“Eu represento a tradição, pela qual são o que são as nações em toda a dilatação dos séculos. Se minha voz tem alguma autoridade, não é, senhores, porque é a minha: a tem porque é a voz de nossos pais”. – Juan Donoso Cortés
Primeiros Anos
Extremadura suportava em 1809 energicamente, resistindo até o limite, a pressão do exército napoleônico. Mas suas cidades iam caindo em mãos do inimigo. Em 28 de março foi ocupada Medellín. A população civil, carente de meios de defesa; fugia diante da aproximação dos gabachos. A família Donoso Cortés, vizinha de Don Benito, não foi alheia a estes azares, agravados pelo fato de que a mãe se encontrava muito perto de dar luz; tanto, que não pôde terminar sua viagem, e em 6 de maio de 1809 lhe nascia um varão. As circunstâncias extraordinárias desse nascimento, a inquietação dos camponeses da região que buscavam refúgio frente ao invasor de sua pátria, haviam de estar presentes durante o resto de sua vida no recém-nascido, que a mãe ofertou à Nossa Senhora da Saúde, muito venerada na paróquia em que ele foi batizado. Ao neófito foram impostos os nomes de Juan Francisco María de la Salud.
O lugar de nascimento é origem de controvérsias. O certo é que nasceu fora de Don Benito e que foi batizado na paróquia mais próxima ao nascimento: a de Valle de la Serena.
Os Donoso Cortés eram, e são, uma família de estirpe bastante elevada e antiga, descendentes do conquistador do México, Hernán Cortés, originários, parece, de Aragão e estabelecidos na Extremadura há várias gerações. O pai do futuro Marquês de Valdegamas era advogado, lavrador e pecuarista estabelecido, o que lhe permitia uma ampla mobilidade econômica. Por isso se permitiu o luxo de levar a Don Benito um mestre que ensinasse as primeiras letras a seus filhos. Juan, aos onze anos, sabia já algo de latim, e convenientemente orientado pelo pai se mudou para Salamanca para prosseguir seus estudos. Isso foi no ano de 1820, o do pronunciamento de Riego em Cabezas de San Juan, o que indubitavelmente faz supor que a velha Universidade, já acusada com anterioridade de doutrinas liberais, seria um foco destes ensinamentos.
A bagagem espiritual que Juan levava para Salamanca provinha, principalmente, dos desvelos de sua mãe, que o inspirou uma doce devoção pela Santíssima Virgem, que foi, sem dúvida, uma das bases mais seguras para o desenvolvimento do processo do que ele chamou de sua conversão.
Não se pode dizer que à altura de sua vida em que nos encontramos fosse já um agudo leitor de textos filosóficos, mas cabe assinalar seu interesse pelos temas históricos. A pena acompanhava sempre suas leituras, e em um caderno anotava as impressões e conclusões a que chegava.
Supomos que as brincadeiras ocupariam grande parte de seu tempo, para o que contava com uma boa coleção de irmãos – Pedro, Manuel, Francisco, María Josefa, Antonio, Ramón, Elena, María Manuela e Eusebio – que o ajudariam em suas travessuras, pois ele era o mais velho.
Na Universidade de Salamance permaneceu Juan apenas um ano. Cursou elementos de Aritmética, Álgebra e Geometria, e pouca pôde ser a influência filosófica que, portanto, exerceram sobre ele os professores salmantinos, seguidores então do sensualismo e do utilitarismo, tão em voga, ainda que fosse possível que despertassem no jovem Donoso o desejo de conhecer as obras desses autores.
Terminado o curso, seus pais decidiram muda-lo para Cáceres, ao Colégio de San Pedro, sem dúvida para tê-lo mais próximo. Este centro de ensinamento se fundou então com a categoria de Universidade Provincial. Ali cursou os dois últimos anos exigidos para poder estudar Jurisprudência.
O verão de 1823 Donoso passa em Cabeza de Buey, e ali conhece Quintana, necessitado de refúgio depois da intervenção dos Cem Mil Filhos de São Luís, que acabou com o regime liberal. A amizade entre ambos foi logo profunda, de tal forma que o velho político dotou de cartas de recomendação Donoso, nas quais fez grandes elogios de seu jovem amigo. Esta amizade é uma influência preciosa na primeira formação política de Donoso, pois foram vários os verões em que Quintana expôs diante dele todas as suas ilusões constitucionais. Em outubro de 1823 Juan se muda para Sevilla, onde, depois de justificar que tem aprovada a Filosofia Moral, é admitido ao segundo curso de Jurisprudência, quando contava unicamente catorze anos de idade.
Sevilla exerceu sobre Juan o feitiço de seu clima. Escreveu versos, escreveu dramas que jamais foram encenados, foi a tertúlias e cenáculos literários, teve suas primeiras ilusões amorosas... Gabino Tejado comenta assim esta época de Donoso. “Nosso filósofo se transformou em um bucólico Batilo, que teve sua correspondente Dorila a quem consagrar apaixonados lamentos”. Dos amigos sevillanos de Donoso recordamos Pacheco, Gallardo, Sotelo, Cívico, Ulloa e J. Claro.
Estes anos em Sevilla foram definitivos na formação do caráter do futuro Marquês de Valdegamas.
Terminados seus estudos de Jurisprudência, Donoso vai a Madri com recomendações para diversos amigos da família que habitam na Corte e cheio de ilusões e esperanças. Imediatamente após chegar se pôs em contato com os grupos literários, e algum dinheiro isso deve ter lhe custado, pois logo pede a seu pai aumento da quantidade que lhe tinha assignado. Em uma dessas tertúlias deve ter conhecido Nicomedes Pastor Díaz, de quem se tornou íntimo amigo. Teve contato com Larra, pois foi a seu enterro, e ali conheceu José Zorrilla, que leu uma poesia sobre a tumba de “Fígaro”. Desde então o vallisoletano participou nas reuniões da casa que Donoso tinha na rua de Atocha.
Fundou revistas literárias, frequentou redações de periódicos políticos, intrigou, se movimentou e conseguiu se tornar conhecido. Mas no outono de 1828 o Colégio de Cáceres, no qual havia sido aluno, o chama para ser professor, e lhe pede que faça o discurso de inauguração. Na conferência fez um recorrido histórico pelas distintas culturas, começando pela queda do Império Romano, para seguir pela invasão dos bárbaros, o espírito das Cruzadas e entonar um apaixonado canto ao século XVIII, do qual diz ter reunido em um só ponto todas as forças que o espírito humano havia podido adquirir. A contextura do discurso dá clara impressão de que foi preparado com todo cuidado e de que se havia preocupado por ter em conta os grandes criadores de sistemas filosóficos. O racionalismo preside todas as suas teses, e Tejado descobre nele um “ecletismo próprio”.
Durante a cerimônia inaugural do curso em Cáceres conheceu Teresa Carrasco, que sentiu imediata admiração por aquele jovem de olhar enérgico e seguro que triunfava com o discurso. Daí se iniciou uma amizade sincera que logo acabou – Donoso trabalhava com veemência quando estava convencido da bondade de uma causa – em casamento. A princípios de 1830 contraíra matrimônio os dos jovens.
Nos dois anos seguintes ao casamento Donoso trabalhou como advogado junto a seu pai. Dessa época aparecem redigidas por ele duas exposições a Fernando VII. Por volta de 1832 voltou novamente à Corte. Em 13 de outubro desse ano, com objetivo de se fazer notar, escreve uma Memória sobre a situação atual de Espanha, que é um elogio dos dotes de Fernando VII e um duro ataque aos partidários do infante Dom Carlos. O primeiro ponto em que se apoia Donoso para seu labor político pode ser resumido nestas linhas: defesa do trono de Isabel, adesão aos princípios liberais com um sentido conservador e burguês, que lhe fará se alinhar na etapa seguinte no grupo moderado, ao qual se associa de forma resoluta. A Memória teve uma feliz acolhida pela imprensa. Federico Suárez Verdeguer afirma que “o maior serviço que poderia ter recebido o liberalismo espanhol em 1832 foi prestado por Donoso Cortés com sua Memória sobre a Monarquia.
Donoso conseguiu com seu trabalho o efeito desejado. Foi nomeado funcionário da Secretaria de Estado e despacho de Graça e Justiça, e um ano mais tarde – 1834 – obtém sua primeira promoção. Continua sua colaboração em jornais e revistas, e por então publica seu Considerações sobre a Diplomacia e sua influência no estado político e social da Europa, da Revolução de Julho até o Tratado da Quádrupla Aliança. No prólogo, escrito depois das terríveis matanças de frades em Madri em 17 de julho de 1834, e bastante depois da obra, se nota o grande efeito que em seu ano fez este sangrento fato. Mas depois de rechaçar os impulsores das desordens, e fazer um canto à religião, inexplicavelmente colaborou com Mendizábal, que, se não matou fisicamente os frades, destruiu suas casas e os secularizou, pretendendo assim lhes dar morte moral.
Nas Considerações faz apologia da pequena Isabel e ataca de forma duríssima o pretendente Dom Carlos. Mostra-se constitucionalista, admirador da Constituição de 1812, sem que lhe ofusque seu brilho, apreciando seus defeitos sem exagerar seus erros. “Meu coração não simpatiza jamais com os que a desprezam, mas minha consciência não me permite queimar incenso em seus altares”. Se mostra partidário do governo pela inteligência, princípio que há de conservar por muito tempo. “A razão nos dita e a História nos ensina que só em nome da inteligência se pode dominar, porque só a ela pertence o domínio absoluto das sociedades”. Não aparece muito clara sua ideia da legitimidade. Rechaça que a união de muitos homens com seus votos possa fazer um rei, mas embasa a legitimidade no exercício, na relação dos atos do soberano com a justiça. Termina as Considerações fazendo uma chamada às Cortes que vão se reunir para que trabalhem com discrição e procurem salvar o “divórcio” entre a liberdade e a ordem. Suárez Verdeguer encontrou nessa obra como objetivos principais: defender o trono, consolidar a liberdade, sufocar a anarquia. A influência dos doutrinários franceses se vê clara ao longo desse escrito, como no que nos haveremos de ocupar em seguida.
O governo, após a matança de frades, o levante dos militares liberais em janeiro de 1835 e as medidas contra as Ordens religiosas recém-iniciadas, acreditou ser oportuno assegurar, sobre bases mais sólidas que aquelas em que se apoiava o débil trono da menina Isabel, e assim proclamou o Estatuto Real, obra essencialmente de Martínez de la Rosa, e enviou agentes às distintas regiões espanholas para conquistar adesões à causa de María Cristina. Donoso foi à Extremadura, e deve ter obtido um êxito sobressalente, já que foi premiado recebendo a categoria de funcionário mais antigo e uma condecoração.
O folheto A Lei Eleitoral, considerada em sua base e em suas relações com o espírito de nossas instituições foi comentado por Pastor Díaz muito favoravelmente, pois veio no momento mais necessário para fazer triunfar a tese da eleição direta sobre a indireta, que contava com muitos partidários. O espírito que alenta esta produção donosiana faz Suárez Verdeguer dizer: “É o momento em que Donoso está caído, o ponto mais baixo da evolução”. Em realidade, continua defendendo o governo da inteligência como único capaz de constituir e manter unidas às sociedades. O triunfo da inteligência atribui a Lutero: “Ele secularizou à inteligência, que, uma vez emancipada, devia dominar como senhor”. Esta obra foi completada pela Revolução Francesa. Se o governo pertence à inteligência, hão de governar os mais inteligentes, quer dizer, as aristocracias legítimas. O interessante: já não é, pois, a origem do Poder, mas as mãos que o exercem, e por elas se legitima. Através das breves páginas do escrito nos é mostrado um Donoso racionalista. Também triunfa com esta nova obra, e é nomeado Chefe de Seção por Gómez Becerra, e mais tarde – em 8 de maio de 1836 – Secretário do Gabinete da Presidência do Governo, que por aquele então ostentava Mendizábal, o reformador do panorama religioso espanhol, e ao cair este, se demite de seus cargos. Sobre esta colaboração, como já dissemos, não há explicação lógica, e nada pode justifica-la.
Donoso, apesar de seu grande labor político, não perdeu o interesse pelas tertúlias literárias, e em 16 de novembro de 1835 participa de uma reunião para reorganizar o Ateneu e obtém votos para ser nomeado secretário. Depois foi um dos mais assíduos participantes.
Ocorre então na vida íntima de Donoso um acontecimento excepcional que vai imprimir caráter à sua existência. Pouco depois de morrer a única filha de seu matrimônio, morre a esposa no verão de 1835. Ele será então, para sempre, um grande solitário. Nos momentos difíceis não tem o consolo que ajude a suportar os momentos difíceis; nos felizes não encontra com quem compartilhar seus êxitos. Mas quiçá a isto devamos o Donoso que vamos buscar, porque sua solidão o levou à meditação, e ali, esquadrinhando nas profundezas de sua consciência, com a graça de Deus, encontrou a verdade, à que havia consagrado sua vida. Não era homem dado a proclamar seus sentimentos íntimos, mas Veuillot, amigo íntimo do Marquês de Valdegamas, nos fala de que a imagem de Teresa não se separou um só momento dele e a conservou sempre uma lembrança fiel, até o ponto de que em Paris a todas as meninas de quem, muitas vezes por caridade ou apostolado, foi padrinho deu o nome querido de sua esposa. Desde a morte de Teresa, Donoso não conheceu o amor de outra mulher. O proclamar isto é uma das melhores homenagens a este homem de alma excelente.
O Político Liberal
Em 1836 Donoso alcança uma posição cobiçada para que sua voz seja ouvida no país: é eleito deputado para as Cortes pela província de Badajoz. Nas coleções de jornais da época, especialmente em El Correo Nacional, onde se dão amplas referências das sessões do Congresso de Deputados, aparece o nome de Donoso frequentemente. Suas intervenções, se não muito numerosas, são suficientes para fazer que seu nome seja conhecido.
A atuação jornalística de Donoso é agora muito maior. Foi redator de La Abeja (1834-36), El Porvenir (1837), El Correo Nacional (1838), El Piloto (1839), e colaborou na Revista de Madrid, El Heraldo (1842), El Tiempo (1846), El Faro (1847), El País (1849), La Época (1849) e La Coalición, de Badajoz.
O fato mais importante de sua atuação pública foi o Curso de Direito Público, que deu por encargo do Ateneu de Madri em seu salão de atos, e que desenvolveu de 22 de novembro de 1836 a 21 de fevereiro de 1837. Estas lições foram julgadas de forma desigual, e geralmente negativamente. Joaquín Costa, não obstante, chega a dizer que são o tratado técnico político mais importante desde Suárez. A obra foi duramente criticada por El Eco del Comercio, onde chegou a se chamar Donoso de “Guizotinho”. Para nós, a importância das lições reside em que marcam um ponto interessante no itinerário da transformação ideológica de Donoso. Começa assinalando um conflito – que também encarnava nele – representado pela autonomia da razão, como princípio social harmonizador, e o da liberdade, como destruidor da harmonia social. “As inteligências – a razão – se atraem. As liberdades se excluem. A lei das primeiras é a fusão e a harmonia; a lei dos segundos, a divergência e o combate. Este dualismo do homem é o mistério da Natureza e o problema da sociedade”. Para superar o dualismo se precisa de uma coesão – o Governo – que não é outra coisa que “a própria sociedade em ação”. Aqui aparece a ideia, bem moderna, do Estado como movimento. A ação do Governo tem um limite que não pode ultrapassar, e quando o faz se converte em despotismo. Importante é sua exposição sobre a soberania; há duas soberanias: a do direito e a do fato; a primeira reside na razão absoluta; a segunda, na razão limitada, que é um reflexo da anterior, e a possuem os distintos membros da sociedade conforme suas distintas capacidades. Os representantes do povo são os mais capazes em teoria, segundo crê Donoso, pelo que o Governo deve ser representativo. Nas lições há vislumbres de algo que o persegue por toda sua vida, e é que tanto a revolução como a ditadura são necessidades transitórias da vida política.
Em 1837 publicou o folheto chamado Princípios constitucionais aplicados ao princípio de Lei fundamental apresentado às Cortes pela Comissão nomeada em efeito. Se quis ver neste trabalho a primeira iniciativa de mudança ideológica de Donoso. Critica a clássica divisão de poderes dizendo que ela é absurda, pois sempre domina o mais forte. Afirma a necessidade de reforçar o poder do Monarca – a Família Real é depositária da inteligência que os séculos lhe hão legado – e afirma que “quando a pessoa que se senta no trono está despojada dele – o Poder – essa pessoa é um súdito com diadema”. As Cortes são “uma instituição sublime, mas inferior em importância ao trono”, pois não são Poder. Concebe aqui a sociedade organizada hierarquicamente, em cujo cume situa o Monarca. Pensa que ademais da Câmara Popular deve haver outra escolhida pelo Monarca, sem intervenção popular. Termina com esta advertência: “Representantes do povo: Não desarmeis o trono diante da democracia, nem o Poder diante das facções, porque agora mais do que nunca é débil o Poder, é forte o povo”.
Se nota um longo caminho percorrido desde as Lições de Direito Político, para não falar nas Considerações sobre a Diplomacia, até este folheto. Donoso sentiu vacilar já suas convicções com as duras experiências a que a realidade de seu tempo o submeteu, e ao contrapor suas crenças aos fatos vai sendo forçado a avançar insensivelmente rumo a pontos por ele ignorados. Pouco depois, em julho de 1838, publica em El Correo Nacional, com o título “Polêmica com o doutor Rossi e juízo crítico sobre os doutrinários”, um artigo, onde mostra seu distanciamento dos antigos mestres franceses, dos quais diz terem sido aptos para governar em uma época de transição, por lhes faltar o “dogma filosófico, político e social que a sociedade buscava, mas que caíram por não saber lhe dar a segurança ideológica desejada”.
Merecem menção outros dois escritos dessa mesma época: España desde 1834 e Da Monarquia Absoluta na España, onde segue avançando em sua mutação ideológica.
Esta variação na postura ideológica de Donoso o aproxima aos círculos mais próximos a María Cristina, diante da hostilidade dos progressistas capitaneados por Espartero. Em 13 de janeiro de 1840 é nomeado novamente Chefe de Seção do Ministério de Graça e Justiça e obtém mandato como deputado por Cádiz. Em 17 de julho de 1839 vai à França, depois de obter permissão em seu cargo administrativo. Bem havia observado o panorama político. Em 12 de outubro a rainha governante abdica da Regência, e em 17 embarca em Valência para Marselha. Ali deve ter encontrado Donoso, que lhe escreveu o Manifesto que ela dirigiu à nação espanhola. A relação entre Donoso e a rainha foi constante no exílio, e dela nasceu uma leal devoção que nosso homem professou sempre – ainda que nos últimos anos haja atenuado bastante – à última esposa de Fernando VII, e que esta lhe devolvia em uma grande confiança e afeto. Assim, lhe propôs formar parte de um Conselho de tutela das infantas Isabel e Luisa Fernanda, ainda quando o Governo não o admitisse e nomeou tutor único a Agustín Argüelles. Depois de uma entrevista em Lyon entre o cavaleiro estremenho e María Cristina, esta lhe enviou a Madri com o fim de conseguir um acordo com Espartero, nomeado regente do Reino, sobre a questão da tutela, missão na qual fracassou. Donoso, após publicar nos jornais da Corte um artigo no qual defendia os direitos régios, regressou novamente a Paris, e tomou amplo contato com os círculos artísticos e literários. O Instituto Histórico de Paris o incorporou em seu seio como membro. Não há dados concretos para explicar suas relações durante esta época com os elementos da escola tradicionalista francesa, mas se nota que os havia lido em suas Cartas ao Heraldo, e que alguns deles, concretamente De Maistre, o haviam impressionado. Suas considerações sobre a guerra, o sacrifício e a dor, como elementos purificadores, estiveram sempre presentes em Donoso. "Que penetrou na sociedade francesa e não esteve apartado dela, como afirma Schramm, o prova que em seus escritos faz desfilar todos os personagens mais representativos da França de então”.
Notícias, ainda que bem escassas, sobre as atividades políticas do futuro Marquês de Valdegamas em Paris nos dizem que atuou como secretário da própria María Cristina e interveio, por encargo da rainha, na pacificação da luta surgida no desterro entre os elementos militares e civis, principalmente após o fracassado intento de raptar as infantas do Palácio do Oriente. Participou na chamada Ordem Militar Espanhola, fundada na capital francesa como sociedade secreta para trabalhar confidencialmente na tarefa de derrubar Espartero, o qual era apoiado por seus “ayacuchos”, e o qual era visto com desgosto pelo país perante o sequestro, mais ou menos evidente, em que tinha à futura rainha Isabel. Nestas atividades antiesparteristas Donoso travou amizade com o General Narváez, “o espadão da Loja”, cuja figura havia de ter tão extraordinária importância no futuro.
Após o famoso “Salve” de Olózaga no Parlamento e o abandono do país por Espartero, com o triunfo da sublevação de Narváez, Donoso regressa à Espanha em outubro de 1943, e reinicia suas tertúlias no Parnasillo, às quais acudiam Pastor Díaz, Pacheco, Zorrilla e Campoamor.
Pouco depois de retornar a Madri, Donoso foi nomeado deputado nas Cortes por Badajoz e, como em legislaturas anteriores, foi um assíduo concorrente às sessões do Parlamento. Sua primeira intervenção de importância política foi ao defender a proclamação da maioridade de Isabel II um ano antes do que dispunham as leis. Foi aclamada Rainha da Espanha em 8 de novembro de 1843.
Com a nova rainha, sua mãe, María Cristina se comunicava por meio de Donoso. As cartas eram ensinadas a Isabel, e como não convinha que se guardassem no Palácio, o próprio Donoso as conservava. Em reconhecimento de sua lealdade, em 30 de março de 1844 foi nomeado secretário particular de S.M. Isabel II, “com exercício de decreto”, conforme os desejos expressados por sua mãe. María Cristina o encarregou, ademais, de tudo o relativo ao testamento de Fernando VII, e em 12 de setembro de 1846 foi nomeado curador ad litem da infanta Luisa Fernanda, e em outubro de 1845, conselheiro de Administração de Sua Majestade.
Seguindo esta verdadeira chuva de mercês, Donoso foi nomeado representante de Isabel II “em comissão especial e com o caráter de ministro plenipotenciário” próximo de S. M., viúva em Paris, com o soldo de 100 mil reais anuais para convidá-lo a regressar a Madri; mas como isso levava anexo o complicado problema do matrimônio da viúva de Fernando VII, foi um dos que mais trabalharam para que se concedesse a seu novo esposo, Dom Fernando Muñoz, filho do “estanquero” de Tarancón, o ducado de Riansares. Salvando os inconvenientes e dificuldades que ao regresso de María Cristina punham França e Inglaterra, em 28 de fevereiro a ex-rainha cruzou a fronteira, e em 12 de março foi recebida em Valência, de onde anos antes havia partido, com um discurso de Donoso Cortés, que por então recebeu a grande cruz de Isabel a Católica. Em 1 de outubro de 1845 foi nomeado também “gentil-homem” da Câmara, com exercício.
Novamente foi eleito deputado por Badajoz, e designado para formar parte, como secretário, da Comissão de Reforma Constitucional. Redigiu o informe e defendeu o projeto na Câmara. Por este fato concreto, Donoso rompeu a relação íntima que até então o havia ligado ao grupo moderado, que então se chamava “puritano”. A reforma significava tanto como um passo mais na direção da ordem, era como um avanço pelo mesmo caminho pelo qual ele marchava pessoalmente. Dois eram seus pontos principais: dar um estado de solidez e garantia às relações da Igreja e do Estado, e diante da proximidade do casamento da rainha e de sua irmã, herdeira do trono, lhes dar uma mais ampla liberdade quanto à escolha de esposo; assim, se adotou o acordo de que as Cortes deviam ser inteiradas simplesmente sobre o enlace projetado. Outro ponto de ampla discussão, que defendeu Donoso com grande paixão, foi o da escolha de senadores do Reino, que atribuiu somente ao monarca, para estabelecer “entre o Senado e o Congresso a diversidade que procede de sua origem”. O ditame sobre a Reforma, atribuído por todos os autores integramente a Donoso, e publicado até agora como seu em todas as edições de suas Obras, começa com uma afirmação incisiva, que indica bem às claras seu conteúdo: “A Reforma conta por adversários os que não reconhecem às Cortes, com o rei, a potestade de fazer nas Constituições políticas aquelas mudanças e correções que aconselham às vezes a variedade dos tempos e o bem do Estado”. A fórmula das “Cortes com o rei”, tão tradicional em nosso direito público, é o reconhecimento expresso do valor das instituições seculares. “As Cortes com o rei são a fonte das coisas legítimas”. Apesar disso segue condenando a fundamentação da soberania, tanto no céu como na vontade do povo.
No discurso, de forma incisiva, rompe já toda relação com o partido moderado. Lafuente disse que “em 1842 estava Donoso sedento de afirmações e muito irritado contra as negociações e as dúvidas”. Foi isto, sem dúvida, o que o levou a esta situação com os puritanos, os quais acusa de não terem valorado devidamente os elementos políticos claramente espanhóis, entregando-se, ao contrário, a ideias estranhas. Fala com calor de sua ideia da Monarquia. “Espanha, senhores, foi sempre uma Monarquia: essa Monarquia em toda a prolongação dos tempos, foi uma Monarquia democrática. A Monarquia! Vejam aí para nós a realidade política. O catolicismo! Vejam aí para nós, para todos, mas especialmente para nós, a verdade religiosa”. A alma inquieta de Donoso alcançou já uma verdade, uma verdade na qual começa a encontrar descanso e sossego. Mas lhe interessa que sua ideia da democracia não se confunda. “Quando eu falo da Monarquia democrática, o Governo democrático, não falo da Monarquia das multidões. A Monarquia democrática – essa é sua definição naquele momento- é aquela em que prevalecem os interesses comuns sobre os interesses privilegiados, os interesses gerais sobre os interesses aristocráticos. Esta é a Monarquia democrática”. A História diria a Donoso que não há outra democracia possível além da das multidões, enquanto se admite o princípio de contar com essa mesma massa, à qual ele opunha seu veto.
A vida parlamentar do político estremenho chegou a ser nestes amuitos muito mais intensa que havia sito até então. Sua voz foi ouvida frequentemente nas Cortes, e se valoraram cada vez mais suas intervenções, que chegaram a ser ouvidas com sensação pela influência que exercia na Câmara. Apesar de tudo, Donoso continuou sendo um solitário. “Ou bem porque lhe faltaram certos traços de caráter, ou bem porque seu talento prático não valesse tanto quanto seu talento especulativo, dado que não seja absurda esta distinção de talento, ou bem porque as circunstâncias entram por muito na elevação e bom êxito dos nomes, Donoso Cortés, ainda que tenha chegado a formar seita, escola ou semiescola, da qual foi chefe, jamais foi, nem mesmo capitaneou, não um partido político ativo e militante, mas nem mesmo uma pequena facção”.
Outro discurso de importância nesta época é o que ele pronunciou em 15 de janeiro de 1845, referente à dotação de culto e clero, quando se discutia o projeto do Governo de Narváez. Nele expõe, segundo as ideias de De Maistre, sua opinião de que as revoluções são obra dos desígnios da Providência, e aporta uma importante mudança de suas ideias anteriores. “A autoridade pública, considerada em geral, considerada em abstrato, vem de Deus; em seu nome se exerce a doméstica do pai; em seu nome, a religiosa dos sacerdotes; em seu nome, a política dos governantes dos povos, e o Estado, me encontro autorizado para dizê-lo logicamente, deve ser tão religioso quanto o homem”. Afirma que a suprema religiosidade do Estado consiste em reconhecer à Igreja, e que sendo as duas sociedades de natureza distinta, esta independência pode se conservar sem esforço. Propõe que se torne o clero proprietário de renda perpétua do Estado, como meio seguro de atender sua subsistência e consagrar sua independência. Pela primeira e única vez, Donoso levantou a bandeira da necessidade de constituir um partido político nacional que acabe com as diferenças de grupos e facções. “A questão consiste em encontrar um terreno suficientemente alto, bastante livre para que nele possa evoluir livremente um partido nacional que sufoque a voz de todos os outros partidos”. Os partidos devem se unir no que para ele constitui a verdade espanhola, e deveriam ser “muito liberais, muito populares, muito monárquicos, muito religiosos”. Se nota, facilmente, como o melhor do discurso é a ideia que nele alenta, pois dificilmente o liberalismo, essencialmente diversificador, pode unir, e Donoso prossegue fazendo dele base de seu sistema.
O discurso sobre os casamentos reais de Isabel II e Luisa Fernanda, de que já falamos anteriormente, valeu para Donoso ser nomeado Visconde do Valle e Marquês de Valdegamas, com grandeza de Espanha, assim como o governo francês lhe fez grão-oficial da Legião de Honra. Não faltava quem viesse com desdém flutuar prosperamente nas ondas agitadas do desdém cortesão; e mesmo de seus amigos sinceros ocorria às vezes de, no seio da mútua confiança, se desprender um gracejo, quando não uma crítica manifesta por aquele aluvião de brasões que se iam acumulando para decorar um nome, que certamente já era bastante ilustre. Donoso, a quem nem os gracejos, nem as críticas neste assunto jamais ofendiam, tinha para todos uma resposta que ele mesmo, em tom familiar, formulava assim certo dia, dirigindo-se a um de seus amigos verdadeiros: “Diga você: se você fosse um democrata raivoso, e para conquistar vontades precisasse frequentar tabernas de beira de estrada, que traje você usaria? Não lhe seria mais conveniente ir com jaqueta no ombro, garrote em mão e gorro frígio colorido? Pois coloque-se no meu lugar, amigo, tudo que minhas ideias tem que fazer no mundo, se faz principalmente nos palácios, que traje você quer que eu use senão o que usam os palacianos?”.
O ciclo da atuação parlamentar de Donoso durante esta temporada se encerra com sua intervenção sobre as relações da Espanha com o estrangeiro, ao ser discutido nas Cortes o projeto de contestação ao discurso da rainha. Sua primeira afirmação é taxativa: “A Espanha não tem há muito tempo uma política externa propriamente dita”. Para ele há três países na época de sua intervenção parlamentar que a tem: Inglaterra, que quer a todo custo conservar seus mercados e criar novos; Rússia, que aspira conservar suas conquistas e se preparar para ampliá-las; Estados Unidos da América do Norte, com o desejo de alcançar que o princípio de liberdade dos mares seja reconhecido, e sua vontade de assegurar e convencer que a América é para os americanos, e que a Europa não tem direito a interferir nos assuntos do Novo Continente. Dos outros países, a Itália está para ele sob protetorado da Áustria; a Bélgica, sob o protetorado da Europa; os povos alemães, sob o influxo da Confederação, e a Confederação recebe os impulsos de Berlim e Viena, e estes estão submetidos à influência da Rússia. A França não tem política externa mesmo quando a busca, e a Espanha não a tem e não a busca.
Falou também neste discurso das relações da Espanha com França e Portugal. Crê que a nação vizinha buscou nossa amizade quando se encontrava fraca e, não obstante, nos desprezou ao se sentir poderosa. Nosso ponto de fricção com os franceses se encontra na África. Mas na realidade a França não pode fazer nada neste continente sem nós, já que se geograficamente somos uma barreira entre os dois, cultural, política e religiosamente, nossas ideias, ainda quando europeias, são influenciadas por sua proximidade com a África. “A França não pode recorrer à assimilação; o que lhe resta? Recorrer ao extermínio; mas para o extermínio, prescindindo de que não é arma posta a serviço das nações civilizadas, prescindindo de que não civiliza os exterminados e barbariza os exterminadores, é necessário contar com a aliança do tempo”. Mas Donoso vê que a França não tem tempo, pois seus exércitos da África terão de ser levados com o tempo para defender as fronteiras do Reno. A Espanha não soube tirar proveito das desvantagens da França na África, porque ninguém se propôs seriamente nossa missão neste Continente, e, não obstante, “o interesse permanente da Espanha é ou sua dominação na África, ou impedir a dominação exclusiva de qualquer outra nação. Digo que é nosso interesse permanente porque não é de partido; é espanhol. Não passa com os meses, nem com os anos; é interesse que se prolonga com os séculos”.
A Inglaterra é julgada duramente, como em outros de seus trabalhos. “A Inglaterra, senhores, não aspira à posse material do globo. A Inglaterra se contenta com considerar o globo como se fosse um imenso campo de batalha e ocupar as posições mais vantajosas, as posições estratégicas, como se disséssemos, os pontos fortificados; é o sistema da Inglaterra. Isto não quer dizer que a Inglaterra aspira à posse material da Península. A Inglaterra, senhores, se contenta com ter na Península duas magníficas posições: uma, na boca do Estreito; outra, nas costas do Oceano: Gibraltar e Lisboa. Agora bem, senhores, disso resulta que a Inglaterra está mais perto de nós que a França. Se a França está em nossas fronteiras, a Inglaterra está em nosso território; se a França está em nossas portas, a Inglaterra está em nossa casa; o que temos que temer da Inglaterra, o que a Inglaterra está realizando, se pudermos dizer assim, é o rompimento de nossa unidade territorial”. “A dominação exclusiva da Inglaterra em Portugal é nosso opróbio. A nação não pode consenti-la, a nação não o consentirá; não o consentirá, senhores, porque a potência que seja senhora de Portugal será tutora de Espanha, e o povo espanhol, caído como está, postrado no solo como o vemos, conserva ainda, senhores, suficiente dignidade viril para não consentir cair sob a tutela perpétua qual mulher romana”.
Donoso segue ascendendo na carreira no caminho de sua evolução política, acompanhada de uma profunda transformação religiosa. Seu espírito se põe em marcha, a graça do Senhor tocou sua alma. Só fazem falta os acontecimentos precisos que o arremessem para o alto.
A Transformação de Donoso
O primeiro sinal dessa transformação é seu comentário sobre as reformas de Pio IX, às quais já fizemos referência. É filho submisso da Igreja, e como tal, não encontra senão justificativas para a atuação do Papa.
Mas agora se produzem fatos importantes que vão mover sua alma. O caminho de sua mutação se inicial, como ele mesmo confessa, segundo o testemunho do Conde de Bois-le-Comte com a amizade de um homem que lhe serve de exemplo com sua conduta, que lhe disse estar baseada unicamente em sua condição de católico. Quis imitar desde esse dia àquele santo varão, e a fé religiosa que estava letárgica no mais íntimo de seu ser, ajudada por um movimento da Graça, começou a despertar e a formar parte viva de sua estrutura mental e da conduta do jovem político. Que nunca deixou de ser católico o prova a linha de seus escritos e discursos que seguimos até agora, ainda que em muitas ocasiões a sua fogosidade e sua paixão deixassem em segundo plano seu sentido religioso. A expressão exata seria dizer que o catolicismo estava presente em sua vida, mas não com uma vigência real e plena. Isso se desprende da carta do próprio Donoso a Blanche-Raffin, tão mencionada por quantos se ocuparam de sua vida: “Eu sempre fui crente no íntimo de minha alma; mas minha fé era estéril, porque nem governava meu pensamento, nem inspirava meus discursos, nem guiava meus amores...” A remoção do tesouro da fé católica que se produz em sua vida ao contato com o homem bom o faz sentir o desejo de se agarrar a verdades absolutas, de não caminhar mais entre vacilações. Nestes anos de luta e perturbação interior se produzem simultaneamente outros dois fatos decisivos em sua evolução. Em 1817 morre seu irmão mais querido, Pedro, homem afiliado ao partido carlista, de profunda religiosidade, e sua morte edificou de tal modo Juan, que por isto, e também por seu contato direto com a morte em uma época de profunda luta interior, se submeteu completamente ao espírito que alentava dentro dele. Em sua carta ao Marquês de Raffin em 21 de julho de 1849 o confessa sinceramente: “Tive um irmão a quem vi viver e morrer, e que viveu uma vida de anjo e morreu como os anjos morreriam se morressem. Desde então jurei amar e adorar, e amo e adoro... – ia dizer o que não se pode dizer – com ternura infinita, o Deus de meu irmão. Dois anos vão já depois daquela tremenda desgraça... Veja você aqui, meu amigo, a história íntima e secreta de minha conversão... Como você vê, aqui não houve qualquer influência nem do talento nem da razão; com meu talento fraco e com minha razão enferma, antes que a verdadeira fé me teria chegado a morte. O mistério (porque toda conversão é um mistério) é um mistério de ternura. Não o amava, e Deus quis que eu o amasse, e o amo; e porque o amo, estou convertido”. Bem claro se deduz dessas linhas que Donoso percebeu o golpe da Graça chamando seu coração, e sua alma – cheia de ternura, diz ele – se entregou por completo.
Até hoje o que com mais cuidado e êxito haja estudado o processo de transformação de Donoso foi Suárez Verdeguer em seu trabalho Evolução Política de Donoso Cortés. Para ele, é preciso separar cuidadosamente os dois aspectos de sua conversão: o intelectual e o religioso, e ainda que o método seja justo, não cabe deixar de consignar que é preciso andar apoiado em seus avanços em um campo para compreender os alcançados no outro. Para sua mutação política é preciso ter em conta os graves sucessos revolucionários que se produzem em toda Europa, exceto em Inglaterra e em Espanha, no ano de 1848, e que o intimam a entrar por um caminho no qual a transformação de sua ideologia política é já completa. Não esqueçamos tampouco neste ponto que seu irmão Pedro era, como dissemos, carlista. Schramm considera importantíssima em toda evolução de Donoso sua posição política.
A nova posição de Donoso amplia sua solidão, e agora já, por sua grande influência política, será atacado duramente, inclusive por seus amigos de antes, que o veem triunfar, ainda apesar de sua rígida e inflexível ideologia. Em umas quadras epigramáticas o chamam “mártir plenipotenciário, ex-deputado e marquês”, e o deram o apelido ridículo de “Cocoricó”.
Desde aquele momento, excetuando sua intervenção na desavença entre os régios esposos – da qual Natalio Rivas falou – não atua na concreta e pequena política diária, apegada às circunstâncias do momento. O mesmo se considera desapegado da terra: “Eu estou cansadíssimo e fatigadíssimo de tudo; como, por outro parte, tenho a segurança de que, o diabo levará tudo, não seria estranho que me enfiassem em minha casa para ver a partir do interior de nossa província como fracassa a nave; isto de lutar e lutar sem esperanças é duro”. O diz em 20 de julho de 1851, e pouco mais tarde afirma: “Não posso senão felicitar você por seu propósito de se separar da política ativa. Este é também meu propósito, e a ele ajusto já minha conduta. As coisas da religião me ocupam exclusivamente”.
Foi o próprio Donoso que assinalou com sua pena a transição de uma de suas épocas à outra. Na Coleção escolhida de seus escritos, que foi publicada pouco antes da Revolução de 48, diz: “O autor dos escritos que compõem esta coleção não a publica por colocar nela a vaidade, nem porque a estime muito; a publica somente para dar mostra de deferência a seus amigos, que desejavam há tempo ver reunidos os escritos que sobre matérias graves improvisei em questões críticas ou solenes. Decidido, por outra parte, mais em novas rotas e rumos nas ciências sociais e políticas, acreditei que esta coleção poderia servir para assinalar o término de uma época importantíssima de sua vida e o princípio de outra que não há de ser menos importante”. Esta é uma prova mais de que, contra o que opina Sehramm, não foi a revolução do 49 que influenciou decisivamente em sua conversão. Se não cabe menosprezar a reação que isso pressupõe em seu ânimo, não cabe lhe dar uma importância excepcional. “A revolução de fevereiro – diz Tejado – não é a única nem a principal das explicações naturais do ardor com que se lançou nos estudos teológicos, embebendo sua alma nos arroubos do misticismo. O que essa revolução fez foi confirmar suas crenças, exaltar pela doutrina que se havia apoderado de seu espírito e dotá-la de pujança inigualável para combater as doutrinas opostas cujas consequências julgava desastrosas”.
Confirmações dessa mudança é que ao ser chamado à Real Academia Espanhola se dedica ao estudo da Bíblia, e seu discurso de ingresso na Corporação – 16 de abril de 1848 – versou precisamente sobre a Sagrada Escritura.
Dessa época são os mais conhecidos discursos de Donoso: o chamado “sobre a Ditadura”, pronunciado em 4 de janeiro de 1849, e o que versa “sobre Europa” – 30 de janeiro de 1850 – nos quais o caminho de sua evolução política já está nobremente alcançado. As duas orações parlamentares percorreram ontem o mundo, e voltam a percorrê-lo hoje, enchendo de assombro e admiração. Nem sempre as interpretações são justas ou desinteressadas, mas a força de seu conteúdo fica patente com a juventude permanente de seus argumentos.
A recente publicação em Espanha do livro de Carl Schmitt Interpretação Europeia de Donoso Cortés fez surgir uma polêmica sobre a verdadeira ideia da Ditadura de Valdegamas. As ideias claras, sem qualquer distorção, são neste ponto fáceis de perceber. Trata-se de um discurso pronunciado em plena situação anormal da Espanha, rodeada por uma Europa feita presa da revolução. A única possibilidade naqueles momentos está representada pelo General Narváez, que, com a força que lhe dá seu grau militar, é o único que pode manter a ordem. Os progressistas o atacam no Parlamento pela suspensão de garantias constitucionais que Donoso conseguiu, que se dá conta exata da situação, defende o Duque de Valência, partindo de que mais que as leis, importa a sociedade para quem as leis estão feitas. “O princípio de sua senhoria – o progressista Cortina – bem analisado seu discurso, é o seguinte: em política interior, a legalidade: tudo pela legalidade; a legalidade sempre, a legalidade em todas as circunstâncias, a legalidade em todas as ocasiões; e eu, senhores, que creio que as leis foram feitas para as sociedades, e não as sociedades para as leis, digo: a sociedade, tudo para a sociedade, tudo pela sociedade; a sociedade sempre, a sociedade em todas as suas circunstâncias, a sociedade em todas as ocasiões. Quando a legalidade basta para salvar a sociedade, a legalidade; quando não basta, a ditadura. Senhores, esta palavra tremenda (que tremenda é, ainda que não tanto quanto a palavra revolução, que é a mais tremenda de todas); digo que esta palavra tremenda foi pronunciada aqui por um homem que todos conhecem; este homem não foi, por certo, da madeira dos ditadores. Eu nasci para compreendê-los, não nasci para imitá-los. Duas coisas me são impossíveis: condenar a ditadura e exercê-la”. “...Digo, senhores, que a ditadura, em certas circunstâncias, em circunstâncias dadas, em circunstâncias como as presentes, é um Governo legítimo, é um Governo bom, é um Governo proveitoso, como qualquer outro Governo; é um Governo racional, que pode ser defendido, na teoria, como pode ser defendido na prática”. Para explicar melhor a sua ideia, Donoso acode a um símile. Diz que o corpo social, tal como o corpo humano, deve concentrar todo o poder para lutar contra as forças invasoras do mal, quando o mal se concentra em associações políticas para agrupar suas possibilidades contra o Governo.
Se atreve logo a dizer que assim como Deus imprimiu leis à Natureza, que comparando-as com a ordem política pudéssemos chamar constitucionais, assim também as suspende algumas vezes, quebrando-as com o fato sobrenatural ou milagroso, que se corresponde no político com o fato extraordinário da ditadura. Para ele “a questão, reduzida a seus verdadeiros termos, não consiste já em averiguar se a ditadura é sustentável, se em certas circunstâncias é boa; a questão consiste em averiguar se chegaram ou passaram para Espanha estas circunstâncias”. Repassa os acontecimentos revolucionários ao longo do ano 48, e diz: “A questão não está entre a liberdade e a ditadura; se estivesse entre a liberdade e a ditadura, eu votaria pela liberdade, como todos os que nos sentamos aqui. Mas a questão é esta, e concluo: trata-se de escolher entre a ditadura da insurreição e a ditadura do Governo; posto neste caso, eu escolho a ditadura do Governo, como menos pesada e menos afrontosa. Trata-se de escolher, por último, entre a ditadura do punhal, e a ditadura do sabre: eu escolho a ditadura do sabre, porque é mais nobre”.
Donoso fala logo da necessidade em que se encontra a sociedade de uma maior repressão política quando falta a fé religiosa, e estuda esta necessidade ao longo da História. A única solução que Donoso entrevê é a volta ao espírito religioso, mas não o crê possível nem provável nos povos coletivamente, ainda quando o espera nos homens.
O gênio profético de Donoso, do qual tanto se falou, o explica assim: “Para anunciar estas coisas não necessito ser profeta. Me basta considerar o conjunto pavoroso dos acontecimentos humanos desde seu único ponto de vista verdadeiro: desde as alturas católicas”. Por isso ele julga as revoluções como fatos providenciais que Deus envia aos povos. “Eu admirei aqui – na Espanha – e ali – fora dela – a lamentável rapidez com que se trata a causa profunda das revoluções. Senhores, aqui, como em outras partes, não se atribuem as revoluções senão aos defeitos dos Governos. Quando as catástrofes são universais, imprevistas, simultâneas, são sempre coisa providencial, porque, senhores não outras são as características que distinguem as obras de Deus das obras dos homens”. As revoluções não são feitas pelos povos escravos e famintos. São enfermidades dos povos ricos e dos povos livres; “o gérmen das revoluções está nos desejos superexcitados das multidões, pelos tribunos que a exploram e se beneficiam. E sereis como os ricos, vê-se aí a fórmula das revoluções socialistas contra as classes médias. E sereis como os nobres; vê-se aí a fórmula das revoluções das classes médias contra as classes nobiliárias. E sereis como os reis; vê-se aí a fórmula das revoluções nobiliárias contra os reis. Por último, senhores, e sereis à maneira dos deuses; vê-se aí a fórmula da primeira rebelião do primeiro homem contra Deus. Desde Adão, o primeiro rebelde, até Proudhon, o último ímpio, essa é a fórmula de todas as revoluções”.
Para compreender em todo seu valor este estudo sobre a ditadura seria preciso trazer aqui, imediatamente, posições pessoais e textos posteriores que esclarecem e completam esta ideia de Donoso, interpretada segundo a conveniência do instante por cada um, esquecendo-se das circunstâncias em que se falou, e de fatos distantes que esclarecem o significado total da teoria donosiana.
Ademais de atender ao Parlamento, presidiu Donoso em 1948 o Ateneu de Madri e em 6 de março de 1849 chegou a Berlim como embaixador da Espanha, com 200 mil reais de soldo, posto do qual regressou no mês de novembro do mesmo ano com licença de três meses como enfermo, depois ampliado, por justificar que lhe caía mal o clima da capital da Prússia, segundo diz na solicitude de sua licença. Antes de ir a Berlim Madrazo pintou seu célebre retrato. Em sua passagem por Paris visitou Veuillot, e ainda que não se saiba se tiveram relação antes, daí saiu uma sincera e profunda amizade, como o prova, por exemplo, a carta que Donoso escreveu ao jornalista francês de Don Benito, onde foi descansar, na qual o estremenho expressa toda sua espiritualidade e delicadeza de alma diante da paisagem que o viu nascer.
De 26 de maio é uma carta do Marquês de Valdegamas a Montalembert, escrita em Berlim. Nela insiste sobre sua tese acerca de diversos pontos teológicos e políticos. “A civilização católica ensina que a natureza humana está adoecida e caída; caída e adoecida de uma maneira radical em sua essência e em todos os elementos que a constituem. Estando adoecido o entendimento humano, não pode inventar a verdade nem descobri-la, apenas vê-la quando ela é posta diante de si; estando adoecida a vontade, não pode querer o bem nem pô-lo em prática, senão com ajuda, e não o será senão estando sujeita e reprimida. Sendo isto assim, é coisa clara que a liberdade de discussão conduz necessariamente ao erro, como a liberdade de ação conduz necessariamente ao mal. A razão humana não pode ver a verdade se ela não for exposta por uma autoridade infalível e pedagógica; a vontade humana não pode querer o bem nem operá-lo se não estiver reprimida pelo temor de Deus. Quando a vontade se emancipa de Deus e a razão da Igreja, o erro e o mal reinam sem contrapeso no mundo”. Propõe também o problema do bem e do mal, afirmando que o triunfo sobre o mal é uma coisa reservada a Deus. Insiste ante Montalembert em sua própria situação pessoal: “Nesta espécie de confissão geral que faço em sua presença devo declarar aqui ingenuamente que minhas ideias religiosas e políticas de hoje não se parecem com minhas ideias políticas e religiosas de outro tempo. Minha conversão aos bons princípios se deve, em primeiro lugar, à misericórdia divina, e depois, ao estudo profundo das revoluções... As revoluções são, desde certo aspecto e até certo ponto, boas como as heresias, porque confirmam na fé e a esclarecem”.
Desde Berlim, escreveu também diversos despachos oficiais, publicados por Tejado como “Cartas a um amigo”; nelas estuda a situação geral da Prússia, da Áustria e da Confederação Germânica, relacionando-as com a Europa.
Após seu retorno a Madri, Donoso pronunciou outro dos discursos que alcançaram renome universal. É o chamado Discurso sobre Europa (30 de janeiro de 1850), que é uma olhada genial sobre a então atualidade europeia – com a qual tomou contato direto – uma previsão certeira do desenvolvimento dos acontecimentos. Combate em primeiro lugar aos que querem crer que o avanço socialista possa ser detido unicamente com medidas econômicas. “O socialismo é filho da economia política, como o filhote de víbora é filho da víbora, que, apenas nascido, devora sua própria mãe. Entrai nestas questões econômicas, colocai-as em primeiro plano, e eu os anuncio que antes de dois anos tereis todas as questões socialistas no Parlamento e nas ruas. Se quer combater o socialismo? Ao socialismo não se combate; e esta opinião, da qual antes se teriam rido os espíritos fortes, não causa mais risos na Europa nem no mundo: se se quer combater o socialismo, é preciso acudir àquela religião que ensina a caridade aos ricos; aos pobres, a paciência: que ensina os pobres a serem resignados e aos ricos a serem misericordiosos”. Fala logo da importância alcançada pelo socialismo e a debilidade da Europa para combate-lo. Diz que o socialismo tem três grandes teatros: França, onde estão os discípulos; Itália, onde estão os “sheiks”, e Alemanha, onde estão os pontífices. A sociedade não sabe atuar frente este novo fato, e tudo anuncia a confusão e o cataclismo. Donoso tem aqui um de seus momentos mais eloquentemente catastróficos. “Tudo anuncia, tudo, para o homem que tem boa razão, bom sentido e engenho penetrante, tudo anuncia, senhores, uma crise próxima e funesta; tudo anuncia um cataclismo como ainda não viram os homens. E senão, senhores, pensai nestes sintomas que não se apresentam nunca, e principalmente, que não se apresentam nunca reunidos, sem que por trás venham pavorosas catástrofes. Hoje em dia, senhores, na Europa todos os caminhos conduzem à perdição. Uns se perdem por ceder, outros se perdem por resistir. Onde a debilidade há de ser a morte, ali há príncipes débeis; onde a ambição há de causar a ruína, ali há príncipes ambiciosos; onde o próprio talento, senhores, há de ser causa de perdição, ali põe Deus príncipes entendidos”. Mas o mal da Europa, que muitos atribuem aos Governos, é muito outro. Para Donoso está em que os governados se tornaram ingovernáveis; em que desapareceu por completo a ideia da autoridade divina e da autoridade humana. Refere logo suas afirmações concretas ao caso da França, onde a República subsiste, sem que se encontre um só republicano, porque para ele a República é a forma necessário de Governo nos povos que são ingovernáveis.
Para fundamentar sua teoria das relações entre o religioso e o político, fala de duas fases históricas da sociedade: uma afirmativa e outra negativa. A afirmativa contém estes três enunciados positivos na ordem religiosa: primeira, existe um Deus, e este Deus está em todas as partes; segunda, este Deus pessoal que está em todas as partes reina no céu e na terra; este Deus, que reina no céu e na terra, governa absolutamente as coisas divinas e humanas. A estas três afirmações religiosas correspondem as três afirmações da ordem política: “Há um rei que está em todas as partes por meio de seus agentes; este rei que está em todas as partes reina sobre seus súditos; e este rei que reina sobre seus súditos governa seus súditos. De modo que a afirmação política não é mais que uma consequência da afirmação religiosa”. Com estas três afirmações conclui para Donoso o período da civilização, do progresso e do catolicismo. No segundo período, negativo e de barbárie, se graduam estas três negações: Primeira, Deus existe, Deus reina; mas está tão alto, que não pode governar as coisas humanas. A esta negação corresponde a dos constitucionais progressistas: “O rei existe, o rei reina; mas não governa”. A segunda negação religiosa é de ordem panteísta: “Deus existe, mas não tem existência pessoal; Deus não é pessoa, e como não é pessoa, não governa nem reina; Deus é tudo o que vemos, é tudo o que vive, tudo o que existe, tudo que se move; Deus é a Humanidade”. A negação correspondente é a republicana: “O poder existe; mas o poder não é pessoa, não reina nem governa; o poder é tudo o que vive, tudo o que existe, tudo o que se move, logo é a multidão, logo não há mais meio de governo que o sufrágio universal, nem outro governo que a república”. Progredindo na ordem das negações religiosas, vem a terceira, a do ateu: “Deus nem reina, nem governa, não é pessoa, nem é multidão; não existe”, que corresponde à negação política representada naquele momento em que escreve Donoso por Proudhon, que diz claramente: “Não há Governo”.
Diz Donoso que a Europa caminha pela segunda das negações, e marcha decididamente para a terceira. Considera o perigo da Rússia, e crê que não pode atacar naquele momento, pois perdeu a influência que exercia sobre Áustria e Prússia pela torrente revolucionária, que os fez mudar de postura. A Rússia, em caso de guerra, teria que lutar contra toda a Europa, para o que não deve estar disposta. Veja-se aqui por que a Prússia evita a guerra, e veja-se aqui por que a Inglaterra quer a guerra; e a guerra teria eclodido se não houvesse sido pela debilidade crônica da França, que não quis seguir nisto à Inglaterra; se não houvesse sido pela prudência austríaca e se não houvesse sido pela prudência sagaz da diplomacia russa. Não obstante, Donoso opina que a Rússia fará guerra ao Ocidente quando haja alcançado seus propósitos. Necessita, primeiro, que a revolução, depois de ter dissolvido a sociedade, dissolva os exércitos permanentes; segundo, que o socialismo, despojando os proprietários, extinga o patriotismo, porque um proprietário despojado não é patriota, não pode sê-lo; quando a questão vem apresentada dessa maneira angustiosa, não há patriotismo no homem; terceira, o acabamento do empreendimento da confederação poderosa de todos os povos eslavos sob a influência e protetorado da Rússia. As nações eslavas contam, senhores, com 80 milhões de habitantes. Agora bem, quando na Europa não haja exércitos permanentes, tendo sido dissolvidos pela revolução; quando na Europa não haja patriotismo, tendo sido extinto pelas revoluções socialistas; quando no Oriente da Europa se haja verificado a confederação dos povos eslavos; quando no Ocidente não haja mais que dois grandes exércitos: o exército dos despojados e o exército dos despojadores, então, senhores, soará no relógio dos tempos a hora da Rússia; então a Rússia poderia passear tranquila, arma no braço, sobre nossa pátria”. O castigo neste momento da Rússia, Donoso o vê mais contra a Inglaterra do que contra outra qualquer nação. Mas desse contato da Rússia com a civilização ocidental pode resultar sua decomposição, pois atuará em suas veias como um veneno.
A Inglaterra, não obstante, é a menos exposta às revoluções. “Eu creio – profetiza – mais fácil uma revolução em São Petersburgo do que em Londres”. E o tempo lhe deu razão. Mas para que a Grã-Bretanha possa cumprir sua missão lhe falta ser católica, ter formas e instituições católicas. A França não conta com relação a este problema no ânimo de Donoso, pois já não é uma nação; “é o clube central da Europa”.
Expressa sua opinião de que, no final das contas, os Governos absolutos são os mais baratos para a sociedade, e que as economias que se pretendam fazer no orçamento nacional, como as que se iam de fazer às custas do Exército, resultarão caríssimas, pois a civilização está defendida neste momento somente pelas armas.
Ao pedir a votação a favor do orçamento de defesa se dirige especialmente às direitas, receosas da autoridade: “E vós, senhores da oposição conservadora, eu os peço: olhai também por vosso futuro; olhai, senhores, pelo futuro de vosso partido. Juntos combatemos sempre; combatamos juntos ainda. Vosso divórcio é sacrilégio; a pátria os pedirá conta disso no dia de seus grandes infortúnios. Este dia talvez não esteja longe; o que não o veja possível, padece uma cegueira incurável. Se sois belicosos, se quereis combater aqui, guardai para esse dia vossas armas. Não precipiteis, não precipiteis os conflitos. Senhores, não lhes basta a cada hora sua pena, a cada dia sua angústia e a cada mês seu trabalho? Quando chegue este dia da tribulação, a angústia será tanta, que chamaremos irmãos até àqueles que são nossos adversários políticos; então vos arrependereis, ainda que tarde talvez, de terem chamado inimigos aos que são vossos irmãos”.
Este discurso correu por toda Europa, e até Metternich fez chegar seus elogios ao jovem pensador espanhol. A força oratória dessa oração é tanta, que por si só teria bastado para fazer conhecer em todo o continente o nome de Juan Donoso Cortés.
O “Ensaio”
Pouco depois Donoso publicava um trabalho de grande extensão, que havia tardado algum tempo em preparar. A obra foi terminada em 7 de agosto de 1850, mas até o ano seguinte não se deu a conhecer ao público. A versão francesa foi feita por Louis Veuillot, diretor de L’Univers, grande amigo do autor. Aqui se fazem notar a cada passo os estudos teológicos seguidos por Donoso, e a mudança segura e definitiva de sua orientação política e religiosa.
O Ensaio está dividido em três livros. No primeiro trata das relações da teologia e da política, da sociedade e do catolicismo e do triunfo da Igreja Católica sobre a sociedade. O livro segundo começa com uma referência à liberdade humana e suas consequências; trata do princípio do bem e do mal, da harmonização da Providência Divina e do livre-arbítrio, e das soluções que para estes problemas encontraram, falsamente, as escolas liberal e socialista. O terceiro livro está dedicado a analisar a solidariedade humana, a transmissão da culpa, a ação purificante da dor; os erros liberais e socialistas a este respeito, e do máximo sacrifício, o da encarnação do Filho de Deus e a redenção do gênero humano. À frente da edição colocou Donoso esta advertência, que não impediu as mais duras críticas: “Esta obra foi examinada em sua parte dogmática por um dos teólogos de mais renome de Paris, que pertence à gloriosa escola dos beneditinos de Solesmes. O autor se conformou na redação definitiva de sua obra com todas as suas observações”.
A iniciação do Ensaio é bastante conhecida por ter sido reproduzida mais de uma vez por muitos que não conhecem do importante estudo senão esta frase: “M. Proudhon escreveu em suas Confissões de um Revolucionário estas notáveis palavres: ‘É coisa que admira o ver de que maneira em todas as nossas questões políticas tropeçamos sempre com a teologia’. Nada há aqui que possa causar surpresa, senão a surpresa de M. Proudhon. A teologia, por ser a ciência de Deus, é o oceano que contém e abarca todas as ciências, assim como Deus é o oceano que abarca e contém todas as coisas”. Faz ver logo como todas as sociedades de todos os tempos tiveram um sentido religioso, que foi reconhecido por Rousseau e Voltaire. Mas as sociedades que abandonaram o culto de Deus pela idolatria do engenho são pasto das revoluções, porque em prol dos sofismas vem as revoluções, e em prol dos sofistas os verdugos. Analisa genialmente esta ideia, relacionando-a com a política, e diz: “Nos povos orientais como nas repúblicas gregas e no Império Romano como nas repúblicas gregas e nos povos orientais, os sistemas teológicos servem para explicar os sistemas políticos: a teologia é a luz da História. A teologia católica deu vida, pois, a uma nova ordem política. “Pelo catolicismo entrou a ordem no homem, e pelo homem, nas sociedades humanas”. “A ordem passou do mundo religioso ao mundo moral, e do mundo moral à ordem política. O Deus católico, criador e sustentador de todas as coisas, as sujeitou ao governo de sua providência, e as governou por seus vigários”. “O catolicismo, divinizando a autoridade, santificou a obediência; e santificando uma e divinizando a outra, condenou o orgulho em suas manifestações mais tremendas, no espírito de dominação e no espírito de rebeldia. Duas coisas são de todo ponto impossíveis em uma sociedade verdadeiramente católica: o despotismo e as revoluções”. Deus deixou à sociedade para que lhe indicasse o verdadeiro caminho e lhe ensinasse a solução de seus problemas a Igreja, sua mística cidade.
A potestade humana está por baixo da religiosa neste assinalamento do caminho e diferenciação do bem e do mal, e dessa impotência da autoridade laica para designar os erros nasceu o princípio de liberdade de discussão, princípio geral das constituições modernas, que se funda no fato certo de que não são infalíveis os Governos, e no falso da infalibilidade da discussão. É falsa essa infalibilidade, porque não pode nascer da discussão se não está antes nos que discutem e nos que governam, e não pode estar neles senão na condição de que a natureza humana não seja errônea. Por outra parte, se a natureza humana é infalível, a verdade está em todos os homens independentemente de que estejam reunidos ou não, e se a verdade está em todos os homens, isolados ou juntos, todas as suas afirmações serão idênticas, e se são idênticas a discussão é absurda. N ocaso de que se afirme que a razão humana está enferma e é falível, não pode estar nunca certo da verdade por essa mesma falibilidade, e esta incerteza está em todos os homens, juntos ou isolados, pelo que suas afirmações hão de ser incertas, e se são incertas, a discussão segue sendo absurda.
A solução católica a este respeito é a seguinte: “O homem vem de Deus, e o pecado, do homem; a ignorância e o erro, como a dor e a morte, do pecado; a falibilidade, da ignorância; da falibilidade, o absurdo das discussões”. Mas o homem foi redimido, por onde saiu da escravidão do pecado, e daqui que possa converter a ignorância, o erro, a dor e a morte em meio de sua santificação, com o bom uso de sua liberdade, enobrecida e restaurada. “Para este fim instituiu Deus sua Igreja imortal, impecável e infalível. A Igreja representa a natureza humana sem pecado, tal como saiu das mãos de Deus, plena de justiça original e de graça santificante: por isso é infalível, e por isso não está sujeita à morte”. Sua existência na terra está posta como meio de ajuda para o homem. “Segue-se daqui que só a Igreja tem o direito de afirmar e de negar, e que não há direito fora dela para afirmar o que ela nega, para negar o que ela afirma”. Daqui a fecunda intolerância da Igreja que salvou o mundo do caos, enquanto as sociedades céticas e discutidoras se perderam de forma vã. “A teoria cartesiana, segundo a qual a verdade sai da dúvida como Minerva da cabeça de Júpiter, é contrária àquela lei divina que preside ao mesmo tempo a geração dos corpos e das ideias, em virtude do que os contrários excluem perpetuamente os seus contrários, e os semelhantes engendram sempre seus semelhantes. Em virtude dessa Lei, a dúvida sai perpetuamente da dúvida, e o ceticismo do ceticismo, como a verdade da fé, e da verdade, a ciência”.
Fala mais tarde do profundo exemplo de solidariedade e organização da sociedade católica, onde todo homem pertence a um grupo social, enlaçado hierarquicamente a outros, até concluir no Sumo Pontífice, cabeça visível da Igreja. Esta ordenação se faz em virtude do preceito divino do amor. O Filho de Deus encarnado triunfou sobre o mundo somente em virtude de meios sobrenaturais; “a razão foi vencida pela fé, e a natureza pela graça”. A Igreja triunfou no mundo em virtude, também, do meio sobrenatural da graça.
É de considerar como Deus manifesta sua vontade no mundo por meios prodigiosos, dos quais diariamente chamamos natureza, e aos intermitentes, milagrosos. A Providência “vem a ser uma graça geral, em virtude da qual Deus mantém em seu ser e governa segundo seu conselho tudo que existe; assim como a graça vem a ser a maneira de uma providência especial, com a qual Deus tem cuidado do homem. O dogma da providência e da graça nos revelam a existência de um mundo sobrenatural, onde residem substancialmente a razão e as causas de tudo que vemos”. A força natural da graça se comunica perpetuamente aos fieis por meio dos sacramentos.
Este primeiro livro, cuja análise acabamos, o chama Donoso “Do Catolicismo”, e o segundo, “Problemas e Soluções relativos à ordem em geral”. Enlaça em seu começo com o final do anterior: “Força da ação de Deus não há mais que a ação do homem; fora da Providência divina não há mais que a liberdade humana. A combinação dessa liberdade com aquela Providência constitui a trama variada e rica da História”.
Insiste Donoso em considerações sobre a liberdade humana, em virtude da qual pode resistir o homem a quem lhe deu tal liberdade, e não só lhe resistir, como vencê-lo; mas esta vitória leva consigo a morte do vencedor. Em se deixar vencer tem o homem seu galardão; em vencer, seu castigo. O livre-arbítrio não consiste na faculdade de escolher o bem e o mal, que incitam o homem por igual. Se fosse assim, o homem seria menos livre, quanto mais perfeito fosse, pois sua liberdade de escolha ficaria diminuída por uma tendência maior e irresistível ao bem, o que minguaria sua liberdade. Portanto, entre a liberdade de escolha pelo bem ou o mal e a perfeição humana – que há de tender ao bem – há “contradição patente, incompatibilidade absoluta”. De onde se deduz que o homem livre não pode ser perfeito senão renunciando a sua liberdade, nem pode conservar sua liberdade senão renunciando a sua perfeição. Se a noção que se tem da liberdade fosse a exata, Deus não seria livre, porque haveria de estar submetido às solicitações do bem e do mal, o que é absurdo.
O erro está, pois, em supor que a liberdade consiste na faculdade de escolher, quando reside na do querer, que pressupõe a faculdade de entender. De onde a liberdade perfeita consistirá em entender e querer perfeitamente, “e como só Deus entende e quer com toda perfeição se segue daí, por uma ilação forçosa, que só Deus é perfeitamente livre”. O homem é livre porque tem entendimento e vontade, mas não é perfeitamente livre, porque não está dotado de um entendimento e vontade perfeitos e infinitos. Não entende quanto há que entender, e está sujeito ao erro... “De onde se segue que a imperfeição de sua liberdade consiste na faculdade que tem de seguir o mal e abraçar o erro; quer dizer, que a imperfeição da liberdade humana consiste cabalmente naquela faculdade de escolher, em que consiste, segundo a opinião vulgar, sua perfeição absoluta”. Ao ser criado no Paraíso terreno o homem entendia o bem, e porque o entendia, o queria, abraçando-o livremente por este claro juízo que tinha para distingui-lo. Entre sua liberdade e a de Deus havia uma diferença de limitação, pois a do Senhor não podia se perder nem padecer menoscabo, e a do homem, sim. O pecado original nublou seu entendimento e deixou intacta sua vontade. A liberdade humana adoeceu gravissimamente, como está hoje. A relação do homem por Deus Encarnado pressupõe a concessão a cada homem da “graça que é suficiente para mover a vontade com brandura”, quer dizer, a clareza de entendimento limite para emitir juízos certos nas solicitações do bem e do mal. Mas há de cooperar o homem para que a graça meramente suficiente se torne em eficaz. “Todos os esforços do homem, devem se dirigir, pois, para deixar em ócio essa faculdade, ajudando da graça, até perde-la do todo, se isto fosse possível, com o perpétuo desuso. Só o que a perde entende o bem, quer o bem e o executa; e só o que isto faz é perfeitamente livre, e só o que é livre é perfeito, e só o que é perfeito é ditoso; por isso nenhum ditoso a tem: nem Deus, nem seus santos, nem os coros de seus anjos”. Destrói em continuação Donoso as objeções de distintos erros sobre este dogma da liberdade humana. Ataca também o princípio maniqueu do deus do bem e do mal, e do que faz o homem princípio do bem contra um deus princípio do mal. Deus criou o homem isento de mal, mas não o fez dotado de todo o bem, porque neste o caso o teria feito Deus. A imperfeição na bondade do homem está na possibilidade de escolher entre o bem e o mal, da que fez mal uso se apartando da verdade, pelo que deixou de entende-la, mas seguiu entendendo e obrando; o término de seu entendimento foi o erro, o de seu obrar o mal; em suma, o pecado que nega Deus que é o bem absoluto. O homem se entronizou então como centro da criação. “Sua natureza se converteu de soberanamente harmônica em profundamente antitética”. “No sistema católico o mal existe, mas existe com uma existência modal; não existe essencialmente”. Não há um princípio do bem e do mal quando em toda rivalidade entre eles a vitória será sempre e definitivamente de Deus, que é o Bem Absoluto, como já dissemos. Se estende logo em considerações sobre os efeitos do pecado, causa da desordem do mundo.
Mas Deus consentiu nisto porque está n’Ele variar o mal em bem e a desordem em ordem, de tal forma que o homem que se separa de Deus por seu pecado há de estar sob Sua influência pela aplicação da justiça. “A liberdade dos seres inteligentes e livres está em fugir da circunferência, que é Deus, para ir em Deus, que é o centro; e em fugir de dentro, que é Deus, para ir dar com Deus, que é a circunferência. Ninguém, porém, é poderoso para se dilatar mais que a circunferência, nem para se recolher mais que ao centro”. “Deus é, pois, o que assinala a todas as coisas seu término, a criatura escolhe o caminho”.
Analisa estes problemas nas escolas liberais e socialistas, para nos dizer que os liberais, em seu desprezo da teologia desconhecem a relação entre as questões políticas e sociais com as religiosas. Acreditam estes que o mal é uma pura questão de governo, e que um governo é ruim quando não é legítimo. São legítimos para eles os governos submetidos ao domínio da razão, como afirmam que o governo da razão divina é o encarnado pelo que está submetido às leis naturais a que estão submetidas desde o princípio as coisas materiais. Diz que isto é assim, ainda que cause estranheza, porque a escola liberal não é ateia em seus dogmas, mas em suas consequências. É deísta, ainda que não o saiba, e daí parte sua teoria constituinte do povo. A escola liberal, “impotente para o bem, porque carece de toda afirmação dogmática, e para o mal, porque lhe causa horror toda negação intrépida e absoluta, está condenada a ir, sem sabe-lo, a dar com o baixel que leva sua fortuna ao porto católico para os abrolhos socialistas. Esta escola não domina senão quando a sociedade desfalece; o período de sua dominação é aquele transitório e fugitivo em que o mundo não sabe se vai com Barrabás ou com Jesus, está suspenso entre uma afirmação dogmática e uma negação suprema. A sociedade então se deixa governar de bom grado por uma escola que nunca diz afirmo ou nego e que a tudo diz distingo. O supremo interesse dessa escola está em que não chegue o dia das negações radicais, nem das afirmações soberanas; e para que não chegue, por meio da discussão confunde todas as noções e propaga o ceticismo, sabendo, como sabe, que um povo que ouve perpetuamente da boca de seus sofistas o pró e o contra de tudo a caba por não saber a que se ater e por não perguntar a si próprio se a verdade e o erro, o injusto e o justo, o torpe e o honesto, são coisas contrárias entre si ou se são uma mesma coisa vista desde pontos de vista diferentes. Este período angustioso, por muito que dure, é sempre breve; o homem nasceu para obrar, a discussão perpétua contradiz a natureza humana, sendo como é inimigo das obras. Instados os povos por todos os seus instintos, chega um dia em que se derramam pelas praças e ruas pedindo por Barrabás ou pedindo por Jesus resolutamente, e transformando em pó as cátedras dos sofistas”. Pondo em relação a escola liberal com a socialista, vê a favor desta que toma suas decisões de uma forma peremptória e decisiva, sem dilação alguma. Mas o socialismo, que tem sua teologia, é detrator, porque segue uma teologia satânica. O triunfo definitivo será da escola católica, por ser ao mesmo tempo teológica e divina. A crítica liberal termina com estas palavras: “A escola liberal, inimiga ao mesmo tempo das trevas e da luz, escolheu para si não sei qual escrúpulo incerto entre as regiões luminosas e as opostas, entre as sombras eternas e as divinas auroras. Posta nessa região sem nome, engajou-se na empresa de governar sem povo e sem Deus; empresa extravagante e impossível; seus dias estão contados, porque por um ponto do horizonte assoma Deus e pelo outro assoma o povo. Ninguém saberá dizer onde está o tremendo dia da batalha e quando o campo todo esteja cheio com as falanges católicas e as falanges socialistas”.
Os socialistas creem que o mal está na sociedade, e por isso falam da necessidade de uma reforma social. Quando a transformação por eles preconizada se haja realizado, então a terra desfrutará de uma idade de ouro, e o mal terá desaparecido da terra. Donoso rebate estes argumentos com a seguinte tese: O mal está na sociedade de forma essencial ou acidental. Se está de forma essencial, não pode ser extirpado dela; se o está de forma acidental, há que estudar as causas e origens do mal e a forma em que o homem vai redimir à sociedade. Se diferencia o socialismo do catolicismo em que a redenção social é em sua obra humana e não divina. A razão humana no socialismo é bem arriscada, pois atribui ao homem empreendimentos de transcendência sobrenatural, ademais de que se o homem, componente da sociedade, está enfermo, dificilmente poderá curar a si mesmo.
O terceiro livro do Ensaio dedica Donoso a estudar os “Problemas e Soluções relativas à ordem na Humanidade”. Começa ressaltando a desordem produzida pelo primeiro pecado, cuja culpa se transmite a todas as gerações que foram, são e serão. A explicação dessa transmissão a vê Donoso assemelhando-a à transmissão que na ordem moral e na física se produz com algumas enfermidades por corrupção radical da natureza. A criação do primeiro casal faz com que sua posteridade, depois de ter nublado seu entendimento com a culpa, leve também este estigma da obnubilação da inteligência. Tomando ideias aprendidas de De Maistre, Donoso valora logo a dor, produzida especialmente pela culpa, que é o companheiro infatigável do homem ao longo de toda sua peregrinação terrena. A dor iguala os homens, pois todos a padecem; a dor nos faz nos despojarmos de nossas ambições e vaidades; a dor apaga o incêndio das paixões; todos melhoram seu espírito com a dor. “Ao contrário, o que abandona as dores pelos deleites, logo começa a decair com um progresso ao mesmo tempo rápido e contínuo”. A aceitação voluntária da dor é um dos exercícios mais sublimes que faz aumentar as virtudes. Fala logo do dogma da solidariedade, admitido ao longo dos tempos. O liberalismo nega a solidariedade religiosa ao negar a transmissão da culpa, e nega a solidariedade política ao proclamar normas que a excluem. O socialismo mais lógico em chegar ao termo dessas negações, afirma que a negação da solidariedade leva consigo a negação da culpa e da pena, e na ordem política nega a Monarquia hereditária, nega a solidariedade da família e da propriedade. Assim, pois, o liberalismo não fez mais que assentar as premissas nas quais logo se baseou o socialismo. As duas escolas não se distinguem pelas ideias, mas pelo arrojo, e a vitória corresponderia à mais arrojada. “As escolas socialistas demonstraram sem grande esforço, contra a escola liberal, que, uma vez negada a solidariedade familiar, a política e a religiosa, não cabia aceitar a solidariedade nacional, nem a monárquica, e que, ao contrário, era de todo ponto necessário suprimir no direito público nacional a instituição da Monarquia, e no direito público internacional, as diferenças constitutivas dos povos”. Deste sentido da solidariedade humana e da valoração da dor, como expiação do mal, passa a explicar o sentido dos derramamentos de sangue com o valor aplacatório do oferecimento da vítima. O sangue do homem não podia ser expiatório da culpa original, que é culpa da espécie, o pecado humano por excelência. Por isso foi preciso o Sacrifício do Gólgota. “Sem o sangue derramado pelo Redentor não se teria havido nunca extinguido aquela dívida comum que contraiu com Deus em Adão todo o gênero humano”. A dor, o derramamento de sangue, cumpre seu fim necessário; por isso, os “mesmos que fizeram crer às gentes que a terra pode ser um paraíso, os fizeram crer mais facilmente que a terra há de ser um paraíso sem sangue”.
Termina o Ensaio com uma recapitulação geral de doutrina, e diz: “A ordem humana está na união do homem com Deus: essa união não se pode realizar em nossa condição atual e em nosso atual apartamento sem esforço gigantesco para nos levantarmos até ele”. A encarnação do Filho de Deus foi o grande ato de amor para se aproximar às criaturas. O homem deve usar da razão em sua descoberta e união com a Verdade, não para descobrir seus mistérios, mas para explica-la e vê-la. E definitivamente, como dizia antes, de uma forma ou de outra sempre se encontra com Deus. Assim termina o livro com estas palavras: “O que não viu nem verá o mundo é que o homem que foge da ordem pela porta do pecado, não volte a entrar nela pela pena, essa mensageira de Deus que alcança a todos com suas mensagens”.
O Ensaio mereceu grandes elogios, mas também duras críticas por parte dos que se sentiam atacados por seu liberalismo. Uma oportuna carta de Pio IX fez ver como não havia heterodoxia alguma no escrito e quanta era a estima em que o Santo Padre tinha Donoso.
No ápice político e religioso
Faz por essa época um discurso no Parlamento – o de 30 de dezembro de 1850 – no qual Donoso, ao fixar sua posição frente ao Ministério de Narváez, o dos poderes extraordinários, esclarece mais alguns pontos sobre sua ideia da ditadura. Em primeiro lugar, afirma que seu apoio ao ministério foi por exclusão, pois era o que mais poderia se aproximar a suas doutrinas, ainda quando não eram as suas. O responsável máximo da triste situação do país crê que é o Governo, não a revolução, que ao revolucionar só cumpre seu ofício; não o são outros governos que atuaram sob a pressão revolucionária; mas o governo de Narváez sim que é responsável, porque foi “o dono absoluto e soberano de suas próprias ações”. O ministério funda toda sua glória na conservação da ordem material, mas isso não basta, pois a “ordem verdadeira consiste em que se proclamem, se sustentem, se defendam os verdadeiros princípios políticos, os verdadeiros princípios sociais”. Logo afirma que a corrupção enche todas as camadas do governo e seus representantes nas províncias. O ministério, “é culpável até certo ponto, porque alimenta esta corrupção com a impunidade em que deixa seus agentes, e ademais é culpável por seu silêncio”. Afirma que a responsabilidade do governo é maior, por ter usado de um poder onipotente. “É necessário que se queira a ditadura, a proclame e a peça, porque a ditadura, em circunstâncias dadas, é um governo bom, é um governo excelente, é um governo aceitável; mas, senhores, que se peça, que se proclame, porque do contrário estaremos entre dois governos ao mesmo tempo; teremos um governo de fato, que será a ditadura, e outro de direito, que será a liberdade; situação, senhores, a mais intolerável de todas, porque a liberdade, ao invés de servir de escudo, serve então de cilada”. Neste discurso acabou com o governo de Narváez, apesar do otimismo de Martínez de la Rosa, que formava parte dela, pela votação da Câmara.
De então é também – 26 de novembro de 1851 – uma carta que dirigiu à rainha-mãe, dona María Cristina, na qual o embaixador da Espanha na França assinala os males da sociedade contemporânea: “As classes necessitadas, senhora, não se levantam hoje contra as acomodadas senão porque as acomodadas se resfriaram na caridade para com as necessitadas. Se os ricos não houvessem perdido a virtude da caridade, Deus não teria permitido que os pobres tivessem perdido a virtude da paciência”.
São já os últimos anos da vida do Marquês de Valdegamas, embaixador da Espanha em Paris, Grã-Cruz de Isabel a Católica e de Carlos III e Cavaleiro Oficial da Legião de Honra, que, enquanto reparte seus bens com os pobres, não tem mais que uma camisa, que leva remendada. “A piedade de Donoso Cortés – diz Veuillot – não cessou de aumentar e lançar raízes cada vez mais profundas até o último dia de sua vida. Discorria sobre sua fé como um homem de gênio; a praticava como uma criança, sem solenidade, sem comedimento, sem vacilar em cumprir os preceitos de Deus e da Igreja, sem sombra alguma de desconfiança das divinas promessas. Nisto não havia diferença entre Donoso e o mais humilde e fervoroso aldeão da Espanha”. Eis aqui um exemplo que cita o mesmo escritor francês: “Tendo sabido que em Agenteuil se conservava uma vestimenta de Nosso Senhor, quis ir ali para alcançar a misericórdia de Deus para a saúde de um de seus irmãos que estava enfermo. Isso foi no final do outono de 1851: chovia muito, mas ele foi todo o caminho a pé. Eu tive a sorte de ir com ele. Como lhe disse que nunca imaginei que um espanhol sofresse tanto tampo se molhando, me respondeu, sorrindo graciosamente, que ainda havia necessidade de outra chuva para se lavar de seus pecados”.
Esgotado fisicamente, chegou para Donoso a hora de sua morte, acometido por uma doença do coração. Seus últimos dias foram de grande fervor católico; tanto, que impressionou vivamente à irmã Bon-Secours que dele cuidou. Às quatro e meia da tarde do dia 3 de maio de 1853 sentiu tamanha opressão no peito que pediu um sacerdote. Foi avisado o pároco de San Felipe de Roule, que lhe ajudou nos momentos finais. A extrema unção lhe foi administrada na presença dos embaixadores da Áustria e da Prússia. A monja lhe pediu que se lembrasse dela quando estivesse em presença de Deus, segundo lhe havia prometido, e Donoso insistiu que não se esqueceria. Jamais – dizia a irmã – passavam cinco minutos sem pensar em Deus; e quando fala, suas palavras penetram no coração como flechas”. Às cinco e trinta e cinco minutos da tarde expirou por causa de pericarditis aguda, segundo o doutor Cruveilhier, no Palácio da Embaixada da Espanha, rue de Corcelles, 29. Morreu sem agonia e sem qualquer dor aparente; um ligeiro suspiro foi o sinal que indicou a entrega de sua alma ao Divino Criador, diz o seu substituto em Paris, senhor Quiñones de León. Tinha então o Marquês de Valdegamas quarenta e quatro anos de idade, menos três dias.
As exéquias se celebraram às doze do dia 7 de maio na paróquia de Saint-Philippe-du-Roule, e o luto foi presidido pelo encarregado de Negócios da Espanha e pelo Núncio de Sua Santidade em Paris. As fitas da carruagem fúnebre eram levadas pelo Ministro de Assuntos Exteriores da França, pelo Embaixador da Inglaterra e pelos Ministros da Suécia, da Noruega e da Dinamarca. Assistiu todo o corpo diplomático acreditado perante a Corte Imperial de Napoleão III, os ministros de seu governo e grande número de pessoas, entre as quais, por razão de amizade, citaremos o Conde Montalembert, Guizot e o General Narváez. O Imperador esteve representado por um de seus ajudantes de campo, e lhe foram rendidas honras militares. Foi enterrado provisoriamente na abóbada da Igreja de San Felipe, em Paris. Em 10 de outubro do mesmo ano 1853 trasladaram seus restos a Madri, e foram postos em 1899, por encargo do Marquês de Pidal, na cripta da paróquia de Nossa Senhora do Bom Conselho, de Madri. É errônea, pois, a afirmação de Schramm de que os restos de Donoso não foram trasladados a Madri até 1900. Hoje repousam no cemitério da Colegiata de San Isidro da capital da Espanha.
As últimas palavras que escreveu em sua vida foram dedicadas à esposa e aos filhos de seu irmão Pedro, para quem em seu testamento teve essa lembrança: “Sua vida e sua morte foram assunto perpétuo de minhas lágrimas, que ainda hoje mesmo estou consagrado a sua memória e ainda assim não lhe pago: sua prodigiosa virtude operou minha conversão depois da Graça Divina, e depois da misericórdia de Deus, suas orações me abriram a porta do céu".
Todos os jornais dedicaram elogios ao ilustre desaparecido em plena potência criadora. Até seus inimigos reconheceram o valor de seus escritos. Os trabalhos de Edmund Schramm e Carl Schmitt nas primeiras décadas deste século contribuíram para avivar a memória de Donoso, assim como para ressaltar a atualidade de seus escritos. A escola tradicionalista espanhola lhe contou sempre, junto a Balmes, Nocedal, Aparisi y Guijarro, Vázquez de Mella... como um de seus mais ilustres pensadores. Se Donoso não foi carlista, ainda que quiçá houvesse acabado nesse campo, era de fato um tradicionalista concorde com o pensamento clássico espanhol, e por isso não é aventureiro lhe fazer figurar junto aos nomes citados. Todos os empreendimentos restauradores do pensamento espanhol nos últimos anos o tiveram como guia indubitável. Bela Menczer dizia em um trabalho recente: “Toda lei racional de expansão e progresso conduz ao aniquilamento, a não ser pela intervenção pessoal, soberana e direta da Graça. Com a filosofia da História resumida nesta fórmula, Donoso Cortés ocupa um posto central na história do renascimento católico, que começou como réplica à Revolução Francesa”, e Rafael Calvo Serer afirma que “as ideias donosianas contribuíram para impulsionar a história espanhola no caminho de superação da revolução moderna como não o fez nenhum outro país”. Grande número de teses doutorais da Itália, Alemanha, Áustria e Suíça, principalmente, dedicadas ao pensador espanhol acreditam o imenso valor da obra de Donoso Cortés como armas potentes para aluta em que está empenhado o mundo.