por Israel Lira
(2017)
“Nota-se que, como é usada, a palavra ‘fascismo’ não tem quase nenhum significado. Em conversas ela é usada ainda mais insanamente do que na imprensa. Pelo que ouvi, ela se aplica a agricultores, a comerciantes, ao crédito social, aos castigos corporais, à caça à raposa, às touradas, ao comitê de 1922, ao comitê de 1941, a Kipling, a Gandhi, a Chiang Kai-Shek, à homossexualidade, aos programas de Priestley, aos albergues juvenis, à astrologia, às mulheres, aos cães e a não sei o que mais” [1] Uma citação orwelliana que hoje mais do que nunca se faz presente, pois diante da instabilidade da região, parece haver mais fascistas do que na época do surgimento do fascismo, e é porque o termo já foi completamente esvaziado de conteúdo.
Umberto Eco, o escritor e filósofo italiano, definitivamente não é o tipo de pessoa que abandona sua objetividade apenas para apoiar um sistema de pensamento; pelo contrário, sempre se caracterizou por sua grande sabedoria sobre muitos assuntos, especialmente quando se trata de semiótica[2]. Sem prejuízo disso, e em homenagem ao amicus plato sed magis amicas est veritas[3], não se pode deixar de notar que, a respeito de suas dissertações que tratam da fenomenologia fascista, e embora não deixem de revelar posições interessantes que exigiriam maior contraste empírico – devido à falta de interesse geral na investigação objetiva do assunto – há certas deficiências que diminuem a objetividade do discurso econiano, isto dentro de uma crítica estritamente enquadrada pela epistemologia.
Eco, dentro de sua obra Cinco Escritos Morais, nos apresenta uma parte dirigida à análise do que ele considera serem aquelas características essenciais e imperturbáveis de um conceito de fascismo, no qual ele expõe seus 14 pontos:
“O termo ‘fascismo’ se encaixa em tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e podemos sempre reconhecê-lo como fascista. Tire o imperialismo do fascismo e você fica com Franco ou Salazar; tire o colonialismo e você fica com o fascismo balcânico. Acrescente ao fascismo italiano um anticapitalismo radical (que nunca fascinou Mussolini) e você tem Ezra Pound. Acrescente o culto à mitologia celta e ao misticismo do Graal (completamente alheio ao fascismo oficial) e você terá um dos mais respeitados gurus fascistas, Julius Evola. Apesar desta confusão, acho que é possível indicar uma lista de características típicas do que eu gostaria de chamar de Ur-Fascismo, ou fascismo eterno. Tais características não podem ser enquadradas em um sistema; muitas se contradizem e são típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo, mas basta que uma delas esteja presente para fazer uma nebulosa fascista coagular.
1. A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto à tradição. (…) Como conseqüência, não pode haver avanço do conhecimento. A verdade foi anunciada de uma vez por todas, e a única coisa que podemos fazer é continuar interpretando sua mensagem obscura.
2. O tradicionalismo implica a rejeição do modernismo. (…) A rejeição do mundo moderno foi camuflada como uma condenação do modo de vida capitalista, mas dizia respeito principalmente à rejeição do espírito de 1789 (ou 1776, obviamente). O Iluminismo, a era da razão, são vistos como o início da depravação moderna. Neste sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como “irracionalismo“.
3. O irracionalismo também depende do culto da ação pela ação. A ação é bela em si mesma, e por isso deve-se agir antes, sem qualquer reflexão. Pensar é uma forma de castração. É por isso que a cultura é suspeita na medida em que se identifica com atitudes críticas.
4. (…) Para o Ur-Fascismo, a discordância é traição.
5. A discordância é também um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso explorando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista, ou prematuramente fascista, é contra os intrusos. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição.
6. O Ur-Fascismo surge da frustração individual ou social. Isto explica porque uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desanimadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos.
7. (…) a raiz da psicologia da Ur-Fascista está na obsessão com o complô, possivelmente internacional. Os sequazes devem se sentir sitiados. A maneira mais fácil de fazer com que pareça emergir um complô é apelar à xenofobia.
8. Os sequazes devem se sentir humilhados pela riqueza ostentada e pela força dos inimigos. (…) os inimigos são simultaneamente muito fortes e muito fracos.
9. Para o Ur-Fascismo não há luta pela vida, mas sim “vida para a luta”. O pacifismo é então conivência com o inimigo; o pacifismo é ruim porque a vida é uma guerra permanente.
10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, na medida em que é fundamentalmente aristocrático. Ao longo da história, todo elitismo aristocrático e militarista tem implicado o desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo não pode evitar a pregação de um elitismo popular.
11. Nesta perspectiva, todos são educados para se tornarem heróis. (…) Este culto ao heroísmo está intimamente ligado ao culto à morte… (…).
12. Como tanto a guerra permanente quanto o heroísmo são jogos difíceis de se jogar, o Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para as questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desprezo pelas mulheres e uma condenação intolerante dos costumes sexuais não-conformistas, desde a castidade até a homossexualidade).
13. O Ur-Fascismo é baseado em um populismo qualitativo. (…) Para o Ur-Fascismo, os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos, e o povo é concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que expressa a vontade comum.
14. O Ur-Fascismo fala a novilíngua. A novilíngua foi inventada por Orwell em 1984, como a língua oficial do Ingsoc, o socialismo inglês, mas elementos do Ur-Fascismo são comuns a várias formas de ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou fascistas foram baseados em um léxico pobre e sintaxe elementar, a fim de limitar as ferramentas para o raciocínio complexo e crítico. Mas devemos estar preparados para identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando assumem a forma inocente de um reality show popular”[4].
No entanto, as 14 hipóteses de Echo parecem ser apenas uma lista exaustiva de aspectos negativos, – sob a forma em que estão expostas, quase que se assemelham a apotegmas – característica de um estágio anterior ao de uma teorização científica, uma vez que não foram contrastadas com os aspectos positivos do fascismo, já que ao não asseverarmos isto, pecaríamos por enviesar as variáveis em detrimento de uma visão objetiva, pois precisamos pesar os aspectos positivos e negativos para fazer um julgamento científico, o que nos permitirá tirar conclusões sobre as características essenciais de um fenômeno ou fato que tenha sido pesquisado ou estudado: “Para combater [5] o fascismo, é preciso entendê-lo, o que implica reconhecer que ele contém algumas coisas boas, além de muitas coisas ruins” [6]; esse viés econiano é ainda mais evidente quando George Orwell[7], um antifascista convicto, mostra um grau de objetividade maior do que o seu homólogo italiano no tratamento do assunto, uma vez que algumas das afirmações que Eco toma por certas – em seus 14 pontos, e mesmo em uma lógica pars pro todo – afirmam que um desses 14 pontos é suficiente para configurar o conceito, levando-nos a um anarquismo semântico no qual tudo o que cai em qualquer um desses 14 pontos é fascista – de uma abordagem orwelliana esses 14 pontos não seriam inteiramente corretos, o que prejudica a objetividade do argumento de Eco, sem tirar sua potencialidade de posterior contrastante empírico:
“De todas as questões pendentes do nosso tempo, talvez a mais importante seja: o que é o fascismo? Uma das organizações que fazem estudos sociológicos nos Estados Unidos perguntou recentemente a uma centena de pessoas sobre o assunto e elas receberam respostas que vão de ‘democracia pura’ a ‘diabolismo puro’. Neste país, se você pedir ao homem pensante médio para definir o fascismo, ele geralmente responde dando o exemplo dos regimes da Alemanha e Itália. Mas isso é insatisfatório, pois mesmo os grandes Estados fascistas diferem muito em estrutura e ideologia. Não é fácil, por exemplo, incluir a Alemanha e o Japão no mesmo esquema, e é ainda mais difícil incluir alguns dos Estados menores que podem ser descritos como fascistas. Assume-se, por exemplo, que o fascismo é inerentemente belicista e floresce num ambiente de histeria bélica e só pode resolver seus problemas econômicos gastando em preparativos para guerras ou conquistas de países estrangeiros. Mas isto é claramente falso quando olhamos o exemplo de Portugal ou das várias ditaduras na América do Sul. Ou por outro lado, o antissemitismo é suposto ser um dos sinais distintivos do fascismo; mas alguns movimentos fascistas não são antissemitas”. [8]
Pelo que foi dito, pode-se concluir que essas características de um fascismo eterno exposto por Eco em seus 14 pontos, não estão em consonância com a teleologia da mesma ressignificação que Eco buscava sustentar, de modo que estaríamos diante de uma aparente inconsistência, uma vez que o conceito não seria fiel ao seu fundamento (Bunge, 2009), nisto, o conceito de Ur-Fascismo, não teria relação com seu fundamento em características que simplesmente não ocorrem – em geral -, ou não ocorrem em todos os fascismos, como Orwell mencionou, em relação ao inerente belicismo, ao chamado às classes frustradas, à xenofobia e ao antissemitismo. Sendo que, por essas razões, o fascismo eterno de Eco, não se configuraria como uma teoria científica sobre fenomenologia fascista, mas simplesmente como um conjunto de hipóteses soltas que não atingiram um grau de teorização, necessário para lidar com o fenômeno que se está tentando explicar de forma objetiva:
“(…) para além dos detalhes históricos do fascismo, há algo eterno. O escritor italiano Umberto Eco chamou-o de ‘Ur-Fascismo’, que significa ‘primitivo’ ou ‘original’. Infelizmente, seus irregulares ‘quatorze pontos’ estavam excessivamente preocupados com o totalitarismo de cima para baixo dos notáveis ditadores fascistas e seus rapazes de partido. O seu ‘Ur-Fascismo’ não era ‘primitivo’ o suficiente. Não era de todo ‘eterno'”. [10]
Mesmo assim, vale a pena resgatar das enteléquias econianas, a verdade que ele realmente tentou apresentar e não conseguiu sistematizar – dada a limitação de sua especialização acadêmica – e esta é, buscar a própria essência do fascismo, daquele fascismo primitivo e original, daquele fascismo verdadeiramente eterno.
“A maioria das pessoas associa os ‘males’ do fascismo a uma instituição burocrática de cima para baixo, mas para mim os fasces parecem simbolizar uma idéia de baixo para cima”.[11]
No feixe de fasces ou fascio littorio, se encontra a própria essência do fascismo mais primitivo:
“As varas dos fasces representam a força e a autoridade de um coletivo unido. Esse é o seu apelo ‘primitivo’. A verdadeira unidade tribal não pode ser imposta de cima. É um fenômeno orgânico. A unidade profunda vem de homens atados por uma fita vermelha de sangue. O sangue da necessidade catastrófica que une o bando de irmãos torna-se o sangue do legado e do dever que une a família, a tribo, a nação. Os fasces capturam a imaginação humana porque parecem simbolizar a vontade unificada dos homens. Os homens preferem acreditar que oferecem sua lealdade por escolha, quer realmente o façam ou não. A livre associação – ou sua mera aparência – é a diferença entre os homens livres e os escravos. Se você não pode sair, você é um prisioneiro. Se você optar por ficar, se optar por alinhar seu destino com o destino do grupo e se submeter à autoridade coletiva do grupo, você é um membro e não um escravo. Como membro, você deve trazer o peso da sua masculinidade a uma confederação unificada de homens”.[12]
Notas
[2] Semiótica (del gr. semeiotike) s.f. Ciência que estuda os símbolos em geral. Um rama desta ciência é, pois, a linguística, que estuda a linguagem, sistema de signos linguísticos.
[3] “Amigo é Platão, mas melhor amiga é a verdade”. Ditado contra o magister dixit, ou seja a autoridade dos fundamentos pela mera fama y transcendência do autor.
[4] ECO, Umberto. “Cinco Escritos Morales”. Editorial Lumen. 1997. Pág.47-56.
[5] Ou em todo caso, estudar e/ou aprofundar.
[6] ORWELL, George, “The Road to Wigan Pier”.1937. Parte II, Capítulo 12: “Para combater o Fascismo é necessário entendê-lo, o que implica admitir que ele contem tanto o bem quanto o mal”.
[7] Eric Arthur Blair ou mais conhecido por seu nom de plume “George Orwell”, escritor e jornalista britânico de grande relevância para a literatura universal, não só por seu estilo baseado em uma excelência crítica, mas por su uso de analogias e paralelismos para a apresentação de distopias ou realidades humanas. Entre suas obras mais famosas se encontram “A Rebelião dos Bichos” (1945) e “1984” (1949).
[8] ORWELL, George, “What is Fascism? The Collected Essays, Journalism and Letters of George Orwell” (1968).
[10] DONOVAN, Jack, “Anarcho-Fascismo” En: “A sky without eagles” Dissonant Hum, 2014.
[11] Ibídem.
[12] Ibídem.