30/12/2019

Aleksandr Dugin - A Desconstrução da Democracia

por Aleksandr Dugin

(2019)
 


O Conceito de “Democracia” não é neutro e não é auto-evidente

Hoje a democracia não pode ser discutida objetivamente. Não é um conceito neutro: por trás da “democracia”, enquanto regime político e sistema de valores correspondente, está o Ocidente, a Europa e os EUA. Para eles, a “democracia” é uma forma de culto secular ou uma ferramenta de dogmática política; portanto, para ser totalmente aceito na sociedade ocidental, é necessário ser “a favor” da democracia. Quem a põe em questão cai fora do campo do politicamente correto. A oposição marginal é tolerada; mas se for mais do que marginal, a democracia coloca suas máquinas de opressão contra as suas alternativas, como qualquer regime, qualquer ideologia e qualquer religião dominante. Não é possível falar em "democracia" imparcialmente. É por isso que, nas discussões sobre democracia, devemos dizer imediatamente se somos completamente a favor ou completamente contra. Responderei com extrema sinceridade: sou contra, mas sou contra apenas porque o Ocidente é a favor. Não estou preparado para aceitar nada de forma impensada e acrítica, mesmo que todo mundo acredite, e ainda mais se isso for acompanhado por uma ameaça oculta (ou clara). Você sugere que eu confie na minha própria razão, não? Começarei com o fato de que a razão me aconselha a rejeitar todas as sugestões [predlozheniy, ofertas, propostas]. Ninguém pode nos dar liberdade. Nós a temos ou não. Um escravo converterá até mesmo a liberdade em escravidão, ou pelo menos em estupidez, e uma pessoa livre nunca será escrava nem sob grilhões. Em seu tempo como escravo Platão não se tornou menos Platão ou menos livre, enquanto ainda pronunciamos o nome do tirano Dionísio com desprezo; então, qual deles é escravo? De qualquer forma, como diz um livro popular sobre análise técnica, "a maioria está sempre errada".

Somente essa distância crítica em relação à “democracia” fornece um campo para sua compreensão conceitual. Colocamos a “democracia” em dúvida, em questão, e a desafiamos como um dogma. Assim, conquistamos o direito à distância, mas somente dessa maneira podemos chegar a um resultado válido e bem fundamentado. Não acreditar na democracia não significa ser seu oponente. Significa não ser seu prisioneiro, não estar sob sua hipnose e sua sugestão. Partindo de tanta incredulidade e dúvida, é inteiramente possível que concluamos que a democracia é algo valioso ou aceitável, ou talvez não. Devemos raciocinar exatamente da mesma maneira sobre todas as outras coisas. Só isso é filosofia. Não há evidência a priori para um filósofo. É exatamente o mesmo para um filósofo político.

Vale lembrar que democracia não é um conceito auto-evidente. A democracia pode ser aceita ou rejeitada, estabelecida ou demolida. Houve sociedades esplêndidas sem democracia e detestáveis ​​com democracia, mas também houve o oposto. A democracia é um projeto humano, uma construção, um plano, não o destino. Ela pode ser rejeitada ou aceita. Isso significa que ela precisa de justificação, de apologia. Se não houver apologia pela democracia, ela perderá o sentido. Uma forma não democrática de governo não deve ser tomada como obviamente a pior. A fórmula "o mal menor" é um ardil propagandístico. A democracia não é o mal menor... talvez não seja o mal, talvez seja o mal. Tudo exige reconsideração.


Somente a partir dessas duas suposições podemos examinar cuidadosamente a democracia. Ela não é um dogma, a sua imposição apenas nos repele, e ela possui alternativas possíveis, inteiramente relevantes e eficazes.

Elevá-la a um dogma e negar suas alternativas fecha a própria possibilidade de um discurso filosófico livre.

O Demos na “Democracia”: A Etimologia Aristotélica

Vamos voltar à etimologia da palavra "demos", já que "democracia" significa "o governo das demos". Essa palavra é mais frequentemente traduzida pela palavra "narod". No entanto, em grego, havia muitos sinônimos da palavra narod: "ethnos", "laos", "phule" etc. "Demos" era uma delas e tinha conotações específicas. Inicialmente, os demos descreviam habitantes, ou seja, pessoas que viviam em um território concreto e totalmente definido. À medida que as cidades se expandiam, esses territórios começaram a ser escavados dentro da cidade, como as regiões de hoje ou as partes de cidade da velha Rússia [gorodskiye kontsy], então os habitantes de uma ou outra região foram chamados de uma "demos".

No Dicionário Etimológico Indo-Europeu de Julius Pokorny, vemos que as “demos” gregas derivam da raiz indo-européia dā (* dǝ-) que significa “dividir”, “separar”. Com o formante “mo-”, isso faz o grego “demos” e com o formante “lo-” o alemão teilin (divisão) e o russo delit’.

Assim, na própria etimologia das “demos” está a referência a algo dividido, cortado em fragmentos separados e dispostos em um determinado território. O significado mais próximo é a palavra russa população [naselenie], mas de maneira alguma narod, pois narod implica uma unidade cultural e lingüística, uma comunidade de seres históricos e a presença de um determinado destino. Uma população (teoricamente) pode se virar sem isso. "População" refere-se a qualquer pessoa que se estabeleceu ou foi estabelecida em um determinado território, mas não alguém que esteja conectado a essa terra por raízes ou pela marca da cidadania [ou seja, existem três noções distintas aqui: pertencer por raízes, pertencer pelo mero fato do assentamento e pertencer por cidadania].

Aristóteles, que introduziu o conceito de "democracia", considerou-o de forma extremamente negativa, tendo em mente precisamente esse tom de significado inteiramente grego. Segundo Aristóteles, “democracia” é praticamente idêntica ao “governo da turba”, “oclocracia (governo da multidão)”, uma vez que a população de uma região cívica consiste em todos sem distinção. Aristóteles se opõe à “democracia” como a pior forma de governo, não apenas comparada à monarquia e à aristocracia, correspondendo ao governo de um ou dos melhores, que ele considera, em contraste, positivamente, mas também à “politeia” (do grego “polis ," "cidade"). Como a “democracia”, a “politeia” é o governo de muitos - não de todos sem distinção, mas dos qualificados, o governo de cidadãos conscientes, diferindo do resto por indicadores culturais e genealógicos, bem como sociais e econômicos. A politeia é o autogoverno dos cidadãos da cidade, se apoiando em tradições e fundações. A democracia é a agitação caótica de uma multidão rebelde.

A politeia pressupõe a presença de unidade cultural, uma base histórico-religiosa e cúltica comum entre os cidadãos. A democracia pode ser estabelecida por uma coleção arbitrária de indivíduos atômicos "distribuídos" em setores aleatórios.

Aristóteles, é verdade, também conhece outras formas de governo injusto além da democracia: tirania (domínio de um usurpador) e oligarquia (domínio de um grupo fechado de patifes ricos e corruptos). Todas as formas negativas de governo estão interconectadas: os tiranos geralmente dependem precisamente da "democracia", assim como as "democracias" costumam apelar à oligarquia. A integridade, tão importante para Aristóteles, está do lado da monarquia, da aristocracia e da politeia. A divisão, a fragmentação, a partição em átomos, está do lado da tirania, da oligarquia e da democracia.

Os Fundamentos Metafísicos da Democracia: As Hipóteses do “Parmênides”

Vamos nos voltar para os fundamentos metafísicos da democracia. Para isso, nos basearemos no diálogo platônico “Parmênides”. É habitual distinguir duas teses e oito hipóteses. A primeira tese afirma o Um. Quatro hipóteses se seguem (de fato, os neoplatônicos acrescentaram uma quinta, mas no momento isso não é crucial). A primeira tese sobre o Um e as quatro hipóteses a seguir podem ser aplicadas à descrição de uma república [gosudarstvo, a palavra usada para traduzir o diálogo de Platão chamado “República” em português; gosudarstvo pode às vezes significar Estado no sentido estrito ou, como em Platão, regime no sentido amplo] baseada na hierarquia, decorrente da ideia, o princípio superior. O mundo construído sobre a afirmação do Um é construído de cima para baixo, do Um para os muitos. O mesmo vale também para a república, que reproduz a estrutura do universo. À frente dessa república estão o monarca e os sacerdotes, como servos do Um. Tal monarquia sagrada é simultaneamente um modelo do cosmos e uma base para o arranjo da república [gosudarstvennogo ustroystva]. A tese sobre o Um, e as hipóteses que se seguem daí, descrevem para nós o espectro de modelos políticos da sociedade tradicional, onde predominavam o princípio da integridade, a autoridade e natureza sagrada do poder e a lei divina.

O sociólogo Louis Dumont chamou essa abordagem com base na primeira tese e nas quatro hipóteses de "holismo metodológico", uma vez que o entendimento da sociedade se baseia na convicção em sua natureza orgânica e integral.

A segunda tese no “Parmênides” e as segundas quatro hipóteses decorrem da afirmação dos Muitos, excetuando o Um. Aqui, na base da perspectiva do mundo, não reside a unidade, mas a pluralidade, o atomismo e o jogo dos fragmentos. Tal perspectiva leva a uma perspectiva atomística do cosmos (a teoria de Demócrito) e à justificação de regimes políticos precisamente do tipo "democrático", isto é, construídos não de cima para baixo, mas de baixo para cima, não com base no transição do Um para os Muitos, mas, pelo contrário, na direção oposta. O próprio Platão considerava o atomismo de Leucipo e Demócrito um ensinamento "herético" e, segundo algumas fontes, até incentivou a queima de seus livros em sua Academia. Na compreensão platônica do mundo, a sociedade construída sobre o princípio dos Muitos (não-Um) pode igualmente ser considerada uma "heresia política".

Precisamente essa segunda tese do “Parmênides”, e as quatro hipóteses que se seguem, nos interessam agora. Levando em consideração as primeiras quatro, que se relacionam ao cosmos monárquico, é costumeiro chamar essas de 5ª, 6ª, 7ª e 8ª hipóteses do “Parmênides”. Se nós as considerarmos cuidadosamente, teremos os quatro tipos de democracia, que são fáceis de descobrir na teoria ou prática em nosso mundo circundante.

Platonismo Político

As hipóteses platônicas nos ajudam a entender o código da filosofia política contemporânea. Em última análise, todas as oito hipóteses podem ser consideradas modelos totalmente racionais do mundo e da sociedade e, se nos afastarmos das sugestões hipnóticas de progresso, poderemos fazer uma escolha consciente em favor de qualquer uma dessas hipóteses.

Isso significa que podemos selecionar a democracia e qualquer versão da democracia, assumindo a posição da segunda tese, ou podemos escolher a não-democracia, assumindo a posição da primeira tese e reconhecendo o Um. O interessante é que essa escolha pode ser feita não apenas hoje, pois ela também ficou diante do povo da Grécia Antiga, que escolheu entre Atlântida e Atenas (o diálogo platônico “Crítias”), Atenas e Esparta (a Guerra do Peloponeso, elogiada por Tucídides), e a filosofia dos monarquistas Platão e Aristóteles e dos liberais-atomistas Demócrito e Epicuro. Enquanto o homem permanecer homem, ele carrega em si mesmo, ainda que de forma vaga e distante, uma capacidade para a filosofia. Isso significa que ele carrega em si a liberdade de escolha. O homem pode escolher a democracia, e uma de suas formas, ou pode rejeitá-la.

Ao mesmo tempo, se tomarmos a posição de Platão e do platonismo, com base na justaposição da democracia e das teses do “Parmênides”, chegamos à conclusão de que vivemos em um cosmos que não pode ser: em uma sociedade construída sobre um dogma absolutamente falso. Todos hoje são considerados automaticamente apoiadores da democracia. Não seria ruim que essas pessoas “automáticas” tomassem conhecimento dos princípios filosóficos que lhes são atribuídos automaticamente (isto é, sem serem solicitados).

Por outro lado, todos os oponentes da democracia são instantaneamente alistados na classe de pessoas que professam uma ideologia cujo nome já se tornou há muito tempo um palavrão e um insulto, e os hipnotizadores inescrupulosos usam cada vez mais essa técnica. Em vez dessa palavra, cada vez mais odiosa e sem sentido, que eu nem desejo pronunciar neste ensaio, é melhor nos chamar de "platonistas". Sim, somos portadores do platonismo político. Construímos nossa concepção do mundo e da sociedade a partir da primeira tese do “Parmênides” e das quatro primeiras hipóteses. Outros constroem os seus a partir da segunda tese e das segundas hipóteses. Pelo amor de Deus - seria tão ruim saber sobre essa afiliação de antemão?

Sendo filósofos, ou seja, seres livres, podemos muito bem dizer “sim” ao status quo metafísico, consistindo na dogmatização da segunda tese do “Parmênides” (isto é, democracia), mas também podemos dizer “não”.

Eu digo "não" ao individualismo metodológico e à segunda tese do “Parmênides” platônico e, assim, determino claramente um lugar nas fileiras, no exército dos partidários de Platão.

Platão queimou os livros de Demócrito. Os democratas e, em particular, o guru espiritual de Soros, Popper, em seu catecismo “A Sociedade Aberta e seus Inimigos”, pedem para queimar os livros de Platão. Popper diz diretamente: ou inimigos da sociedade aberta, da democracia liberal, da segunda tese do “Parmênides” ou amigos. É uma verdadeira guerra de hipóteses, uma batalha de epistemologias, uma luta de paradigmas gnoseológicos, uma luta de ideias.

Assim, para nós, platonistas, a democracia é uma doutrina falsa; ela é construída em um mundo que não existe e em uma sociedade que não pode existir.

Se assim é, o platonista chega a uma escolha: a democracia, por suas falsas pretensões, esconde por baixo de si uma outra coisa, mas algo em todo caso muito ruim, injusto e doentio, por exemplo, uma oligarquia secreta ou uma tirania disfarçada, mas isso é um tópico para outro ensaio.