13/07/2011

A decadência da música

Sobre como o que se ouve pode espelhar a sociedade na qual se vive

Todos os livros de Hermann Hesse parecem trazer-nos sempre uma lição iluminada, que se destina a comportamentos tanto individuais como coletivos, sociais. Não para menos, recordo a figura de um amigo que sempre reagia com espanto quando soubera que alguém próximo ainda não o havia lido. Em “O jogo das contas de vidro”, que se passa em uma realidade semelhante à nossa, propõe-se que destino da humanidade viria a ser encaminhado, em tempos de crise, conforme dois grandes centros: a música e a matemática. A primeira, por ser uma notável expressão artística do povo; a segunda, por sua imutabilidade.

“Fui um homem que muito buscou e que ainda busca, mas já não o faz nas estrelas e ou livros, senão à escuta dos ensinamentos do próprio sangue” - Hermann Hesse

Oswald Spengler costumava se referir à decadência como já oriunda de épocas distantes. Se o tomarmos como certo, não se torna muito difícil perceber que, assim sendo, estamos nos encaminhando para aquilo que Jaspers conceituou como situação-limite.

Toda exaltação que se faz a tal dita Democracia, esta expansiva forma de governo, é apenas um meio de se camuflar a forma com que nos aproximamos de tal situação-limite. É cobrir os lixões com tapetes belos. É levantar outdoors entre as estradas que conduzem à Cidade Maravilhosa, de forma com que turistas encantados não se notem suas favelas.

Foquemos na música.

Confesso que não tenho costume de acompanhar os programas televisivos aos domingos. Primeiro, pela própria vontade, uma vez que acredito ter afazeres mais importantes; segundo, por falta de opções. Mas foi em um desses domingos, durante a visita a um familiar, que tomei contato com tal “sucesso do momento”.

A cena: quatro jovens alcoolizados e sem camisa, postos ao lado de um carro. Deste, ecoa uma canção em ritmo de forró: “Posso não, quero não... Posso sim, quero sim”. E, no entanto, era apenas mais um dos tantos “fenômenos” considerados hoje como “geniais”.

Por um momento, pensei em tempos que não vivi, quando um Noel Guarani afirmava ser poeta sem catecismo, criando sons de liberdade, dos cavalos às cheias do rio. Pensei nos tempos em que o samba era mais melodia que percussão, quando expressava as vivências de um boêmio. Pensei nos tempos em que a música de raiz retratava a saudade de quem deixa o campo.

O romantismo, o espírito de sacrifício, a revolução, as vidas de tempestades e paixões, a sensibilidade, a vontade. Tudo isto repousa quase ao relento, em questão musical na atualidade. Recordemos a um Wagner, músico completo, que, composições à parte, fora escritor e responsável pelos desenhos de cenários e figurinos de suas belíssimas óperas, e pensemos no contraste com a nossa época.

No momento, o que rege nossa sociedade são os “Baby, baby, baby, uh!” de um pequeno garoto, gemidos e sussurros das tantas cantoras de músicas pornográficas, ou um “Pará pará pará...” de um funkeiro qualquer. São as Lady Gaga com vestidos feitos de carne crua, Madonnas que embora próximas da velhice, dão-se ao luxo de estar com rapazes de vinte anos, e Aguileras e todas suas referências às corporações que dominam o mundo, e, por conseqüência, a indústria da música.

Há não muito, os cadáveres de Dresden foram retratados na Sapucaí. Neste ano, o injustificável sacrifício de Abraão virou tema de escola. Também Bach foi regido com batuques ao fundo. E tudo vira festa.

Do Balé, que expressa o infinito concentrado no corpo humano, a beleza e a magia, chegamos à promoção de danças de rua que se misturam a ritmos antifônicos, sempre com um quê de malandragem e agressividade.

De língua compreendida por todos os homens, conforme a definição de um grande filósofo prussiano, a música futuramente haverá de se transformar (ou ser transformada) em um alicerce de incontáveis problemas de educação e até segurança pública.

Noto multidões de jovens que se deixam levar por instintos acionados conforte batidas repulsivas e idiotizantes. A degradação pseudo-artística precede a moral, física e espiritual. Verdadeiros exércitos joviais cujos idealismos e rebeldias são administrados conforme tentáculos alienígenas: não se vêem a lutar por povo, comunidade, região, nacionalidade ou origem étnica, conceitos estes já ultrapassados – Altmodisch, em bom alemão - senão por seus ídolos da música moderna.

Fato é que tal como com a literatura, a música foi e tem sido propositadamente distorcida. Um simples detalhe? Ou o sistema está consciente de que uma boa mensagem musical pode trazer os indicativos para um despertar?

Penso por um instante: e se ao invés de tocar o hino nacional brasileiro em ritmo de samba, fossemos orientados a ouvir atentamente o que ele diz?

Penso ainda: E se tivéssemos a sinceridade de um Beethoven entre nós, uma sinceridade flamejante, capaz de, em um só golpe, transformar em cinzas os embustes ocos e pseudo-artísticos da nossa era?

Somente assim é que um Nietzsche voltaria a repetir sua sentença imortal: “Ohne Musik wäre das Leben ein Irrtum” – “Sem a música, a vida teria sido um erro”. Admita-se ou não, a arte sempre será o espelho do Khronos em que se vive. Com a música, não poderia ser diferente.

A forma com que esta expressão sublime vem sendo conduzida só nos leva a um caminho: à decadência per se.