, serialismo, et al., parecem ser demasiado desprovidas de alma. Essa opinião do senso comum possui uma grande medida de verdade, na medida em que essas formas musicais tentam elevar um senso de novidade e esperteza intelectual a uma posição que demanda adoração.

Aqui, talvez seja sábio ter em mente a origem da palavra 'cultura' no latim colere. Colere significa "habitar" daí a palavra "colônia" também derivada. "Cultivo", como na agricultura, é outra palavra derivada de colere, que então assume o sentido adicional de respeito e adoração, de onde "culto" desenvolve-se. Esse exercício etimológico é necessário porque alerta-nos para o fato de que a cultura era tradicionalmente relacionada ao respeito pela própria terra.

Dessa posição a importância da arte folclórica torna-se clara. Dessa arte folclórica é possível desenvolver uma cultura superior que esteja preocupada com a adoração do numinoso, mas é essencial notar que essa forma de adoração do numinoso cresce a partir de uma comunidade popular, enraizada. Dentro desse modelo de arte Tradicional não há lugar para arte "nova" ou "esperta". Adorar a própria soberba é mediocrizar o que significa ser humano.

Defensores da cultura europeia podem, como resultado de seu declínio, parecer estarem remontando dias de glória que nunca realmente existiram (ao menos não do modo em que imaginamos hoje). Esse conservadorismo cultural nunca pode ser realmente bem sucedido porque a cultura, mesmo enquanto retenha fidelidade à tradição perene, deve ser uma foma de vida dinâmica. O espírito que cria arte grande e duradoura é o mesmo espírito que é encontrado nos campos de batalha, ou na dor altruísta da mãe em trabalho de parto, mas não no espírito de um curador de museu. Esse espírito (se aceitarmos que o numinoso encontra expressão através do homem ao invés do oposto) buscará articulação em formas vitais, viventes, e não necessariamente respeitará nossas noções de gosto.



Ouça "Das Wirthaus" do Winterreise de Schubert, e então "Whilst the Night Rejoices Profound and Still", do Soft Black Stars do Current 93. Eu sugeriria que o tom aguda tristeza que permeia ambas canções brota da mesma fonte. Sugerir que uma é um clássico do cânon ocidental e condenar a outra ao status de Entartete Musik trai uma atitude que é cegada pela santimônia da anti-modernidade. Apenas o mais decidado taxonomista da arte europeia seria capaz de discernir qualquer distinção significativa entre as duas peças musicais. Em verdade, considerando que Schubert estava criando o molde para a canção pop moderna (curta, lírica, a emoção em primeiro plano, etc.) e que David Tibet está ativamente buscando uma forma de expressão mais profunda e espiritual, poder-se-ia dizer que Tibet é um exemplar maior de cultura europeia. Heresia para aficionados, sem dúvida, mas o que mais além de esnobismo sustenta sua opinião?


A perspectiva de Oswald Spengler será pertinente aqui. Em Declínio do Ocidente ele compara a Dies Irae cristã com a Völuspá pagã e encontra, "a mesma vontade determinada de superar e romper todas as resistências do visível". (1) Em nossa arte europeia encontra-se de tempos em tempos o mesmo espírito faustiano manifestando-se de várias formas superficialmente distintas. Como Odin, esse espírito vaga incansavelmente, envergando e descartando máscaras conforme sua conveniência. A tarefa importante para nós é discernir a verdadeira essência dentro da forma. No momento presente de nossa cultura esse espírito não é encontrado no mundo da música clássica.

Ao longo do século XX, é verdade, houve algumas obras musicais importante, até mesmo numinosas, criadas na tradição musical clássica. Pode-se considerar Ligeti, Messiaen, Pärt, et al. Mas essas obras tendem cada vez mais a serem criadas por gênios individuais excêntricos capazes de criar arte apesar da cultura, e não por causa dela.

A Tradição musical europeia costumava ser sinônima com música sacra, e enquanto tal estava firmemente ligada ao objetivo de presenciar o numinoso. Este era um projeto apoiado e financiado pelos poderosos das sociedades europeias. A arte elevou-se como um imperativo orgânico, articulando a alma do Ocidente em um nível superior.

Hoje não há uma única cultura europeia em existência em qualquer lugar no mundo. Consequentemente, o tipo de arte que surgiu de culturas passadas do Ocidente não é mais possível. Não há em lugar algum uma cultura europeia superior baseada em comunidades locais homogêneas pequenas, unidas por observâncias sagradas compartilhadas. Sem a existência de tal cultura, não pode haver continuação da corrente artística do passado.

Análogo ao desenvolvimenti e declínio da tradição musical é o declínio de nossa tradição literária. À época de Shakespeare, a literatura inglesa ainda era baseada em certas formas tradicionais autênticas (Hamlet, afinal, era originalmente uma saga germânica), mas a decadência de um cosmopolitanismo sofisticado já estava em evidência. Quando Macbeth lamenta que ,"Os multitudinosos mares encarnadinos/Fazendo do verde um vermelho", a supérflua segunda linha é simplsmente um eco elegante dos neologismos estrangeiros na primeira. Essa capacidade voraz de roubar palavras estrangeiras é uma das razões da eloquência de Shakespeare, mas também significava que a poesia já estava apelando aos desejos estéticos do homem ao invés de servir ao grande imperativo de santificar suas qualidades superiores. A tradição literária mais antiga, como evidenciada nos Eddas, nas Sagas, e nos poemas de batalha, buscavam tornar os feitos do homem sagrados imortalizando o heróico e santificando sua emulação.

Por volta da época de Wordsworth o declínio da literatura era tão preocupante que ele e Coleridge tentaram revive-la apresentando uma nova forma de balada poética. Eles tentaram descargar a retórica ornamentada e de corosa que havia tornad-se tão popular na poesia, e retornaram a uma tradução mais simples, quase campesina. As mais espiritualmente inclinadas Songs of Innocence and Experience de William Blake também tentaram um uso mais simples do inglês. Uma ação de retaguarda similar foi efetivada no século XX quando T.S. Eliot tentou reinventar a literatura através da utilização de diferentes registros discursivos e da justaposição de perspectivas distintas. O circo da pós-modernidade foi a recompensa por seus esforços.

A fasa do ciclo cultural que nós agora alcançamos é talvez a mais excitante de todas, já que contém a maior possibilidade. As estruturas de poder moribundas do Ocidente estão desabando ao nosso redor. O espírito faustiano do Ocidente não olhará para essas estruturas desprovidas de alma para sua manifestação, mas ao invés para formas novas, emergentes. Essas podem aparecer no mundo pretensioso da arte hermética ou, igualmente, em formas bem mais populares. O que é importante não é a pretensão de esnobismo, baseada em um gosto supostamente "refinado", mas a essência interna da forma da arte independentemente de seus meios de aparência. Coomaraswamy define bem a questão:

"A distinção não é tanto uma de cultura aristocrática em relação a cultura campesina quanto uma de culturas aristocráticas e campesinas em relação a culturas burguesas e proletárias...Um tradicional não deve confundir-se com uma arte acadêmica ou meramente ornamental; a tradição não é uma mera fixação estilística, nem meramente uma questão de sufrágio geral. Uma arte tradicional possui finalidades fixas e meios certificados de operação, tem sido transmitida em sucessão papilar desde um passado imemorial, e retem seus valores mesmo quando, como no presente, saiu de moda. As artes hieráticas e folclóricas são ambas tradicionais... Uma arte acadêmica, por outro lado, não importa quão grande seja seu prestígio, e quão elegante ela possa ser, pode muito bem e geralmente é de um tipo sentimental, profano, pessoal, e anti-tradicional". (2)

Como Coomaraswamy indica tanto em sua obra, são frequentemente as classes inferiores que são mais hábeis em preservar os ensinamentos Tradicionais porque elas são menos suscetíveis aos encantos do cosmopolitanismo sofisticado do que seus compatriotas mais afluentes. Essa opinião é bastante contra-intuitiva para muitos que percebem as classes mais educadas como sendo os melhores exemplares de cultura. É verdade que quando uma cultura está em seu ápice de realização seus frutos vem da elite. Mas quando essa elite apoia uma cultura degenerada, expressa através do materialismo, do hedonismo, e do egoísmo, nós devemos olhar para outras, talvez desprezadas, formas de expressão artística para encontrar algo que seja mais autenticamente europeu.

Se a roda há de virar uma vez mais e a cultura europeia há de experimentar uma nova fase de criação isso será possível apenas com a criação de novos tipos de sociedade que desprezem as pressuposições materialistas, globalistas, e autoritárias do tempo presente. Tais sociedades devem ser baseadas em comunidades menores, mais rurais, mais auto-suficientes. A vacuidade da cultura moderna é uma consequência de modos enervantes de vida que promovem ideologias abstratas, e relacionamentos virtuais, tudo sob a ordem do capital e do desgaste do numinoso. A arte Tradicional erguer-se-á apenas (à parte de ocasionais indivíduos de gênio) a partir de comunidades menores baseadas em relações sociais mais pessoais, e em uma compreensão mais autêntica da terra e da passagem das estações. Apenas em tais circunstâncias pode um novo (e ainda assim imemorialmente antigo) entendimento numinoso surgir.

Nesse momento nós devíamos estar buscando a formação de agrupamentos ao estilo Männerbund que garantam o ethos guerreiro necessário para a formação de tais comunidades. Esses agrupamentos são prováveis de serem formados em claques subculturais um tanto rebeldes, uma das quais já vimos na cena Black Metal. A cena Black Metal norueguesa foi demonstrada, em um livreto pelo escrito austríaco Kadmon (3), como sendo uma remanifestação inconsciente da Oskorei, a Caçada Selvagem.

Na Noruega, em tempos pagãos, grupos cúlticos de homens jovens solteiros cavalgavam com selvageria pela sua área local à época do Solstício de Inverno. Em comum com suas contrapartes posteriores no Black Metal eles vestiam-se como cadáveres, cometiam atos de incêndio premeditado, e fazia uma grande cacofonia. A relevância disso para a continuação da Tradição Musical europeia não será compreendida para muitos, mas o elemento-chave é que os músicos do Black Metal estavam restaurando um equilíbrio natural para o que havia tornado-se doentio. Os antigos grupos cúlticos ao estilo Männerbund não estavam simplesmente causando caos pelo caos. Eles possuíam uma função sagrada, e operando no Solstício de Inverno eles eram um contraponto "escuro" às celebrações de fertilidade "claras" da Primavera. Ambos são necessários para que o equilíbrio seja mantido.

Eu não estou tentando sugerir que o Black Metal é necessariamente o tipo de música que todos deveriam ouvir ainda que algumas faixas, tais como "Det Som Engang Var" do Burzum, possuam uma inegável beleza austera. Ao invés eu estou preocupado com o reconhecimento da manifestação do espírito numinoso faustiano do Ocidente independentemente de como esteja mascarado. Mais prosaicamente, nós seremos comovidos apenas por aquilo que fala efetivamente a nós. Sem dúvida é verdade que a tradição clássica representa a mais eloquente expressão da música europeia, mas a voz mais eloquente não é sempre a única que comover-nos-á mais urgentemente.


Na ausência de uma cultura funcional europeia as manifestações autênticas do espírito ocidental erguer-se-ão às margens da cultura. Quer seja no Black Metal, na música folk, no neofolk, ou em algo ainda por emergir, a questão importante é se estes grupos subculturais mantem uma conexão com a essência numinosa do espírito europeu. O fato de que há tanta estética pagã e ocultista nos gêneros supramencionados é causa para celebração já que demonstra uma preocupação em expressar uma visão-de-mundo autenticamente europeia e numinosa.

Se as novas formulações musicais expressadas através do black metal, do neofolk, ou do que seja são "melhores" ou "piores" que os clássicos do cânon europeu precedente é uma questão irrelevante. Talvez essas formas modernas sejam menos realizadas e menos musicalmente articuladas do que as formas precedentes. Mas a questão é que, na ausência de formas contemporâneas, autenticamente europeias, de expressão no idioma clássico, a existência dessas expressões populares do espírito faustiano deveria ser celebrada sem reservas. Não importa quão juvenis eles possam ser enquanto gêneros musicais (e aqui eu uso o termo "juvenil" apenas como um ponto de comparação musical com a tradição clássica - estes músicas não são pueris) permanece verdadeiro que um grande carvalho crescerá apenas de uma noz, e não de um galho caído.

Desde a Renascença o deus Orfeu tem sido uma figura arquetípica para a música europeia. Seu era o poder de enfeitiçar a natureza à submissão através de sua arte, um atributo assaz faustiano. Quando a mulher de Orfeu, Eurídice, morreu Orfeu viajou ao submundo e pela majestade de sua música persuadiu Hades e Perséfone a permitirem que Eurídice acompanhassem ele para casa, assim desafiando a morte. Os deuses do submundo estabelecem uma condição: que Orfeu não olhe para trás. Conforme Orfeu emerge vai emergindo do submindo ele é acometido de anseio por Eurídice e vira-se para olhar para ela, mas ela não havia ainda seguido para a Terra, então ela foi arrastada de volta, dessa vez para nunca mais voltar. Essa história é salutar para todos aqueles preocupados com o futuro da cultura europeia.

21/11/2011

Imigração: O Exército de Reserva do Capital

por Alain de Benoist



Em 1973, pouco antes de sua morte, o presidente francês Georges Pompidou admitiu ter aberto os portões da imigração, a pedido de um certo número de grandes empresários, tais como Francis Bouygues, que estava ávido por tirar vantagem do trabalho dócil e barato desprovido de consciência de classe e de qualquer tradição de luta social. Essa medida foi tomada para exercer pressão sobre os salários dos trabalhadores franceses, reduzir o seu zelo combativo, e ademais, romper a unidade do movimento sindical. Grandes chefes, ele disse, "sempre querem mais".

Quarenta anos depois nada mudou. Em uma época em que nenhum partido político ousaria pedir uma aceleração do ritmo da imigração, apenas grandes empresários parecem estar a favor - simplesmente porque é de seu interesse. A única diferençe é que os setores econômicos afetados são agora mais numerosos, indo além do setor industrial e dos setores de serviços de hotelaria e bufê - agora para incluir profissões outrora "protegidas", tais como engenheiros e cientistas de computação.

A França, como sabemos, começando no século XIX, buscou massivamente imigrantes estrangeiros. A população imigrante já era de 800.000 em 1876, para alcançar 1,2 milhões em 1911. A indústria francesa era o principal centro de atração pra imigrantes italianos e belgas, seguidos por poloneses, espanhóis e portugueses. "Tal imigração, não especializada e não sindicalizada, permitiu aos empregadores evadirem exigências cada vez maiores relaivas à legislação trabalhista". (François-Laurent Balssa, "Um choix salarial pour les grandes enterprises", Le Spectacle du monde, outubro, 2010).

Em 1924, pela iniciativa do Comitê de Mineração de Carvão e de latifundiários do nordeste da França, uma "agência geral para a imigração" (Société générale d'immigration) foi fundada. Ela abriu departamentos de emprego na Europa, que operavam como bombas de sucção. Em 1931 havia 2,7 milhões de estrangeiros na França, ou seja, 6,6% da população total. Naquela época a França tinha o mais alto nível de imigração no mundo (515 pessoas por 100.000 habitantes). "Essa foi uma maneira prática para um grande número de grandes empresários de exercerem pressão salarial...Daí em diante o capitalismo entrou na competição da força de trabalho apelando aos exércitos de reserva dos assalariados".

No pós-Segunda Guerra, imigrantes começaram a chegar mais e mais frequentemente de países magrebinos; primeiro da Argélia, então do Marrocos. Caminhões alugados por grandes companhias (especialmente das indústrias automobilística e de construção) vinham às centenas recrutar imigrantes no local. De 1962 a 1974, quase 2 milhões de imigrantes adicionais chegaram à França dos quais 550.000 foram recrutados pelo Serviço Nacional de Imigração (SNI), uma agência estatal, porém controlado por baixo dos panos pelo grande capital. Desde então, a onda continuou a crescer. François-Laurent Balssa nota que:

"quando uma falta de mão-de-obra em um setor ocorre, das duas escolhas possíveis deve-se ou aumentar o salário, ou deve-se buscar mão-de-obra estrangeira. Usualmente é a segunda opção que é favorecida pelo Conselho Nacional de Empregadores Franceses (CNEF) e desde 1998 por seu sucessor, o Movimento de Empresas. Essa escolha, que dá testemunho do desejo por benefícios a curto prazo, avanço retardado de ferramentas de produção e inovação industrial. Durante o mesmo período, porém, como o exemplo do Japão demonstra, a rejeição da imigração estrangeira e o favorecimento da força de trabalho doméstica permitiu ao Japão alcançar sua revolução tecnológica, bem a frente da maioria dos seus competidores ocidentais".

Grande Capital e a Esquerda; Uma Santa Aliança

Inicialmente, a imigração era um fenômeno ligado às grandes empresas. Ela continua sendo assim. Aqueles que sempre clamam por mais imigração são as grandes corporações. Essa imigração está em concordância com o próprio espírito do capitalismo, que objetiva extinguir as fronteiras ("laissez faire, laissez passer"). "Ao mesmo tempo em que obedece a lógica do dumping social, Balssa continua, um mercado de trabalho de 'baixo custo' foi assim criado com os 'não registrados' e os 'não especializados', funcionando como um 'faz-tudo' temporário". Assim, o grande capital estendeu sua mão para a extrema-esquerda, aquela objetivando desmantelar o welfare state, considerado muito custoso, esta destruindo o Estado-Nação considerado muito arcaico". Essa é a razão pela qual o Partido Comunista Francês (PCF), e Central Sindical Francesa (CSF) (que mudou radicalmente desde então), haviam, até 1981, batalhado contra o princípio liberal das fronteiras abertas, em nome da defesa dos interesses do proletariado.

Ao menos agora um liberal-conservador católico bem inspirado, Philippe Nemo, apenas confirma essas observações:

"Na Europa há pessoas responsáveis pela economia que sonham em trazer mão-de-obra barata para a Europa. Primeiramente, para ocuparem cargos para os quais há baixa oferta de mão-de-obra nativa; em segundo lugar, para exercer pressão considerável sobre os salários de outros trabalhadores na Europa. Estes lobbies, que possuem todos os meios necessários para serem ouvidos tanto pelos governos ou pela Comissão em Bruxelas, são, geralmente falando, tanto em favor da imigração como do alargamento da Europa - que facilitaria consideravelmente migrações de mão-de-obra. Eles estão certos sob esse ponto de vista - uma opinião que atende exclusivamente a uma lógica econômica (...) O problema, porém, é que não pode-se discutir sobre essa questão apenas em termos econômicas, dado que o influxo dessas populações extra-europeias também possui consequências sociológicas severas. Se esses capitalistas dão pouca atenção a esse problema, talvez seja porque eles aproveitam-se amplamente de benefícios econômicas da imigração sem, porém, sofrerem eles próprios dos reveses sociais. Com o dinheiro ganho por suas empresas, cuja lucratividade é garantido dessa maneira, eles podem residir em belas vizinhanças, deixando seus compatriotas menos afortunados para lidarem por conta própria com populações estrangeiras em áreas suburbanas pobres". (Philippe Nemo, Le Temps d'y penser, 2010)

Segundo dados oficiais, imigrantes vivendo em famílias regulares representam 5 milhões de pessoas, ou seja 8% da população francesa em 2008. Filhos de imigrantes, que são descendentes diretos de um ou dois imigrantes, representam 6,5 milhões de pessoas, ou seja 11% da população. O número de ilegais estima-se ser entre 300.000 e 550.000. (A expulsão de imigrantes ilegais custa 232 milhões anualmente, ou seja, 12.000 euros por caso). De sua parte, Jean-Paul Gourevitch, estima que a população de origem estrangeira vivendo na França em 2009 seja de 7,7 milhões (das quais 3,4 milhões são do Maghreb e 2,4 milhões da África Sub-Saariana), isto é, 12,2% da população metropolitana. Em 2006, a população imigrante foi responsável por 17% dos nascimentos na França.

A França hoje está experimentando assentamentos migrantes, que é uma consequência direta da política de reunificação familiar. Porém, mais do que nunca antes os imigrantes representam o exército de reserva do capital.

Nesse sentido é incrível observar como as redes favoráveis aos "ilegais", lideradas pela extrema-esquerda (que parece ter descoberto nos imigrantes seu "proletariado substituto") serve aos interesses do grande capital. Redes criminosas, traficantes de pessoas e bens, grandes empresas, ativistas de "direitos humanos", e empregadores corruptos - todos eles, por virtude do livre-mercado global, tornaram-se apologistas da abolição de fronteiras.

Por exemplo, é um fato revelador que Michael Hardt e Antonio Negri em seus livros Império e Multidão endossam "cidadania mundial" quando eles clamam pela remoção de fronteiras, que deve ter como um primeiro objetivo nos países desenvolvidos o assentamento acelerado de massas de trabalhadores pobres do terceiro mundo. O fato de que a maioria dos migrantes hoje deve seu deslocamento ao outsourcing, causado pela lógica sem fim do mercado global, e que seu deslocamento é precisamente algo que o capitalismo deseja de modo a encaixar todos no mercado, e finalmente, que cada ligação territorial possa ser parte de motivações humanas - não incomoda esses dois autores de modo algum. Ao contrário, eles notam com satisfação que "até o capital requer uma mobilidade de trabalho cada vez maior bem como a migração contínua através de fronteiras nacionais". O mercado global deveria constituir, sob seu ponto de vista, uma moldura natural para a "cidadania global". O mercado "necessita de um espaço suave de fluxo desterritorializado e não-codificado", destinado a servir aos interesses das "massas", porque a "mobilidade porta uma etiqueta do capital, que significa o desejo ampliado por liberdade".

O problema com tal apologia do deslocamento humano, visto como uma condição primeira do "nomadismo liberador", é que ele apoia-se em uma perspectiva completamente irreal da situação específica dos migrantes e dos povos deslocados. Como Jacques Guigou e Jacques Wajnsztejn escrevem, "Hardt e Negri iludem-se com a capacidade dos fluxos de imigração, pensado como sendo uma fonte de novas oportunidades para valoração do capital, bem como a base para oportunidade de melhoramento para as massas. Porém, os migrantes não significam nada além de um processo de competição universal, enquanto migrar não possui mais valor emancipatório do que ficar em casa. Uma pessoa 'nômade' não é mais inclinada à crítica ou à revolta que uma pessoa sedentária". (L'évanescence de la valeur. Une présentation critique du groupe Krisis, 2004).

"Enquanto as pessoas continuem abandonando suas famílias, acrescenta Robert Kurz, e buscando trabalho em outro lugar, até pondo em risco suas próprias vidas - apenas para serem finalmente despedaçadas pela esteira do capitalsimo - elas serão menos arautas da emancipação e mais os agentes auto-congratulatórios do Ocidente pós-moderno. Na verdade, eles representam apenas sua versão miserável". (Robert Kurz, "L'Empire et ses théoriciens", 2003).

Quem quer que critique o capitalismo, ao mesmo tempo em que aprova a imigração, da qual o proletariado é a primeira vítima, deve silenciar-se. Quem quer que critique a imigração, enquanto permanece em silêncio a respeito do capitalismo, deve fazer o mesmo.