por Claudio Mutti
(2015)
A "Contra-Iniciação" e seus Agentes
A melhor maneira de esclarecer preliminarmente o conceito guenoniano de "contra-iniciação" é apoiando-nos nos trechos mais significativos que o próprio René Guénon dedicou a este assunto:
"O termo 'contra-iniciação' - lemos no Reino da Quantidade - é verdadeiramente aquele que melhor convém para designar aquilo a que se referem, em conjunto e em diferentes níveis (...) os agentes humanos por cujo intermédio toma corpo a ação anti-tradicional (...). A 'contra-iniciação' (...) não é uma mera falsificação ilusória, mas algo de absolutamente real dentro de sua própria ordem, como demonstra perfeitamente a ação que ela exerce efetivamente; no mínimo não é uma falsificação para além do sentido em que imita necessariamente a iniciação como uma uma sombra invertida dela, apesar de que sua verdadeira intenção não é imitá-la, mas opor-se a ela. Por outro lado, uma tal pretensão é forçosamente vã, já que o domínio metafísico e espiritual, que está para além de todas as oposições, lhe está vedado; pode apenas limitar-se a ignorá-lo ou então a negá-lo, na absoluta impossibilidade de ultrapassar o "mundo intermediário", quer dizer, o âmbito psíquico, que é ademais, e em todos os sentidos o campo de influência privilegiado de Satanás, tanto na ordem humana quanto na ordem cósmica; mas não por isso desaparece a intenção ou o compromisso que implica seguir a trajetória inversa da iniciação. (...) Na medida em que ela não pode conduzir os seres até os estados ‘supra-humanos’, como a iniciação, nem limitar-se ao mero âmbito do humano, a ‘contra-iniciação’ os arrasta infalivelmente em direção ao ‘infra-humano’, sendo aqui precisamente onde se localiza o que lhe resta de poder efetivo."[1]
Em relação a este assunto, revestem-se de uma importância particular as cartas que René Guénon escreveu para Vasile Lovinescu (1905-1984) desde 9 de julho de 1934 até 28 de janeiro de 1940[2], cartas que pude recuperar em Bucareste há vinte e três anos atrás. Não obstante, ainda não foram encontradas as cartas enviadas por Lovinescu para Guénon, de modo que os fatos a que Guénon se refere não são sempre perfeitamente compreensíveis; mas, apesar disso, este epistolário guenoniano se torna muito valioso, pois em certa medida nos ilustra as modalidades operativas das forças contra-iniciáticas e nos introduz em situações históricas que parecem demonstrar as seguintes declarações do Reino da Quantidade: "Verdadeiramente notáveis são os esforços que a 'contra-iniciação' dedica à introdução de seus agentes nas organizações 'pseudo-iniciáticas' os quais tem a tarefa de 'inspirar' sem seu conhecimento os membros ordinários e, inclusive, com bastante frequência, os seus chefes aparentes, (...) as organizações 'pseudo-iniciáticas' são sem dúvida alguma as que mais atraem a atenção da 'contra-iniciação', fazendo dela objeto idôneo de seus esforços, pelo próprio fato de que a obra que essa se propõe seja sobretudo anti-tradicional."[3]
Particularmente, na mencionada correspondência com Lovinescu estão explicitamente identificados como agentes da contra-iniciação alguns personagens que desempenharam diferentes papéis na cena histórica do século XX.
Em uma carta datada de 24 de fevereiro de 1936, por exemplo, são citados alguns como o Aga Khan III (1877-1957), que no ano seguinte se tornou presidente da Assembleia Geral da Sociedade das Nações; Henry Deterding (1866-1939), o “Napoleão do petróleo”, presidente da Royal Dutch - Shell Oil Company, o que lhe valeu o título de Sir por ter contribuído com a vitória da Entente graças ao fornecimento de combustível; David Lloyd George (1863-1945), patrocinador da intervenção britânica na Primeira Guerra Mundial e responsável (com Wilson, Clemenceau e Nitti) do ordenamento do mundo pós-guerra; também Sir Phillip Sassoon (1888-1939), expoente de uma conspícua família hebreia na qual a linhagem dos Sassoon estava unida a um ramo dos Rothschild; o primeiro-ministro grego Eleftherios Venizelos (1864-1936), que morreu em Paris no mesmo ano de 1936; o primeiro-ministro francês Georges Benjamin Clemenceau (1841-1929), inimigo feroz da Alemanha, que foi um dos artífices do Tratado de Versalhes; Cornelius Herz (1845-1898), empresário franco-americano de origem judia e protagonista do escândalo do Panamá; Edouard Herriot (1872-1957), líder do Partido Radical Francês, três vezes presidente do conselho na Terceira República, candidato ao Prêmio Nobel da Paz em 1929; o Príncipe Alberto I de Mônaco (1848-1922), em relação ao qual Guénon ressalta sua conexão com Basil Zaharoff (1849-1936).
E é justamente Basil Zaharoff, melhor dizendo, Sir Basil Zaharoff, o expoente da contra-iniciação que com maior frequência é citado, e por muito tempo, na mencionada correspondência de vários anos mantida entre Guénon e Lovinescu.
1913: O Encontro Fracassado de Guénon com Zaharoff
No capítulo do “Teosofismo”, intitulado "A Questão dos Mahatmas" -- onde os Mahatmas são os supostos "Mestres" com os quais se relaciona a Sociedade Teosófica -- Guénon nos conta um episódio de 1913 que o envolveu pessoalmente, quando foi lhe proposto pôr-se em contato com um destes "Mestres" por conta de assunto que pouco tinha a ver com o Teosofismo.
"Como isto não era trabalhoso, aceitamos com gosto, ainda que sem criar ilusões a respeito dos resultados. No dia fixado para o encontro, que não devia se realizar ‘astralmente’, se apresentou apenas um membro influente da Sociedade Teosófica, que procedente de Londres onde se encontraria o 'Mestre', alegou que este não pôde acompanhá-lo em viagem, e ofereceu um pretexto qualquer para desculpar seu descaso. Desde então não se tratou mais disso, apenas sabemos que a correspondência dirigida ao 'Mestre' era interceptada pela Madame Besant. Certamente, isso não prova que o 'Mestre’ não existisse, assim cuidaremos muito bem de deduzir a mínima conclusão deste fato."[4]
Em sua biografia sobre René Guénon, Paul Chacornac (1884-1964) retorna a este episódio e escreve o seguinte: “Considerando que os diversos protagonistas desta história desapareceram, pois, não há nenhum inconveniente em revelar que o assunto em questão estava ligado à constituição da Albânia como Estado independente e a candidatura do Príncipe de Wied ao trono do novo Estado, candidatura a qual se tratava de tornar favoráveis as organizações sufistas, à época muito poderosas no país”[4]. Essa anedota - observa Chacornac - mostra que nessa época havia pessoas que consideravam que Guénon tinha possibilidades de contato com "ambientes geralmente fechados aos ocidentais e quiçá suficiente autoridade para que uma opinião que viesse dele pudesse ser levada em consideração"[5].
Posteriormente, uma luz é lançada sobre este momento graças a Jean Reyor, alcunha Marcel Clavelle (1905-1988), em um manuscrito privado de 1963 [6], o qual mais tarde Marie-France James intitulou de Documento Confidencial Inédito [7]: "O famoso 'Mestre R.' - escreve Reyor - que os teosofistas consideram como a reencarnação do conde de Saint-Germain e que deveria se encontrar com Guénon a propósito da candidatura do príncipe de Wied para o trono da Albânia, não era outro que sir Basil Zaharoff, o riquíssimo 'fabricante de armas' e agente importante do 'Intelligence Service', amigo íntimo da rainha Maria da Romênia, tia do príncipe de Wied. O 'membro influente da Sociedade Teosófica’ ao qual se alude na mesma passagem era Charles Blech, à época presidente da seção francesa da tal Sociedade. Alguns anos mais tarde se ofereceria a Guénon uma soma, muito atraente para a época, se ele consentisse em não publicar seu livro sobre o Teosofismo”[9].
Que Basil Zaharoff fosse apresentado pelos teósofos como uma reencarnação do conde de Saint-Germain o afirma implicitamente o próprio Guénon: "Acabo de olhar um retrato de Bacon (...) - escreve a Lovinescu com data de 25 de novembro de 1935 - que os teosofistas publicaram intencionalmente, em relação precisamente com a L.C.C. (Liberal Catholic Church); parece, muito curiosamente, com o de sir B.Z.! - Há certamente por baixo de tudo isso algumas manobras bem tenebrosas, e você não se engana ao considerar que essa atenção posta sobre a Romênia tenha algo de inquietante..."[10]
Basil Zaharoff
Basil Zaharoff nasceu em 6 de outubro de 1849 em Mugla, entre as montanhas de Anatólia, proveniente de uma família que levava o sobrenome oficial de Zacharios ou Zacharias, e lhe puseram o nome de Basileios (Vasilios). De acordo com alguns de seus biógrafos, tratar-se-ia de "sobrenomes helenizados, cuja forma original teria sido Sahar ou talvez Zohar: seriam nomes hebraicos autênticos, sobretudo porque o nome de Sahar é bastante comum como sobrenome hebreu e, se a família emigrada para a Rússia começou a se chamar Zaharoff, isso equivaleria a 'Sahar' mais 'off', desinência russa que corresponde, certamente, a uma nova necessidade” [11]. A carreira de Vasilios Zacharias começou em 14 de outubro de 1877, quando induziu o governo turco à compra de uma grande quantidade de armas da companhia inglesa Nordenfeldt, graças às suas relações com um ministro competente "o qual tinha conhecido em certos círculos e em casas de jogo"[12], disse pudicamente seu biógrafo inglês Robert Neumann. Em seguida, Zaharoff conseguiu vender armas para todos os Estados em conflito: desde a Rússia e Japão até a Argentina, Chile, Bolívia e Paraguai.
Disso Ezra Pound se inspirou para o Canto XXXVIII, no qual Zaharoff aparece sob o pseudônimo Metevsky: "disse ele: (...) - os outros conseguiram mais munições (...) - Não comprem, nós vos forneceremos. - E cruzou a fronteira - e disse aos outros – Aqueles de lá têm mais munições. Não comprem, nós vos forneceremos. Vickers fez negócios de ouro, importou ouro na Inglaterra – aumentou a reserva de ouro"[13].
"Durante a Guerra dos Bálcãs - escreveu em 1912 o diário francês 'Crapouillot' - Zaharoff armou os dois lados. Apoiou a Grécia contra a Turquia, a Turquia contra a Sérvia e, um ano mais tarde, a Sérvia contra a Áustria”[14].
Em 1913, na época da reunião frustrada com Guénon, a estrela de Zaharoff estava no seu apogeu. Na França, o comerciante de canhões tinha conseguido o controle da Union Parisienne des Banques, historicamente associada com a indústria pesada, e tinha tomado posse do periódico "L’Excelsior". Nesse mesmo ano foi premiado com a Légion d'Honneur por méritos filantrópicos.
No Canto XVIII Pound diz: "E Metevsky, 'o conhecido filantropo', - Ou melhor, segundo os jornais, - ‘o financista mais conhecido como filantropo’”.
O Príncipe de Wied e a Rainha da Romênia
O príncipe Guilherme de Wied, a quem Zaharoff tinha fornecido a própria renda, foi nomeado rei da Albânia em 28 de novembro de 1913 pelo Conselho de Embaixadores das Grandes Potências (Grã-Bretanha, França, Itália, Alemanha, Áustria-Hungria, Rússia). Guilherme foi um príncipe renano de confissão protestante, cuja candidatura apoiada pela Áustria-Hungria prevaleceu sobre a de Fuad do Egito, respaldado pela Itália. O rei eleito chegou a Durrés em 7 de março de 1914, mas seis meses mais tarde, em 3 de setembro de 1914, teve que voltar para a Alemanha, porque depois de sua negativa de alinhar a Albânia com o lado dos impérios centrais, Viena suspende as ajudas que permitiam o novo Estado balcânico fazer frente aos inimigos internos e externos.
Jean Reyor se equivoca quando escreve que a rainha Maria da Romênia (1875-1938) era tia do príncipe Guilherme de Wied, rei da Albânia. A tia deste último, ao contrário, foi a soberana anterior, Isabel da Romênia (1843-1916), que era irmã do pai de Guilherme (que se chamava Guilherme, como o filho). Isabel de Wied (conhecida no mundo das letras sob o pseudônimo de Carmen Sylva) tinha subido ao trono de Bucareste em 1881, quando seu marido, o príncipe Carlos de Hohenzollern-Sigmaringen, se tornou rei da Romênia com o nome de Carlos I. Por outro lado, em 1913 Maria (Maria da Saxônia-Coburgo-Gotha) não era, contudo, rainha da Romênia; ela se tornará em outubro de 1914, ao casar-se com Fernando I (1865-1927) e se manterá no cargo até 20 de julho de 1927. Posteriormente aderiu à fé Baha'i, na qual afirmou ter descoberto o "verdadeiro espírito de Cristo, tantas vezes negado e incompreendido"[16].
Zaharoff em Bucareste em 1922
Com a rainha Maria, Zaharoff certamente teve alguma ligação em fins de 1922, quando chegou a Bucareste para conceder um empréstimo ao Estado romeno. "Para ele - escreve o biógrafo inglês mencionado – eram apenas três milhões de libras esterlinas, para a outra parte, pelo contrário, eram dois bilhões delas (...) Contemporaneamente, a companhia Vickers [a gigante indústria de armamentos controlada por Zaharoff] se envolve com a Rescita, a maior empresa da indústria pesada na Romênia”[17].
A rainha Maria, cuja filha maior, outra Isabel (1894-1956), há um ano já era esposa de Jorge II da Grécia (1890-1947), pediu a Zaharoff que interviesse a favor da família real grega, porque temia que o novo soberano também tivesse que seguir a via do exílio, como seu pai Constantino I (1868-1923).
Se alguém tinha voz na Grécia, este era Zaharoff, quem, segundo o “Times”, tinha gasto pelo menos 50 milhões de libras esterlinas para envolver a Grécia na guerra do lado da Tríplice Entente. Como Constantino I da Grécia (1868-1923) era cunhado do Kaiser, a tarefa não era fácil; mas Zaharoff tinha fundado em Atenas uma agência de notícias que, difundindo informações favoráveis à Tríplice Entente, contribuiu para a derrubada do soberano; em seguida se produziu o retorno de Eleftherios Venizelos (1864-1936) e a entrada da Grécia no conflito. Assim foi como Zaharoff mereceu ser enobrecido por Sua Majestade Britânica e se tornou o Sir Zaharoff.
Um papel similar ao desempenhado por Zaharoff em Atenas exerceu a rainha Maria em Bucareste: a Romênia, que até 1916 tinha fornecido petróleo para a Áustria e a Alemanha, entrou na guerra ao lado da Entente por decisão da nova soberana mais que pela vontade de Fernando, que, como escreveu A.L. Easterman, "é um homem tranquilo, pacífico e com um caráter pouco significativo...não é ele, mas Maria quem governa a Romênia"[18].
Bô Yin Râ
Guénon retoma o assunto de sua reunião frustrada com Zaharoff na correspondência com Vasile Lovinescu.
Na primeira metade dos anos trinta, este último escrevia em várias revistas romenas, manifestando interesse pelas tradições orientais e por algumas figuras do esoterismo. Em particular, chamou-lhe a atenção o novelista de Praga, Gustav Meyrink (1868-1932), assim como o escritor ocultista alemão Bô Yin Râ, alcunha Joseph Anton Schneiderfranken (1876-1943), suposto enviado da denominada "Grande Loja Branca" (assim era chamada a central do teosofismo) e fundador de uma organização denominada "Grande Oriente de Patmos".
Tomando conhecimento, em 1932, do livro de René Guénon: “O Rei do Mundo”, o traduz ao romeno e pede ao autor autorização para publicá-lo em vários capítulos em uma revista que fundaria em breve.
Em 16 de dezembro de 1934 Guénon lhe responde positivamente; não obstante, devido ao fato de que Lovinescu também projetava traduzir Bô Yin Râ, Guénon lhe pressiona para "tomar todas as precauções possíveis para que ninguém pudesse supor que ambas as coisas sejam em qualquer medida solidárias". E também escreve: "Devo dizer que o que eu penso de Bô Yin Râ não se baseia principalmente no conteúdo de seus livros, mas conheço a organização à qual ele tem estado ligado, e que, mesmo tendo realmente sua sede em alguma parte da Ásia Central, é de um nível iniciático muito pouco elevado".
Em 29 de setembro de 1935, Guénon acrescenta: "Quanto àquilo de que tinha falado de B.Y.R., se trata efetivamente de uma organização iniciática degenerada ou desviada, sobretudo pelo predomínio de um certo lado 'mágico'; mas, em casos similares, é muito raro que elementos pertencentes à 'contra-iniciação' não se aproveitem disso para se infiltrar e exercer sua influência."
Por último, inteiramo-nos de que Bô Yin Râ esteve presente na reunião na qual também deveria ter assistido Zaharoff: "Refletindo sobre o que me foi escrito com respeito ao 'Mestre dos Bálcãs' -, escreve Guénon a Lovinescu em 11 de outubro de 1935 - me parece cada vez mais provável que o personagem que queriam me apresentar em 1913 já era sir B.Z. Não sei já se lhe disse que naquela circunstância se tratava da constituição da Albânia como Estado independente e da possível intervenção, a respeito disso, de algumas organizações islâmicas que existiam nesse país. Agora, há outra coisa que também é muito curiosa: o encontro, ao qual por fim o personagem não veio, era na casa de um dos membros da organização oriental da qual falei a propósito de B.Y.R.; e, além disso este último (que então não era conhecido ainda por este nome) se encontrava presente neste dia! Até creio, inclusive, que esta é a única ocasião em que me encontrei com ele, a menos que o tenha encontrado outra vez na mesma época, mas não estou muito seguro disso, não tendo então qualquer razão para dedicar-lhe uma atenção particular...".
Zaharoff, o “Meste R.”, o Conde de Saint Germain
Guénon também identifica Zaharoff com o “Mestre dos Bálcãs”, sobre o qual Lovinescu tinha feito menção. Por sua vez, Jean Reyor o identifica com o "famoso “Mestre R.”, o qual os teosofistas têm geralmente considerado como a reencarnação do conde de Saint-Germain.
O "Mestre R." é, de fato, o “Mestre Rákóczi”, já que frequentemente os teosofistas sustentaram que o conde de Saint-Germain pertencia a esta família da aristocracia húngara. Alguns deles identificaram-no com o príncipe Francisco II Rákóczi (1676-1735), que reinou na Transilvânia de 1703 a 1711; outras vezes com seu filho primogênito, Leopoldo Jorge (1696-1700); outras também com seu terceiro filho José, marquês de São Marcos (1700-1738). Annie Besant (1847-1933), que afirmou ter se encontrado com o conde de Saint-Germain em 1896, em um de seus livros mencionou duas "encarnações": Francisco II Rákóczi e Janos Hunyadi (1406-1456).
É interessante ressaltar que essas diferentes teses foram apresentadas e discutidas em um estudo de A.J. Hamerster, publicado em partes no periódico "The Theosophist", entre 1934 e 1935, quer dizer, nos mesmos anos em que Guénon iniciava a correspondência com Lovinescu. [19]
Agora, em um par de cartas de Guénon, conclui-se que Lovinescu lhe tinha falado do conde de Saint-Germain, pondo-o em relação com o lorde Rothermere, com a rainha Isabel da Romênia e com sir Basil Zaharoff.
"Quanto às histórias do conde de Saint-Germain (...) - escreve Guénon em 9 de novembro de 1935 - essa identificação com lorde Rothermere era para mim completamente inesperada!"
Lorde Rothermere é verossimilmente Harold Harmsworth, primeiro visconde Rothermere (1868-1940), o proprietário da Associated Newspapers Ltd., conhecido especialmente pelo desenvolvimento que ele e seu irmão Alfred deram ao Daily Mail e ao Daily Mirror.
"Pelo que se refere à rainha Isabel - continua Guénon na mesma carta - já tinha ouvido falar em outra ocasião de suas relações com coisas singulares, ainda que não tenha conservado recordações muito precisas sobre isso; já que esta história data de antes da guerra, poderia muito bem ter relação com aquilo que aludi no ‘Teosofismo’... Em todo caso, parece que há um ou vários personagens que desempenham, em certas circunstâncias, o papel de conde de Saint-Germain; o assunto seria saber com que direito e por conta de quem...".
Em 25 de novembro, Guénon volta ao assunto e escreve: "Sua história com respeito ao conde de S.G. se torna ainda mais curiosa do que eu pensava, com base no que me disse outra vez, pois confirma coisas que suspeitava há muito tempo. Não parece duvidoso que sir B.Z. seja um representante importante de um dos ramos da 'contra-iniciação'!; alguns até mesmo pensam que seria um de seus chefes; mas talvez isso seja falar demais, porque não é provável que os chefes verdadeiros desempenhem um papel que os ponha de tal modo em evidência... Perguntei-me se na verdade não era dele que se tratava na história à qual fiz alusão no ‘Teosofismo’ e que, de fato, tinha relação com a constituição da Albânia como Estado independente. Teria sido também ele que tinha sido recebido pela rainha Isabel da Romênia, aparentemente na mesma época, ou antes se tratava de outro personagem? Em todo caso, se você está seguro do que aconteceu em 1927, suas relações com A.B. já não podem ser postas em dúvida".
As iniciais A.B. se referem a Annie Besant. O que tinha a ver a presidente da Sociedade Teosófica com Zaharoff veremos mais adiante.
O Séquito Teosofista da Rainha Isabel
Primeiramente, será oportuno tratar de compreender o que Guénon queria dizer ao falar sobre as relações da rainha Isabel com “coisas singulares” (ses rapports avec des choses singulières).
Sem dúvida, era uma coisa bastante notável que a rainha se declarasse simpatizante dos social-democratas e fosse favorável à forma republicana de governo: "a única racional", escreveu a soberana em seu diário [20]. Além disso, a rainha Isabel era "vidente" e afirmava receber mensagens angélicas (tinha tido íntimo contato com o “espírito” de um não muito especificado imperador Frederico).
Isabel teve como dama de honra a poetisa Elena Vacarescu (1867-1947), que, tornada colaboradora do “Movimento Cósmico” fundado pelo cabalista e ocultista Max Théon (1848-1927), em 1916 apoiou os esforços realizados pela rainha Maria para alienar a Romênia em direção à Entente; em 1920 Vacarescu consegue uma função de certa importância na Sociedade das Nações.
Outra famosa escritora patrocinada por Isabel foi Fanny Seculici, alcunha Bucara Dumbrava (1868-1926), fundadora da loja teosofista da Romênia e tradutora de um livro de Jiddu Krishnamurti (1895-1986), a qual viajou à Índia para participar de um congresso da Sociedade Teosófica.
Fanny Seculici é citada por Guénon em sua carta a Lovinescu de 25 de junho de 1936, quando ele volta a mencionar, entre outras coisas, o conde de Saint-Germain. "Por outro lado, recebi uma carta de alguém que residiu bastante tempo na Romênia e que esteve em relação com os meios teosóficos - escreve Guénon -. Ao fazer a relação do que me conta com o que eu já sabia por você, parece que, quando da estadia de B.Z. e da senhora Besant na Transilvânia, da que você me tem falado, certa senhora Lazar, de Turda, desempenhou determinado papel; você conhece esta pessoa ou ouviu falar dela?".
É muito provável que Lovinescu tinha ouvido falar de Elena Lazar, porque esta tinha desempenhado atividades teosofistas já no período austro-húngaro da Transilvânia e mais tarde, em dezembro de 1925, participou no congresso teosofista de Adyar na Índia.
"Há também - continua a carta de Guénon - uma história extraordinária de uma senhorita Lia Braunstein, originária da Alemanha (possivelmente de Munique), e que se encontrava em Bucareste na época da guerra; pretendia travar contato com os 'Mestres' e especialmente com o c. de S.G.; finalmente, foi tomada por um ataque de loucura furiosa em Londres, onde tinha ido para dar um concerto (era musicista), e foi internada em um hospício. Também, ainda, a história de uma senhorita Seculici, que foi presidente do ramo de Bucareste, e que morreu em Porto Said ao voltar de um congresso em Adyar; a história dessa morte está mesclada com algo que tem a ver com meu livro sobre Teosofismo, mas de uma maneira que não consigo esclarecer com precisão."
Na seguinte carta (é de 28 de agosto de 1936) se deduz que no mesmo ano do congresso de Adyar (e não em 1927) Zaharoff e Annie Besant tinham viajado para a Transilvânia. "Aquilo que eu lhe falei a respeito da senhorita Lazar - escreve - aconteceu em 1925, conforme novas informações; pois parece que corresponde bem ao assunto do castelo de Hunyadi (château de Huniade)".
Aquilo que Guénon chama de château de Huniade é o castelo de Hunyadi (hoje Hunedoara), uma região transilvana de onde a casa dos Hunyadi tomou seu nome, casa a que pertenceram Janos Hunyadi e Matthias Corvinus (1440-1490). Aqui, segundo a reconstrução de Pierre Feydel (que, porém, transcreve incorretamente o nome do castelo), "Zaharoff (...) procedeu às 'iniciações'"[21].
Em um artigo da série intitulada “A Dácia Hiperbórea”, publicado em 1937 em "Études Traditionnelles" sob o pseudônimo Géticus, Vasile Lovinescu escreve a propósito de Janos Hunyadi ("Jean Corvin de Huniade"): "Ele passa por ter sido não apenas um rosacruciano, mas um Rosa-Cruz"[22]. E acrescenta em uma nota ao pé da página: "Os teosofistas o tomam como seu conde de Saint-Germain, o que é fastidioso. Mas não é possível que, logo depois de ter entendido certas coisas, o tenham interpretado à sua maneira fantasiosa? A verdade é que talvez os três personagens, Hunyadi, Rákóczi e Saint-Germain, foram enviados pelo mesmo centro"[23].
Um Misterioso Projeto de Zaharoff em Bucarest
Essa nota não deve fazer com que se pense que a relação de Geticus-Lovinescu com os teosofistas se tenha esgotado em controvérsias de ordem teórica. A partir das cartas de Guénon fica evidente que Lovinescu estava muito preocupado pelo fato de que elementos da Sociedade Teosófica queriam se envolver em uma iniciativa inspirada por sir Basil Zaharoff e cooptá-lo para um misterioso grupo em via de constituição. Lovinescu, cabe lembrar, foi assessor legal da Siderúrgica Rescitza, a companhia romena que foi penetrada pela empresa Vickers, esta última controlada pelo próprio Zaharoff.
Em 27 de janeiro de 1936 Guénon escreve para seu correspondente romeno: "Vejo que o assunto B.Z. parece ainda mais sério do que pensava até agora; você por acaso acredita que o grupo projetado encontre os elementos necessários para sua constituição? Isso seria realmente perigoso; por outro lado, pergunto-me se você deve romper totalmente com isso desde agora mesmo, ou se não seria mais vantajoso que pudesse obter ainda outras informações..."
Em 24 de fevereiro Guénon retoma o argumento: "Agora deve-se acrescentar que há Estados ocidentais que estão manejados mais diretamente que outros por organizações dependentes à contra-iniciação; e isso nos conduz mais precisamente à sua história de B.Z. Compreendo que essa lhe inquiete muito, conforme me disse nessa ocasião, pois há evidentemente algo anormal nessa maneira de buscar e adiantar as coisas; como certamente você não fez nada para provocar tudo isso, o motivo não aparece claramente; quem sabe se suas investigações sobre a Dácia não terão algo que ver nisso? O que me parece que devemos temer acima de tudo, nessas circunstâncias, é que eles tentem espioná-lo e segui-lo em todos os lugares que você vá; acredito que fará bem em dar atenção a isso; não observou até agora nada a respeito?".
As personalidades chamadas a fazer parte desse grupo figuram em uma lista a qual Lovinescu chegou a ter em suas mãos; seus nomes, não obstante, ou são desconhecidos tanto para ele quanto para Guénon ou foram deformados com o objetivo de impossibilitar a identificação.
Não obstante, Guénon tenta formular algumas hipóteses: "Não me surpreenderia muito - escreve em 27 de janeiro - no que diz respeito a Macdonald[24], devido a suas relações com Annie Besant (tinha a encarregado de um projeto de constituição para a Índia); sei também que Lloyd George tem pessoalmente relações muito estreitas com B.Z.; quanto aos demais, não posso dizer nada."
Em 6 de junho, retorna com a questão: "As notícias que você me fornece dos projetos atuais de B.Z. tampouco são verdadeiramente muito tranquilizantes; seria realmente curioso saber se vão designá-lo para formar parte deste grupo..."
Entre outras coisas, se sabe pela carta de 28 de agosto que Zaharoff tinha anunciado a chegada de um "Grande Instrutor" em coincidência com um também pouco especificado "grande acontecimento astronômico".
A pessoa com a qual Zaharoff, ao que parece, se servia como intermediário para tentar atrair Lovinescu, é indicada por Guénon com a inicial D. Tratava-se de Anton Dumitriu (1905-1992), um professor de matemática que em 1934 se tornou assistente no Instituto Politécnico de Bucarest. Mircea Eliade (1907-1986) lhe dedica em seu diário de 1937 um par de páginas implacáveis; entre outras coisas, lemos: "Sabia que era teósofo e se proclamava a última encarnação do conde de Saint-Germain. Mais tarde me inteirei de que era um liberal e se interessava pela filosofia da ciência (...). Depois, em 1946, em Paris, eu soube que tinha vindo também ele, com uma comissão petroleira. Ele era muito rico e tinha perguntado a alguns romenos convertidos em parisienses: ‘Gastando um milhão de francos por ano, dentro de quantos anos pensam que posso comprar Paris?’”[25].
O Desaparecimento de Zaharoff
Lovinescu deve ter dado um suspiro de alívio quando se inteirou de que Zaharoff tinha morrido de verdade, já que mais de uma vez tinha feito publicar nos periódicos a falsa notícia de sua morte. Em 10 de novembro de 1936, Guénon lhe escreveu: "A respeito de Z., talvez você tenha visto que recentemente correu um rumor de que estava morrendo e até mesmo de que já tinha morrido; por outro lado, esta já não é a primeira vez, e tudo isso fora desmentido em seguida (...)".
Cito novamente o Canto XVIII de Ezra Pound: "E Metevsky morreu e o enterraram, oficialmente, - E se sentava no café Yeiner para ver seu próprio enterro – Por volta de dez anos depois deste incidente – Boa parte da Vickers era sua”.
E outra vez, em 30 de dezembro: "Talvez saiba você que há dois ou três meses já se tinha anunciado a morte de Z., depois tinha sido desmentida (e não era a primeira vez); mas agora se assegura de que é certo (...)."
Por último, em 16 de março de 1937, Guénon informou a Lovinescu que alguns desconhecidos tinham tentado abrir a tumba de Zaharoff, "provavelmente para confirmar a identidade do corpo."
Sir Basil Zaharoff tinha morrido na manhã do dia 27 de novembro de 1936 no Hotel de Paris em Monte Carlo. O Hotel de Paris era dele. E o Cassino também. Depois de ter concluído um pacto secreto com o príncipe Alberto I de Mônaco, Zaharoff tinha persuadido Clemenceau a estipular com Sua Alteza um acordo que tinha logo desembocado no artigo 436 da Parte XV do Tratado de Versalhes. O Principado de Mônaco dessa maneira tinha conseguido uma autonomia total; não obstante, se o cassino de Monte Carlo estivesse em risco de quebra, a França se comprometia a salvá-lo com uma contribuição financeira. Quando da morte de Alberto I, Zaharoff tinha se apoderado da Societé des Bains de Mer, que era a que dirigia a sala de jogos no Principado.
Assim desapareceu de cena o Sir Basil Zaharoff de cena, o qual, além de ser comerciante de canhões, banqueiro, petroleiro, magnata da imprensa, jogador de cassino, filantropo, agente de inteligência britânica e a charlatanesca reencarnação do conde de Saint-Germain, tinha desempenhado, segundo René Guénon, um papel de primeiro plano no campo da contra-iniciação.
Notas
[1] - René Guénon, Il regno della quantità e i segni dei tempi, Edizioni Studi Tradizionali, Torino 1969, pp. 233, 291, 315-316.
[2] - René Guénon, Il regno della quantità e i segni dei tempi, cit., pp. 292-293.
[3] - René Guénon, Il teosofismo. Storia di una pseudoreligione, vol. I, Edizioni Delta Arktos, Torino 1987, p. 59.
[4] - Paul Chacornac, La vie simple de René Guénon, Les Éditions Traditionnelles, Paris 1958, p. 63.
[5] - Paul Chacornac, op. cit., ibidem.
[6] - Marie-France James, Ésotérisme et Christianisme autour de René Guénon, Nouvelles Éditions Latines, Paris 1881, p. 307 nota e passim.
[7] - Jean Reyor (Marcel Clavelle), Documento confidenziale su René Guénon, Edizioni Al-khâtamu al-dhahabiyy, Al-Qâhira s. d.
[8] - Robert Neumann, Vita di Sir Basilio Zaharoff, Mondadori 1948, pp. 17-18.
[9] - Robert Neumann, Vita di Sir Basilio Zaharoff, cit., p. 27.
[10] - Shaykh Abdalqadir As-Sufi, Tecnica del colpo di Banca, Le Rocce di Korsan, Genova 2002, p. 53.
[11] - Shoghi Effendi, God Passes By, Bahà'ì Publishing Trust, Wilmette, Illinois, 1944, p. 392.
[12] - Robert Neumann, Vita di Sir Basilio Zaharoff, cit., p. 196.
[13] - A. L. Easterman, King Carol, Hitler and Lupescu, Victor Gollancz Ltd, London 1942, p. 23.
[14] - A. J. Hamerster, The Count de Saint Germain: Who he was, "The Theosophist" (Theosophical Publ. House, Adyar, Madras), ott. 1934, pp. 66-72; nov. 1934, pp. 141-150; dic. 1934, pp. 290-292 e 589; maggio 1935, pp. 120-127; giugno 1935, pp. 240-247.
[15] - Eugen Wolbe, Carmen Sylva, Leipzig 1933, p. 137.
[16] - Pierre Feydel, Aperçus historiques touchant à la fonction de René Guénon suivis d'une Étude bio-bibliographique, Arché, Milano 2003, p. 86 nota 208.
[17] - Geticus, La Dacia iperborea, Edizioni all'insegna del Veltro, Parma 1984, p. 64.
[18] - Geticus, La Dacia iperborea, cit., p. 64 nota.
[19] - "À época do ministro Ramsay MacDonald (1866-1937, ndr) M.me Besant elaborou um projeto constitucional para a Índia e o enviou ao governo; este projeto, que se inspirava no mesmo espírito que levou à constituição do 'Congresso Nacional Indiano', parece não ter sido seguido, pelo menos até hoje; mas o fato revesto um significado todo particular se pensarmos que os verdadeiros indianos contavam o mesmo Ramsay MacDonald no número dos 'inimigos brutais e grosseiros da Índia" (René Guénon, Il teosofismo. Storia di una pseudoreligione, cit., vol. II, p. 315, nota 18).
[20] - Mircea Eliade, Memorii (1907-1960), Humanitas, Bucureşti 1991, vol. I, pp. 338-339. Su Anton Dumitriu, cfr. Claudio Mutti, Eliade, Vâlsan, Geticus e gli altri. La fortuna di Guénon tra i Romeni, Edizioni all'insegna del Veltro, Parma 1999, pp. 75-88.