por Eric Mader
Tradução por M. Oltramari
Tradução por M. Oltramari
Se alguém procura uma rápida
definição de gnosticismo antigo, é provável que encontre algo assim:
Gnosticismo:
Um movimento religioso que
floresceu no Império Romano entre os Séculos II e VI D.C.
Identificados como hereges
tanto pelos Cristãos como pelos Judeus, os gnósticos ensinavam que o mundo não foi
criado pelo verdadeiro Deus, mas por um ser menor, deficiente, chamado de O
Demiurgo, que rege sob sua criação, o nosso mundo, com a ajuda de poderes
administrativos chamados de Arcanos. Enquanto o local do verdadeiro Deus (O
Pleroma, ou “Plenitude”) se encontra além dessa criação defeituosa, sendo o
objetivo do gnóstico escapar da armadilha que é esse mundo e retornar para
aquele.
De acordo com os gnósticos, os
seres humanos possuem uma centelha divina não pertencente a essa criação menor,
mas que continuaria reencarnando aqui a não ser que fosse redimida através da gnose (o conhecimento libertador acerca
das nossas verdadeiras origens). Seres humanos estavam divididos em três tipos:
os espirituais (aqueles predestinados
à salvação), os psíquicos (aqueles
que poderiam alcançar uma forma de salvação através da gnose e várias práticas
de purificação) e os materiais (aqueles
que por sua natureza estavam permanentemente atados ao domínio material).
Portanto, a religião gnóstica era caracterizada por um desprezo radical pelo
mundo (entendido como uma prisão) e pelo corpo (a cela individual de cada um).
Fontes antigas demonstram que em certos grupos esse desprezo levou a um
rigoroso ascetismo, e em outros a uma rigorosa libertinagem (uma vez que as
leis morais eram simplesmente parte da armadilha criada pelo Demiurgo, alguns
gnósticos ensinavam que os espiritualmente liberados deviam demonstrar sua
liberação quebrando tantas leis quanto fosse possível).
Gnósticos cristãos
consideraram Jesus como um mensageiro do verdadeiro Deus, enviado de Pleroma
para trazer os ensinamentos libertadores da gnose. Eles rejeitaram a doutrina
ortodoxa de que Jesus morreu para expiar pelos pecados dos homens. De acordo
com os gnósticos, o mal no mundo não resultava do pecado humano, mas da criação
defeituosa do Demiurgo, ou seja, o mundo era mal porque seu criador era mal.
Enquanto cristãos ortodoxos aceitavam o Antigo Testamento como parte de suas
escrituras sagradas, os gnósticos viam no Antigo Testamento uma representação do
Demiurgo. Somente Jesus era enviado do “Pai”, isto é, o verdadeiro Deus.
Devido ao seu
rigoroso desprezo pelo mundo e sua concomitante rejeição das normas sociais, a
maioria dos escolásticos entenderam que o gnosticismo foi uma religião de
revolta radical. Os bogomilos na Europa oriental e os cátaros do medievo no sul
da França são considerados como encarnações tardias da religião gnóstica. Uma
coleção de antigas escrituras gnósticas enterrada foi descoberta perto da
cidade egípcia de Nag Hammadi em 1945.
Em poucos parágrafos temos aqui um exemplo de como o gnosticismo é
tipicamente definido em aulas universitárias e enciclopédias. É uma apresentação clássica
sustentada em estudos modernos do gnosticismo tal como vemos em The Gnostic Religion de Hans Jonas. Pelo
hábito da repetição ela se tornou mais ou menos padrão. Mas essa definição é
realmente apta para descrever as crenças e práticas dos gnósticos antigos? Quão
apropriada ela é em relação ao que encontramos nos textos de Nag Hammadi? Afinal
de contas, a maioria dos elementos dessa definição foram construídos antes da
descoberta desses escritos. Através dos escritos gnósticos existentes e disponíveis
agora, os escolásticos devem ser capazes de chegar a um entendimento mais
detalhado do que era possível anteriormente. As leituras que eles realizaram
dos textos de Nag Hammadi mudaram o nosso entendimento acerca desse antigo
movimento religioso?
Em seu livro Rethinking “Gnosticism”: An Argument for
Dismantling a Dubious Category Michael Allen Williams avalia a legitimidade
dessas definições usuais e as considera seriamente incompletas. Ler o seu
estudo é perceber o quanto essa coisa chamada “gnosticismo” é uma amálgama de
caricaturas acadêmicas modernas e aceitação desprovida de senso crítico dos
escritos de heresiólogos como Santo Ireneu e Epifânio de Salamina. Talvez essa
confiança fosse algo inevitável dada a falta de fontes originais de outrora.
Mas agora, com a riqueza dos evangelhos e tratados gnósticos descobertos no
Egito as coisas mudaram. O trabalho de Williams se propõe a revelar a dimensão
das mudanças necessárias.
A metodologia geral de
Williams é simples: toma as atuais apresentações acadêmicas da religião
gnóstica e as compara ponto por ponto com o que nós realmente encontramos nos
escritos gnósticos. E ainda: toma as apresentações que os heresiólogos antigos fazem
dos gnósticos e realiza uma comparação similar. As apresentações que os
gnósticos fazem deles mesmos em seus escritos corresponde às doutrinas
atribuídas a eles por Ireneu? Eles correspondem ao que nós escutamos da
comunidade de acadêmicos modernos? Se a resposta é não, porque?
Se Williams estiver
certo, a nossa ideia de gnosticismo como uma religião antiga não estaria de
acordo, em aspectos importantes, com a ideia dos próprios gnósticos antigos. A
nossa compreensão das doutrinas e comportamentos gnósticos (em relação ao
corpo, à sociedade, à ética) frequentemente colocou ênfase nos pontos errados.
E nossa apresentação das práticas gnósticas ainda está embasada nos
heresiólogos, ainda que suas descrições tenham sido desmentidas pelos escritos
de Nag Hammadi.
Em suma, o gnosticismo é normalmente apresentado como uma religião de
revolta e negação do mundo: uma religião adotada por estrangeiros em um estado
de rebelião contra as normas sociais. Acreditava-se que os gnósticos haviam
construído uma barreira entre eles mesmos e o mundo que os cercava revertendo
mecanicamente os valores sociais dominantes. Essa noção dos gnósticos
empreendendo um tipo de negação sistemática de tudo que a sociedade sustentava
como sagrado originou-se principalmente de observações selecionadas a partir
das leituras que os gnósticos faziam das escrituras hebraicas (por exemplo,
eles frequentemente entendiam a serpente no Jardim do Éden de uma maneira
positiva, enquanto Yahweh, entendido como o Demiurgo, era visto negativamente).
Porém, como Williams aponta, esses exemplos de interpretações das escrituras
gnósticas não indicam necessariamente uma atitude rebelde em relação à
sociedade como um todo. Utilizando modelos desenvolvidos em estudos
sociológicos de movimentos religiosos, Williams argumenta
que em muitos casos o mais provável era o oposto: os gnósticos estavam
interpretando as ideias judaico-cristãs do divino de maneiras mais harmônicas
com as sociedades predominantemente pagãs nas quais eles viviam. O argumento de
Williams aqui é convincente. A nossa
interpretação do comportamento gnóstico como uma postura de revolta contra a
sociedade nos foi empurrada pelos heresiólogos, quem, por motivos óbvios,
procuravam retratar os gnósticos como rebeldes contra a ortodoxia. Portanto, é
anacrônico afirmar que os gnósticos eram pervertidos sociais.
Williams considera da
mesma forma a questão do “determinismo gnóstico”: a afirmação moderna, repetida
frequentemente, de que os gnósticos acreditavam que a humanidade estava
dividida em tipos diferentes (os espirituais, os psíquicos, os materiais) ou
raças diferentes (a raça de Seth, a raça de Cain), e o desfecho doutrinal
dessas divisões de que o potencial de cada indivíduo para a salvação já estaria
determinado pelo nascimento. Williams demonstra que essa noção moderna do
determinismo gnóstico não é sustentada pelos textos originais. Uma leitura
cuidadosa dessas fontes demonstra que um indivíduo não “nasce incluído” na raça
de Seth: em realidade é um status que se pode alcançar ou receber. A raça de
Seth é mais uma comunidade espiritual do que uma “raça” biológica no sentido
moderno. O mesmo aplica-se à divisão em três tipos: o status de espiritual de
um indivíduo é considerado tendo em vista seu comportamento: é possível perder
esse status ao abandonar a verdade, portanto nascer como um espiritual não é
garantia de salvação. A afirmação de que os gnósticos eram elitistas no sentido
de acreditarem-se predestinados à salvação (salvos em essência) é errônea. Williams demonstra que havia no mínimo
tanta flexibilidade nessas noções gnósticas quanto há em doutrinas protestantes
recentes acerca do eleito.
Com essas observações eu
apenas arranhei a superfície desse estudo extenso e detalhado. Williams oferece
uma discussão importante acerca da hermenêutica gnóstica (a sua prática de
interpretação bíblica) e reconsidera as noções gnósticas do corpo e como elas
estão relacionadas a diferentes doutrinas de salvação. Uma preocupação constante
do seu livro -e talvez eu tenha sido irresponsável ignorando-a até agora- é a
validade do próprio termo “gnosticismo”. Com base nas inúmeras desvantagens que
Williams vê nesse termo -a sua ambiguidade e a bagagem que carrega- ele sugere
que os escolásticos refiram-se a “tradições bíblicas demiúrgicas” quando
discutem muito do que tipicamente se chama de “gnosticismo”. Ele procura
demonstrar que: 1º) os povos antigos que chamamos de “gnósticos” não utilizam
esse termo, e 2º) escolásticos modernos tiveram dificuldade para estabelecer um
conjunto estável de características para o gnosticismo: isto é, nós ainda não
conseguimos definir com clareza o que é o gnosticismo. O argumento que Williams
coloca ao final é que esse termo impediu a nossa compreensão dos antigos
movimentos religiosos em questão. Ele fez com que gerações de acadêmicos se
agarrassem a falsos problemas e construíssem argumentos com base em
pressupostos não examinados. Essa é uma acusação muito séria. Se Williams está
certo ou não nessas afirmações -algo que não estou em posição de julgar- parece
óbvio que seu livro trouxe muitas novidades no campo de estudos “gnósticos”. É
evidente que muitas de suas novas perspectivas à respeito dos “gnósticos” se
originaram diretamente da tentativa de pensar além (no âmbito acadêmico e
heresiológico) do “gnosticismo” enquanto categoria.