por Francesco Marotta
Uma voz fora do coro pode estimular a faculdade de apreender tudo aquilo que se passa, deixando de lado as regras e os condicionamentos a que estamos sujeitos quotidianamente. Superar as sensações e os juízos conformistas, formados graças à astúcia e aos meios de que usufruem alguns”especialistas” da informação não é usual. Sinais de uma das regras adoptadas pela sociedade que permite juízos alheios, sem lhe pôr travão. Da política às últimas eleições europeias de 2014, da sociedade de “bem estar” ocidental às formas de protesto de rua, da crise ucraniana ao funcionamento da EU, até aos culpados pelo desnorte europeu (se ao menos soubéssemos o que sabemos hoje…), decidimos pôr algumas questões a Alain de Benoist. Fazendo votos para que possa ser reparada a fissura no painel da identidade das gentes Europeias, das suas comunidades, perturbadas pelas lógicas mercantis da mundialização, na sua individualidade colectiva, a fim de lançar as bases de um redescoberto estilo, único no seu género, fundamental para o renascimento dos povos europeus. Levando em conta, logicamente, as prioridades de todos os Estados que a compõem, numa visão alheia às tendências ideológicas.
Terminaram recentemente as eleições europeias e os partidos eurocépticos tiveram uma fortíssima votação. Da Áustria à Flandres, da Grécia à Inglaterra, contando igualmente com as forças independentistas da Catalunha e da Bélgica. Em alguns casos, com a Inglaterra à cabeça, parece tratar-se de um voto contra a Europa e não contra os políticos de Bruxelas e a burocracia de Estrasburgo?
As últimas eleições europeias registaram um extraordinário crescimento dos partidos populistas, tanto que venceram em três países: A França, a Inglaterra e a Dinamarca. Entre estes partidos há semelhanças mas também numerosas diferenças. No que a isto diz respeito, de facto, os votos a favor do UKIP são claramente dirigidos contra a política de Bruxelas, mas contêm de igual modo um aspecto complementar que se pode ilustrar com a dimensão geopolítica: a Inglaterra é uma ilha que não faz parte do continente europeu. E este aspecto torna o eurocepticismo anglo-saxão muito mais radical quando comparado ao expresso pelos movimentos do mesmo género nos outros países europeus. Podemos falar de um eurocepticismo insular.
Nestes últimos anos assistimos a muitas interpretações acerca daquilo em que se tornou a Europa dos nossos dias. Algumas forças partidárias e movimentos, como a Frente Nacional francesa, visam uma saída da Euro zona. O que pensa disto?
A Frente nacional é um partido hostil, não só à União Europeia mas também à ideia geral de uma Europa politicamente unida. Pessoalmente não compartilho este ponto de vista. Sou muito crítico a respeito das actuais orientações da União europeia, mas as minhas críticas não apontam para uma questão «nacional» ou «soberanista». Creio que se deva instaurar a soberania a um nível supranacional europeu. O problema é que hoje a soberania, (política, económica, financeira, fiscal, etc.), que foi retirada aos Estados nacionais, desapareceu sem ser nem restituída nem pujantemente reafirmada a um nível superior. Por outras palavras, as soberanias nacionais desapareceram, mas a soberania da União Europeia não consegue emergir. O motivo pelo qual não emerge é reconduzível ao facto de a União europeia se ter tornado num grande corpo doente, impotente, paralisado, incapaz de se estribar na sua identidade, nem tão pouco na possibilidade de se constituir como potência autónoma, antes confirmando quotidianamente as suas orientações atlantistas, liberais e livre-cambistas. Perante este cenário, a tentação é forte para um recuo de volta aos Estados-Nação. Mas estes últimos estão a viver uma crise sem precedentes, da qual tínhamos já visto os primeiros sinais nos anos 30. Os Estados-Nação, francamente, já não estão em estado de afrontar os desafios que se apresentam a nível mundial, a começar pelo controlo do sistema financeiro. Daí advém o sentimento de inquietude actual: o retorno ao passado não leva a lado nenhum e simultaneamente o futuro parece estar totalmente bloqueado. A mesma coisa vale para o euro. Considero que a instituição de uma moeda única tenha sido uma boa ideia, mas as modalidades desta introdução foram deploráveis. Sob proposta da Alemanha o valor do euro foi fixado demasiado alto e este motivo tornou-o inutilizável pelos países do sul. Dito isto, o euro não é o único responsável dos problemas actuais: a Grã-Bretanha que não pertence à zona euro não se encontra numa situação melhor no que diz respeito aos países que dela fazem parte. Um retorno à moeda nacional acarreta, de resto, riscos, em particular de inflação e de um incremento da dívida pública (continuando esta titulada em euro). Uma desvalorização global do euro apresentaria uma perspectiva mais do que satisfatória. De qualquer modo, ainda que a moeda única desaparecesse, deveria manter-se uma moeda comum para as trocas com os países não pertencentes à União Europeia. O desaparecimento do euro não nos faria, contudo, sair do sistema capitalista!
A dependência individual da política vive de incensamento e de marketing. Não lhe ocorre que a pouca informação, de si já opaca, e a ausência de conteúdos, oferecidos como um slogan, seja na realidade a expressão de uma classe burguesa que apenas prossegue um fim particular?
A ausência de conteúdos da política actual deriva antes de tudo do prodigioso recentramento político (dos partidos políticos) a que assistimos nos últimos decénios. Este recentramento (regressão), que tornou indistinguíveis os políticos de «direita» dos de «esquerda», é uma das causas profundas do fosso que se escavou entre a classe política e o povo. O aburguesamento dos partidos de esquerda é ilustrado, à saciedade, pela sua adesão ao sistema de mercado: o partido comunista tornou-se social-democrático, o partido socialista tornou-se social-liberal. Paralelamente os estratos superiores da burguesia reagruparam-se numa nova classe social (capitalista) transnacional que tem por pátria o lugar onde possa adquirir os maiores benefícios.
A Sociedade de “Bem Estar” ocidental persiste em adoptar o mito da produtividade e do crescimento. Houve mudanças importantes. Acabou a era das grandes manifestações de rua que a que assistimos por toda a Europa? Ou em alternativa, ter-se-ão transformado em manifestações de simples descontentamento?
As grandes contestações no mundo ocidental, a que se refere, são características peculiares da modernidade. Andavam a par e passo com o empenho político e sindical do tipo «sacerdotal» que durava toda a vida associado à elaboração de grandes projectos colectivos cavalgando a onda da mobilização. A pós modernidade conceptualizou um outro modelo. A aceleração social pôs na prateleira a dimensão histórica em favor do «imediatismo». O crescimento do individualismo, que gerou o tipo antropológico narcisista e imaturo, tornou impossível o crescimento dos grandes projectos colectivos. Tudo o que era estável e duradouro foi substituído por transformações no interior de uma «sociedade líquida» (Zygmunt Bauman), onde se vive para o efémero e o fútil. As manifestações de protesto e de descontentamento não são senão episódios intempestivos sem um desenvolvimento político a longo prazo. Poder-se-ia dizer que a implosão se substituiu à explosão. Paralelamente, com efeito, a sociedade de bem-estar não cessou de crer nas virtudes de um crescimento e de um desenvolvimento permanentes, sem compreender que um crescimento infinito dos consumos materiais é impossível num sistema com recursos finitos (o nosso planeta é um espaço finito). Antigamente pensava-se que os recursos naturais fossem gratuitos e inexauríveis: hoje sabemos que não é assim. As necessidades energéticas estão continuamente a aumentar, enquanto as reservas petrolíferas se vão esgotando. Tudo isto só pode acabar de uma forma mais ou menos catastrófica. As árvores não podem crescer até aos céus e as directrizes actuais não se podem dilatar de maneira exponencial.
O que pensa dos novos impulsos populistas como é o caso do Movimento Cinco Estrelas dirigido por Beppe Grillo em Itália?
A palavra «populismo» é uma «mixórdia» utilizada hoje em dia com uma valência frequentemente pejorativa, para assinalar toda uma série de novos movimentos políticos e sociais que se afiguram como um último recurso para aqueles cidadãos desiludidos pela ineficiência dos grandes partidos políticos clássicos. O erro consiste em supor que todos estes movimentos populistas compartilham uma mesma natureza. Basta compará-los entre si para nos darmos conta de como isso é falso. A Frente Nacional, por exemplo, tem um programa económico e social claramente orientado «à esquerda», enquanto a maior parte dos outros partidos populistas europeus são nitidamente liberais. A FN é igualmente muito hostil à Nato e aos estados Unidos, enquanto numerosas formações populistas são visivelmente «atlantistas». Em conclusão, a FN professa um evidenciado jacobinismo que a leva a condenar toda a forma de regionalismo e de «comunitarismo», enquanto o Vlaams Belang, na Flandres, e a Liga Norte, em Itália, assumem uma posição oposta. Para compreender estas diferenças de orientação, é necessário começar por admitir que o populismo não é uma ideologia mas um estilo, e que tal estilo se pode conjugar com quase todas as ideologias possíveis. Não estou suficientemente informado sobre o movimento Cinco Estrelas para poder exprimir um juízo definitivo. Prefiro considerá-lo como um sintoma, entre tantos, do cansaço da classe dirigente e do crescente descontentamento popular suscitado contra «os grandes partidos de governo». É evidente, com Beppe Grillo, como o populismo pode cair na demagogia que os seus adversários lhe reprovam, mas não obstante é verdade que ele permite que muitas pessoas se exprimam de maneira directa. Quanto à demagogia, enganarmo-nos-íamos ao fazer dela um exclusivo apanágio dos movimentos populistas: a demagogia das «elites» não lhes fica a dever nada!
Há dois mil e quatrocentos anos a Comédia Nova Grega acertava em cheio. Muitas das suas figuras mais importantes, pensavam que os empréstimos transformam os livres em escravos. Parece mesmo que não se pode viver sem empréstimos ilimitados. Quem fez perder o norte aos povos europeus?
O endividamento público é o resultado directo, não só dos deficits que se acumularam um pouco por toda a parte no decurso dos anos, mas também da crise financeira que teve inicio em 2008 nos Estados unidos e que hoje se encontra ainda muito longe do seu final. Para salvar os bancos e os fundos de investimento da falência, os Estados depois de terem sido privados do da concessão de empréstimos por parte dos seus bancos centrais, endividaram-se junto dos mercados financeiros, os quais estabelecem os seus juros em função da boa vontade dos mesmíssimos Estados em satisfazer as suas exigências. Foi por este motivo que foram adoptadas políticas de austeridade em toda a Europa para sanar, em teoria, a situação. Isto só pode levar ao colapso. A austeridade diminui o poder de compra, o que consequentemente diminui a procura, o consumo e por conseguinte a produção. O decréscimo da produção manifesta-se através de despedimentos maciços, de um aumento das deslocalizações e de um aumento da taxa de desemprego. No final das contas, diminuem as receitas tributárias. Para pagar os juros sobre os seus empréstimos, os Estados são obrigados a endividarem-se cada vez mais, dinheiro esse que aumenta automaticamente o volume do empréstimo e respectivos juros. Em França, por exemplo, O Estado tem que pagar 50 biliões de euro por ano para reembolsar os juros da dívida pública (é de resto a rubrica orçamental mais onerosa do Estado a par da Instrução Pública). Isto significa um empréstimo de 800 milhões de euro por dia! É evidente que nos encontramos perante um círculo vicioso, dependente de taxas de juro usurárias e que não poderá durar eternamente.
Werner Sombart pensava que «As grandes cidades se desenvolvem intensamente, uma vez que aí reside o núcleo mais consistente dos consumidores». Nas grandes áreas metropolitanas, símbolo e local de nascimento do sistema económico moderno, é possível restaurar a vitalidade dos povos que necessitam de autonomia, encorajando-os a partir da base, com vista a uma acertada visão europeia? Confederal ou federal?
Já há alguns anos, mais de metade dos habitantes do planeta vive em grandes áreas urbanas, as quais constituem, com efeito, o coração do sistema consumista. Contudo, também as pessoas que vivem nas grandes metrópoles foram atingidas pela crise, vitimas do baixo poder de compra etc. As classes populares desaguam nas periferias, enquanto pela primeira vez as classes médias, empobrecidas pela crise, receiam vivamente a proletarização. A sorte de ambos já não se distingue claramente da do resto da população. A «vitalidade dos povos» só pode ser renovada, sob a condição de sairmos do sistema financeiro que domina não só os Estados e a vida quotidiana dos indivíduos, mas igualmente o espírito de quem quer que seja. Trata-se de sair do reino da quantidade, por outras palavras de «descolonizar» o imaginário simbólico (Serge Latouche) , pondo fim ao domínio dos valores de mercado, ao primado do valor de troca sobre o valor de uso, mas diminuindo igualmente a influência política em matéria financeira e económica. Creio que isto só se tornará possível se a Europa se tornar numa verdadeira potência soberana, que se consiga afirmar como um cadinho original e autónomo de cultura e civilização, constituindo um pólo de regulação num ressurgido mundo multipolar. Esta Europa, na minha opinião, deveria ser constituída sobre uma base de tipo federal. Mas hoje em dia ainda estamos longe disso!
Não poderíamos deixar de pedir a sua opinião sobre a crise na Ucrânia. Como avalia o desempenho da União Europeia?
Na questão ucraniana, a União Europeia demonstrou, mais uma vez, a sua incapacidade de fazer ouvir a sua própria voz como uma potência independente dos Estados Unidos da América. Os líderes europeus contentam-se em relançar os anátemas arremessados pelos Americanos contra a Rússia de Vladimir Putin, sem tão pouco sequer se aperceberem que a sua adesão às sanções contra Moscovo, os fazem correr o risco de estas se voltarem contra si próprios. Com efeito, A Europa tem muito mais a perder do que a ganhar num braço de ferro com a Rússia, a qual é hoje em dia a única grande potência mundial, juntamente com a China, capaz de concorrer eficazmente com a superpotência americana. A Europa ocidental e a Rússia são complementares sob numerosos pontos de vista, em particular no plano tecnológico e energético. Os Americanos, que estão bem conscientes do que está em cima da mesa, esforçam-se para fazer passar para o campo “ocidental” os ex-países do Bloco de Leste com o único objectivo de encurralar a Rússia e limitar a sua esfera de influência. É deplorável que os europeus aceitem participar neste projecto nefasto.
As eleições europeias de 2014 também lhe “tiraram” o sono?
Há vinte anos a Europa era considerada a solução para todos os problemas. Hoje representa um problema decorrente que por sua vez torna ainda mais graves os outros. Segundo a opinião pública, as eleições europeias de 2014 deveriam servir para mostrar o grau de desconfiança dos cidadãos face à União Europeia. De novo, um sintoma do mau funcionamento do sistema vigente. Desagrada-me apenas que os adversários da União Europeia não se apercebam o quão este mesmo descrédito em relação à Europa pode vir a constituir-se como uma ameaça para os Estados nacionais.
Fonte: geopol.com.pt
Fonte: geopol.com.pt