29/03/2013

Hong Kyung-Ji & Paul Shepard - O Juche como Ideologia de Terceira Posição

por Hong Kyung-Ji e Paul Shepard



O Juche é a ideologia estatal da RDPC - a República Democrática Popular da Coréia. Ele é usualmente traduzido como "Auto-Confiança", ou "o Espírito de Autossuficiência", mas pode ser traduzido literalmente como "corpo principal". A Idéia Juche sustenta que a tarefa mais importante da construção socialista é "moldar o Povo". Kim Il Sung - seu principal autor - descreve o significado do Juche como "O Homem é o mestre de tudo e decide tudo".

A Idéia Juche está enraizada na noção perene de que somente a humanidade possui consciência e criatividade - algo expressado pelos coreanos no conceito singular de "Chajusong". Os outros conceitos da Idéia Juche podem ser resumidos pelos seguintes pontos:

1 - A política deve refletir a vontade e as aspirações das massas e empregá-las plenamente na revolução e na construção.

2 - Métodos de revolução e construção devem ser adequados à situação do país.

3 - A tarefa mais importante da revolução e construção é moldar o povo ideologicamente como comunistas e mobilizá-los para a ação construtiva.

Enquanto a República Democrática Popular da Coréia é muitas vezes chamada de "o último Estado comunista", por muitos comentaristas políticos ocidentais, há na realidade, muita ignorância no que concerne a posição do Juche em questões políticas. Enquanto de fato, o Grande Líder General Kim Il Sung começou seu treinamento político como marxista, ele compreendeu o marxismo como método de mobilizar as massas contra o imperialismo. Posteriormente, em particular, após o racha sino-soviético, a RDPC se alinhou com a China. Isso não deveria surpreender, já que chineses e coreanos partilhavam de condições sociais similares à época.

Há, porém, algumas diferenças. O General Kim Il Sung se opôs à Revolução Cultural na China acreditando que ela havia ido longe demais. De fato, uma interpretação do Juche é "colocar as coisas coreanas na frente", significando que a cultura coreana deve ser sustentada e o imperialismo cultural resistido, já que somente o povo de uma nação pode determinar qual será a idéia revolucionária para aquela nação. O Querido Líder Kim Jong Il rejeitou a idéia marxista de que "o proletariado do mundo não possui pátria", e rascunhou na margem: "Eu sou um comunista, eu sou coreano. Eu não vejo contradição".

Apesar da sua ênfase na especificidade do Juche para o contexto histórico-geográfico distinto da RDPC, o Estado norte-coreano não obstante vê seu grande experimento social como aliado a outras nações em desenvolvimento e terceiro-mundistas "oprimidas" lutando para construir o socialismo "a seu jeito". Em um de seus ensaios, chamado "Sobre a Preservação do Caráter Juche e do Caráter Nacional da Revolução e da Construção", o Grande líder Kim Il Sung disse:

"Manter o caráter Juche da revolução e da construção significa que as massas populares moldam o destino de seu país e nação e seu próprio destino independentemente e criativamente ao serem mestres de seu destino. Sustentar o caráter nacional significa preservar e desenvolver as boas qualidades da nação e expressá-las em todas as esferas da vida social".

Para dizer de modo diferente, Kim Il Sung compreendeu que o povo de uma nação é seu principal recurso. Manter o caráter europeu da Europa, por exemplo, não estaria fora de linha com os ideais do Juche. Para esse fim, portanto, a Coréia Juche apoiou revoluções nacionais e populistas, e construiu relações com os líderes dos países em desenvolvimento, como Nasser do Egito, o Coronel Muammar Gadaffi da Líbia, e o Imã Ruhollah Khomeini no Irã, vendo todas essas forças como a expressão genuína da vontade revolucionária popular. Apesar disso, eles insistiam na exclusividade mútua de suas instituições políticas e na soberania absoluta das nações individuais. A RDPC tem sido descrita como um "Estado fortaleza".

Na prática, o Juche é acompanhado por um intenso nacionalismo que enfatiza a autarquia econômica e um espírito marcial conhecido como Songun. Talvez, mais notável para ocidentais seria a incorporação do próprio conceito tradicional de piedade filial (hyo em coreano). Segundo o pensamento tradicional confucionista, o relacionamento entre líder e sujeito é paralelo ao de um pai e um filho. No Juche, isso é traduzido na teoria da vida sócio-política e liderança revolucionária onde o povo coreano é mantido unido em um relacionamento mútuo seja na vida ou na morte, na tristeza ou na alegria e daí em diante. A devoção apaixonada do povo coreano ao Grande Líder General Kim Il Sung e ao Querido Líder Camarada Kim Jong Il, são as manifestações externas dessas idéias, muitas vezes considerada pelo Ocidente como um "culto de personalidade". O Juche sustenta uma visão neo-hobbesiana da sociedade, propondo que o Líder (atualmente Kim Jong Un) é análogo ao cérebro humano e o Partido é análogo ao sistema nervoso - transmitindo as instruções do cérebro. O Povo, finalmente, serve como carne e osso, pondo em prática essas instruções.

Em um documentário, um jornalista pergunta a seu guia, "qual é sua opinião do Querido Líder; você acha que ele está fazendo um bom trabalho?" O guia responde, "Há algo estranho aqui. Como eu posso saber? Como eu, uma pessoa comum, poderia conhecer a grande e profunda Idéia?"

Na RDPC, a mídia, incluindo cinema, música, e as artes são consideradas como parte da vida política. Para o povo coreano, a mídia é um instrumento para inculcar a ideologia Juche e a continuação da luta revolucionária da nação. A cultura da Coréia Juche está profundamente enraizada na necessidade de pegar o melhor do passado, descartando os elementos capitalistas. Estilos e temas populares na literatura, arte, música e dança são estimados como expressando o espírito verdadeiramente único da nação coreana. Etnógrafos devotam muita energia para restaurar e reintroduzir formas culturais que possuam o espírito proletário ou popular adequado.

Em Pyongyan, a seleção mais ampla de expressões culturais é oferecida, e mensagens revolucionárias são parte da vida quotidiano. "Esquadrões de arte de propaganda" viajam para locais de produção nas províncias para realizar leituras de poesia, peças de um ato, e cantar canções para "parabenizar os trabalhadores por seus sucessos" e "inspirá-los a sucessos ainda maiores através de sua agitação artística". De fato, a mídia da RDPC empreende um tipo de mitopoiesis nunca vista desde o tempo dos Faraós. Por exemplo, segundo fontes oficiais, Kim Il Sung estava sendo levado para o Céu após a morte por um bando de grous quando - em resposta ao pesar dos coreanos em lamentação - foi acordado que ele não seria levado, e que ele permaneceria em sono eterno. É por isso que Kim Il Sung porta o título de Eterno Presidente e ainda é considerado o Chefe de Estado da RDPC. Também, segundo fontes oficiais, uma nova estrela apareceu no céu quando Kim Jong Il nasceu.

O Juche pode até mesmo ser considerado um tipo de Nacional-Socialismo, já que os coreanos são considerados como formando uma comunidade de sangue e possuindo uma história e cultura contíguas - a herança da RDPC é celebrada e seu Estado é associado ao da Coréia antiga semi-mítica. É pensado que a Nação é eterna e que os coreanos sempre falarão coreano. De fato, B.R. Myers afirma em A Raça Mais Pura: Como os Norte-Coreanos se veem que aspectos da ideologia Juche - especificamente a deificação da figura do "Líder" estão mais próximos do que ocidentais considerariam como sendo de "direita". Myers escreve:

"A ideologia dominante da Coréia do Norte [...] pode ser resumida em uma única afirmação: O povo coreano possui um sangue puro demais, e portanto é virtuoso demais, para sobreviver nesse mundo maligno sem um grande líder paternal. [...] Eu dificilmente precisaria apontar que se tal visão-de-mundo racialista fosse ser situada em nosso espectro esquerda-direita convencional, faria mais sentido enquadrá-la na extrema-direita do que na extrema-esquerda".

A importância da personalidade humana e da responsabilidade estão claras aqui. Kim Il Sung e seus seguidores acreditavam firmemente no que se poderia chamar de uma compreensão "heróica" da história. Ao invés de abraçar o materialismo dialético do marxismo, a filosofia do Juche orgulhosamente situa o homem no centro de todo o mundo, ecoando o conceito nietzscheano da Wille zur Macht. Ademais, o papel dos líderes no Juche, de muitas maneiras, se assemelha ao que Evola idealizou. Tudo isso faz do Juche algo muito distante das forças mecânicas cegas de Marx e se assemelha muito mais às noções da Terceira Posição da Europa do século XX, notavelmente do Führerprinzip dos nazistas.

24/03/2013

Claudio Mutti - O Equívoco do Semitismo e do Antissemitismo

por Claudio Mutti



Parece que foi o historiador alemão August Ludwig von Schlözer (1735-1809) quem cunhou pela primeira vez, em 1781, o adjetivo semitisch, para indicar o grupo de línguas (siríaco, aramaico, árabe, hebraico, fenício) faladas pelas populações que uma passagem bíblica (Gen. 10, 21-31) faz descender de Sem, filho de Noé. O neologismo foi acolhido pela comunidade dos linguistas até tal ponto que o encontramos em 1890 nas Lições sobre Gramática Comparativa das Línguas Semitas de W. Wright (1830-1889), em 1898 na Vergleichende Grammatik der semitischen Sprachen de Heinrich Zimmern (1862-1931), entre 1908 e 1913 no Grundriss der vergleichenden Grammatik der semitischen Sprachen de Carl Brockelmann (1868-1956).

O adjetivo "semítico" se refere portanto propriamente aos semitas, quer dizer, a uma família de povos que se difundiu na zona compreendida entre o Mediterrâneo, os montes da Armênia, o Tigre e a Arábia meridional, para logo se estender também à Etiópia e ao Norte da África; como adjetivo substantivado ("o semítico") este indica o grupo linguístico correspondente que se articula em três subgrupos: o oriental ou acádico (que no II milênio se dividiu por sua vez em babilônio e assírio), o norocidental (cananeu, fenício, hebraico, aramaico bíblico, siríaco) e o sudocidental (árabe e etíope). Portanto, é de todo impróprio o uso dos termos "semita" e "semítico" como sinônimos de "hebreu" e "hebraico", exatamente como seria impróprio dizer "ário" ou "indoeuropeu" em lugar de "italiano", "alemão", "russo", "persa".

De tudo isso se deduz que é igualmente equivocado o uso de "antissemita" quando com tal termo se quer designar a quem é "acusado de antissemitismo", quer dizer, daquele "delito" que um vocabulário autorizado defino nos seguintes termos: "aversão pelo povo judeu, que às vezes tem alcançado formas de perseguição e inclusivo de complexo coletivo de extermínio, com uma base essencialmente propagandística, devida à degeneração de pseudo-conceitos histórico-religiosos ou à busca de um bode expiatório por parte de políticos e classes políticas impotentes". Se se usa corretamente, de fato, o vocábulo "antissemitismo" - cunhado em 1879 pelo jornalista vienense Wilhelm Marr - deveria indicar a hostilidade por toda a família semítica, que hoje tem seu componente majoritário nas populações de língua árabe, de modo que a qualificação de "antissemita" resultaria mais adequada para designar aos que nutrem aversão pelos árabeus mais que aos "acusados" de hostilidade antijudaica.

Porém a inconsistência da antecitada sinonímia ("semita" = "judeu") resulta todavia mais evidente quando se reflete sobre o fato de que os judeus atuais não podem ser qualificados como "semitas", e todavia menos como "povo semita". De fato, se a pertença de um grupo humano a uma mais vasta família deve ser estabelecida com base na língua que o grupo em questão fala, então um povo poderá ser considerado semítico só no caso em que este fale uma das línguas semíticas enumeradas mais acima, com o resultado teriam direito a ser definidos como "semitas" com todo rigor os árabes e os etíopes, mas não os judeus.

É certo que desde 1948 o hebraico (o neo-hebraico) se converteu na língua oficial da colônia sionista assentada na Palestina e é compreendido pela maior parte dos judeus que atualmente ali residem, porém se trata de uma língua que estava morta desde há mais de vinte séculos e que só no século XX foi artificialmente ressuscitada. Os judeus da diáspora, hoje como no passado, falam as línguas dos povos entre os quais se encontram vivendo, línguas que são geralmente indoeuropéias (inglês, espanhol, francês, italiano, russo, farsi, etc.). O próprio iídiche, que se formou no século XIII nos países da Europa central sobre a base de um dialeto médio-alemão e se converteu em uma espécie de língua internacional depois das migrações judias, contudo, era sempre um idioma alemão, ainda que, ademais de um vocabulário de base alemã e eslava, continua um índice elevado de elementos léxicos hebraicos e era escrito em caracteres hebraicos.

Portanto, é evidente que os judeus não constituem em absoluto um grupo que, sobre a base da pertença linguística, possa ser definido como semítico. Podemos, então, considerá-los semitas desde um ponto de vista étnico? Para responder afirmativamente, se teria que estar em condições de reconstruir a genealogia dos judeus e reconduzi-la até Sem, filho de Noé. Coisa praticamente impossível.

Um fato é certo: à etnogênese judia contribuíram elementos raciais de distinta procedência, adquiridos através do proselitismo e daqueles matrimônios mistos ("os matrimônios com as filhas de um deus estrangeiros") contra os quais pregavam os profetas de Israel. "A partir dos testemunhos e das tradições bíblicas - escreve um estudioso judeu - se deduz que inclusive nas origens da formação das tribos de Israel estas estavam já compostas de elementos raciais diversos (...). Naquela época encontramos na Ásia Menor, na Síria e na Palestina muitas raças: os amorreus, que eram loiros, dolicocéfalos e de alta estatura; os hititas, uma raça de compleição escura, provavelmente de tipo mongolóide; os cassitas, uma raça negróide; e muitas outras todavia. Os antigos hebreus contraíram matrimônios com todas essas estirpes, como se vê bem em muitas passagens da Bíblia".

Segundo um autorizado geógrafo e etnólogo italiano, Renato Biasutti (1878-1965), "a questão da posição antropológica ou composição racial dos judeus não é de fato menos complexa e obscura" que a de muitas outras. "Uma das causas disso - explica - está na dificuldade de recolher informações adequadas sobre os caracteres somáticos de um grupo étnico tão disperso". Ademais, é preciso distinguir entre os grupos judaicos da Ásia e os da Europa e África e, em particular, entre os sefarditas (o ramo meridional da diáspora) e os ashkenazi (o ramo oriental). Se os sefarditas se estenderam desde o norte da África e da Europa mediterrânea até Holanda e Inglaterra, os ashkenazi povoaram amplas áreas da Rússia meridional, da Polônia, da Alemanha e dos Balcãs e proporcionaram o contingente mais numeroso ao movimento colonialista que deu nascimento à entidade político-militar sionista.

Se para grande parte dos sefarditas se pode supor uma origem parcialmente semítica, ainda que não necessariamente hebraica, no que concerne aos judeus ashkenazi, que representam nove décimos do judaísmo mundial, as coisas resultam completamente diferentes, já que a maioria daqueles que na Idade Média professavam o judaísmo eram khazares e "grande parte dessa maioria emigrou à Polônia, Lituânia, Hungria e aos Balcãs, onde fundou a comunidade judia que, por sua vez, se converteu na maioria predominante do judaísmo mundial".

A afirmação dessa verdade histórica tem consequências devastadoras sobre o mito sionista do "retorno" judaico à Palestina. De fato, é evidente que, se a maioria dos judeus atuais extrai sua origem dos khazares, a pretensão sionista é destituída de seu fundamento, já que os descendentes eslavizados de um povo túrquico originário da Ásia Central não podem certamente ostentar nenhum "direito histórico" sobre uma região do Oriente Próximo.


21/03/2013

Alain de Benoist & Charles Champetier - A Nova Direita no ano 2000

por Alain de Benoist e Charles Champetier




Introdução

A Nova Direita francesa nasceu em 1968. Ela não é um movimento político, mas uma escola de pensamento. Por mais de trinta anos - em livros, jornais, colóquios e conferências, seminários e cursos de verão, entre outros - ela tentou formular uma perspectiva metapolítica.

Metapolítica não é política por outros meios. Não é nem uma “estratégia” para impor uma hegemonia intelectual nem uma tentativa de desacreditar outras atitudes ou agendas possíveis. Ela se baseia unicamente na premissa de que as idéias apresentam um papel fundamental na consciência coletiva e, de forma mais geral, na história humana. Através de seus trabalhos, Heráclito, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, René Descartes, Immanuel Kant, Adam Smith e Karl Marx desencadearam revoluções decisivas, cujos impactos ainda estão sendo sentidos hoje. A História é o resultado da vontade e da ação humana, mas sempre no marco de convicções, crenças e representações que provêm significado e direção. O objetivo da Nova Direita francesa é contribuir para a renovação destas representações sócio-históricas.

Esta perspectiva metapolítica se reforça ainda mais hoje, a partir de uma reflexão sobre a evolução das sociedades ocidentes no prospecto da alvorada do século XXI. Por um lado, temos a impotência crescente de partidos políticos, sindicatos, governos, formas clássicas de conquista e exercício do poder político, e, por outro, a rápida obsolescência de todas as divisões que caracterizaram a modernidade, a começar pela tradicional clivagem Direita-Esquerda. Além disso, existe uma explosão sem precedentes dos conhecimentos, sem que suas consequências sejam sempre plenamente percebidas. Em um mundo no qual entidades fechadas deram lugar a redes interconectadas com pontos de referência cada vez mais borrados, a ação metapolítica tenta, para além de divisões política e através de uma nova síntese, renovar um modo de pensamento transversal e, finalmente, estudar todas as áreas de conhecimento para propor uma visão de mundo coerente.

Tal é o nosso objetivo faz mais de trinta anos.

Este manifesto sintetiza tudo isso. A primeira parte (“Conjunturas”) fornece uma análise crítica do presente; a segunda parte (“Fundações”) delineia uma visão no que diz respeito ao homem e ao mundo. Ambas estão inspiradas por uma perspectiva multidisciplinar que desafia a maior parte das antíteses intelectuais de hoje. Tribalismo e globalismo, nacionalismo e internacionalismo, liberalismo e marxismo, individualismo e coletivismo, progressismo e conservadorismo se opõe cada um com a mesma lógica complacente do meio excluído. Por um século, estas oposições artificiais ocultaram o que é mais essencial: a amplitude de uma crise que pede uma renovação radical dos modos de pensamento, decisão e ação. É, portanto, fútil procurar esta renovação radical no que foi escrito até agora. Ainda assim, a Nova Direita Francesa tomou idéias de várias fontes teóricas. Ela não hesitou de se reapropriar o que parece digno de valor em todas correntes de pensamento. Esta perspectiva transversal provocou a ira dos guardiões do pensamento, preocupadas com o congelamento de ortodoxias ideológicas para paralisar qualquer nova síntese ameaçadora.

Desde seu início, a Nova Direita Francesa juntou homens e mulheres que vivem em suas cidades e pretendem participar de maneira viva de sua realização. Na França, como em outros países, ela constitui uma comunidade de trabalho e reflexão, da qual os membros não são necessariamente intelectuais, mas todos aqueles que estão interessados, de uma forma ou de outro, na batalha de idéias. A terceira parte (“Orientações”) toma posições em questões e debates atuais, sobre o futuro de nossos povos e nossa civilização.

I. Conjuntura

Primeiro e antes de tudo, todo pensamento crítico coloca a época na qual se desenvolve em perspectiva. O presente é um período decisivo, um ponto de inflexão em forma de interregnum, que se insere no pano de fundo de uma crise maior: o fim da modernidade.

I. 1. O que é a modernidade?

A modernidade designa o movimento político e filosófico dos últimos três séculos da história ocidental. Ela é caracterizada primariamente por cinco processos convergentes: individualização, através da destruição de velhas formas de vida comunal; massificação, através da adoção de modos padronizados de comportamento e estilos de vida; dessacralização, através do deslocamento das grandes narrativas religiosas por uma interpretação científica do mundo; racionalização, através da dominação da razão instrumental, do livre mercado e da eficiência técnica; e universalização, através da extensão ao nível planetário de um modelo de sociedade defendido implicitamente como a única possibilidade racional e, portanto, como superior.

Este movimento tem velhas raízes. Na maior parte, ele representa uma secularização das idéias e perspectivas tomadas da metafísica cristã, as quais se desdobraram sobre a vida profana após o esvaziamento de qualquer dimensão transcendente. Na verdade, é possível encontrar no cristianismo as sementes das grandes mutações que irrigaram as ideologias laicas da era pós-revolucionária. O individualismo já estava presente na noção da salvação individual e de uma relação íntima e privilegiada entre um indivíduo e Deus, que tem precedência sobre qualquer relação terrena. O igualitarismo está presente na idéia que a redenção está igualmente disponível para toda humanidade, já que todos possuem uma alma individual cujo valor absoluto é compartilhado por toda humanidade. O progressismo nasce da idéia de que a história tem um início absoluto e um fim necessário, e que ela se desenvolve globalmente de acordo com um plano divino. Finalmente, o universalismo é a expressão natural de uma religião que afirma manifestar uma verdade revelada, a qual, válida para todos os homens, exige deles que se convertam. A vida política moderna é ela mesma baseada em conceitos teológicos secularizados. Reduzida a uma opinião entre outras, hoje o cristianismo foi vítima do movimento que ele próprio iniciou: na história do Ocidente, ela foi a religião da saída da religião.

As muitas escolas filosóficas da modernidade, concorrentes e por vezes contraditórias, concordam, porém, em um ponto: que existe uma única e universalizável solução para todos os problemas políticos, sociais e morais. A humanidade é concebida como a soma dos indivíduos racionais que, através do interesse, convicção, irmandade ou mesmo medo são convocados a realizar a sua unidade na História. Nesta perspectiva, a diversidade do mundo se torna um obstáculo e tudo que diferencia o homem é concebido como algo incidental ou contingente, ultrapassado ou mesmo perigoso. Na medida em que a modernidade não é apenas um corpo de idéias, mas também um modo de agir, ela tenta por todos os meios disponíveis desenraizar os indivíduos de seus pertencimentos singulares a fim de sujeitá-los a um modo universal de associação. Na prática, o modo mais eficiente para realizar isto tem sido o mercado.

I. 2. A crise da modernidade

O imaginário da modernidade está dominado por desejos de liberdade e igualdade. Esses dois valores cardinais foram traídos. Cortados das comunidades que os protegiam,  fornecendo significado e forma à sua existência, os indivíduos estão agora sujeitos a um mecanismo de dominação e decisão tão imenso que sua liberdade permanece puramente formal. Eles sofrem o poder mundializado do mercado, da tecnociência ou das comunicações sem poderem nunca decidir seu curso. A promessa da igualdade falhou duas vezes: o comunismo a traiu ao instaurar os mais assassinos e totalitários regimes da história; o capitalismo a trivializou ao legitimar as mais odiosas desigualdades econômicas e sociais em nome da igualdade. A modernidade proclamou "direitos" sem de modo algum prover os meios para exercê-los. Ela exacerba todas as necessidades e cria sem cessar outras novas, ao mesmo tempo em que reserva o seu acesso a uma pequena minoria, o que alimenta a frustração e raiva de todos os restantes. Quanto à ideologia do progresso, a qual respondia às expectativas humanas alimentando a promessa de um mundo sempre melhor, ela está em uma crise radical: o futuro parece imprevisível, não sendo mais portador de esperança, mas sim de medo a quase todos. Cada geração se depara com um mundo diferente do que o que seus pais conheceram: baseada sobre a desqualificação dos pais e antepassados e das velhas experiências e combinada com as transformações sempre mais velozes de estilos de vida e dos ambientes de vivência, tal novidade perpétua não produz felicidade, mas angústia.

O "fim das ideologias" é uma expressão que designa a exaustão histórica das grandes narrativas mobilizadoras que se corporificaram no liberalismo, no socialismo, no comunismo, no nacionalismo, no fascismo ou, ainda, no nazismo. O século XX fez com que os sinos dobrassem para a maior parte destas doutrinas, cujos resultados concretos foram o genocídio, a limpeza étnica, os assassinatos em massa, guerras totais entre nações, rivalidade entre indivíduos, desastres ecológicos, caos social e a perda de todos os referenciais significativos. A destruição do mundo vivo em benefício da razão instrumental, do crescimento econômico e do desenvolvimento material resultou em uma pauperização do espírito sem precedentes. Ela generalizou a ansiedade de viver no mundo de um sempre incerto presente, em um mundo privado tanto de seu passado quanto de seu futuro. Portanto, a modernidade deu a luz a mais vazia civilização que a humanidade já conheceu: a linguagem publicitária se tornou o paradigma de todos os discursos sociais; a primazia do dinheiro impôs a onipresença da mercadoria; o homem se transformou em um objeto de troca em um contexto de perverso hedonismo; a tecnologia encerrou o mundo vivo em uma rede racionalizada e anestesiada voltada para um "si mesmo" narcisista; a delinquência, a violência e a incivilidade se propagaram em uma guerra de todos contra todos e de cada um contra si mesmo; o indivíduo incerto flutua nos mundos irreais da droga, do virtual e da produção midiática; os campos são abandonados pelas monstruosas megalópoles e pelos subúrbios inabitáveis; o indivíduo solitário se funde em uma multidão anônima e hostil enquanto tradicionais mediações sociais, culturais, políticas e religiosas se tornam cada vez mais incertas e indistintas. Esta crise difusa é um sinal de que a modernidade está atingindo seu fim, precisamente quando a utopia universalista que ela estabeleceu está em posição de se tornar uma realidade sob a forma da globalização liberal. O final do século XX marca tanto o fim dos tempos modernos quanto o início de uma pós-modernidade caracterizada por uma série de novos temas: preocupação ecológica, com a qualidade de vida, o papel das "tribos" e das "redes", revivência de comunidades, a política de identidades de grupo, multiplicação de conflitos infra- e supra-estatais, o retorno das violências sociais, o declínio das religiões estabelecidas, o crescimento da oposição dos povos às suas elites, etc. Não tendo nada de novo a dizer, e observando o mal-estar crescente das sociedades contemporâneas, os agentes da ideologia dominante ficam reduzidos aos discursos encantadoramente eivados de senso-comum tão vistos na mídia de um mundo ameaçado pela implosão. Implosão, e não mais explosão: a modernidade não será superada através da forma de uma grand soir (1) (uma versão secular da Parúsia), mas com a aparição de milhares de auroras, isto é, o nascimento de espaços soberanos liberados da dominação moderna. A modernidade não será superada por um retorno ao passado, mas por meio de certos valores pré-modernos em uma ótica resolutamente pós-moderna. Será apenas pagando o preço de tal reestruturação radical que a anomia e o niilismo contemporâneo serão exorcizados.

I. 3. Liberalismo: o principal inimigo

O liberalismo encarna a ideologia dominante da modernidade, a primeira a aparecer e que será a última a desaparecer. Em um primeiro momento, o pensamento liberal autonomizou a economia frente à moralidade, a política e a sociedade nas quais ela tinha previamente subsistido. Mais tarde, ele tornou o valor comercial a essência de toda vida comunal. O advento do "reino da quantidade" assinalou a transição da economia de mercado para a sociedade de mercado, isto é, a extensão das leis de trocas comerciais, regidas pela "mão invisível", para todas as esferas da existência. Por outro lado, o liberalismo também engendrou o individualismo moderno a partir de uma antropologia falsa seja a partir de uma visão normativa ou de uma visão descritiva, baseada em um homem unidimensional que retira seus "direitos inalienáveis" de uma "natureza" essencialmente não social, e que está sempre tentando maximizar o que é de seu melhor interesse ao eliminar qualquer consideração não-quantificável e qualquer valor não relacionado ao cálculo racional. Este duplo impulso individualista e economicista é acompanhado por uma visão "darwinista" da vida social que em última análise a reduz a uma competição generalizada, nova versão da "guerra de todos contra todos" para escolher os "melhores". Deixando de lado o fato que a competição "pura e perfeita" é um mito, já que sempre existem relações de poder, tal critério não diz nada sobre o valor do que é escolhido: sobre o que é melhor ou pior. A evolução seleciona aqueles mais aptos a sobreviver, mas o homem não se satisfaz com a mera sobrevivência: ele ordena sua vida a partir uma hierarquia de valores sobre a qual os liberais pretendem permanecer neutros.

O caráter iníquo da dominação liberal engendrou no século XX uma reação legítima: a aparição do movimento socialista. Todavia, ela se desviou sob a influência das teorias marxistas. A despeito destas oposições, porém, o marxismo e o liberalismo pertencem essencialmente ao mesmo universo, herdeiros do pensamento do Iluminismo: o mesmo individualismo de fundo, o mesmo universalismo igualitário, o mesmo racionalismo, o mesmo primado do fator econômico, a mesma insistência sobre o valor emancipador do trabalho, a mesma fé no progresso, a mesma aspiração ao fim da história. A bem da verdade, o liberalismo apenas realizou mais efetivamente certos objetivos que compartilha com o marxismo: a erradicação das identidades coletivas e culturas tradicionais, o desencantamento do mundo e a universalização de um sistema de produção.

As agruras do mercado também provocaram a aparição e fortalecimento do Estado-Providência. Ao longo da história, o surgimento do mercado e do Estado se deu ao mesmo tempo, como pares, o último procurando sujeitar trocas intra-comunais, não-mercantis, previamente intangíveis, à lei do dinheiro, e tornando-as assim espaços econômicos homogêneos instrumentos de seu poder. A dissolução de laços comunais provocada pela comercialização da vida social precisou de um progressivo fortalecimento do Estado-Providência responsável por proceder às redistribuições necessárias para mitigar as falências da solidariedade tradicional. Longe de entravar o curso do liberalismo, estas intervenções estatistas o permitiram prosperar ao evitarem uma explosão social, gerando assim a segurança e estabilidade indispensáveis para as trocas comerciais. Por outro lado, o Estado-Providência, que não é nada além de uma abstrata, anônima e opaca estrutura redistributiva, generalizou a irresponsabilidade, transformando os membros da sociedade em nada mais que donatários da assistência pública, que não mais buscam derrubar o sistema liberal, mas apenas prolongar a extensão indefinida e sem contrapartida de seus direitos.

Por fim, o liberalismo nega a especificidade da política, a qual sempre implica arbitrariedade de decisão e pluralidade de objetivos. Deste ponto de vista, a expressão "política liberal" parece ser uma contradição em termos. Procurando formar ligações sociais sobre a base de uma teoria da escolha racional que subordina a cidadania à utilidade, ela acaba produzindo uma administração "científica" ideal da sociedade global, que ela coloca sob a exclusiva condução segundo o horizonte de especialistas técnicos. O Estado de direito liberal, quase sempre sinônimo de uma república de juízes, é comprometido com os objetivos paralelos de se abster de propor um modelo de vida adequado e de buscar neutralizar conflitos inerentes à diversidade da vida social ao seguir políticas que visam determinar, por procedimentos puramente jurídicos, o que é justo ao invés do que é bom. O espaço público se dissolve na esfera privada, enquanto a democracia representativa é reduzida a um mercado no qual o fornecimento se torna cada vez mais limitado (uma concentração de programas e convergências de políticas) e a demanda menos e menos motivada (abstenção).

Na era da globalização, o liberalismo não se apresenta mais como uma ideologia, mas como um sistema global de produção e reprodução de homens e mercadorias, presidido pelo hipermoralismo dos direitos humanos. Em suas formas econômicas, políticas e morais, o liberalismo representa o bloco central das idéias de uma modernidade em fim de curso. Assim, ele é o principal obstáculo para qualquer coisa que obra para sua superação.

II. Fundações.

"Conhece-te a ti mesmo", dizia o Oráculo de Delfos. A chave para qualquer representação do mundo, para qualquer engajamento político, moral ou filosófico é, antes de tudo, uma antropologia. Nossas atividades são realizadas através de certas ordens práticas, as quais representam a essência das relações dos homens entre si e com o mundo: a política, a economia, a tecnologia e a ética.

II. 1. Homem: um momento da vida.

A modernidade negou qualquer natureza humana (a teoria da tábula rasa) ou, então, relacionou-a a atributos abstratos desconectados do mundo real e da experiência vivida. Como consequência desta ruptura radical, o ideal de um "novo homem", infinitamente maleável através da brutal e progressiva transformação de seu meio, surgiu. No século XX, esta utopia resultou em totalitarismo e em campos de concentração. No mundo
liberal, ela se fez presente na crença supersticiosa em um ambiente todo-poderoso, que não gerou mais que decepções, em particular na esfera educacional: em uma sociedade estruturada pela racionalidade abstrata, a habilidade cognitiva é o principal determinante do status social.

O homem é primeiro e antes de tudo um animal e se insere como tal na ordem dos seres vivos, a qual é medida em centenas de milhões de anos. Se compararmos a história da vida orgânica a um dia (ou seja, vinte e quatro horas), a espécie humana aparece somente nos últimos trinta segundos. O próprio processo de humanização empregou dezenas de milhares de gerações para desenvolver-se. Na medida em que a vida é gerada acima de tudo através da transmissão da informação contida no material genético, o homem não nasce como uma página em branco: cada indivíduo já carrega as características gerais da espécie, às quais são adicionadas específicas predisposições a certas atitudes particulares e modos de comportamento. Os indivíduos não decide tal herança, o que limita sua autonomia e plasticidade, mas também o permite resistir ao condicionamento político e social.

Mas o homem não é apenas um animal: o que é especificamente humano nele - consciência da sua própria consciência, pensamento abstrato, linguagem sintática, a capacidade para simbolismo, a aptidão para observação objetiva e julgamento de valores - não contradiz sua natureza, mas a estende ao conferir-lhe uma identidade suplementar e única. Negar os determinantes biológicos do homem ou reduzi-los ao relegar seus traços específicos à zoologia constituem duas atitudes igualmente absurdas. A parte hereditária da humanidade forma somente a base da vida social e histórica: dado que os instintos humanos não estão programados em seu objeto o homem é sempre titular de uma fração de liberdade para fazer escolhas (ele deve fazer escolhas tanto morais quanto políticas), cuja única verdadeira limitação natural é a morte. O homem é de saída um herdeiro, mas ele pode dispor de sua herança. Ele pode se construir historicamente e culturalmente tendo como base os pressupostos de sua constituição biológica, as quais são suas limitações humanas. O que existe além destas limitações pode ser chamado de Deus, Cosmos, Nada ou Ser: a questão do "porquê" não mais faz sentido, porque o que está além das limitações humanas é por definição inconcebível.

Portanto, a Nova Direita propõe uma visão de um indivíduo equilibrado, levando em contato tanto habilidades pessoais, congênitas quanto o meio social. Ela rejeita ideologias que enfatizam apenas um destes fatores, sejam elas biológicas, econômicas ou mecânicas.

II. 2. Homem: um ser enraizado, arriscado e em aberto.

Por natureza, o Homem não é nem bom nem mal, mas ele é capaz de ser tanto uma coisa quanto a outra. Como um ser em aberto e arriscado, ele é sempre capaz de ir além de si mesmo ou de decair. O homem pode manter esta ameaça permanente à distância construindo regras sociais e morais, instituições e tradições, as quais o provêm de uma fundação para sua existência e fornecem a sua vida sentido e referências. 

O termo "humanidade", definido como a massa indiferenciada de indivíduos que a constituem, designa ou uma categoria biológica (a espécie) ou uma categoria filosófica nascida do pensamento ocidental. Do ponto de vista socio-histórico, não existe o Homem em si, pois seu pertencimento à humanidade é sempre mediado por uma filiação cultural particular. Esta observação não implica em qualquer relativismo. Todos os homens têm em comum sua natureza humana, sem a qual eles não seriam capazes de se compreenderem, mas seu pertencimento à espécie sempre se expressa partir de um contexto singular. Eles compartilham as mesmas aspirações essenciais, porém estas sempre se cristalizam em diferentes formas de acordo com as épocas e os lugares. A humanidade, neste sentido, é irredutivelmente plural: a diversidade forma parte de sua própria essência. A vida humana está enraizada necessariamente dentro de um contexto que precede ao juízo, mesmo que crítico, que os indivíduos e grupos formulam sobre o mundo, e esse contexto modela tanto as aspirações como as finalidades que lhes são próprias: no mundo real só existem pessoas concretamente situadas. As diferenças biológicas não são significativas em si mesmas, mas em referência a traços culturais e sociais. No que diz respeito às diferenças entre as culturas, elas não são nem o efeito de uma ilusão nem características transitórias, contingentes ou secundárias. Todas as culturas têm seu próprio "centro de gravidade" (Herder): culturas diferentes dão respostas diferentes às questões essenciais. Por isso toda tentativa de unificá-las significa destruí-las. O homem se inscreve por natureza no registro da cultura: ser singular, seu lugar está sempre na intersecção do universal (a sua espécie) e o particular (cada cultura, cada época). Assim, a idéia de uma lei absoluta, universal e eterna, chamada a determinar em última instância nossos juízos morais, religiosos ou políticos, carece de fundamentos. E esta é a idéia que está na base de todos os totalitarismos.

As sociedades humanas são simultaneamente conflituosas e cooperativas, sem que se possa eliminar uma destas características em benefício da outra. A crença irênica na possibilidade de eliminar estes antagonismos dentro de uma sociedade transparente e reconciliada não possui mais validade que a visão hipercompetitiva (liberal, racista ou nacionalista) que torna a vida uma guerra perpétua entre indivíduos ou entre grupos. Se é verdade que a agressividade forma parte da atividade criadora e da dinâmica vital, também é certo que a evolução favoreceu no homem a aparição de comportamentos cooperativos (altruístas) que não se limitam à esfera do parentesco genético. Por outro lado, os grandes constructos históricos só puderam durar largos períodos na medida em que foram capazes de estabelecer uma harmonia baseada no reconhecimento do bem comum, na reciprocidade de direitos e deveres, na ajuda e no compartilhamento. Nem pacífica nem beligerante, nem boa nem má, nem bela nem feia, a existência humana se desvela em uma tensão trágica entre estes pólos de atração e repulsão.

II. 3. Sociedade: um corpo de comunidades.

A existência humana é inseparável das comunidades e grupos sociais nos quais ela se inscreve. A idéia de um primitivo "estado de natureza" em que indivíduos autônomos teriam coexistido é pura ficção: a sociedade não é o resultado de um contrato de homens tentando maximizar seus melhores interesses, mas antes uma associação espontânea cuja forma mais antiga é indubitavelmente a família ampliada.

As comunidades nas quais cada sociedade está baseada são constituídas por um complexo tecido de corpos intermediários entre indivíduos, grupos de indivíduos e a humanidade. Alguns entre eles são herdados (os nativos), outros são escolhidos (os cooperativos). A ligação social, cuja autonomia a velha direita nunca foi capaz de reconhecer, e que não se confunde de modo algum com a "sociedade civil", é definida, primeiro e antes de tudo, como um modelo para ações individuais, e não como um efeito global destas; ela repousa sobre o consenso compartilhado que é anterior a este modelo. O pertencimento ao coletivo não destrói a identidade individual; antes de tudo, ele é a sua base: quando se abandona a sua comunidade de origem, normalmente é para se unir a outra. Nativas ou cooperativas, as comunidades são todas baseadas na reciprocidade. As comunidades se constroem e se mantêm na certeza, compartilhada por seus membros, de que tudo o que se exige a cada um pode e deve ser exigido também dos outros. Reciprocidade vertical de direitos e deveres, de contribuição e de distribuição, de obediência e assistência, reciprocidade horizontal de dons e contra-dons, de fraternidade, de amizade e de amor. A riqueza da vida social é proporcional à diversidade dos seus membros: esta diversidade é constantemente ameaçada seja por defeitos (homogeneização, falta de diferenciação) ou excessos (secessão, atomização).

A concepção holística, na qual o todo excede a soma das partes e possui qualidades que somente ele possui, foi combatida pelo indivíduo-universalismo, o qual associou a comunidade às idéias de submissão à hierarquia insuportável, ao ensimesmamento e ao bairrismo. Tal individuo-universalismo se desenvolveu sob dois signos: o do contrato (no campo político) e do mercado (no campo econômico). Mas, na verdade, a modernidade não liberou o homem de seu pertencimento familiar ou de suas ligações locais, tribais, corporativas ou religiosas. Ela apenas o submeteu a outras coações, muito mais duras porque mais distantes, mais impessoais e mais exigentes: uma sujeição mecânica, abstrata e homogênea substituiu os modos orgânicos multiformes. Ao tornar-se mais solitário, o homem também se tornou mais vulnerável e mais indefeso. Ele se dissociou dos significados, porque ele não pode mais se identificar com um modelo e porque não existe mais qualquer sentido em colocar-se no ponto de vista do todo social. O individualismo resultou na desfiliação, na separação, na desinstitucionalização (a família, por exemplo, não mais socializa) e na apropriação do laço social pelas burocracias estatais. Em última análise, o grande projeto da emancipação moderna resultou somente em uma alienação em larga escala. Dado que as sociedades modernas tendem a reunir os indivíduos que percebem uns aos outros como estranhos, sem possuir mais qualquer confiança mútua, elas não conseguem conceber uma relação social que não esteja sujeita a uma autoridade regulatória "neutra". As formas puras são a troca (um sistema de mercado da lei do mais forte) e a submissão (o sistema totalitário de obediência ao todo-poderoso Estado). A forma mista que se instaurou atualmente se traduz em uma proliferação de regras jurídicas abstratas que gradualmente interseccionam cada esfera da existência, as relações com o outro feitas objetos de um controle permanente a fim de debelar a ameaça de implosão.

Somente o retorno às comunidades e a uma polities (2) de dimensões humanas permitirá remediar a exclusão, a dissolução das relações sociais, a sua juridicização e a sua reificação.

II. 4. Política: uma essência e uma arte

A Política se baseia no fato de que os objetivos da vida social são sempre múltiplos. Ela possui leis e essência que lhes são próprias e que não são redutíveis à racionalidade econômica, à ética, à estética, à metafísica nem ao sagrado. Ela pressupõe o reconhecimento e a distinção de noções tais quais o público e o privado, o comando e a obediência, a deliberação e a decisão, o cidadão e o estrangeiro, o amigo e o inimigo. Existe moralidade na política - dado que a autoridade aspira ao bem comum e se inspira na norma composta pelos valores e costumes da coletividade em cujo seio ela é exercida -, mas isso não significa que uma moralidade individual é politicamente aplicável. Os regimes que se recusam a reconhecer a essência da Política, regimes que negam a pluralidade de objetivos ou favorecem a despolitização, são por definição "impolíticos".

O pensamento moderno desenvolveu a ilusão de uma "neutralidade" da política, reduzindo o poder à eficácia administrativa, à aplicação mecânica de normas jurídicas, técnicas ou econômicas: o "governo dos homens" deveria ser modelado a partir da "administração das coisas". Ora, mas a esfera pública é sempre o lugar de afirmação de uma visão particular da "boa vida". Desta concepção que se elabora do "bom" é que
procede o "justo", e não o inverso.

A primeiríssima finalidade de toda ação política é, domesticamente, fazer reinar a paz civil, isto é, a segurança e a harmonia entre os membros da sociedade, e, externamente, proteger estes mesmos membros de ameaças. Em relação a tal finalidade, a seleção que é feita entre os diversos valores concorrentes (mais liberdade, igualdade, unidade, diversidade, solidariedade, etc.) contém necessariamente uma face de arbitrariedade: não é algo demonstrável, mas se afirma e se julga segundo os seus resultados. A diversidade de mundivisões é uma das condições para a emergência da Política. A democracia é um regime eminentemente político dado que reconhece a pluralidade de aspirações e projetos, e porque propõe organizar o confrontamento pacífico em todos os escalões da vida pública. Por isso a democracia é preferível às clássicas confiscações da legitimidade pelo dinheiro (plutocracia), pela competência (tecnocracia), pela lei divina (teocracia) ou pela herança (monarquia) e também pelas mais recentes formas de neutralização do político pela moral (ideologia dos direitos humanos), pela economia (mundialização mercantil), pelo direito (governo dos juízes) ou pela mídia (sociedade do espetáculo). Se o indivíduo se forma uma pessoa no seio de uma comunidade, o lugar onde ele se torna cidadão é na democracia, único regime que lhe oferece a participação em discussões e decisões públicas, assim como a possibilidade de alcançar a excelência através da educação e a construção de si mesmo.

A Política não é uma ciência, redutível à razão ou a um simples método, mas uma arte que em primeiro lugar exige prudência. Ela implica sempre uma incerteza, uma pluralidade de escolhas, uma decisão sobre as finalidades. A arte de governar confere um poder de arbitragem entre as distintas possibilidades, poder que tem de ser associado à capacidade de forçar. O poder não é mais que um meio, que nada vale senão em função das finalidades às quais pretende servir.

Segundo Jean Bodin, herdeiro dos légistes (3), a fonte da independência e da liberdade reside na soberania ilimitada do príncipe, modelada de acordo com o poder absolutista do papa. Esta concepção é uma "teologia política" fundada sobre a idéia de um orgão político supremo, um "Leviatã" (Hobbes), ao qual se atribui o controle de corpos, espíritos e almas. Tal teologia política inspirou o modelo do Estado-Nação absolutista, unificado, centralizado, que não tolera nem poderes locais nem o compartilhamento de direitos com poderes territoriais vizinhos, e que se construiu mediante a unificação administrativa e jurídica, a eliminação dos corpos intermediários (denunciados como "feudalidades") e a progressiva erradicação das culturas locais. Ela resultou sucessivamente na monarquia absolutista, no jacobinismo revolucionário e, então, no totalitarismo moderno, mas também conduziu à "República sem cidadãos", onde já não existe nada entre uma sociedade civil e o Estado gestor. A este modelo de sociedade política a Nova Direita opõe outro modelo alternativo, herdado de Althusius, onde a fonte da independência e da liberdade reside na autonomia e onde o Estado se define desde o princípio como uma federação de comunidades organizadas e de alianças
múltiplas.

Nesta concepção, que inspirou as construções imperiais e federativas, a existência de uma delegação junto ao soberano nunca faz o povo perder a faculdade de fazer ou derrogar as leis. O povo, em suas diferentes coletividades organizadas (ou "estados"), é em última instância o único detentor da soberania. Os governantes são superiores a todo cidadão considerado individualmente, mas sempre inferiores à vontade geral expressa pelo corpo dos cidadãos. O princípio da subsidiariedade se aplica a todos os níveis. A liberdade de uma coletividade não é incompatível com uma soberania compartilhada. O campo do Político, enfim, não se reduz ao Estado: a pessoa pública como um espaço pleno, um tecido contínuo de grupos, famílias, associações, coletividades locais, regionais, nacionais ou supranacionais. A Política não consiste em negar esta continuidade orgânica, mas em apoiar-se sobre ela. A unidade política procede de uma diversidade reconhecida, e isto quer dizer que ela deve aceitar certa "opacidade" do social: o mito da perfeita "transparência" da sociedade para si mesma é uma utopia que, longe de estimular a comunicação democrática, favorece a vigilância totalitária.

II. 5. Economia: além do Mercado.

Tão longe quanto logremos retornar na História das sociedades humanas, sempre encontraremos determinadas regras que presidem a produção, a circulação e o consumo dos bens necessários para a sobrevivência dos indivíduos e dos grupos. Mas, contrariamente aos pressupostos tanto do liberalismo quanto do marxismo, a economia nunca constituiu a "infraestrutura" da sociedade: a sobredeterminação econômica (o "economicismo") é a exceção, e não a regra. Muitos mitos associados à maldição do trabalho (Prometeu, a violação da Mãe-Terra), do dinheiro (Creso, Gullveig, Tarpeia) ou da abundância (Pandora) destacam que a economia foi prontamente associada à "parte maldita" de toda sociedade, a atividade que ameaça romper a sua harmonia. A economia era, então, algo desvalorizado, e não porque não era útil, mas sim porque, precisamente, não era mais que isso. Do mesmo modo, se era rico porque se era poderoso, e não o contrário - o poder era então associado a um dever de partilha e de proteção dos subordinados. O "fetichismo da mercadoria" não é somente um avatar do capitalismo moderno, mas nos remete a uma constante antropológica: a produção abundante de bens diferenciados instiga a inveja, o desejo mimético, os quais por sua vez produzem a desordem e a violência.

Em todas as sociedades pré-modernas o econômico estava imbricado, contextualizado em outras ordens da atividade humana. A idéia de que o intercâmbio econômico, desde o escambo até o mercado moderno, esteve sempre regulado pela confrontação entre a oferta e a procura, com a consequente aparição de um equivalente abstrato (o dinheiro) e de valores objetivos (valores de uso, de câmbio, de troca, de utilidade, etc.) é uma fábula inventada pelo liberalismo. O mercado não é um modelo ideal, universalizável por sua natureza abstrata. Antes de ser um mecanismo, é uma instituição, e como tal não pode ser abstraída de sua história nem das culturas que o engendraram. A três grandes formas de circulação de bens são a reciprocidade (dom associado ao contra-dom, partilha paritária ou igualitária), a redistribuição (centralização e partilha por uma autoridade única) e intercâmbio. Estas formas não representam sucessivos "estágios de desenvolvimento", mas que sempre coexistiram mais ou menos. A sociedade moderna se caracteriza pela hipertrofia do intercâmbio mercantil: se passou da economia com mercado à economia de mercado, e então à sociedade de mercado. A ideologia liberal traduziu a ideologia do progresso em religião do crescimento: crê que o "cada vez mais" do consumo e da produção conduzirá os homens à felicidade. Se é inegável que o
desenvolvimento econômico moderno satisfez determinadas necessidades primárias que até esse momento eram inacessíveis à grande maioria, não é menos certo que o crescimento artificial das necessidades mediante as estratégias de sedução do sistema de objetos (a publicidade) conduz necessariamente a um beco sem saída. Em um mundo de recursos finitos e submetido ao princípio da entropia, o horizonte inevitável da humanidade é um certo decrescimento.

Pelas transformações que pôs em movimento, a mercantilização do mundo, entre os séculos XVI e XX, foi um dos fenômenos mais importantes que a humanidade conheceu. Sua desmercantilização será um dos principais desafios do século XXI. Para isso é preciso voltar à origem da economia: "oikos-nomos", as leis gerais de nosso habitar no mundo, leis que incluem os equilíbrios ecológicos, as paixões humanas, o respeito à harmonia e à beleza natural e, de forma mais geral, todos os elementos não quantificáveis que a ciência econômica excluiu arbitrariamente de seus cálculos. Toda vida econômica implica a mediação de um amplo leque de instituições culturais e de instrumentos jurídicos. Hoje, a economia deve ser recontextualizada no mundo vivo, no social, na política e na ética.

II. 6. Ética: a construção de si mesmo.

As categorias fundamentais da ética são universais: as distinções entre nobre e ignóbil, bom e mau, admirável e desprezível, justo e injusto podem ser encontradas em qualquer lugar. Por outro lado, a designação dos atos correspondentes a cada um destas categorias varia segundo as épocas e as sociedades. A Nova Direita Francesa rejeita todas as visões puramente morais do mundo, mas ela reconhece que nenhuma cultura pode evitar distinguir entre os valores éticos de várias atitudes e comportamentos. A moralidade é indispensável a este ser em aberto que é o homem; ela é uma consequência antropológica de sua liberdade. Além de expressar normas gerais que são em todos os lugares condição para a sobrevivência das sociedades, a moral possui relação também com os costumes (mores) e não pode ser totalmente dissociada dos contextos em que atua. Porém tampouco cabe contemplá-la a partir do simples horizonte da subjetividade. Por exemplo, o adágio “right or wrong my country”(4) não significa que meu país sempre tenha razão, mas que segue sendo meu país ainda que não a tenha. Isto implica que eu eventualmente posso contradizê-lo, e, consequentemente, que eu disponho de uma norma que excede meu mero pertencimento a ela.

Desde os gregos, a ética designa para os europeus as virtudes cujo exercício constitui a base da “vida boa”: a generosidade contra a avareza, a honra contra a vergonha, a coragem contra a covardia, a justiça contra a iniquidade, a temperança contra o excesso, o sentido de dever contra a renúncia, a franqueza contra o duplo sentido, o desinteresse contra a cupidez, etc. O bom cidadão é aquele que sempre tenta atingir a excelência em cada uma destas virtudes (Aristóteles). Tal vontade de excelência não exclui de modo algum a existência de diversos modos de vida (contemplativa, ativa, lucrativa, etc.), cada um dos quais obedece a códigos morais diferentes e que se encontram hierarquizados na cidade: a tradição européia, expressa pelo antigo modelo trifuncional, coloca, por exemplo, a sabedoria sobre a força e a força sobre a riqueza.

A modernidade suplantou a ética tradicional, que é ao mesmo tempo aristocrática e popular, por dois tipos de códigos morais burgueses: o utilitário (Bentham), baseado no cálculo materialista de prazer e dor (onde o bom é aquilo que aumenta o prazer para o maior número de pessoas); e na moralidade deontológica (Kant), baseada na concepção unitária do que é justo, com relação à qual todos os indivíduos devem tentar agir de acordo com a lei moral universal. Esta última perspectiva fundamenta a ideologia dos direitos humanos, a qual é tanto um código moral mínimo quanto uma arma estratégica de etnocentrismo ocidental. Esta ideologia é uma contradição em termos. Todos os homens têm direitos, mas ninguém pode ser titular de um direito se é um ser isolado: o direito sanciona uma relação de equidade, o que implica o social. Não cabe conceber nenhum direito se não existe um contexto específico para defini-lo, uma sociedade para reconhecê-lo e para assentar sua contrapartida em deveres e meios de coerção suficientes para que tal direito seja aplicado. Quanto às liberdades fundamentais, estas não são decretadas, mas elas precisam ser conquistadas e garantidas. O fato de que os europeus lograram impôr à força de lutas um direito baseado na autonomia, de modo algum implica que todos os povos do planeta tenham que contemplar a mesma maneira
de garantia de seus direitos.

Contra a ordem moral, que confunde a norma social com a normal moral, é necessário que se defenda a pluralidade das formas da vida social, pensar simultaneamente a ordem e a sua transgressão, Apolo e Dionísio. Para sair do relativismo e do niilismo do "último homem" (Nietzsche), que hoje se perfilam sobre uma paisagem de materialismo prático, é preciso restituir o sentido, quer dizer, voltar aos valores compartilhados, portadores de certezas concretas provadas e defendidas pelas comunidades conscientes de si mesmas.

II. 7. A técnica: mobilização do mundo

A técnica acompanha o homem desde suas origens: a ausência de defesas naturais específicas, a desprogramação de nossos instintos e o desenvolvimento de nossas capacidades cognitivas andou lado a lado com uma transformação crescente de nosso entorno. Porém durante muito tempo a técnica foi regulada por imperativos não-técnicos: necessária harmonia do homem, da cidade e do cosmos, respeito à natureza como casa do Ser; submissão do poder (prometéico) à sabedoria (olímpica); rechaço da húbris, busca da qualidade antes da produtividade, etc.

A explosão técnica da modernidade se explica pela desaparição destes códigos éticos, simbólicos ou religiosos. Suas raízes remotas estão no imperativo bíblico: "Encham e subjuguem a terra!" (Gênesis) que Descartes retomará dois milênios mais tarde convidando o homem a "fazer-se amo e senhor da natureza". A cisão dualista teocêntrica entre o Ser incriado e o mundo criado se transforma assim na cisão dualista antropocêntrica ente o sujeito e o objeto, onde o segundo fica entregue sem reservas à abordagem do primeiro. A modernidade submeteu igualmente a ciência (contemplativa) à técnica (operativa), dando nascimento à "tecnociência" integrada, cuja razão de ser é transformar o mundo de maneira cada vez mais acelerada. No século XX, nosso modo de vida conheceu mais transtornos que nos quinze mil anos que o precederam. Pela primeira vez na História humana, cada nova geração deve integrar-se em um mundo que
a geração precedente não conheceu.

A técnica se desenvolve por essência como um sistema autônomo: todo novo descobrimento é imediatamente absorvido pelo impulso global de operatividade, contribuindo a reforçá-lo e a fazê-lo mais complexo. O desenvolvimento recente das tecnologias de armazenamento e circulação de informação (cibernética, informática) acelera a uma velocidade prodigiosa esta integração sistêmica, cujo exemplo mais conhecido é a Internet: esta rede não tem centro de decisões, nem controle de entrada e saída, mas mantém e aumenta permanentemente a interação dos milhões de terminais conectados a ela.

A técnica não é neutra, mas obedece a certo número de valores que guiam seu curso: operatividade, eficácia, competitividade. Seu axioma é simples: tudo aquilo que é possível pode ser e será efetivamente realizado, tomando por pressuposto que somente com um acréscimo de técnica podem se aliviar os defeitos da implementação das técnicas já vigentes. A política, a moral ou o direito intervêm somente depois, para julgar os efeitos desejáveis ou indesejáveis da inovação. A natureza acumulativa do desenvolvimento tecnocientífico - que conhece estancamento, mas não regressão - reforçou durante muito tempo a ideologia do progresso ao certificar o aumento do poder humano sobre a natureza e ao reduzir seus riscos e incertezas. A técnica deu à humanidade, desta forma, novos meios de existência, porém ao mesmo tempo a fez perder suas razões para viver, pois o futuro parece só depender da extensão indefinida do domínio racional do mundo. O empobrecimento daí resultante é cada vez com maior nitidez percebido como o desaparecimento da vida autenticamente humana sobre a Terra. Após haver explorado o infinitamente pequeno e o infinitamente grande, a tecnociência pretende agora submeter o homem mesmo, que é ao mesmo tempo sujeito e objeto de suas próprias manipulações (clonagem, procriação artificial, mapas genéticos, etc.) O homem se converte em simples prolongamento das ferramentas que ele mesmo criou, adotando uma mentalidade tecnomorfa que aumenta sua vulnerabilidade.

Tecnofobia e tecnofilia são duas atitudes reprováveis. O conhecimento e suas aplicações não são censuráveis em si mesmos, mas o que dá valor à inovação não é o simples fato da sua novidade. Contra o reducionismo cientificista, o positivismo arrogante e o obscurantismo obtuso, o importante é submeter o desenvolvimento técnico às nossas decisões sociais, éticas e políticas, ao mesmo tempo em que à nossa capacidade de antecipação (princípio de prudência), e reinseri-lo em uma visão de mundo como pluriverso e como continuum.

II. 8. O Mundo: um pluriverso.

A diversidade é inerente ao próprio movimento da vida, que evolui densamente em sua complexificação. A pluralidade e variedade de raças, etnias, línguas, costumes ou mesmo de religiões caracteriza o desenvolvimento da humanidade desde suas origens. Diante deste fato, duas atitudes se opõem. Para uns, esta diversidade biocultural é um fardo e o que se deve fazer sempre e em todo lugar é reduzir os homens ao que têm em comum, o que não deixa de engendrar por reação toda uma série de efeitos perversos. Para outros, onde nós nos situamos, as diferenças são uma riqueza que convém preservar e cultivar. A Nova Direita manifesta uma profunda aversão ao indiferenciado. Ela avalia que um bom sistema é aquele que lega ao menos tantas diferenças quanto recebeu. A verdadeira riqueza reside, antes de tudo, na diversidade das culturas e dos povos.

A conversão do Ocidente ao universalismo foi a causa principal de sua vontade de, por sua vez, converter o resto do mundo, antigamente à sua religião (Cruzadas), ontem aos seus princípios políticos (colonialismo), hoje ao seu modelo econômico e social (desenvolvimento) ou aos seus princípios morais (direitos humanos). Empreendida sob a égide dos missionários, dos militares e dos mercadores, a ocidentalização do planeta representou um movimento imperialista alimentado pelo desejo de eliminar toda alteridade impondo ao mundo um modelo de humanidade pretensamente superior, movimento invariavelmente apresentando como "progresso". O universalismo homogeneizante não foi mais que a projeção e a máscara de um etnocentrismo ampliado às dimensões do planeta.

Esta ocidentalização-mundialização modificou a maneira com que percebemos o mundo. As tribos primitivas se denominavam a si mesmas como "os homens", deixando subentendido que se como consideravam como os únicos representantes de sua espécie. Um romano e um chinês, um russo e um inca podiam vivem na mesma época sem terem consciência de sua recíproca existência. Esses tempos passaram: pela desmesurada pretensão do Ocidente de fazer o mundo totalmente presente para si mesmo, hoje vivemos um época nova onde as diferenças étnicas, históricas, lingüísticas ou culturais coexistem em plena consciência tanto de sua identidade quanto da alteridade que, frente a si, refletem-nas. Pela primeira vez na história, o mundo é um pluriverso, uma ordem multipolar onde grandes conjuntos culturais se acham confrontados entre si em uma temporalidade planetária compartilhada, isto é, em tempo zero. No entanto, a modernização se desconecta pouco a pouco da ocidentalização: novas civilizações ascendem aos modernos meios de poder e de conhecimento, sem renegar por isso suas heranças históricas e culturais em proveito dos valores ou das ideologias do Ocidente.

A idéia de que hoje estamos chegando a um "fim da História", caracterizado pelo triunfo planetário da racionalidade mercantil, que generalizaria o modo de vida e as formas políticas do Ocidente liberal é falsa. Ao contrário, o que estamos vivendo é a aparição de um novo "nomos da Terra", um novo ordenamento das relações internacionais. A Antiguidade e a Idade Média foram testemunhas do desigual desenvolvimento de grandes civilizações autárquicas. O Renascimento e a Era clássica foram marcados pela consolidação dos Estados-Nação, que competiram pelo domínio da Europa, e depois do mundo. O século XX viu como se delineava uma ordem bipolar onde se enfrentavam o liberalismo e o marxismo, a potência talassocrática americana e a potência continental soviética. O século XXI será marcado pelo advento de um mundo multipolar articulado em torno de civilizações emergentes: a européia, a norte-americana, a ibero-americana, a árabe-muçulmana, a chinesa, a hindu, a japonesa, etc. Estas civilizações não suprimirão os ancestrais enraizamentos locais, tribais, provinciais ou nacionais: por outro lado, elas se imporão como a forma coletiva última com a qual os indivíduos podem se identificarem aquém de sua humanidade comum. Elas provavelmente se verão chamadas a colaborar em determinados campos para defender os bens comuns da humanidade, sobretudo os ecológicos. Em um mundo multipolar, o poder se define como capacidade para resistir à influência externa ao invés de impôr a sua própria. O principal inimigo deste pluriverso de grandes conjuntos autocentrados será toda civilização de pretensões universais, que se crê investida de uma missão redentora e que queira impôr seu modela a todas as demais civilizações.

II. 9. O Cosmos: um continuum.

A Nova Direita adere a uma concepção unitária do mundo, onde matéria e forma não são nada além de variações sobre um mesmo tema. O mundo é ao mesmo tempo uno e múltiplo, integra diferentes níveis do visível e do invisível, diferentes percepções do tempo e do espaço, diferentes leis de organização de seus elementos constitutivos. Microcosmos e macrocosmos se interpenetram e se correspondem. Consequentemente, a Nova Direita rechaça a distinção absoluta entre o ser criado e o ser incriado, assim como a idéia de que nosso mundo não é mais que o reflexo de um mundo por trás deste mundo. O cosmos como realidade (physis) é o lugar onde se manifesta o Ser, onde se revela a verdade (aléthéia) de nosso co-pertencimento a esse cosmos. "Panta rhei", dizia Heráclito: tudo está aberto a tudo.

O homem não encontra nem dá sentido à sua vida mais do que aderindo ao que o excede, ao que supera os limites de sua constituição. A Nova Direita reconhece plenamente esta constante antropológica, que se manifesta em todas as religiões Consideramos que o retorno ao sagrado se realizará mediante o recurso aos mitos fundadores e através da implosão das falsas dicotomias: sujeito e objeto, corpo e pensamento, alma e espírito, essência e existência, racionalidade e sensibilidade, domínio mítico e domínio lógico, o natural e o sobrenatural, etc.

O desencantamento do mundo reflete a clausura do espírito moderno, incapaz de projetar-se além de seu materialismo e de seu antropocentrismo constitutivos. Nossa época transferiu ao simples sujeito humano os antigos atributos divinos (metafísica da subjetividade), transformando assim o mundo em objeto, isto é, em um conjunto de recursos postos à ilimitada disposição de seus fins. Este ideal de racionalização utilitária do mundo anda de mãos dadas com uma concepção linear da história, supostamente dotada de um princípio (estado de natureza, paraíso terreal, Idade de ouro, comunismo primitivo) e de um final (sociedade sem classes, reino de Deus, estágio último do progresso, entrada na era da pura racionalidade transparente e irênica), ambos igualmente necessários.

Para a Nova Direita, passado, presente e futuro não são momentos distintos de uma história orientada e vectorizada, mas dimensões permanentes em todo instante vivido. Passado e futuro se acham presentes em toda atualidade. A esta presença - categoria fundamental do tempo - se opõe a ausência: esquecimento da origem e obscurecimento do horizonte. Esta concepção do mundo já aparece expressada na Antiguidade européia: se encontra tanto nos relatos cosmogônicos como no pensamento pré-socrático. O paganismo da Nova Direita não se refere a outra coisa que não a simpatia consciente para com esta antiga concepção do mundo, sempre viva nos corações e nos espíritos - precisamente porque ela não é de ontem, mas de sempre. Frente aos sucessores sectários de religiões caídas e a certas paródias neopagãs destes tempos de confusão, a posição da Nova Direita se inscreve na mais ampla memória: o sentido do que vem surge sempre da relação com a origem.

III. Orientações. 

III. 1. Contra a indiferenciação e o tribalismo, pelas identidades fortes.

A ameaça sem precedentes da homogeneização que paira sobre o mundo conduz como ricochete às crispações identitárias: irredentismos sangrentos, nacionalismos convulsivos e chauvinistas, tribalizações selvagens, etc. O primeiro responsável destas atitudes condenáveis é a mundialização (política, econômica, tecnológica, financeira) que as produziu. Ao negar aos indivíduos o direito de se inscreverem em identidades coletivas herdadas da história e ao impor um modo uniforme de representação, o sistema ocidental fez nascer, paradoxalmente, formas delirantes de afirmação de si. O medo do Outro deu espaço ao medo ao Mesmo. Esta situação se vê agravada na França pela crise do Estado, que faz dois séculos se quis o principal produtor simbólico da sociedade e cujo esfacelamento provoca um vazio mais importante que nas outras nações ocidentais. A questão da identidade é convocada a tomar uma importância cada vez maior nos próximos decênios. De fato, a modernidade, ao quebrar os sistemas sociais que atribuíam aos indivíduos um lugar em uma ordem reconhecida, estimulou as perguntas sobre a identidade, despertando um desejo de comunhão e reconhecimento na cena pública. Porém ela não soube nem quis satisfazê-los. O "turismo universal" não é mais que uma alternativa irrisória ao dobrar sobre si mesmo.

Frente à utopia universalista e às crispações particularistas, a Nova Direita afirma a força das diferenças, que não são nem um estado transitório em direção a uma unidade superior, nem um detalhe acessório da vida privada, mas a substância mesma da existência social. Estas diferenças são, é claro, nativas (étnicas, lingüisticas), mas também políticas. A cidadania designa ao mesmo tempo o pertencimento, o compromisso e a participação em uma vida pública que se distribui em diversos níveis: assim, é possível ser ao mesmo tempo cidadão do bairro, da cidade, da região, da nação e da Europa, segundo a natureza do poder delegado a cada uma destas escalas de soberania. Por outro lado, não é possível ser "cidadão do mundo", pois o "mundo" não é uma categoria política. Querer ser cidadão do mundo é remeter a cidadania a uma abstração que procede do vocabulário da Nova Classe liberal.

A Nova Direita defende a causa dos povos porque o direito à diferença é um princípio cuja validade reside em sua generalidade: só se pode defender sua diferença quem também é capaz de defender a dos outros, o que significa que o direito à diferença não pode ser instrumentalizado para excluir os diferentes. A Nova Direita defende igualmente as etnias, as línguas e as culturas regionais ameaçadas de desaparecimento, assim como as religiões nativas. Ela defende os povos em luta contra o imperialismo ocidental.

III. 2. Contra o racismo, pelo direito à diferença.

O racismo não pode ser definido como a preferência pela endogamia, que é algo que procede da livre eleição dos indivíduos e dos povos (o povo judeu, por exemplo, deve sua sobrevivência ao rechaço ao casamento misto). Diante da inflação de discursos simplificadores, propagandísticos e moralizantes, é necessário voltar ao verdadeiro sentido das palavras: o racismo é uma teoria que postula ou que entre as raças existem desigualdades qualitativas tais que poderia se distinguir entre raças globalmente "superiores" e raças globalmente "inferiores", ou que o valor de um indivíduo se deduz inteiramente de seu pertencimento a uma raça, ou que o fato racial constitui o fator central que explica a história humana. Estes três postulados podem ser defendidos conjuntamente ou em separado. Todos os três são falsos. Se de fato as raças existem e divergem no que diz respeito a este ou aquele critério estatisticamente, não há entre elas diferenças qualitativas absolutas. E não há, por outro lado, nenhum paradigma no que diz respeito à espécie humana que permita hierarquizá-las globalmente. Finalmente, é claro que o valor de um indivíduo reside antes de tudo em suas próprias qualidades. O racismo não é uma enfermidade do espírito, engendrada pelo preconceito ou pela superstição "pré-moderna" (fábula liberal que remete à irracionalidade a fonte de todo mal social). Ele é uma doutrina errônea, historicamente datada, cuja origem está no positivismo científico, segundo o qual é possível medir "cientificamente" o valor absoluto das sociedades humanas, e no evolucionismo social, que tende a descrever a história da humanidade como uma história unitária dividida em diversos "estágios", cada um dos quais corresponde às diferentes etapas do "progresso" (e onde determinados povos seriam, provisória ou definitivamente, mais "avançados" que outros).

Frente ao racismo, existe um anti-racismo universalista e um anti-racismo diferencialista. O primeiro conduz indiretamente aos mesmos resultados que o racismo que denuncia. Ao ser tão alérgico quanto este às diferenças, o anti-racismo universalista não reconhece nos povos mais do que seu comum pertencimento à espécie, e tende a considerar suas identidades específicas como transitórias ou secundárias. Ao reduzir o Outro ao Mesmo, em uma perspectiva estritamente assimilacionista, resulta incapaz, por definição, reconhecer e respeitar a alteridade por aquilo que ela é. Pelo contrário, o anti-racismo diferencialista, no qual se reconhece a Nova Direita, considera que a irredutível pluralidade da espécie humana constitui sua riqueza. Ela se esforça por outorgar um sentido positivo ao universal, não contra a diferença, mas a partir dela. Para a Nova Direita, a luta contra o racismo não passa pela negação das raças nem pela vontade de fundi-las em um conjunto indiferenciado, mas pelo duplo rechaço da exclusão e da assimilação. Nem apartheid, nem melting-pot (5): aceitação do outro enquanto outro, em uma perspectiva dialógica de mútuo enriquecimento.

III. 3. Contra a imigração, pela cooperação.

Em razão de sua rapidez e de seu caráter massivo, a imigração de populações, tal como é a que conhecemos hoje na Europa, constitui um fenômeno incontestavelmente negativo. Essencialmente, a imigração representa uma forma de desenraizamento forçado, cujas motivações são ao mesmo tempo de ordem econômica - movimentos  espontâneos ou organizados a partir dos países pobres e povoados para os países ricos com menor vitalidade demográfica - e de ordem simbólica - atração da civilização ocidental, que se impõe mediante a desvalorização das culturas autóctones em proveito de um modo de vida consumista. Sua responsabilidade não deve cair sobre os imigrantes, mas aos países industrializados que, após terem imposto a divisão internacional do trabalho, reduziram o homem à condição de mercadoria deslocável. A imigração não é desejável nem para os imigrantes, que se vêem obrigados a abandonar seu país natal por outro onde são acolhidos como simples complementos de necessidades econômicas, nem para as populações que os acolhem, que sem havê-lo desejado se vêm de frente a modificações freqüentemente brutais de seu ambiente humano e urbano. É claro que os problemas dos países de origem não se vão resolver mediante transferências generalizadas de população. A Nova Direita é, portanto, favorável a uma política restritiva da imigração, necessariamente combinada com um incremento substancial da cooperação com os países do Terceiro Mundo, onde as solidariedades orgânicas e as formas de vida tradicionais ainda estão vivas, para superar os desequilíbrios induzidos pela mundialização liberal.

No que concerne às populações de origem imigrante que residem atualmente na Europa, em que seria ilusório esperar pela partida massiva, o Estado-Nação jacobino não soube propôr mais que um modelo de assimilação puramente individual em uma cidadania abstrata, que não quer saber nada das identidades coletivas e das diferenças culturais. E este modelo se faz cada vez menos verossímil em conseqüência do número de imigrantes, da distância cultural que às vezes os separa da população de acolhida e, sobretudo, da profunda crise que afeta a todas tradicionais instâncias de integração (partidos, sindicatos, religiões, escola, exército, etc.). A Nova Direita estima que a identidade etnocultural das diferentes comunidades que hoje vivem em nosso solo deve cessar de ser reduzida ao simples âmbito privado, para ser o objeto de um verdadeiro reconhecimento na esfera pública. Ela adere, pois, a um modelo de tipo comunitarista que permita aos indivíduos que desejem não romper com suas raízes, manter vivas suas estruturas de vida coletiva e não ter que pagar o abusivo preço do abandono de uma cultura que lhes é própria em troca do necessário respeito a uma lei comum. Futuramente, esta política comunitarista poderia traduzir-se em uma dissociação entre a cidadania e a nacionalidade.

III. 4. Contra o sexismo, pelo reconhecimento dos gêneros.

A diferença entre os sexos é a primeira e mais fundamental das diferenças naturais, pois nossa humanidade não assegura sua reprodução senão através dela: a humanidade, sexuada desde sua origem, não é una, mas dupla. Além da biologia, esta diferença se reinscreve nos gêneros masculino e feminino, que determinam na vida social duas maneiras de perceber o outro e o mundo, e constituem aos indivíduos seu modelo de destino sexuado. Se a existência de uma natureza feminina e uma natureza masculina é pouco contestável, ela não exclui o de que os indivíduos de cada sexo podem divergir com relação a elas por causa de variações genéticas ou de preferências socio-culturais. Globalmente, porém, numerosos valores e atitudes podem ser atribuídos seja ao gênero feminino seja ao masculino, segundo o sexo que seja mais apto para materializá-los: cooperação e competição, mediação e repressão, sedução e dominação, empatia e desapego, relacional e abstrato, afetivo e diretivo, persuasão e agressão, intuição sintética e intelecção analítica, etc. A concepção moderna de indivíduos abstratos e dissociados de sua identidade sexual, que procede de uma ideologia "indiferencialista" que neutraliza a diferença entre sexos, não é menos prejudicial para a mulher que o sexismo tradicional, que durante séculos considerou as mulheres como homens incompletos. Estamos aqui diante de uma variante da dominação masculina, cujo efeito foi excluir as mulheres do campo da vida pública para, finalmente, acolhê-las na condição de que se despojassem de sua feminilidade.

O feminismo universalista, ao pretender que os gêneros masculino e feminino são simples construções sociais ("não se nasce mulher: torna-se"), caiu em uma armadilha androcêntrica que consiste na adesão a valores "universais" abstratos que, em última análise, não são nada mais que valores masculinos. Pelo contrário, o feminismo diferencialista, ao qual adere a Nova Direita, não hesita em propôr que a diferença dos sexos se inscreve na esfera pública e em afirmar direitos especificamente femininos (direito à maternidade, direito à virgindade, direito ao aborto), tudo isso favorecendo, contra o sexismo e contra a utopia unissexual, a promoção de tanto de homens como de mulheres mediante a afirmação e constatação do igual valor de suas naturezas próprias.

III. 5. Contra a Nova Classe, pela autonomia a partir da base.

A civilização ocidental em via de unificação promove hoje a ascensão planetária de uma casta dirigente cuja única legitimidade reside na manipulação abstrata (lógico-simbólica) dos signos e valores do sistema estabelecido. Aspirante ao crescimento ininterrupto do capital e ao definitivo reinado da engenharia social triunfante, esta Nova Classe constitui a estrutura da mídia, das grandes empresas nacionais ou multinacionais, das organizações internacionais, dos principais organismos do Estado. Em todas as partes produz e reproduz o mesmo tipo humano: fria competência, racionalidade desvinculada do real, individualismo abstrato, convicções utilitaristas, humanitarismo superficial, indiferença à História, notória incultura, distanciamento do mundo vivo, sacrifício do real pelo virtual, propensão à corrupção, ao nepotismo e ao clientelismo. Este processo se inscreve na lógica de concentração e homogeneização sobre a qual se baseia a dominação mundial: quanto mais o poder se distancia do cidadão menos ele se sente na necessidade de justificar as suas decisões e de legitimar a sua ordem; quanto mais se propõe à sociedade tarefas impessoais, menos esta se abre aos homens de qualidade; quanto mais se submete o público ao privado, menos reconhecimento geral se outorga aos méritos individuais; quanto mais se deve cumprir uma função, menos possível se resulta interpretar um papel. Assim a Nova Classe despersonaliza e desresponsabiliza a direção efetiva das sociedades ocidentais.

Após o fim da Guerra Fria e do desmoronamento do bloco soviético, a Nova Classe se acha de novo frente a toda uma série de conflitos (entre o capital e o trabalho, entre a igualdade e a liberdade, entre o público e o privado) que durante meio século ela tratou de externalizar. Paralelamente, sua ineficácia, seus desperdícios e sua contra-produtividade se tornam cada vez mais evidentes. O sistema tende a fechar-se sobre si mesmo mediante a cooptação de engrenagens intercambiáveis, enquanto os povos sentem indiferença ou cólera frente a uma elite gestora que já não fala a mesma linguagem que eles. Em todos os grandes temas sociais cresce o abismo entre governantes que repetem o mesmo discurso tecnocrático de manutenção da desordem estabelecida e governados que sofrem suas consequências em sua vida cotidiana - o espetáculo midiático se interpõe para desviar a atenção do mundo presente e lançá-la ao mundo representado. Na cúspide do sistema: o jargão tecnocrático, a tagarelice moralizante e o conforto das rendas; na base: a áspera confrontação com a realidade, a insistente pergunta pelo sentido e o desejo de valores compartilhados. 

O objetivo de satisfazer a aspiração popular (ou “populista”), que não sente mais que desprezo para com as elites e indiferença ante clivagens políticas tradicionais tornadas hoje obsoletas, implica em tornar mais autônomas as estruturas de base que correspondem aos modos de vida (nomoi) cotidianamente vivos. Para recriar de maneira mais convivencial condições de vida social que permitam ao imaginário coletivo formar representações específicas do mundo, longe do anonimato de massa, da mercantilização dos valores e da reificação das relações sociais, as comunidades devem estar em condições de decidir por si mesmas em todos os campos que as concernem, e seus membros participarem em todos os níveis da deliberação e da decisão democráticas. Não é mais o Estado-Providência, burocratizado e tecnocrático, que deve se descentralizar no sentido deste processo. As próprias comunidades são as que devem conceder ao Estado o poder de intervir naqueles domínios em que elas não são competentes.

III. 6. Contra o jacobinismo, pela Europa federal.

A primeira Guerra dos Trinta Anos, terminada com os tratados da Westfália, significou a consagração do Estado-Nação como o modo dominante de organização política. A Segunda Guerra dos Trinta Anos (1914-1945), pelo contrário, assinalou o começo de sua desagregação. O Estado-Nação, engendrado pela monarquia absoluta e pelo jacobinismo revolucionário, é hoje demasiado grande para administrar os problemas pequenos e demasiado pequeno para afrontar os grandes. Em um planeta mundializado, o futuro pertence aos grandes conjuntos de civilização capazes de se organizarem em espaços auto-centrados e se dotarem da suficiente força para resistir à influência dos outros. Assim, frente aos Estados Unidos e às novas civilizações emergentes, a Europa é chamada a construir-se sobre uma base federal que reconheça a autonomia de todos os seus componentes e organizar a cooperação entre as regiões e as nações a constituem. A civilização europeia se construirá sobre a soma, e não sobre a negação, de suas culturas históricas, permitindo assim a todos seus habitantes tomarem plena consciência de suas origens comuns. O princípio da subsidiariedade deve ser a pedra de toque desta Europa: em todos os níveis, a autoridade inferior não delega seu poder à autoridade superior além dos terrenos que escapam à sua competência.

Contra a tradição centralizadora, que confisca todos os poderes a um só nível; contra a Europa burocrática e tecnocrática, que consagra os abandonos de soberania sem remetê-los a um nível superior; contra uma Europa reduzida a espaço unificado de livre comércio; contra a “Europa das nações”, simples soma de egoísmos nacionais que não nos previne contra um retorno das guerras estrangeiras; contra uma “nação europeia”, que não seria mais que uma projeção ampliada do Estado-Nação jacobino, a Europa (ocidental, central e oriental) deve reorganizar-se a partir da base até o topo, e os Estados existentes deverão ir federalizando-se interiormente para assim melhor se federalizarem exteriormente, em uma pluralidade de estatutos particulares matizada por um estatuto comum. Cada nível de associação deve ter sua função e sua dignidade próprias, não derivadas da instância superior, mas baseadas na vontade e no consentimento de todos os que nele participam. Assim, na cúspide do edifício só hão de chegar as decisões relativas ao conjunto dos povos e comunidades federados: diplomacia, exército, grandes decisões econômicas, afinação das normas jurídicas fundamentais, proteção do meio ambiente, etc. A integração europeia é igualmente necessária em determinados campos da investigação, da indústria e das novas tecnologias de comunicação. No que diz respeito à moeda única, ela deve ser administrada por um Banco Central submetido ao poder político europeu.

III. 7. Contra a despolitização, pelo reforço da democracia.

A democracia não apareceu com a Revolução de 1789, mas constitui uma tradição constante na Europa desde a cidade grega e das antigas “liberdades” germânicas. A democracia não se reduz nem às antigas “democracias populares” dos países do Leste nem à democracia parlamentar liberal hoje dominante nos países ocidentais. Por democracia não designa nem o regime de partidos nem tampouco o corpus de procedimentos do Estado liberal de direito, mas antes de tudo o regime onde o povo é soberano. Não é a discussão perpétua, mas a decisão visando o bem comum. O povo pode delegar sua soberania aos dirigentes que designa, mas não abandoná-la em proveito destes. A lei da maioria, depreendida do voto, não significa considerar que a verdade procede do maior número: não é mais que uma técnica que permite assegurar ao máximo a concordância de visão entre o povo e seus dirigentes. A democracia é, finalmente, o regime mais capaz para suportar o pluralismo da sociedade: resolução pacífica dos conflitos de idéias e relações não coercitivas entre a maioria e a minoria, onde a liberdade de expressão das minorias se deduz de sua possibilidade de ser a maioria amanhã.

Na democracia, onde o povo é o sujeito do poder constituinte, o princípio fundamental é o da igualdade política. Este princípio é distinto do da igualdade em direito de todos os homens, que não pode dar origem a nenhuma forma de governo (a igualdade comum a todos os homens é uma igualdade apolítica, pois carece do corolário de uma desigualdade possível). A igualdade democrática não é um princípio antropológico (ela não nos diz nada acerca da natureza do homem), não pretende que todos os homens devem ser naturalmente iguais, mas somente que todos os cidadãos são politicamente iguais, porque todos pertencem por igual à mesma polities. É, pois, uma igualdade substancial, fundada sobre o pertencimento. Como todo princípio político, implica a possibilidade de uma distinção, neste caso, entre cidadãos e não-cidadãos. A noção essencial da democracia não é nem o indivíduo nem a humanidade, mas o conjunto dos cidadãos politicamente reunidos como povo. A democracia é o regime que, situando no povo a fonte da legitimidade do poder, se esforça por levar a cabo o melhor possível a identidade de governantes e de governados: a diferença objetiva, existencial, entre uns e outros, nunca pode ser uma diferença qualitativa. Essa identidade é a expressão política da identidade do povo, que, mediante a eleição de seus governantes, adquire a possibilidade de fazer-se politicamente presente a si mesmo. A democracia implica, pois, um povo capaz de atuar politicamente na esfera da vida pública. O abstencionismo, o retraimento à vida privada, retira todo seu sentido.

A democracia está hoje ameaçada por toda uma série de desvios e de patologias: crise de representação, intercambialidade dos programas políticas, a não-consulta ao povo para as grandes decisões que afetam sua existência, corrupção e tecnocratização, desqualificação dos partidos, tornados máquinas de se fazer eleger e cujos dirigentes só são selecionados por sua capacidade para se fazerem escolher, despolitização sob o efeito da dupla polaridade moral-economia, preponderância de lobbies que defendem seus interesses particulares contra o interesse geral, etc. A isto se acrescenta o fato de que hoje saímos já da problemática política moderna: todos os partidos são mais ou menos reformistas, todos os governos são mais ou menos impotentes. A "tomada do poder" no sentido leninista do termo já não conduz a nada. No universo das redes, a revolta é possível, não a revolução.

Retornar ao espírito democrático implica não se contentar tão somente com a democracia representativa, mas tentar colocar em prática em todos os níveis uma verdadeira democracia participativa ("o que afeta a todos deve ser assunto de todos"). Para isso deve-se desestatizar a política, criando espaços cidadãos na base: cada cidadão deve ser ator do interesse geral, cada bem comum deve ser indicado e defendido como
tal dentro da perspectiva de uma ordem política concreta. O cliente-consumidor, o espectador passivo e o indivíduo reduzido a mero possuidor de direitos privados são figuras que só poderão ser superadas através de uma forma radicalmente descentralizada de democracia de base, que dê a cada um um papel na eleição e no domínio de seu destino. O procedimento do referendo poderia ser igualmente reativado pela iniciativa popular. Contra a onipotência do dinheiro, única autoridade suprema da sociedade moderna, deve-se impor o máximo possível a separação da riqueza e do poder político.

III. 8. Contra o produtivismo, pelo compartilhamento do trabalho.

O trabalho (do latim tripalium, instrumento de tortura) nunca ocupou um lugar central nas sociedades arcaicas ou tradicionais, e incluídas aquelas que jamais conheceram a escravidão. Na medida em que é uma resposta às coações da necessidade, o trabalho não pode de modo algum realizar nossa liberdade - ao contrário da obra, em que uma pessoa expressa a realização de si mesmo. É a modernidade, com sua lógica produtivista de mobilização total dos recursos, que fez com que o trabalho seja ao mesmo tempo um valor em si, a principal instância de socialização e uma forma ilusória da emancipação e da autonomia dos indivíduos ("a liberdade pelo trabalho"). Funcional, racional e monetarizado, este trabalho "heterônomo", que os indivíduos realizam mais frequentemente por submissão que por vocação, só tem sentido sob um ponto de vista de intercâmbio mercantil e se inscreve sempre em um cálculo contável. A produção serve para alimentar um consumo que a ideologia das necessidades oferece, de fato, como compensação do tempo que se perdeu para produzir. As antigas tarefas de proximidade foram assim progressivamente monetarizadas, empurrando os homens a trabalhar para outros com o fim de pagar a quem trabalha para eles. O sentido da gratuidade e da reciprocidade se apagou progressivamente em um mundo onde nada tem mais valor, mas onde tudo tem seu preço (isto é, onde o que não pode ser quantificado em termos pecuniários é considerado negligenciável ou não existente). E assim ocorre com demasiada frequência que na sociedade salarial se deve perder seu tempo para ganhar a vida.

A novidade é que, graças às novas tecnologias, hoje produzimos cada vez mais bens e serviços com cada vez menos homens. Estes ganhos de produtividade fazem com que o desemprego e a precariedade se convertam hoje em fenômenos estruturais, e não mais conjunturais. E, por outro lado, eles favorecem a lógica do capital, que se serve do desemprego e da deslocalização para reduzir a capacidade de negociação dos assalariados. Daí resulta que o homem já não mais é somente explorado, mas se converte em algo cada vez mais inútil: a exclusão substitui a alienação em um mundo globalmente sempre mais rico, mas onde há cada vez mais pobres (morte da teoria clássica da "diferenciação" (6)). Como o retorno a uma situação de pleno emprego se fez impossível, a via de solução mais adequada deveria consistir em romper com a lógica do produtivismo e começar a pensar, a partir de agora, como sair progressivamente desta era em que o trabalho assalariado se converteu no modo fundamental de inserção na vida social.

A diminuição do tempo de trabalho é um dado secular que torna obsoleto o imperativo bíblico ("ganharás o pão com o suor do seu rosto"). O compartilhamento e a redução negociada do tempo de trabalho devem ser encorajados, pensando-se fórmulas ágeis (anualização, descansos sabáticos, estágios de formação, etc.) para todas as tarefas "heterônomas": trabalhar menos para trabalhar melhor e para liberar tempo para viver. Por outro lado, em uma sociedade como a atual, onde a oferta mercantil se estende sem cessar enquanto aumenta o número daqueles que vêem reduzido ou estancado o seu poder aquisitivo, se faz necessário dissociar progressivamente trabalho e renda, estudando a possibilidade de instaurar uma renda geral de existência ou uma renda mínima de cidadania, fornecida sem contrapartidas a todos os cidadãos desde seu
nascimento até a sua morte.

III. 9. Contra a fuga financeira ao adiante, por uma economia a serviço do vivo.

Aristóteles distinguia entre a "oeconomia", que aspira a satisfazer as necessidades dos homens, e a "crematística", cuja única finalidade é a produção, a circulação e a apropriação de dinheiro. O capitalismo industrial foi pouco a pouco dominado por um capitalismo financeiro cujo propósito é organizar a máxima rentabilidade a curto prazo em detrimento do estado real das economias nacionais e do interesse a longo prazo dos povos. Esta metamorfose se traduziu na desmaterialização dos saldos empresariais, a titularização do crédito, o desencadeamento da especulação, a emissão anárquica de obrigações não fiáveis, o endividamento dos particulares, das empresas e das nações, o papel de primeiro plano que jogam os investidores internacionais e os fundos de investimento especulativos, etc. A ubiquidade dos capitais permite aos mercados financeiros impor sua lei aos políticos. A economia real fica submetida à incerteza e à precariedade, enquanto uma imensa bolha financeira mundial explode regularmente por bolsas regionais, dando a luz a sacudidas que se propagam por todo o sistema.

Por outro lado, o pensamento econômico se petrificou em dogmas alimentados por formalismos matemáticos que aspiram ao título de ciência mediante a exclusão por princípio de todo elemento não quantificável. Assim, os índices macroeconômicos (PIB, PNB, taxa de crescimento, etc.) não indicam nada sobre o estado real de uma sociedade: as catástrofes, os acidentes ou as epidemias são contabilizados na contabilidade como valor positivo, pois aumentam a atividade econômica.

Frente a uma riqueza arrogante que não pensa nada além de crescer especulando sobre as desigualdades e os sofrimentos que engendra, se deve voltar a colocar a economia a serviço do homem dando prioridade às necessidades reais dos indivíduos e sua qualidade de vida, instaurando em escala internacional uma taxa sobre os movimentos de capital e anulando a dívida do Terceiro Mundo ao mesmo tempo em que se revisa
drasticamente o sistema de "desenvolvimento": prioridade à auto-suficiência e para a satisfação dos mercados interiores, ruptura com o sistema da divisão internacional de trabalho, emancipação das economias locais vis-à-vis aos ditados do Banco Mundial e do FMI, adoção de regras sociais e ambientais que enquadrem os intercâmbios internacionais. Finalmente, convêm sair progressivamente do duplo beco sem saída que representam uma economia dirigida ineficaz e uma economia mercantil hipercompetitiva, reforçando o terceiro setor (associações, sociedades mútuas, cooperativas) e organizações autônomas de ajuda mútua (sistemas de intercâmbios locais), baseados na responsabilidade compartilhada, na livre adesão e na não-lucratividade.

III. 10. Contra o gigantismo, pelas comunidades locais.

A tendência ao gigantismo e à concentração produz indivíduos isolados, e por isso vulneráveis e desprotegidos. A exclusão generalizada e a insegurança social são a conseqüência lógica deste sistema, que arrasou todas as instâncias de reciprocidade e de solidariedade. Frente às antigas pirâmides verticais de dominação, que já não inspiram confiança, e frente às burocracias, que cada vez atingem mais rapidamente seu nível de incompetência, hoje entramos em um mundo fluido de redes cooperativas. A antiga oposição entre uma sociedade civil homogênea e um Estado-Providência monopolista está sendo superada pouco a pouco pela aparição em cena de um tecido de organizações criadoras de direitos e de coletividades deliberativas e operativas. Estas comunidades se formam em todos os níveis da vida social: desde a família até o bairro, desde a aldeia até a cidade, desde a profissão até o terreno do ócio, etc. É somente nesta escala local onde se pode recriar uma existência à altura dos homens, não fragmentada, liberada dos opressivos ditados da velocidade, da mobilidade e do rendimento, apoiada em valores compartilhados e fundamentalmente orientada ao bem comum. A solidariedade não pode seguir sendo a conseqüência de uma igualdade anônima (mal) garantida pelo Estado-Providência, mas deve ser o resultado de uma reciprocidade levada a cabo a partir da base por coletividades orgânicas que tomem a seu encargo as funções de proteção, partilha e equidade. Só pessoas responsáveis em comunidades responsáveis podem estabelecer uma justiça social que não seja sinônimo de assistência.

O retorno ao local, que eventualmente pode ser facilitado pelo tele-trabalho em comum, tem por natureza devolver às famílias sua vocação (também natural) de serem instâncias de educação, socialização e de ajuda mútua, permitindo assim a interiorização de regras sociais hoje impostas exclusivamente a partir do exterior. A revitalização das comunidades locais deve também andar lado a lado com um renascimento das tradições populares, as quais a modernidade fez declinar ou, ainda pior, mercantilizou. As tradições, que cultivam a convivencialidade e o sentido da festa, imprimem ritmos à vida e proporcionam pontos de referência. Celebrando tanto as idades e quanto as estações, tanto os grandes momentos da existência e quanto os períodos do ano, elas alimentam o imaginário simbólico e reforçam o laço social. Elas não estão jamais congeladas, mas em constante renovação.

III. 11. Contra a cidade-formigueiro, por cidades de dimensão humana.

O urbanismo sofre faz cinquenta anos da ditadura da fealdade, do sem-sentido ou do curto prazo: cidades-dormitório sem horizonte, zonas residenciais sem alma, subúrbios cinzas que servem como aterros municipais, intermináveis centros comerciais que desfiguram a entrada das cidades, proliferação de "não-lugares" anônimos concebidos para usuários com pressa, centros urbanos exclusivamente dedicados ao comércios e despojados de sua vida tradicional (cafés, universidades, teatros, cinemas, praças, etc.), justaposição de imóveis sem um estilo comum, bairros deteriorados e entregues ao abandono entre dois remendos ou, ao contrário, vigiados permanentemente por guardas e câmeras-espiões, desertificação rural e superpopulação urbana.

Já não se constroem habitats para viver, mas para sobreviver em um entorno urbano desfigurado pela lei de rentabilidade máxima e de funcionalidade racional. Ora, um lugar é antes de tudo uma ligação: trabalhar, circular e habitar não são funções que podem ser isoladas, mas atos complexos que afetam a totalidade da vida social. 

A cidade deve ser repensada como o lugar de encontro de todas nossas potencialidades, o labirinto de nossas paixões e de nossas ações, ao invés de como a expressão geométrica e fria da racionalidade planificadora. Arquitetura e urbanismo se inscrevem, por outro lado, em uma história e uma geografia singulares, e devem ser seu reflexo. Isto implica a revalorização de um urbanismo enraizado e harmonioso, a reabilitação dos estilos regionais, o desenvolvimento dos povoados e das pequenas cidades em forma de redes em torno das capitais regionais, a promoção das zonas rurais, a destruição progressiva das cidades-dormitório e das concentrações estritamente comerciais, a eliminação de uma publicidade onipresente, assim como a diversificação dos modos de transporte: abolição da ditadura do automóvel individual, transporte de
mercadorias por ferrovias, revitalização do transporte coletivo, consideração aos imperativos ecológicos.

III. 12. Contra a técnica demoníaca, por uma ecologia integral.

Em um mundo finito, não é possível que todas as curvas sejam perpetuamente ascendentes: tanto os recursos como o crescimento encontram necessariamente seus limites. A rápida generalização à escala planetária do nível ocidental de produção e consumo desembocará, em poucos decênios, no esgotamento da quase totalidade dos recursos naturais disponíveis e em uma série de transtornos climáticos e atmosféricos de imprevisíveis conseqüências para a espécie humana. A desfiguração da natureza, o empobrecimento exponencial da biodiversidade, a alienação do homem pela máquina e a degradação de nossa alimentação estão demonstrando que "sempre mais" não é sinônimo de "sempre melhor". Esta constatação, que rompe sem equívocos com a ideologia do progresso e com qualquer outra concepção monolinear da História, foi muito justamente formulada pelos movimentos ecologistas. Ela nos obriga a tomar a consciência de nossas responsabilidades no que diz respeito aos mundos orgânicos e inorgânicos em cujo seio evoluímos.

A "megamáquina" não conhece nada além do princípio da rentabilidade. Deve-se opor a ele o princípio de responsabilidade, que ordena às gerações presentes atuar de maneira que as gerações futuras não conheçam um mundo que não seja menos belo, menos rico e menos diverso que o que conhecemos. Do mesmo modo, deve-se reafirmar a primazia do ser sobre o ter. Além disso, a ecologia integral chama à superação do antropocentrismo moderno e à tomada de consciência de que o Homem e o Cosmos se copertencem. Esta transcendência imanente faz da natureza uma companheira, e não um adversário. Ela não apaga a especificidade humana, mas nega-lhe o lugar exclusivo que o outorgaram o cristianismo e o humanismo clássico. Frente à húbris econômica e frente ao prometeísmo técnico, opõe-se o sentido da medida e da busca da harmonia. É necessária uma articulação em escala mundial para estabelecer normas obrigatórias em matéria de preservação da biodiversidade - o homem tem deveres também para com os animais e vegetais - e de diminuição da poluição terrestre e atmosférica. As empresas ou as coletividades contaminantes devem pagar taxas proporcionais à sua quantidade de emissões negativas. Uma certa desindustrialização do setor agro-alimentício deveria favorecer a produção e o consumo local, ao mesmo que facilitaria a diversificação das fontes de fornecimento. Os sistemas que respeitam a renovação cíclica dos recursos naturais devem ser preservados no Terceiro Mundo e reimplantados prioritariamente nas sociedades "desenvolvidas".

III. 13. Pela liberdade de espírito e o retorno ao debate de idéias.

Incapaz de renovar-se, impotente e desiludido ante o fracasso de seu projeto, o declinante pensamento moderno está se metamorfoseando pouco a pouco em uma verdadeira polícia intelectual, cuja função é excomungar a todos aqueles que se afastem dos dogmas da ideologia dominante. Os antigos revolucionários "arrependidos" aderiram eles mesmos ao sistema estabelecido, conservando de seus antigos amores o gosto pelos purgamentos e pelos anátemas. Esta nova traição dos intelectuais se apoia na ditadura de uma opinião pública modelada pelos membros da mídia sobre o padrão da histeria purificadora, do sentimentalismo consolador ou da indignação seletiva. Em vez de intentar compreender o século que vem, se prefere agitar problemáticas obsoletas e reciclar argumentos que não são mais que meios para excluir ou desqualificar. Por
outro lado, a redução do político à mera gestão otimizada de um crescimento cada vez mais problemático exclui a opção de uma mudança radical da sociedade e, mesmo, simplesmente a possibilidade de uma discussão aberta sobre as finalidades da ação coletiva.

O debate democrático se vê assim reduzido ao nada: já não se discute, se denuncia; não se argumenta, se acusa; não se demonstra, se impõe. Todo pensamento, toda obra suspeita de "desvio" ou de "deriva" é acusa de simpatia consciente ou inconsciente para idéias apresentadas como repelentes. Incapazes de desenvolver um pensamento próprio ou de refutar o dos outros, os censores se aplicam agora também aos juízos de intenções. Este empobrecimento sem precedentes do espírito crítica é ainda mais agravado na França pelo egocentrismo parisiense, que reduz a alguns distritos da capital os círculos de meios frequentáveis. Tudo isto viso ao esquecimento das regras normais do debate. Se esquece que a liberdade de opinião, cuja desaparição se aceita hoje com indiferença, não admite, por princípio, exceção alguma. Por medo à decisão e por desprezo às aspirações do povo, hoje se prefere cultivar a ignorância das massas.

Para acabar com esta manta de chumbo, a Nova Direita preconiza um retorno ao pensamento crítico, ao mesmo tempo em que milita por uma total liberdade de expressão. Contra toda censura, contra o pensamento descartável e contra a futilidade das modas, a Nova Direita afirma mais que nunca a necessidade de um autêntico trabalho de pensamento. Militamos por um retorno ao debate de idéias, à margem das velhas divisões que obstaculizam as posições transversais e as novas sínteses. E fazemos uma convocação à frente comum dos espíritos livres frente aos herdeiros de Trissotin, de Tartufo e de Torquemada.

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1 - Literalmente, “grande noite”. Trata-se de um termo tradicional da esquerda revolucionária francesa para designar uma ruptura total com a situação precedente, um momento revolucionário em que tudo é possível.

2 - Forma específica de política organizativa. Em inglês, no original.

3 - Escola de juristas franceses da Idade Média.

4 - “Certa ou errada, minha nação”. Em inglês, no original.

5 - Literalmente, caldeirão em derretimento. Refere-se a uma situação de mistura especificamente étnica ou racial generalizada. Em inglês, no original.

6 - Teoria segundo a qual a incorporação de progresso técnico em um setor econômico, ao gerar ganhos de produtividade, gera também a transferência de ativos deste setor para outro.


Tradução: Lucas Rodrigues.