30/11/2011

A Tragédia da "Guarda de Ferro" Romena

por Julius Evola



O carro está levando-nos para fora dos subúrbios da cidade, por uma rua comprida, provinciana, miserável, sob um céu cinzento e chuvoso. Subitamente ele vira à esquerda, entre em um caminho campestre, para de frente para uma pequena villa com contornos nítidos, a "Casa Verde", o centro da "Guarda de Ferro". "Nós a construímos com nossas próprias mãos", o líder dos legionários que está acompanhando-nos conta-nos, não sem certo orgulho. Nós entramos, caminhamos por um tipo de sala de guarda, alcançamos o primeiro andar. Através de um grupo de legionários que afastam-se vem em nossa direção um homem jovem, alto, e magro, com uma expressão incomum de nobreza, franqueza, e energia impressas em sua face: olhos azul-celeste, testa aberta, tipo ário-romano genuíno: e, misturado com traços viris, algo contemplativo, místico em sua expressão. Esse é Corneliu Codreanu, o líder e fundador da "Guarda de Ferro" romena, aquele que é chamado "assassino", "lacaio de Hitler", "conspirador anarquista", pela imprensa mundial, porque, desde 1919, ele vem desafiando Israel, e as forças que estão mais ou menos em conluio com ela, em operação na vida nacional romena.

Entre todos os líderes dos movimentos nacionais que nós encontramos durante nossas jornadas pela Europa, poucos, ou nenhum, causaram-nos uma impressão tão favorável quanto Codreanu. Nós descobrimos conversando com ele uma tão perfeita concordância de idéias como com poucos outros, e nós encontramos em uns poucos a capacidade de ascender tão resolutamente do plano do contingente e relacionar-se às premissas de natureza genuinamente espiritual uma vontade de renovação nacional-política. O próprio Codreanu não ocultou sua satisfação em encontrar alguém com quem algo mais do que a fórmula estereotipada de "nacionalismo construtivo" pode finalmente ser expressada, uma fórmula incapaz de alcançar a essência do movimento legionário romeno.

Nosso encontro deu-se à época da queda do gabinete Goga, da intervenção direta do rei, da promulgação de uma nova constituição, do plebiscito. Nós havíamos ouvido em detalhe sobre o lado oculto dessa reviravolta. Codreanu, em uma lúcida síntese, acrescentou à nossa visão acerca dessa matéria. Ele tinha muita fé no futuro, e mesmo na vitória iminente de seu movimento. Se não havia reagido e demonstrado qualquer oposição, isso foi por razões táticas precisas: "Se tivessem havido eleições regulares, como Goga havia pensado, nós teríamos vencido com uma maioria esmagadora", Codreanu disse-nos literalmente, "mas confrontados com a alternativa de dizer sim ou não a um fait accompli tal como a constituição, ela própria inspirada pelo rei, nós nos recusamos a aceitar a luta". Ele até mesmo acrescentou: "Nós conquistamos a primeira linha de trincheiras, então a segunda, a terceira, e o adversário, que havia trancado-se em um cubículo, na segurança que este oferece, dispara contra nós, sem saber que nós não gostaríamos de fazer outra coisa que vir em seu auxílio contra seu verdadeiro inimigo". Nós devemos recordar essa outra sentença de Codreanu, em relação a nossa questão sobre seu ponto de vista acerca do rei: "Mas nós somos todos monarquistas; a questão é que nós não podemos renunciar a nossa missão e fazer compromissos com um mundo corrupto e ultrapassado".

E, quando ele queria nos levar de volta para nossa estalagem em seu própri carro, não considerando a sensação que isso poderia causar e nós menos ainda o alerta de nossa embaixada que contou-nos que qualquer um que se encontrasse com Codreanu seria expulso do reino nas próximas 24 horas, despedindo-se de nós e sabendo que então iríamos a Berlim e Roma, ele disse-nos: "Todos aqueles que lutam por nossa causa, eu os saúdo digo-lhes que o legionarismo romeno está e estará incondicionalmente ao seu lado na luta anti-judaica, anti-democrática, anti-bolchevique".

A tradução italiana do livro de Codreanu, "A Guarda de Ferro", que já havia sido apresentada em Bucareste, acabou de ser publicada na coleção Europa Giovane. É a primeira parte de um trabalho que é simultaneamente a autobiografia de Codreanu e a história de sua luta e seu movimento, entrelaçadas de maneira natural com a exposição de sua doutrina e de seu programa nacionalista. Esse livro pode ser comparado à primeira parte de "Minha Luta", sem medo de que ele possa ser diminuído por essa comparação. De fato, é a própria força, e mesmo a própria tragédia, das coisas, que garante que a narrativa de Codreanu tenha um poder sugestivo particular, e nós pensamos que qualquer fascista deveria ficar cônscio, através dele, das vicissitudes trágicas e dolorosas de uma luta que, em solo romeno, repetiu a luta de nossa própria revolução anti-democrática e anti-judaica. Desse modo a verdade, previamente oculta ou distorcida por uma imprensa preconceituosa, finalmente torna-se conhecida, e torna-se claro que aqueles que ignoram o fator do movimento legionário, atualmente reprimido porém certamente não morto, não pode formar uma idéia adequada dos possíveis desenvolvimentos lá.



Por sua própria natureza, o livro de Codreanu não pode ser resumido. Aqui, nós seremos apenas capazes de atrair a atenção dos leitores para alguns pontos doutrinários e gerais, que caracterizarão a natureza do movimento de Codreanu. Há tanto tempo quanto 1919 ou 1920, quando ele era um jovem de aproximadamente 20 anos de idade, ele ergueu-se contra o perigo comunista em nome da nação romena, não tanto com palavras como com ação coletiva similar à dos nossos próprios "squadristi", combatendo os proletários revoltosos, substituindo as bandeiras vermelhas que eles haviam erguido sobre suas fábricas pelas nacionais. Um seguidor de A.C. Cuza, o pai da idéia nacional romena e precursor da luta antissemita, Codreanu já havia conseguido ver à época o que a vitória do comunismo realmente teria significado: não uma Romênia liderada por um regime proletário romeno, mas ao invés sua escravidão, no dia seguinte, pela "tirania mais imunda, a tirania israelita, talmúdica". Mas Israel não perdoa aqueles que a desmascaram. Desde então Codreanu tornar-se-ia a bête noire da imprensa financiada por Israel, o objeto de uma ferrenha campanha de difamação e ódio, lançada não apenas contra ele, mas contra a fé nacional de todo um povo. Codreanu escreve sobre aquela época: "Em 1 ano eu aprendi tanto sobre antissemitismo como seria o bastante para três vidas humanas. Pois não pode-se ferir as convicções sagradas de um povo, o que seu coração ama e respeita, sem causar profundas dores e derramar o sangue do coração. Foi há 17 anos atrás, e meu coração ainda sangra". Codreanu lutou àquela época contra aqueles que glorificavam a Internacional vermelha, e seus seguidores quebravam as gráficas dos jornais judaicos, nos quais o rei, o exército, e a igreja eram insultados. Mas, depois, precisamente em nome do rei, do exército, e da ordem, uma imprensa romena que possuíam maestria no que concernia ao camaleonismo continuaria a mesma campanha contra Codreanu, cobrindo seu movimento com ódio e desprezo...

Codreanu escreve: "Eu não poderia definir como eu entrei na luta. Provavelmente como um homem que, caminhando pela rua, com suas preocupações, suas necessidades e seus próprios pensamentos, surpreendido pelo fogo que consome uma casa, tira seu casaco e corre para prestar auxílio àqueles que são vitímas das chamas. Com o senso comum de um jovem de mais ou menos vinte anos, essa era a única coisa que eu entendi em tudo que eu estava vendo: que nós estávamos perdendo a Pátria, que nós não mais teríamos a Pátria, que, com o apoio ignóbil dos trabalhadores romenos miseráveis, empobrecidos, e explorados, a horda judaica varreria todos nós. Eu comecei a partir de um impulso do coração, com aquele instinto de defesa que até o menor dos vermes tem, não com o instinto de auto-preservação pessoal, mas de defesa da raça à qual pertenço. É por isso que eu sempre tive a sensação de que a totalidade da raça descansa sobre nossos ombros, os vivos, e aqueles que morreram pela Pátria, e todo nosso futuro, e que a raça luta e fala através de nós, que a horda hostil, não importa quão grande, em relação a essa entidade histórica, não passa de um punhado de detrito humano que nós dispersaremos e derrotaremos... O indivíduo na estrutura e a serviço de sua raça, a raça na estrutura e a serviço de Deus e das leis da divindade: aqueles que compreenderem essas coisas vencerão, mesmo que estejam sozinhos. Aqueles que não compreenderem serão derrotados".

Essa foi a profissão de fé de Codreanu em 1922, ao fim de seus estudos universitários. Como presidente da associação nacional de estudantes de Direito, ele definiu ao mesmo tempo os pontos principais da campanha antissemita nos seguintes termos: "a) identificação do espírito e mentalidade judaicas que imperceptivelmente infiltraram os modos de sentir e pensar de uma parte considerável dos romenos; b) nossa desintoxicação, a eliminação do judaísmo que foi introduzido em nosso pensamento através de livros didáticos, professores, teatro, cinema; c) a compreensão e desmascaramento dos planos israelitas, ocultos sob diversas formas. Porque nós temos partidos políticos liderados por romenos, através dos quais o judaísmo fala; jornais romenos, escritos por romenos, através dos quals o Judeu e seus interesses falam; palestrantes romenos, pensando, escrevendo, e falando hebraicamente, mas em língua romena". Ao mesmo tempo, o problema prático político, nacional, social: o problema de vastas terras romenas literalmente colonizadas por populações exclusivamente judaicas; o problema do controle judaico de centros vitais nas maiores cidades; o problema do percentual alarmante de judeus nas escolas, onde eles às vezes formam uma clara maioria, um percentual consistente em uma preparação para uma conquista e uma invasão do mundo profissional dentro da próxima geração. Finalmente, uma simples ação de desmascaramento: Codreanu aponta que, assim como no período comunista, os líderes do assim chamado movimento proletário romeno eram exclusivamente judeus, assim como, depois, como um membro do parlamento, ele não hesitou em documentar como a maioria dos membros do governo recebiam "empréstimos financeiros" dos bancos judaicos.



Com o advento de Mussolini, Codreanu reconheceu nele um "portador da luz, que inspira-nos esperança. Ele será para nós a prova de que a Hidra pode ser derrotada. Uma prova de que podemos vencer". Ele acrescentou: "Mas Mussolini não é antissemita. Vocês alegram-se em vão, a imprensa judaica estava murmurando em nossos ouvidos. Eu digo: a questão não é o motivo de nossa alegria, mas o motivo pelo qual, se ele não é antissemita, vocês estão preocupados com sua vitória e porquê a imprensa judaica por todo o mundo o ataca". Codreanu corretamente viu que o judaísmo havia conseguido conquistar o mundo através da maçonaria e a Rússia através do comunismo: "Mussolini destruiu o comunismo e a maçonaria", Codreanu disse, "ele implicitamente declarou guerra ao judaísmo também". A nova mudança antissemita de política do fascismo provou que Codreanu estava completamente correto. De modo a trazer a perspectiva antissemita de Codreanu totalmente à luz, nós devemos citar a seguinte passagem de seu livro, que demonstra que sua visão era particularmente perspicaz: "Aqueles que pensam que os judeus são pobres coitados, que chegaram aqui por acaso, trazidos pelo vento, trazidos pelo azar, e daí em diante, estão equivocados. Todos os judeus que existem sobre a face da terra formam uma grande comunidade, ligada pelo sangue e pela religião talmúdica. Eles são partes de um Estado verdadeiramente implacável, que possui leis, planos, e líderes que formulam esses planos e os executam. Toda a coisa é organizada sob a forma de uma assim chamada "kehillah". É por isso que somos confrontados, não por judeus isolados, mas por uma força constituída, a comunidade judaica. Em qualquer de nossas cidades ou países em que um dado número de judeus estejam reunidos, uma kehillah é imediatamente montada, isso quer dizer, a comunidade judaica. Essa kehillah tem seus líderes, seu próprio poder judiciário, e daí em diante. E é nessa pequena kehillah, seja na cidade ou a nível nacional, que todos os planos são feitos: como conquistar os políticos e autoridades locais; como penetrar nos círculos em que seria útil ser admitido, por exemplo, entre os magistrados, os funcionários públicos, os oficiais; esses planos devem ser efetivados para tomar um certo setor econômico de mãos romenas; como um representante honesto de uma autoridade oposta aos interesses judaicos pode ser removido; que planos aplicar, quando, oprimidos, a população rebelar-se e eclodir em movimentos antissemitas". Ademais, planos gerais em larga escala: "1) eles buscaram romper os laços entre a terra e o céu, fazendo o que for possível para espalhar, em grande escala, teorias atéias e materialistas, degradando o povo romeno, ou mesmo apenas seus líderes, a um povo separado de Deus e de seus mortos, eles os matarão, não com a lança, mas cortando as raízes de sua vida espiritual; 2) eles então romperão os elos da raça com o solo, fonte material de sua riqueza, atacando o nacionalismo e qualquer idéia de Pátria e terra natal; determinados a vencer, eles buscarão dominar a imprensa; 4) eles usarão de qualquer pretexto, já que no povo romeno há dissensos, conflitos, e brigas, para dividi-los no maior número possível de partidos antagonistas; 5) eles buscarão monopolizar mais e mais os meios de existência dos romenos; 6) eles sistematicamente os levarão ao hedonismo, aniquilando a família e a força moral sem esquecer de degrada-los e aturdi-los através de bebidas alcoólicas e outros venenos. E, na verdade, qualquer um queira matar e conquistar uma raça poderá fazê-lo adotando esse sistema". Por todos os meios, imediatamente a partir da guerra mundial até o presente, o movimento de Codreanu buscou lutar em cada setor dessa ofensiva judaica lançada na Romênia pelos dois milhões e meio de israelitas ali e pelas forças afiliadas ou financiadas por Israel.

O incômodo de maquinadores políticos e a necessidade de criar um "novo homem" são outros pontos centrais do pensamento de Codreanu. "O tipo de homem que vive atualmente na cena política romena", Codreanu escreve, "eu já encontrei na história: sob seu governo, Nações morreram e Estados foram destruídos". Para Codreanu, o maior perigo nacional encontra-se no fato de que o tipo puro da raça dácio-romana foi degradado e desfigurado e substituído pelo maquinador político; "Esse germe moral, que não mais possui qualquer traço da nobreza de nossa raça, desonra-nos e mata-nos". Enquanto existirem maquinadores políticos, forças anti-nacionais ocultas sempre encontrarão instrumentos adequados, sempre serão capazes de criar intrigas que servirão a seu jogo. Se a consstituição romena de 1938 pôs fim ao sistema de partidos, foi há muitos anos que Codreanu assumiu uma posição tão radical a ponto de ter dito: "O jovem que unir-se a um partido político é um traidor de sua geração e de sua raça".



Não é uma questão de novos partidos ou fórmulas, mas de um Novo Homem. É essa visão que gerou o legionarismo de Codreanu, que significa, acima de tudo, uma escola de vida, o locus para a formação de um novo tipo, no qual são encontrados "desenvolvidos ao máximo, todas as possibilidades da grandeza humana que são semeadas por Deus no sangue de nossa raça". A primeira organização legionária fundada foi chamada "A Legião do Arcanjo Miguel", uma designação cuja escolha já revela o lado místico, religioso, e ascético de tal nacionalismo. A criação desse novo tipo é, segundo Codreanu, a questão principal, o descanso é de importância secundária, e seguirá como consequência inevitável através de um processo natural e irresistível, é através desse homem regenerado que o problema judaico será resolvido, que uma nova forma política será encontrada, que despertará aquele magnetismo que é capaz de domar as multidões, facilitar cada vitória, e levar a raça ao caminho da glória.

Um aspecto especial e característico do movimento legionário romeno é que, em sua construção atual sob a forma de "ninhos", sua preocupação principal foi criar uma nova forma comum de vida, conectada com critérios éticos e religiosos rígidos. O fato de que Codreanu impôs a disciplina do jejum dois dias por semana pode então ter vindo como surpresa para muitas pessoas, e também é interessante conhecer seus pensamentos sobre o poder da oração, pensamentos que pareceriam ser apropriados mais a uma pessa de uma ordem religiosa que a um líder política: "A oração é um elemento decisivo da vitória. Guerras são vencidas por aqueles que conseguiram atrair de alhures, dos céus, as forças misteriosas do mundo invisível e garantir seu apoio. Essas forças misteriosas são as almas dos mortos, as almas de nossos ancestrais, que outrora foram, como nós, ligados a nossos torrões, a nossos sulcos, que morreram pela defesa dessa terra e ainda estão ligados hoje a ela pela memória de suas vidas e por nós, seus filhos, seus netos, seus bisnetos. Mas acima das almas dos mortos, há Deus. Uma vez que essas forças sejam atraídas, elas possuem um poder considerável, elas defendem-nos, elas dão-nos coragem, fortitude, todos os elementos necessários para a vitória e que fazem-nos vencer. Elas espalham o pânico e o terror entre os inimigos, paralisam sua atividade. Em última análise, vitórias não dependem apenas de preparação material, das forças materiais dos beligerantes, mas de seu poder de garantir o apoio de forças espirituais. A retidão e moralidade das ações e o chamado insistente, fervoroso por elas sob a forma de rito e oração coletiva atraem essas forças".

Eis outra passagem característica de Codreanu: "Se o misticismo cristão e seu objetivo, o êxtase, é o contato do homem com Deus através de um salto da natureza humana à natureza divina, o misticismo nacional não é nada mais senão o contato do homem e das multidões com a alma de sua raça atravpes do salto que essas forças fazem do mundo dos interesses pessoais e materiais ao mundo externo da raça. Não através da mente, já que isso qualquer um pode fazer, mas vivendo com sua alma". Outro aspecto típico do legionarismo da "Guarda de Ferro" é um tipo de comprometimento ascético da parte de seus líderes: eles devem evitar ir a salões de dança, cinemas ou teatros, evitar qualquer demonstração de riqueza ou mesmo de mera afluência. Uma força especial de assalto de 10.000 homens, que foi batizado pelos nomes de Mota e Marin, dois líderes da Guarda de Ferro caídos na Espanha, tinha, para seus membros, quase como que em alguma antiga ordem de cavalaria, a cláusula do celibato, pelo tempo em que permanecessem nessa força: já que a nenhuma ocupação mudana ou familiar permitia-se diminuir sua capacidade de dedicarem-se a qualquer momento até a morte.

Apesar de ter sido duas vezes um membro do parlamento, Codreanu afirmou-se firmemente desde o início contra a democracia; para citá-lo literalmente, a democracia rompe a unidade da raça porque ela dá causa ao faccionalismo; ela é incapaz de continuidade no esforço e na responsabilidade; ela é incapaz de autoridade, já que carece do poder de sanção e transforma o político em escravo de seus partidários; ela está a serviço da alta finança; ela torna milhões de judeus romenos em cidadãos. Codreanu afirmou ao contrário o princípio da seleção social e das elites. Ele tinha uma intuição precisa da nova política das nações objetivando a reconstrução, cujos princípios não é a democracia, nem a ditadura, mas uma conexão entre nação e líder como há entre poder e atualidade, instinto obscuro e expressão. O líder dessas novas formas políticas não é eleito pela multidão, mas a multidão, a nação, consente e reconhece em suas idéias suas próprias idéias.



A premissa é um tipo de despertar interior, que começa no líder e na elite. Nós devemos citar Codreanu: "É uma nova forma de liderança dos Estados, jamais vista antes. Eu não sei que designação será dada, mas é uma nova forma. Eu creio que ela esteja baseada neste estado mental, esse estado de elevada consciência nacional que, cedo ou tarde, espalha-se até a periferia do organismo nacional. É um estado de iluminação interior. O que previamente jazia dormente nas almas do povo, como instinto racial, está nesses momentos refletida em sua consciência, criando um estado de iluminação unânime, como encontrada apenas em grandes experiências religiosas. Esse estado poderia corretamente ser chamado de um estado de ecumenidade nacional. Um povo como um todo alcança auto-consciência, consciência de seu sentido e seu destino no mundo. Na história, nós encontramos nos povos nada mais que fagulhas, enquanto, desse ponto de vista, nós temos hoje um fenômeno nacional permanente. Nesse caso, o líder não é mais um "chefe" que "faz o que quer", que governa segundo "seu bel prazer": ele é a expressão desse estado mental invisível, o símbolo desse estado de consciência. Ele não faz o que quer, ele faz o que tem que fazer. E ele é guiado, não por interesses individuais, nem coletivos, mas ao invés pelos interesses da nação eterna, a cuja consciência o povo alcançou. Na estrutura desses interesses e apenas em sua estrutura, interesses pessoais e coletivos encontram o mais alto grau de satisfação normal".

Que Codreanu então não excluiu que essas novas formas de nacionalismo poderiam ser compatíveis com as instituições tradicionais está provado por suas idéias a respeito da instituição monárquica, que encontram expressão nas seguintes palavras: "Eu rejeito o republicanismo. Na liderança das raças, acima da elite, está a Monarquia. Nem todos os monarcas foram bons. A Monarquia, porém, sempre foi boa. O monarca individual não deve ser confundido com a instituição da Monarquia, as conclusões tiradas daí seriam falsas. Pode haver maus padres, mas isso não quer dizer que possamos tirar a conclusão de que a Igreja deve ser terminada e Deus apedrejado até a morte. Certamente há monarcas fracos ou maus, mas nós não podemos renunciar à Monarquia. A raça possui uma linha vital. Um monarca é grande e bom, quando ele permanece sobre essa linha; ele é medíocre e ruim, na medida em que move-se para longe dessa linha racial da vida ou opõe-se a ela. Há muitas linhas pelas quais um monarca pode ser tentado. Ele deve colocar todas de lado e seguir a linha da raça. Eis a lei da Monarquia".

Se, nos pontos principais, essas são as idéias de Codreanu e de sua "Guarda de Ferro", as vicissitudes de sua luta resultam ser tragicamente quase além da compreensão, e, até há pouco, elas pareciam ser devidas a algum infeliz mal entendido. Até há pouco, nós dissemos, porque na medida em que o regime democrático puro subsistiu na Romênia, com sua conhecida subserviência a todas as formas de influências mascaradas e indiretas e uma instituição monárquica que era meramente simbólica, era compreensível que um movimento como o de Codreanu fosse combatido por quaisquer meios e a qualquer custo, um dia pelos meios de uma fórmula, no outro pela fórmula oposta, por razões de oportunismo, garantido que o efeito fosse o mesmo e o perigoso adversário fosse excluído. Essas amargas observações de Codreanu são fáceis de compreender: "em 1919, 1920, e 1921, toda a imprensa israelita tomou de assalto o Estado romeno despejando caos em todo lugar e exortando à violência contra o regime, a forma de governo, a Igreja, a ordem romena, a idéia nacional, o patriotismo. Agora, como se por mágica (1936), a mesma imprensa, comandada exatamente pelas mesmas pessoas, tornou-se protetora do estado de ordem e suas leis, e declara-se 'contra a violência', e que nós nos tornamos 'inimigos do país', os 'extremistas de direita', 'pagos e a serviço dos inimigos da romenidade', e, antes de muito, nós ouviremos até mesmo isso: que nós somos financiados pelos judeus". E Codreanu continua: "Nós recebemos em nossas faces e em nossas almas romenas sarcasmo após sarcasmo, tapa após tapa, ao ponto de realmente estarmos nessa situação pavorosa: os judeus são retratados como os defensores da romenidade e são protegidos de problemas e aptos a viverem na tranquilidade e afluência, enquanto nós, ao contrário, somos retratados como os inimigos da romenidade, e nossas vidas e liberdades são ameaçadas conforme as autoridades romenas caçam-nos como cães raivosos. Tudo isso eu tenho visto com meus próprios olhos e resistido hora sim, hora não, e tem amargurado a mim e meus camaradas até o fundo de nossas almas. Partir para lutar por seu país, sua alma pura como a lágrima no olho; lutar por anos e anos na pobreza sob uma fome excruciante porém oculta; ver a si mesmo, em um ponto, retratado como inimigo de seu país, perseguido por romenos, difamado como recipiente de verbas estrangeiras; e ver o povo judeu em controle total de seu país, erguido ao status de protetores da romenidade e do Estado romeno, que eu, e a juventude do país, estão supostamente ameaçando; tudo isso é verdadeiramente terrível de resistir". E os leitores podem perceber que essas não são apenas palavras, perscrutando o livro, no qual toda a via crucis da "Guarda de Ferro" é documentada: prisões, perseguições, julgamentos, difamações, violência. O próprio Codreanu passou por vários julgamentos, mas, até agora, as acusações contra ele sempre foram descartadas: em um julgamento por assassinato - ele havia morto com as próprias mãos os assassinos de seus camaradas - é notável que 19.300 advogados de todo o país formalmente ofereceram-se para defendê-lo.

Após o experimento Goga, parecia que o regime democrático havia alcançado seu fim na Romênia, e que uma nova forma autoritária de governo erguer-se-ia. No exterior, nós não sabemos muito sobre o que ocorre por trás dessas perturbações. Ainda que a "Guarda de Ferro" já tivesse sido dissolvida, o fato é que nessa nova fase da política romena estava oculta a continuidade da luta entre Codreanu e forças opostas a sua concepção da nação e do Estado. O governo Goga foi supostamente formado sobre uma base experimental e, ao mesmo tempo, por uma razão tática precisa. Por meio do nacionalismo e antissemitismo moderados de Goga, eles buscavam tangenciar as forças que o movimento de Codreanu estavam atraindo e conquistando mais e mais, oferecendo um substituto fácil de domar. Eles perceberam, porém, que, para usar a expressão de Mussolini referente ao plebiscito proclamado por Schussnigg, que o experimento era perigoso e que o mecanismo poderia escapar das mãos dos que o haviam preparado. O regime Goga não foi aceito como substituto pelo povo, um substituto com os quais ele estaria contente, mas o povo o viu como um sinal de uma mudança preliminar na direção de uma corrente nacionalista total: o fato de que Goga opunha-se resolutamente a Codreanu (e foi essa uma das razões para sua escolha) não os perturbava tanto quanto seu programa, que opunha-se ao nacionalismo, ao antissemitismo, e na verdade a toda a necessária revisão da posição política internacional da Romênia. De modo que, se as eleições anunciadas por Goga tivessem ocorrido, ele provavelmente teria sido varrido por uma corrente mais forte do que ele, ainda que fosse na mesma direção. Reconhecendo esse perigo, o rei decidiu intervir pessoalmente. Ele pôs fim ao sistema partidário democrático e promulgou uma constituição, na qual a questão principal era a centralização do poder, diretamente ou indiretamente, nas mãos do monarca. Uma revolução autoritária a partir de cima, baseada, como dissemos, na corte ao invés de na arena pública. Confrontado com isso, a "Guarda de Ferro", apesar de ter alertado o regime para as consequências dessa atitude, voluntariamente dissolveu o partido que havia montado, "Tudo pela Pátria", e silenciosamente retirou-se, propondo focar suas ações essencialmente no plano espiritual, para agir principalmente em um sentido de formação espiritual e de uma seleção do grande número de membros que, durante o último período e aparentemente em busca das idéias do governo Goga, havia entrado nas fileiras do Codreanu. Nós estivemos na Romênia na época, e a solução que os elementos romenos mais sérios considerava desejável e provável era uma superação da antiga oposição e uma colaboração, a nível nacional, entre o regime e o legionarismo. Essa não apenas era a opinião expressa pelo principal teórico de Estado romeno, Manoilescu, our por aqueles que haviam facilitado o retorno do rei à Pátria, tal como Nae Ionescu, mas também do ministro Argetoianu, principal inspirador da nova constituição, em uma conversa que tivemos então com ele, não descartou essa colaboração, desde que - essas eram suas palavras - a Guarda de Ferro renunciasse a seus antigos métodos.



Obviamente, nós não negaríamos que, em condições normais, quando seu poder e importância estão intactos, a Monarquia não precisa de qualquer duplicata ditatorial de modo a realizar apropriadamente sua função. Porém, não é assim que parecem ser as coisas em um Estado em que a fidelidade tradicional foi substituída pela intriga política, na qual a hidra judaica deitou seus tentáculos ao redor dos principais núcleos vitais da nação e a democracia eleitoral multipartidária minou a integridade ética e o sentimento patriótico de vastas camadas políticas. Em tais condições, deve haver um movimento totalitário renovador, algo que, como parte de um movimento coletivo, varrerá, criará, transformará, e erguerá novamente toda a nação, essencialmente sobre a base de um novo estado de consciência e de forças de um ideal e uma fé. E a instituição monárquica, se está presente, não é derrubada por um movimento totalitário nacional, mas, ao contrário, desenvolvida e completada, como demonstrado pelo exemplo da Itália. Nesses termos a colaboração entre o novo regime e o movimento legionário nacional de Codreanu teria sido algo ao mesmo tempo desejável e possível, especialmente desde que, como nós vimos, Codreanu expressamente defendeu a idéia monárquica e jamais pensou em oferecer-se como o novo rei da Romênia - nem mesmo seus oponentes jamais afirmaram isso.

Os eventos mais recentes mostraram que essas esperanças eram ilusórias e aceleraram a tragédia. Logo após a aprovação da nova constituição, Codreanu foi preso novamente. Por que? Porque foi relembrado após muitos meses que ele havia uma vez ofendido gravemente um ministro de gabinete - algo que ao longo de sua carreira, sob a pressão das circunstâncias, ele jamais havia conseguido evitar. Depois, ele foi acusado de conspirar contra a segurança do reino. Mas a verdade é que a prisão de Codreanu ocorreu praticamente um dia depois da Anschluss. Assim é extremamente provável que ela foi ditada pelo medo de que, como repercussão do triunfo do nacional-socialismo austríaco, as formas do nacionalismo romeno, não importa quão acuadas, voltassem à ação. Eles queriam tirar de jogo, de um jeito ou de outro, seu líder. O julgamento terminou com uma sentença de 10 anos de prisão para Codreanu, junto com a prisão de um grupo de sublíderes e um grande número de pessoas suspeitas de pertencer à "Guarda" ou de apoiá-la. Estava claro para todos que a situação política nacional na Romênia estava extremamente exacerbada e longe de qualquer tipo de estabilização. Eles não podiam deixar de ver que, ainda que os julgamentos prévios contra Codreanu, que haviam ocorrido em uma época em que as forças que estavam em oposição fizeram o maior uso possível das possibilidades de corrupção inerentes ao sistema democrático, tinham que terminar invariavelmente em rejeições, sob a nova constitução "nacional" e antidemocrática uma sentença foi pronunciada, algo que chegava a uma provocação em relação a todas as forças do legionarismo nacional romeno, tão presentes e numerosas, ainda que, agora, latentes e não fáceis de identificar. E ainda que nada muito preciso tenha sido sabido do novo julgamento, é claro que essa sentença foi ou severa demais, ou não severa o bastante, já que, se Codreanu tivesse sido condenado por realmente conspirar contra o Estado, considerando o ânimo que levou ao julgamente, essa teria sido a melhor oportunidade para elimina-lo definitivamente, já que esse crime era punido, pela nova constituição, com a pena de morte. Ao contrário, eles tiveram que limitar-se a 10 anos.

O que eles não ousaram fazer àquele momento, porém, eles fizeram depois, e o que podia ser previsto inevitavelmente aconteceu. Após o primeiro momento de estupefação, as forças fiéis a Codreanu recorreram a métodos terroristas de retaliação, o "batalhão da morte" entrou em ação, e um "tribunal nacional" secreto foi organizado para julgar e eliminar aqueles que, pela perspectiva legionária, eram os principais culpados perante a nação. Essa reviravolta tornou-se cada vez mais intensa após a capitulação de Praga e a conferência de Munique, mas, infelizmente, levou apenas a uma situação mais difícil: houve mais e mais prisões, um ato de injustiça levando a outros, recentemente o reitor da universidade de Cluj, particularmente hostil à Guarda, foi assassinado, dois governadores de província foram sentenciados à morte, a ser executada até janeiro, pelo misterioso "tribunal nacional" legionário, nós temos a impressão de uma área extremamente sensível, em tal medida que personalidades de alto nível, incluindo um príncipe real e o General Antonescu, ministro da guerra no governo Goga e atualmente comandante do Segundo Corpo do Exército, foram removidos, banidos, ou presos. Os eventos tornaram-se cada vez mais rápidos e, conforme ambos lados tornam-se mais e mais amargos, chegamos à última fase da tragédia. Em 30 de novembro, um lacônico comunicado oficial anunciou que Codreanu, junto com mais trinta legionários, elementos de liderança do movimento, também presos, foram assassinados pela polícia enquanto tentavam escapar. Seus corpos aparentemente foram enterrados dentro de três horas, ou seja, quase imediatamente, para impedir qualquer investigação ulterior sobre as circunstâncias de suas mortes.

O ponto limítrofe de tensão foi então alcançado, a impressão despertada pelo evento por toda Romênia, na qual os apoiadores de Codreanu chegavam aos milhões, é imensa, e o estado de sítio, que já estava em força por várias razões, foi ampliado para todo o reino, de modo que a situação romena aparece turva como o foi poucas vezes em sua história nacional. Nós afirmamos e enfatizamos que, a não ser que imaginemos que Codreanu tenha sido completamente desonesto - algo que qualquer um que já teve algum contato com ele mesmo que por questão de minutos, ou sentiu a fé, o entusiasmo e a profunda sinceridade com a qual todos os seus escritos estavam impresos, imediatamente descartará - é impossível acreditar que seu movimento era de qualquer maneira de natureza subversiva, ou que tinha objetivos de qualquer modo diferentes daquelas da reconstrução nacional e antissemita de tipo fascista ou nacional-socialista, respeitosa do princípio monárquico. E então? Nós podemos legitimamente imaginar sobre as forças que causaram, ou ao menos contribuíram para a tragédia da Guarda de Ferro. Quando Codreanu foi preso pela última vez, nós estávamos em Paris, e ouvimos os arroubos de alegria que acompanharam a publicação dessa notícia nos jornais antifascistas e judaico-socialistas. Nós não estamos indo longe demais se dissermos que, depois da Tchecoslováquia, em toda a Europa Oriental Central, a Romênia é a última área, rica em numerosos recursos, preciosa tanto do ponto de vista econômico e estratégico, que ainda está livre do jogo de "forças" obscuras operante nas "grandes democracias", na alta finança, no judaico-socialismo; e, para tais forças, buscar os interesses míopes de alguns indivíduos caminhando sobre corpos, mesmo dos corpos de jovens nobres e generosos, é apenas uma bagatela...

28/11/2011

Ulisses, Alexandre e Eurásia

por Claudio Mutti


Há algum tempo relia o canto XXVI do Inferno de Dante (o célebre canto de Ulisses). Como provavelmente recordareis, em certo momento o Ulisses dantesco recorda a arenga com a qual convenceu seus companheiros de expedição para atravessarem as Colunas de Hércules: "O frati, dissi, che per cento milia - perigli siete giunti all'occidente (...)" (1). Esforçando-me em vislumbrar algo daquele sentido alegórico que, por declaração expressa de Dante, tenha ficado oculto por trás do sentido literal, aventurei a seguinte conjectura: o Ocidente evocado por Ulisses na sua pequena oração é provável que não esgote seu significado na acepção espacial e geográfica do vocábulo "Ocidente", que designa o lugar do "Sol que morre" (Sol occidens), o lugar onde acaba o cosmos humano e começa o "mondo sanza gente" (2), o reino das trevas e da morte.

É portanto provável que o Ocidente dantesco, tendo em conta a polivalência do símbolo, assinale também uma fase temporal, assim pois um sentido ulterior do discurso de Dante seria que seus companheiros, enquanto "vecchi e tardi", tenham chegado "a l'occidente" de sua existência, isto é à proximidade da morte. (3)

E assim como eles representam à humanidade europeia, como não compreender, simultaneamente, que a Europa devia chegar - e de fato teria chegado precisamente na época de Dante, nos inícios do século XIV - à proximidade dessa fase histórico-cultural que, segundo o que disse René Guénon, "representou na realidade a morte de muitas coisas"?

Porém Ocidente, o lugar das trevas, é também um símbolo disso que Martin Heidegger denominou "o escurecimento do mundo". "Mundo" - explica o próprio Heidegger - "deve entender-se sempre em sentido espiritual", pois, "o escurecimento do mundo implica uma despotencialização do espírito". E a situação da Europa, continua Heidegger, "resulta muito mais fatal e irremediável enquanto a despotencialização do espírito provem dela mesma".

Esta despotencialização do espírito, este escurecimento do mundo, teve, segundo Guénon, seu momento decisivo com o final da grande civilização medieval (a última civilização relativamente normal conhecida pela Europa) e com o início da cultura imanentista e laica do Renascimento. Segundo Heidegger, "ainda que tenha sido preparado desde o passado, este (o escurecimento do mundo) manifestou-se definitivamente partindo das condições espirituais da primeira metade do século XIX", verbigratia: mediante o triunfo do racionalismo contemporâneo, do materialismo, do individualismo liberal.

Em qualquer caso, podemos afirmar que este escurecimento do mundo marchou em paralelo com o que foi recentemente denominado "a ocidentalização do mundo".

O inferno, no fundo do qual acabou esse Ulisses dantesco que abandonou a Europa para adentrar nas trevas ocidentais, é um Ocidente perene (lei da balança!), porque a luz não ilumina ali jamais. Dante escapa dessa eterna treva ocidental e infernal graças à orientação de Virgílio, o poeta do Império, o poeta de um Império que, como diz-se em Paraíso, VI, 4-6, está por sua própria origem vinculada a Europa: "cento e cent'anni e più l'uccel di Dio - ne lo stremo d'Europa si ritenne, - vicino a'monti de' quai prima uscìo". (4)

Em efeito, devemos recordar que, segundo Dante, a Águia imperial ("l'uccel di Dio") teve sua origem "ne lo stremo d'Europa", isto é na atual Anatólia, ali onde alçava-se Tróia. Por outra parte, também Europa, a donzela "dall'amipio volto" que foi amada por Zeus e que deu seu nome a nosso continente, era originária da margem oriental do Mediterrâneo.

Seria interessante parar para considerar que para os gregos e para os romanos, e ainda depois para os homens do medievo, a imagem geográfica de Europa estendia-se para o oriente muito mais que na idade moderna e na contemporânea; porém isto seria outro discurso. (5)

Nós, que estamos aqui para falar do "destino de Europa", devemos ao contrário perguntar: quem assinalará a Europa, nos umbrais do terceiro milênio, o caminho para sair do Ocidente e voltar "a riveder le stelle"?

A primeira tarefa consiste em efetuar um esclarecimento. Devemos portanto reestabelecer os verdadeiros termos da relação que se estabelece entre Europa e Ocidente, relação de natural oposição e de antagonismo; devemos refutar uma escandalosa sinonimia que, imposta pelos vencedores ocidentais da Segunda Guerra Mundial, foi aceita pelos europeus da forma mais acrítica e ignorante.

O conceito Ocidente é relativamente novo e resulta sinônimo quase de modernidade; por conseguinte, como visão do mundo, Ocidente é essencialmente outro em relação ao espírito que preside as manifestações da civilização europeia tanto na Antiguidade como no Medievo.

É certo que a civilização ocidental trata costumeiramente de identificar suas próprias raízes com alguma das fases histórico-culturais através das quais configurou-se a Europa, quer dizer, a antiga Grécia, o mundo romano, ou a cristandade latino-germânica.

Não obstante, é preciso objetar que, se a modernidade é "desencanto do mundo", resulta quando menos aventureiro apresentar como antecedente da civilização ociental à cultura grega, isto é uma cultura que não produz somente antecipações do pensamento moderno como o racionalismo sofístico e o mecanicismo atomista, mas que expressa-se também (e sem dúvida em maior medida e com maior intensidade) nos Mistérios órficos e eleusinos, na teologia da história de Heródoto, na metafísica dos pré-socráticos, de Platão, e de Aristóteles, na poesia religiosa de Ésquilo e Píndaro, na teurgia e na mística dos platônicos.


E nem ao menos está claro em função de que lógica o Ocidente teria direito a remeter-se à civilização romana, que em realidade funda-se precisamente sobre aquilo que é mais escandaloso desde o ponto de vista da modernidade, a saber: sobre a identificação do âmbito religioso com o jurídico e político. Uma identificação que posteriormente voltou a dar-se acaso sob o Islã, mas de nenhum modo na civilização ocidental.

Por outro lado, o Império de Roma, como posteriormente também o Império Bizantino, e o Império dos Otomanos, não foi um império ocidental, senão uma grande síntese mediterrânea e, em certa medida, eurasiática. Inclusive o Sacro Império Romano pareceu recuperar uma dimensão deste gênero, quando, com Frederido da Suábia, a corte imperial transferiu-se a Palertmo e o Imperador estendeu sua autoridade sobre Jerusalém e outras partes da Palestina. A própria Alemanha, que enquanto imagem histórica do Império medieval seguiu sendo até 1945 das Reich, o Império, buscou sempre seu próprio espaço não na direção do ocidente, mas na direção do oriente.

Voltando a Ulisses, recordo ter lido em alguma publicação que o Odisseu homérico, "foi o viajante da modernidade". Uma vulgaridade deste tipo, que revela a necessidade da modernidade de inventar-se uma galeria de antepassados, é possível precisamente porque a essência do Odisseu homérico, protótipo do homo europaeus, foi tergiversada pela própria modernidade.

De fato, para a percepção moderna Odisseu não é o que era para os gregos, a saber: o anèr polytropos que, alentado pela nostalgia das Origens e auxiliado por Athena, quer dizer pelo Intelecto divino, luta contra as forças inferiores e, após um longo cativeiro na ilha ocidental de Eea, retorna a uma pátria "central", a uma "terra do meio", que simboliza essencialmente a perfeição primordial do estado humano.

A modernidade desfigurou o Odisseu homérico convertendo-o em um herói cultural a sua própria imagem e semelhança; assim, colocado diante de um espalho deformador, o homo europaeus devolve-nos a imagem falaciosa do homo occidentalis.

Existe logo uma variente "filosófica" para chamá-la de algum modo, da mesma vulgaridade: o Odisseu que descreve a Penélope o leito matrimonial talhado com a madeira da oliveira (o leito de Odisseu é em realidade o símbolo homérico do Axis Mundi) segundo Horkheimer e Adorno seria, vejam só, o "protótipo do burguês (que) tem, em sua esperteza um hobby", aquilo de "faça você mesmo". Os autores da Dialética do Iluminismo completamente ignorantes do autêntico significado do herói homérico, acreditaram poder identificar, por trás da máscara de Odisseu, o rosto do burguês ocidental que dá início ao desenvolvimento racionalista liberando-se da superstição e exercitando seu domínio sobre a natureza e sobre os homens.

O Odisseu dos rabinos da Escola de Frankfurt converte-se desse modo na metáfora desse poder racional de domínio que organiza-se como saber sistemático e tem como sujeito ao burguês ocidental, "nas formas sucessivas - assim escrevem eles - do escravista, do livre empreendedor, do administrador". Não obstante, tal metáfora baseia-se em uma típica redução do superior ao inferior, posto que Adorno e Horkheimer identificam indevidamente o intelecto (princípio de ordem universal) com a razão (faculdade especificamente humana, limitada, relativa, e individual). Agora bem, Odisseu, protótipo do homo europaeus, é concretamente um símbolo do intelecto, quer dizer, do princípio espiritual que transcende a individualidade e com ela o conjunto de elementos psíquicos e corporais, representados no poema homérico pelos companheiros do herói.

O périplo da Escola de Frankfurt, nascido pela iniciativa de um grupo de judeus liberais, conclui seu ciclo desembocando finalmente em uma explícita adesão ao judaísmo. Pouco antes de morrer, Horkheimer recomendu "o retorno a Jeová" e a "eterna espera" de um Messias que, dito pelo próprio Horkheimer, não virá nunca. Esta posição será retormada e desenvolvida pelos chamados nouveaux philosophes André Glucksmann e Bernard Henri-Lévy.

Agora, no que concerne à irredutibilidade do Odisseu homérico, protótipo do homo europaeus, à visão judaica e à visão moderna, remetemo-nos às palavras de um autorizado representante do pensamento judaico-cristão, Sérgio Quinzio, o qual em Radici Ebraiche del Moderno afirma que não somente a concepção grega do tempo, senão também a concepção grega do espaço é circular, dado que o espaço odisíaco transcorre de Ítaca a Ítaca. O tempo e o espaço dos gregos - escreve Quinzio - "são o tempo e o espaço do eterno retorno, nos quais nada realmente novo pode suceder. Vice-versa, como o tempo judaico é linear, assim também o espaço judaico é linear, vai desde a terra da escravidão à terra prometida".

Pelo demais, já Emmanuel Levinas havia contraposto em termos de antítese irredutível o retorno odisíaco e o êxodo bíblico, assim como as figuras de Odisseu e de Abraão: o Abraão da representação bíblica, naturalmente, porque bem distinta resulta a figura do Profeta Ibrahim tal como é traçada no Corão; o qual rechaça de plano (ad. es. III, 60) (6) a caracterização judaica e cristã do Patriarca de Ur, fazendo deste último um representante da Tradição Primordial. "Ao mito de Ulisses que retorna a Ítaca - escreve Levinas em La Traccia dell'Altro - gostaríamos de contrapôr a história de Abraão que deixa para sempre sua pátria por uma terra ainda desconhecida e que proíbe a seu criado voltar a levar seu filho até àquele ponto de partida".

Evocando a este Abraão bíblico e antiodisíaco, protótipo dos "pais peregrinos" que abandonaram a Europa para estabelecer-se no continente ocidental, Levinas deu forma ao contramito do desenraizado: uma espécie de "contramito fundador" da Civilização ocidental, na qual tem um peso relevante o que René Guénon chama o "aspecto 'maléfico' e desviado do nomadismo". Em qualquer caso, Levinas teve o mérito de contrapôr explícitamente ao protótipo mítico do homo europaeus o protótipo contramítico e antitradicional do homo occidentalis.

Assim com toda justiça, foi dito que a Odisséia, junto à Ilíada, constitui o que qualificou-se como a Bíblia dos Gregos, do mesmo modo que a Eneida será a Bíblia dos Romanos. Se queremos usar uma linguagem consequente com esta metáfora, devemos afirmar que Homero foi o primeiro profeta da Europa, e que seus poemas constituíram a mais antiga revelação religiosa manifesta aos europeus.



Em uma página repleta de pathos nietzscheano, o grande filólogo clássico e historiador das religiões Walter Otto descreve a visão homérica contrapondo-a implícitamente à judaico-cristão, nos seguintes termos: "Homero converte-se na Bíblia dos Helenos (...) Também sua revelação teve um grande eco, porém muito mais viril, mais fiel à vida, mais respeitosa com a realidade que a mensagem de espíritos transtornados, em contenda consigo mesmo e com a vida. A religião na qual o povo devia ser instruído havia sido primeiramente relevada ao coração dos mais nobres e dos mais gentis. (...) A religião de Homero era religião revelada segundo a opinião certa e humana de que todo grande pensamento é filho da divindade" (W. Otto, Spirito classico e mondo cristiano, La Nuova Italia, Firenze, 1973, p.25).

Em um escrito de 1931 que, investigando as origens do espírito europeu, identifica na herança homérica a prefiguração de nossa identidade de europeus, Walter Otto volta a falar de Homero: "Ele não é portanto somente o mestre que criou na Europa a primeira grande poesia, dando por escrito a lei vivente da arte poética europeia. Não é tampouco somente o destinado a elevar-se a expressão do ser grego de modo tão grande e profundo que sua obra converte-se em gênio formativo de toda a nação. Ele é também para nós, ainda hoje, não obstante os avatares históricos, aquele que proclama admiravelmente a vida e o mundo. (...) De fato, através dele o espírito grego, e com ele o europeu, encontrou sua primeira expressão, que permanece válida até a data. E se compreendessemos de modo correto sua palavra, quiçá também o significado da ciência e da filosofia gregas mostraria-nos seu mais profundo significado". (W. Otto, Lo Spirito Europeu e la Saggezza dell'Oriente, SEB, Milano, 1997, p.11).

Junto a Homero, o outro grande mestre da antiguidade européia é Platão. Não por casualidade outro filósofo judeu e liberal, Karl Popper, assignou a Platão o papel de pai espiritual da corrente de "inimigos da sociedade aberta", uma corrente que partindo do pensamento platônico chega aos totalitarismos do século XX.

Popper à parte, a República de Platão resulta fundamental com relação ao reconhecimento da originária Weltanschauung européia, porque em dita obra encontramos exposta de forma transparente e orgânica essa doutrina da trifuncionalidade que, segundo Georges Dumézil, constituiu a característica própria de todas e cada uma das sociedades indo-europeias, tanto da Europa como da Ásia.

Como é sabido, os estudos realizados por Dumézil no domínio da história das religiões e da linguística demonstraram que os povos indo-europeus mais além do parentesco idiomático, possuem uma estrutura mental específica e uma concepção pecular do fato religioso, da sociedade, da soberania, das relações entre o homem e a Divindade. Em definitiva, Dumézil sacou à luz uma comum Weltanschauung indo-europeia, uma visão do mundo plena de implicações teológicas e político-sociais, segundo a qual a comunidade pode viver e prosperar graças somente à colaboração e à solidariedade das três funções de soberania, força, e fecundidade. A primeira função (a soberania) corresponde ao sagrado, ao poder, e ao direito; a segunda (a força) corresponde à atividade guerreira; a terceira (a fecundidade) corresponde à produção e à distribuição dos bens materiais.

Agora, se na estrutura religiosa e social ilustrada por Dumézil manifesta-se uma exigência fundamental da mais profunda mentalidade indo-européia; se a denominada "ideologia trifuncional" é uma característica inerente à mentalidade do europeu; se ela é uma dessas estruturas latentes que resultam indissociáveis da cultura e do espírito de um povo e se conservam de algum modo através das gerações, tão é assim que ainda na Idade Média a composição da sociedade era estabelecida pelas três categorias dos oratores, bellatores, e laboratores e que tal tripartição sobreviveu de alguma forma até a Revolução Francesa - então seria lícito fazer a seguinte pergunta: Em que medida a concepção trifuncional pode encarnar uma via para voltar a pensar o mundo e a vida em termos adequados a nossa qualidade de europeus?

Sobre esta interrogação não seria supérfluo refletir seriamente. De momento, bastaria fazer notar que a organização liberal-capitalista da sociedade é típica não da civilização europeia, mas da civilização ocidental. O lema de tal organização poderia ser a frase proverbial que circula nos EUA: Whatever is good for General Motors is also good for the USA. (7)

De fato, o liberal-capitalismo, surgido da Revolução Francesa com a rebelião da terceira função, o Terceiro Estado, contra as outras duas, representa por uma parte o poder efetivo do elemento econômico sobre o político e sobre o militar, enquanto que por outro lado transporta uma penetração da mentalidade mercantil nas camadas da sociedade. Uma sociedade normal, ao contrário, é aquela na qual governa a função soberana; uma sociedade é aquela na qual o política prevalece sobre o econômico.

O próprio conceito de Europa deve ser contemplado à luz da ideologia trifuncional. Mais além das simples relações comerciais (terceira função), mais além dos problemas próprios da defesa comum (segunda função), a Europa deve afrontar a questão principal, que é a de sua soberania (primeira função).

Este projeto somente pode extrair seu sustento de uma única fonte: nossa tradição mais autêntica. Em 1935 Martin Heidegger dizia dos alemães de então o que hoje poderia dizer dos europeus em geral: "Este povo poderá forjar para si um destino somente se é capaz de provocar em si mesmo uma ressonância (...) e se souber captar sua tradição de forma criadora. (...) E se a grande decisão concernente a Europa não deve realizar-se no sentido de uma aniquilação, somente realizar-se-á mediante o desdobramento, a partir deste centro, de novas forças históricas espirituais".

Em outros termos: se Europa tem todavia um futuro e se nós queremos encontrar uma solução europeia para seu futuro, devemos voltar-nos para nossas origens, interrogar aos mestres mais antigos de nossa cultura e - acreditamos poder acrescentar - colocar em marcha aquelas idéias que constituem a herança espiritual especificamente europeia.

Alguém poderia objetar que o ponto de vista do supracitado Walter Otto, resumível em uma fórmula do tipo "A Weltanschauung homérica ou seja europeia", deve ser atualizado e substituído por aquele que encontramos sintetizado no célebre título de Novalis, A Cristandade ou seja Europa. Em todo caso, o corolário de tais fórmulas, que reivindicam ambas a Europa, poderia ser "A modernidade ou seja Ocidente". Em realidade, como recorda Franco Cardini em "Nós e o Islã" (8), "o conceito Ocidente é relativamente novo e parece de per si inseparável do de modernidade".

Se enquanto visão do mundo Ocidente é sinônimo de modernidade e é por isso essencialmente outro em relação ao espírito que regeu as manifestações da civilização europeia na antiguidade e na idade média, também como elemento do simbolismo geográfico Ocidente opõe-se à Europa de forma radical.



Aqui convém colocar em evidência uma realidade elemental, que a cultura convertida em hegemônica tentou escurecer a todo custo. Basta dar uma olhada em qualquer atlas geográfico para dar-se conta de que o Ocidente do mapamundi terrestre coincide com o continente americano e com as águas oceânicas que o rodeiam. Europa não é Ocidente, poruqe encontra-se no hemisfério oriental e é parte integrante dessa unidade continental chamada Eurásia. Assim, se Europa tem uma relação de continuidade ou de contrato natural com outras partes do mundo, estas não são América, senão Ásia e África. Tudo isso, ainda sem dizê-lo, o próprio Cardini nos induz a pensar quando abre uma interrogação desse tipo: Porém o equador é realmente uma linha divisória também em termos culturais ou econômicos - e de poder- mais nítida do meridiano atlântico que separa o continente europeu do americano?

A tese da localização ocidental de nosso continente é por outra parte desmentida pela configuração geográfica das construções imperiais que unificaram zonas mais ou menos amplas do espaço europeu. Os impérios de Alexandre, de Roma, de Bizâncio, dos Otomanos, foram grandes sínteses eurasiáticas e mediterrâneas. Inclusive o Sacro Império Romano pareceu recuperar uma dimensão desse gênero, quando com Frederico II da Suábia, a corte imperial trasladou-se a Palermo e o próprio Imperador estendeu sua autoridade sobre Jerusalém e outras zonas da Palestina. A própria Alemanha, que enquanto imagem histórica do Império medieval seguiu sendo até 1945 das Reich, o Império, buscou sempre seu próprio espaço não na direção do ocidente, mas do oriente.

Mais além da extensão no espaço que alcançaram realmente e da incidência temporal dos efeitos dela derivados, todas as ações políticas que trataram de unificar o continente contribuíram a consolidar o tecido eurasiático, mais além das divisões políticas, das diferenças étnicas, e das contraposições culturais.

Se é certo que os mitos implicam uma série de significados sobrepostos ao literal, não seria de todo ilegítimo buscar nesse difundido arquétipo que fala-nos do desmembramento de um deus (Prajapati, Osírios, Zagreus, etc.) e da posterior origem do cosmos a partir de seus membros dispersos, um significado relacionado com a origem da geografia terrestre. O que são em realidade o conjunto das terras emersas, senão um corpo, dividido nessas quatro ou cinco partes que convimos em chamar continentes?

Tratemos primeiramente de estabelecer o número destes últimos, porque é possível enumerar quatro (Eurásia, África, Oceania, América) ou quiçá cinco (Eurasia, África, Oceania, América setentrional, América meridional). A partir de seu número, poderemos aplicar à geografia de nosso planeta uma analogia ou outra. De fato, para um esquema quaternário valerá o simbolismo dos quatro elementos constitutivos do cosmos (ar, água, fogo, terra), enquanto que o eixo central corresponderá ao elemento invisível e central, a quintessência, o éter.

Para um esquema quinário, vice-versa, será possível aplicar o simbolismo do corpo humano. Em tal caso, se imaginamos aos cinco continentes como partes de um corpo análogo ao do ser humano, poderíamos dizer que Eurásia constitui a parte central e essencial, a que contem a cabeça e o tronco, alojando dentro de si pois o coração, o cérebro e todos os demais órgãos vitais, enquanto que os outros quatro continentes (África, Oceania, e as duas Américas) representam as quatro extremidades do corpo.

Efetivamente, todas as regiões mais importantes desde o ponto de vista da economia espiritual encontram-se concentradas na Eurásia. A partir de centros eurasiáticos irradiaram-se as influências tradicionais que alcançaram posteriormente o resto do planeta: desde o xamanismo siberiano mais arcaico, que através de migrações pré-históricas estendeu-se pelas duas Américas, até a revelação corânica que selou o ciclo tradicional da atual humanidade e difundiu-se igualmente mais além dos limites da Eurásia. E isto para citar somente duas, a mais antiga e a mais recente, entre as formas tradicionais que manifestaram-se originariamente no solo eurasiático.

Porém quisera concluir apresentando para vossa reflexão outro mito, do qual desprende-se toda a futilidade do conceito de Ocidente entendido como realidade em si mesma, enquanto que resulta a posteriori afirmada a conformidade da idéia do Império no espaço eurasiático.

Trata-se do mito de Alexandre e particularmente da caracterização que dele foi realizada desde a tradição islâmica, a qual na Sura da Caverna do Corão assigna ao "Bicorne" uma função não somente imperial, senão também escatológica (9). Segundo o simbolismo posto em relevo desde este específico contexto tradicional, a marcha empreendida por Alexandre Magno ao longo da linha oeste-leste traduz no plano geográfico essa modalidade "expansivva" que a doutrina islâmica denomina "amplitude". Agora bem, "amplitude" e "exaltação" são dois termos que correspondem às duas fases da Viagem Noturna do Profeta Maomé, paradigma do caminho iniciático que alcança a realização suprema.

De fato, Fadlallah al-Hindi afirmou: "Seja a exaltação seja a amplitude alcançaram sua perfeição no Profeta, que Deus o bendiga e dê-lhe a Paz". Porém aqui é preciso acrescentar que, segundo um dito tradicional do próprio Profeta, Alexandre foi entre todos os homens o mais semelhante a ele. E isto não somente porque Alexandre cruza a terra em sua extensão horizontal, de oeste a leste, senão também porque, segundo outro dito atribuído ao Mensageiro de Deus, depois da fundação de Alexandria do Egito, o Macedônio foi levado ao céu por um anjo. Por outra parte, as histórias relativas a descida de Alexandre ao fundo do mar e a sua ascensão celestial até a esfera do fogo tiveram ampla difusão quer seja no Oriente como na Europa medieval.

Desse modo, a figura de Alexandre pode remeter-se, pelos significados que transporte, a uma doutrina íntegra do Sacro Império, pois ele, tendo desenvolvido todas as suas possibilidades segundo os dois sentidos horizontal e vertical, é ao mesmo tempo possuidor da realeza e do sacerdócio, é simultaneamente rex e pontifex. E sua figura coloca-se no fundo do espaço eurasiático, que constitui não somente o cenário histórico, senão a projeção espacial mesma correspondente à idéia do Império.

NOTAS

(1)NdelT.- "OH hermanos –dije-, que tras cien mil / peligros a occidente habéis llegado(...)"(XXVI, 112-13). Divina Comedia. Seguiremos siempre la traducción y edición de Giorgio Petrocchi y Luis Martínez de Merlo, Cátedra, Madrid, 1998;
(2)NdelT.- "... el mundo inhabitado" (XXVI, 117);
(3)NdelT.- "Viejos y tardos ya nos encontrábamos/ al arribar a aquella boca estrecha/ donde Hércules plantara sus columnas (...)" (XXVI, 106,108)
(4)NdelT.- "más de cien y cien años se detuvo /en el confín de Europa aquel divino/ pájaro, junto al monte en que naciera(...)"
(5)NdelT.- Resulta curioso que actualmente, en la estela de cierto discurso de Estado francés, algunos pájaros no precisamente divinos, graznen contra la supuesta "europeidad" geográfica y –sobre todo- política de Turquía, confundiendo sus propios prejuicios étnico-religiosos euro-sionistas con los orígenes sagrados indo-arios de la civilización europea;
(6)NdelT.- Debe tratarse de un error tipográfico. En realidad, las aleyas dedicadas a Ibrahim/Abraham comienzan en III, 65 y ss. Por ejemplo: "Abraham no fue judío ni cristiano, sino que fue hanif [monoteísta primordial], sometido a Dios, no asociador." (III, 67) Alcorán, edición y traducción de Julio Cortés y Jacques Jomier, Herder, Barcelona, 1986)
(7)NdelT.- Lo que es bueno para la General Motors es bueno para los Estados Unidos.
(8)NdelT.- Existe traducción española: Franco Cardini. "Nosotros y el Islam. Historia de un malentendido", Crítica, Barcelona, 2002;
(9)NdelT.- Alcorán, XVIII, 83-98;

27/11/2011

Por uma Interpretação Antropo-Ontológica do Pensamento Nietzscheano

por Alejandro Felix Raimundo



Neste trabalho tenta-se estabelecer uma relação entre a antropologia filosófica de Arnold Gehlen e a filosofia de Nietzsche. À luz da mesma é possível interpretar o pensamento nietzscheano desde um ponto de vista antropo-ontológico. A metodologia a seguir neste artigo consistirá em pôr em manifesto as semelhanças entre Nietzsche e Gehlen ao mesmo tempo que a importância que tem as considerações antropológicas dentro do conjunto da obra nietzscheana.

Em primeiro lugar há que dizer que foi o próprio Gehlen o primeiro em assinalar Nietzsche como um dos antecedentes de sua concepção antropológica, como assim também a possibilidade de interpretar as categorias fundamentais do pensamento nietzscheano desde a concepção deficitária do homem, como prova o seguinte parágrafo:

"...no mero 'existir' poderia estar realizando-se uma tarefa de uma importância infinita e cujo mandamento (essencialmente incognoscível porque nós somos esse mandamento) somente poderia aludir-se simbólicamente. A idéia nietzscheana do eterno retorno (que nunca foi realmente entendida), do eterno retorno, da vontade de poder, encontram aqui sua localização. Tomadas ao pé da letra possuem escasso sentido e são somente apêndices da filosofia de Schopenhauer e do darwinismo. Para ele eram símbolos que caracterizavam de algum modo um 'plus de vida' e queriam determinar mais concretamente essa obrigação indeterminada".

Não cabe dúvida de que Gehlen propõe uma maneira peculiar de ler Nietzsche. Neste trabalho tentar-se-á demonstrar a existência de um núcleo básico de coincidências entre ambos autores, ainda que evitar-se-á fazer uma análise minuciosa do pensamento de Gehler por entender que o mesmo excede as possibilidades de um trabalho desta extensão.
A tarefa consistirá em mostrar a conexão existente entre alguns pontos fundamentais dos pensamentos de um e outro.

1 - A Primazia da Práxis

Em Der Mensch - Seine Natur und seine Stellung in der Welt (1940) encontramos uma antropologia filosófica pura, uma concepção da essência do homem cujos conceitos são muito específicos e somente aplicaveis a seu objeto de estudo. O ponto de partida desta concepção é a tese nietzscheana de que o homem é "o animal não fixado". Gehlen diz que isso significa duas coisas: por um lado que não há nenhuma explicação do que seja o homem e por outro lado que o ser humano está inacabado, que não está estabelecido com firmeza.

Gehlen apresenta-nos o ser humano como um ser práxico, quer dizer como um ser que atua, trata, negocia, e que, por sobre todas as coisas, deve dar uma interpretação de si mesmo. Gehlen apresenta o homem como um projeto único da natureza que contradiz a tendência geral da evolução, a qual vai no sentido de uma crescente especialização, quer dizer de adaptar os organismos a um meio ambiente formado por uma série de não-especializações que desde o ponto de vista biológico constituem "primitivismos".

Gehlen entende que apesar de a concepção deficitária do homem ter sido intuída, e inclusive desenvolvida por muitos autores, nenhum foi capaz de captar o verdadeiro lacance da mesma. Isto deve-se a que não foi visto o princípio da descarga (Entlastung), o qual consiste na capacidade típica do homem de transformar suas carências características em oportunidades de prolongação da vida. O pensamento básico de Der Mensch é o seguinte: "...as carências da constituição humana (carências que representam um enorme gravame de sua capacidade de viver sob condições por assim dizer animais) são transformadas pelo homem, por si mesmo e com a ação em meios de sua existência, conjugando-se assim em último termo o destino do homem à ação e sua incomparável situação especial".

Todas as funções da vida humana, como por exemplo a linguagem, a fantasia, as pulsões, etc, são para Gehlen manifestações desta condição fundamental do ser humano: a de ser uma tarefa para si mesmo. Isso deixa assentada definitivamente a primazia da práxis vital sobre toda forma de conhecimento ao tempo que evita o recurso a categorias metafísicas para explicar a existência humana, como por exemplo as que veem a diferença entre o homem e o animal no espírito. Já no que concerne a este ponto é possível advertir uma significativa coincidência entre Nietzsche e Gehlen, devido a que também em Nietzsche encontramos um permanente esforço por apresentar todas as categorias do conhecimento (inclusive aquelas que aparecem como mais abstratas) como um resultado da particular organização vital do ser humano. A respeito resulta significativa sua afirmação de que: "...não existe em absoluto um mundo verdadeiro, por conseguinte há uma aparência perspectivística cuja origem encontra-se em nós (na medida em que temos necessidade de um mundo mais estreito, simplificado, contínuo)." Nietzsche considera que o conhecimento somente é possível como vontade de ilusão, como vontade de poder, já que o conhecimento é impossível no devir devido à natureza caótica, informulável, contraditória deste.

O conhecimento é visto por Nietzsche como um produto da humana necessidade, se nos atemos a sua afirmação de que:

"...essa necessidade de formar conceitos, espécies, formas, fins, leis - um mundo de casos idênticos - não deve-se compreender no sentido de que nós seríamos capazes de fixar um mundo verdadeiro; senão enquanto necessidade de preparar um mundo onde nossa existência seja possível, nós criamos deste modo um mundo calculável, simplificado, compreensível".

Para Nietzsche as categorias de sujeito, objeto, substância, espírito, etc, são ficções lógicas resultantes das condições de existência do ser humano. Neste ponto já resulta possível ver uma marcada afinidade entre seu pensamento e o de Gehlen, já que em ambos encontramos um perspectivismo antropocêntrico que põe de manifesto constantemente a relação existente entre a práxis que caracteriza a existência humana e as categorias mediante as quais o homem interpreta sua existência. Também encontramos em ambos uma preocupação em pôr de manifesto a relação existente entre os fenômenos corpóreos e as manifestações espirituais da existência huamana; porém já neste ponto pode-se advertir uma diferença enter ambos, já que enquanto em Nietzsche o corpo é visto como o fundamental, em Gehlen encontramos uma lei estrutural que está na base de todos os atos que o ser humano realiza, quer seja estes físicos ou psíquicos.
2 - Uma revisão do conceito nietzscheano do corpo desde a perspectiva da condição deficitária do homem

Nietzsche considera essencial tomar o corpo como ponto de partida de todas as análises e considerá-lo como fio condutor. Ele é o fenômeno mais rico, e o que permite o mais claro exame. Isso não significa que haja em Nietzsche um imediatiasmo, uma adesão imediata aos sentidos e ao corpo, como muitos já pensaram, mas sim que o corpo, enquanto constitui o assento da vontade de poder, resulta ser o fio condutor que permite a Nietzsche levar a cabo sua "filosofia do martelo", sua tarefa desconstrutiva dos cimentos sobre os quais apoiavam-se a ética e a filosofia do Ocidente, como por exemplo a tese sobre a autonomia do espírito. Esta tese não somente parece-lhe equívoca, senão também perniciosa para a vida. Em um aforisma de Aurora que leva por título justamente "o preconceito do espírito puro", adverte-nos que:

"Onde quer que haja reinado a doutrina da 'espiritualidade pura', destruiu-se, por seus excessos, a força nervosa, produzia almas sombrias, rígidas e oprimidas, que ademais acreditavam conhecer a causa deste sentimento de miséria e esperaval poder suprimir esta causa: 'É preciso que ela seja encontrada no corpo!' Está ainda muito florescente, assim pensavem!, enquanto que na realidade o corpo, por suas dores, não cessava de elevar-se contra o contínuo desprezo que era-lhe demonstrado...seu sistema alcançava seu apogeu quando consideravam o êxtase como ponto culminante da vida e como pedra de toque para condenar todo o terreno".

O mesmo pensamento aparece expressado no conhecido aforismo de Assim Falou Zaratustra que leva por título "Dos Desprezadores do Corpo". No mesmo Nietzsche afirma que o corpo é a grande razão, a serviço da qual trabalha a pequena razão, à qual os desprezadores do corpo chamam "espírito".
Nietzsche considera que o corpo tem suas próprias valorações, as quais não somente antecedem às valorações conscientes senão que também as determinam. As valorações surgem de nossas condições de existência ou da crença que temos nelas, em caso de que qualquer destas duas coisas modifique-se nossas valorações também terão que fazê-lo, portanto, as valorações não são exclusivas do ser humano, senão que a capacidade de escolher o mais importante, o mais útil, ou o mais urgente está presente em todos os seres vivos é mais o fato mesmo de estar vivo já implica a necessidade de valorar.

A prioridade do corpo sobre o espírito resulta em Nietzsche tão marcada que em Para Além do Bem e do Mal emprega imagens corpóreas para referir-se ao espírito, quando diz que "aquilo a que mais se parece o espírito é a um estômago". Resulta induvidável que Nietzsche, ao mesmo tempo que nega à consciência, à razão, e ao espírito toda existência autônoma, proporciona uma nova imagem do corpo, o qual aparece como determinante, como o lugar originário da experiência humana. Esta nova imagem do corpo com a qual o filósofo maneja, permite-lhe desenvolver uma tarefa crítica que constitui uma verdadeira fisiologia do conhecimento a qual já aparece em A Origem da Tragédia e mantem-se como uma constante presença durante todas as etapas de seu pensamento, até alcançar sua máxima expressão nos fragmentos póstumos.

É necessário esclarecer que esta fisiologia do conhecimento não representa de modo algum uma adesão de Nietzsche ao paradigma mecanicista. Nietzsche não pretende explicar a atividade da consciência valendo-se do princípio de causalidade, senão enfocando-a desde uma perspectiva vitalista que vê ao mundo como um conjunto de centros de força e resistência em permanente luta entre si. Acaso o exemplo mais concludente do que esta fisiologia do conhecimento representa seja o seguinte aforisma:

"...a distinção e transferência lógicas como critério da verdade ('verdadeiro é aquilo que é percebido clara e dinstintamente' - Descartes): com isso faz-se desejável e verossímil a hipótese mecanicista do mundo [...]de onde sabe-se que a verdadeira conformação das coisas está em conformidade com nosso intelecto? Não será diferente? Que a hipótese que dá-lhe em nível máximo a sensação de poder e segurança é preferida, apreciada, e consequentemente designada como verdadeira por ele? - O intelecto coloca seu poder e capacidade mais livre e mais forte como critério do mais valioso, portanto do verdadeiro [...]os graus máximos no desempenho despertam, com referência ao objeto, a crença em sua realidade, a sensação de força, de resistência, persuade de que há algo a que oferece-se resistência".

É preciso assinalar uma coincidência fundamental entre Nietzsche e Gehlen: ambos pensam que o instinto mais básico; o que está na base de todo fazer e querer é, justamente por sê-lo, o menos reconhecido, pois na prática acolhemos sempre seu mandato. Esta coincidência fundamental não deve fazer com que percamos de vista, não obstante, uma diferença não menos importante: Nietzsche leva a cabo uma inversão do ponto de vista dominante na filosofia ocidental, o qual vía nas idéias, o pensamento, ou o espírito, ao mais próprio do ser humano; Gehlen, entretanto, abre uma nova perspectiva que mostra a conexão existente entre a inferioridade e a exterioridade do ser humano, sem conceder prioridade a nenhum dos termos da relação. Podemos ver no pensamento de Nietzsche uma antecipação da antropologia de Gehlen, porém não podemos perder de vista que Gehlen, diferentemente de Nietzsche, não reage contra uma tradição filosófica, mas sim inaugura uma nova forma de pensar, capaz de arrojar luz sobre todos os aspectos da existência do homem sem dar prioridade a nenhum deles.



3 - A experiência do dionisíaco como manifestação da condição humana

Até agora assinalaram-se uma série de pontos de contato bastante notórios entre os pensamentos de Nietzsche e Gehlen; porém é possível assinalar coincidências muito mais significativas entre ambos autores. Um bom ponto de partida para esta tarefa pode encontrar-se na tentativa de interpretar desde a condição deficitária humana a problemática do dionisíaco em Nietzsche. A tese que terá de defender-se é a seguinte: a ambígua situação existencial caracterizada ao mesmo tempo pelo desgarramento e pela exubereância que a figura de Dionísio representa guarda muitos pontos de contato com a condição humana, tal como esta foi interpretada por Arnold Gehlen. Já em A Origem da Tragédia, o dionisíaco pode ser entendido como um conceito com o qual alude-se a uma atitude fundamentalmente afirmativa perante a existência. Esta atitude contrapõe-se à atitude reativa que caracteriza o ideal ascético. O dionisíaco vem assim a opor-se não somente às religiões reativas que negam a afirmação da vida, mas também à ciência moderna que, na opinião de Nietzsche, tem no pensamento de Sócrates sua primeira manifestação.

O pessimismo dos fortes que encontramos em A Origem da Tragédia representa um dizer sim à vida tendo plena consciência dos aspectos mais terríveis e dolorosos desta. Esta atitude que encontramos em Nietzsche é, em seus traços essenciais, bastante semelhante à que Gehlen expressa por meio da categoria de "obrigação indeterminada", a mesma expressa a necessidade de afirmar a vida em toda circunstância, recorrendo para isso aos meios que considerem-se necessários, os quais não estão determinados de antemão, mas ao invés dependem da interpretação que dê o homem de sua própria vida. A mesma conjunção de carências e superávil pulsional que observa Gehlen no ser humano é expressado por Nietzsche com sua tematização do dionisíaco; a nudez própria de Dionísio corresponde-se plenamente com a indeterminação essencial da vida humana; e nas diversas epifanias do Deus pode-se encontrar um símbolo da plasticidade característica da vida humana.

Também resulta importante ter em conta a observação nietzscheana de que Dionísio sente uma grande afinidade pelos seres humanos; já que assim como este Deus representa na ordem do divino uma forma de vida sumamente particular; o homem representa uma forma de vida atípica, um projeto único da natureza, essa é a razão fundamental da afinidade existente entre os homens e este Deus. Porém a esta razão há que somar outra, não menos importante que a anterior: "Dionísio é o Deus do inacabado nascimento", segundo a expressão de Maria Zambrano, e nisto também é possível assinalar uma coincidência com a condição deficitária do homem em Gehlen, já que este autor toma como pont ode partida de sua antropologia, a idéia de que o homem é um ser inacabado que constitui uma tarefa para si mesmo.

Aprofundando um pouco mais na análise é possível encontrar coincidências ainda mais sutis entre Nietzsche e Gehlen; assim, por exemplo, o fato de que o autor de A Origem da Tragédia expôs em dito livro uma questão que também vai ser tematizada por Gehlen em Der Mensch: a relativa à determinação do significado que adquire a moral desde o ponto de vista da vida. Nietzsche advertiu a existência de um conceito propriamente grego da moral, o qual opõe-se à moral predominante no Ocidente, a qual vê ao ato maligno como uma consequência da má vontade porém não logrou, nem em A Origem da Tragédia, nem em nenhuma de suas obras posteriores, dar uma explicação satisfatória do modo no qual relaciona-se a moral com o conjunto das relações humanas, em virtude que que faltava-lhe, precisamente, uma categoria como a lei da descarga de Gehlen, uma categoria capaz de atrevessar todas as operações humanas. Na obra de Gehlen, por sua vez, sim podemos ver uma resposta convincente a esta questão, a qual pode encontrar-se para citar só dois exemplos, nas páginas 75-76 de Der Mensch, e no capítulo 9 de Moral und Hypermoral.

O próprio Nietzsche deixa aberta a possibilidade de interpretar a religião dionisíaca desde o ponto de vista antropológico, quando em Para Além do Bem e do Mal menciona a simpatia que Dionísio tem pelos seres humanos, ao mesmo tempo que a possibilidade de que os Deuses tomem aos homens como medida, em virtude de que "nós os homens somos mais humanos". Se aceitamos a possibilidade de interpretar o dionisíaco desde o ponto de vista antropológico, podemos pensar também que a antropologia de Gehlen é a mais adequada a este propósito, em virtude das já assinaladas coincidências entre Nietzsche e Gehlen, e de outro fato cuja importância não pode subestimar-se: o fato de que ambos tiveram no pensamento de Herder um poderoso motivo de inspiração.

4 - A filosofia de Nietzsche como uma metafísica antropo-ontológica

As críticas que Nietzsche formula contra as noções que tem dominado a história da ética e da metafísica ocidentais compreendem-se melhor se tem-se em conta que em Nietzsche encontramos uma crítica demolidora da noção apofântica de verdade. Não há, diz o filósofo "...espírito, nem razão, nem pensamento, nem consciência, nem alma, nem vontade, nem verdade, todas são ficções inservíveis. Não trata-se de 'sujeito' e 'objeto', senão de uma determinada espécie animal que somente prospera sob uma certa exatidão relativa e, acima de tudo, regularidade de suas percepções (de modo tal que possa capitalizar a experiência)".

O intelecto não tem, na opinião de Nietzsche, outro valor que não seja o meramente antropológico, por isso recorda-nos: "quão lamentável, sombrio, e efêmero, sem fins e abstratamente, encontra-se o intelecto dentro da natureza. Houve eternidades durante as quais não existiu, quando desapareça, nada haver-se-á perdido, pois nosso intelecto não tem missão ulterior fora da vida humana, é puramente humano, e somente seu possuidor e gerador toma-lhe pateticamente como se fosse o eixo do mundo".

Nietzsche manifesta que na base de todos os conceitos, leis, espécies, formas, e fins com os quais lidamos está nossa necessidade de preparar um mundo no qual nossa existência resulte possível. Não existe uma distinção entre um mundo verdadeiro e um aparente, senão uma distinção entre o mundo fenomênico e o mundo informe e informulável do caos das sensações. O mundo dos fenômenos é o resultado da interpretação que o homem faz do devir valendo-se das categorias da lógica e da metafísica, as quais são o produto de suas necessidades vitais. Esta circunstância faz possível pensar que em Nietzsche encontramos uma continuação da metafísica da finitude que teve seu ponto de partida em Kant. Em efeito, também para Nietzsche vai ser impossível um conhecimento que não esteja intermediado por nossas categorias. A novidade do aporte nietzscheano é a idéia de que também o sujeito é uma ficção resultante das condições de existência do ser humano e não uma estrutura a priori que constitua uma condição de possibilidade da experiência, como ocorria no caso de Kant.

O mundo é interpretado por Nietzsche como um conjunto de centros de força e resistência, como um conjunto de quantum de poder, e o conhecimento é um produto mais da interação (ação e reação) entre esses centros de poder. As condições vitais nas que cada ser vivo desenvolve-se, determinam o tipo de conhecimento que este vai experimentar. O homem também forma parte desses quantum de poder, e, portanto, é um ser perspectivístico; porém, lamentavelmente, pretende conferir a seu próprio ponto de vista o caráter da objetividade. A confusão produziu-se porque:

Em vez de ver na lógica e nas categorias da razão, meios para a disposição do mundo com fins de utilidade ("inicialmente" pois para um falseamento útil) acreditou ter nelas o critério da verdade, ou bem da realidade. O "critério da verdade" foi, de fato, simplesmente a utilidade de um tal sistema de falseamento por princípio; e dado que um gênero animal não conhece nada mais importante que conservar-se, poder-se-ia falar aqui efetivamente de "verdade", a ingenuidade consistiu em tomar a idiossincrasia antropocêntrica como medida das coisas.

De acordo com o que Nietzsche expressa, a lucidez consistiria em tomar consciência da impossibilidade de refundar nossa própria perspectiva. Em tal sentido, o perspectivismo do autor deveria conduzir necessariamente ao antropocentrismo. Não obstante, neste ponto de vista adverte-se uma tensão no pensamento de Nietzsche, se nos atemos a sua afirmação de que: 

"...a vontade de poder é o que dirige também ao mundo inorgânico, não pode-se eliminar o 'efeito a distância', algo atrai outra coisa, algo sente-se atraído, esse é o fato fundamental".

A vontade de poder, enquanto é apresentada aqui como a força que está na base de todo acontecer, resulta um conceito muito forte, ainda quando não tem um significado ontológico. A ambiguidade está dada pelo fato de que Nietzsche confere à vontade de poder muita importância, ao mesmo tempo que nega a relação de correspondência entre os conceitos e a realidade. A pergunta que impõe-se é: Qual é o critério para medir o valor dos conceitos e categorias dos quais Nietzsche vale-se? Uma possível resposta a esta questão pode encontrar-se nas seguintes quatro teses:
1 - Todo ser vivo é perspectivístico, isto equivale a dizer que organiza sua vida de acordo com suas próprias valorações, as quais estão determinadas por suas necessidades biológicas e pelo horizonte vital no qual se move.

2 - O homem, devido a sua particular organização vital, esquece que é também um ser perspectivístico, e absolutiza sua própria experiência vital.

3 - Nietzsche, mediante um procedimento que se absteve de confessar, porém que não é outro que a reflexão, logrou pôr em descoberto a falácia que representa tal maneira de raciocinar.

4 - Esse esclarecimento das condições de existência de nossa própria espécie que leva a cabo a consciência crítica por meio da reflexão, funda a possibilidade de um pensamento de índole antropo-ontológica, original e insólita.

Ao longo de toda sua obra, Nietzsche realiza um labor genealógico com o qual põe em descoberto os impulsos que constituem a base da religião, da ética, e da metafísica. A tese que aqui defende-se é que o produto final dessa tarefa é uma metafísica que tem, como já antecipara-se, uma estrutura antropo-ontológica.

A fim de não cair em um reducionismo, há que dizer que o perspectivismo, a impossibilidade de sair do plano da interpretação e transcender o jogo das máscaras faz que em Nietzsche não haja qualquer conceito transparente. Essa é a razão pela qual o homem mesmo tem que ser visto como uma interpretação. Nos fragmentos póstumos o filósofo diz-nos que o que designamos como a palavra 'homem' é: "...uma pluralidade de forças que encontram-se em uma hierarquia [...] o conceito 'indivíduo' é errado. Estes seres não existem isoladamente, o que mais pesa, aquilo em que recai a ênfase é algo mutante, a constante produção de células, etc, deriva em um câmbio constante do número desses seres..."

O "homem" é para Nitzsche uma ficção na medida em que é um conceito que utiliza-se para referir-se a uma realidade múltipla. Para o filósofo o ser humano é um ser de conteúdo múltiplo através do qual põem-se em movimento enormes forças. O fato de que a perspeciva antropológica resulte privilegiada deve-se somente ao fato de que não podemos refundá-la, em virtude de que é nossa perspectiva; a idéia que Nietzsche propõe-nos é que: "há que assumir todos os movimentos, todos os 'fenômenos', todas as 'leis' como sintomas de um acontecer interior e servir-se até o final dessa analogia".

O homem também forma parte do jogo de máscaras ao qual reduz-se o conhecimento no contexto de da filosofia do "como se"; "homem" é definitivamente um conceito para referir-se a uma multiplicidade que, como tal resulta inexprimível por meio da linguagem, isto equivale a dizer que também a palavra "homem" é uma máscara. Aqui parece apresentar-se uma aporía, em virtude de que o lugar desde o qual julga-se acerca do valor das ficções (o homem) é também uma ficção; porém dita aporía desaparece se tem-se em conta o seguinte: ainda no contexto da filosofia do "como se", ainda respeitando a paixão nietzscheana pela simulação, é necessário ter um critério para avaliar; e parece possível afirmar que o mesmo encontra-se na tomada de consciência acerca da perspectiva desde a qual o ser humana interpreta o devir.

Ainda quando evite-se chegar a uma conclusão definitiva a respeito do pensamento de Nietzsche, ainda quando adote-se o pensamento do caminho e da demora provisória, é preciso que os conceitos ponham-se em movimento; e para isso é necessário que haja um princípio que ative-os. Se a obra de Nietzsche não é uma sucessão de críticas e argumentos carentes de unidade, é preciso que a tarefa que Nietzsche leva a cabo com o fim de dessacralizar as certezas mais arraigadas da metafísica e da ética faça-se desde um lugar determinado. Neste trabalho afirma-se que dito lugar existe, e que encontra-se na perspectiva de nossa própria espécie, ainda quando a mesma deva também ser sujeia a crítica, tarefa que somente pode ser levada a cabo por meio da reflexão.