01/08/2018

Guillaume Durocher - Sugimoto Goro e o Zen do Soldado

por Guillaume Durocher



O ascetismo geralmente tem uma má reputação nos círculos vitalistas. A idéia do monge assexuado, desapaixonado, passivo e rejeitador do mundo parece evidentemente desadaptativa, um beco sem saída evolutivo, como Nietzsche e Savitri Devi supuseram. No entanto, o fato é que monges muitas vezes também foram guerreiros, e os monarcas das religiões ascéticas, como o cristianismo e o budismo, foram muitas vezes grandes conquistadores. As ordens monásticas cristãs contribuíram grandemente para a luta contra a agressão muçulmana na Idade Média e provaram ser capazes de exterminar os últimos redutos pagãos na região do Báltico.

No Japão, o zen budismo era a religião dos samurais, que desenvolveram um ethos guerreiro, o Bushidō, que foi um dos mais profundos e espirituais do seu tipo em todo o mundo. Enquanto o budismo hoje é frequentemente associado a uma espécie de pacifismo desenraizado e confortável, na primeira metade do século XX, as escolas zen do Japão Imperial apoiaram entusiasticamente o poderio militar nacional e o serviço altruísta ao imperador como a incorporação divina de sua nação. Os monges e líderes zen desenvolveram o chamado “zen do soldado” (gunjin-zen) e apoiaram fortemente o Japão durante a Segunda Guerra Mundial, tanto em suas ambições imperiais quanto em sua resistência aos Aliados. Nos anos do pós-guerra, muitos ocidentais convertidos ao zen ficaram chocados ao descobrir que seus mestres "iluminados" haviam apoiado o militarismo autoritário e o imperialismo.


Pessoalmente, há muito penso que a prática espiritual zen poderia levar um recuo rejeitador do mundo ou ao autossacrifício desinteressado, possivelmente violento, do tipo evocativamente descrito no Bhagavad Gita dos hindus. O praticante zen treina a si próprio para tolerar o desconforto, a autodisciplina, a autoconsciência e, em última instância, um tipo de transcendência do eu como ilusório. Percebe-se, intimamente, que não se trata senão de uma parte de um todo infinitamente maior e de uma rede de relacionamentos interdependentes. Ao mesmo tempo, há uma qualidade sombria no budismo em geral: o insight de Gautama era reconhecer a transitoriedade de todas as coisas: não apenas de nações e impérios e da vida e posses, mas até mesmo da mente, até mesmo dos deuses (em que os Eddur nórdicos concordam, pois eles prevêem o inevitável Crepúsculo dos Deuses), talvez até mesmo do próprio universo. No zen, em particular, tudo é “vacuidade”, e aprende-se a olhar para o vazio com serenidade, sem hesitar, cultivando até mesmo uma alegria tranquila e transcendente. No entanto, nem todos são tão fortes. A "realização abissal" pode facilmente levar alguém a cair em desânimo ou a recuar no niilismo. Há pouca ênfase no zen na construção de algo que nos sobreviva, no cultivo da Vida.

Brian Zaizen Victoria, um praticante ocidental do zen, escreveu muito sobre as atitudes, agora politicamente incorretas, das escolas imperiais do zen. Em "Uma crítica budista do 'zen do soldado' no Japão dos Tempos de Guerra", [1] Victoria fornece uma visão geral do zen dos soldados e extratos traduzidos de seus promotores (as citações de textos budistas e praticantes zen citados neste artigo são todas extraídas do capítulo de Victoria). Victoria argumenta que o "zen do soldado" era de fato não-budista, alegando que o próprio Gautama era um pregador e praticante da não-violência:

"Quando olhamos para os registros da vida do Buda Sakyamuni, descobrimos que suas ações são totalmente consistentes com seus primeiros ensinamentos. Sākyamuni pacificamente procurou evitar a guerra, como pode ser visto em sua tentativa inicial de impedir um ataque contra seu próprio país. Além disso, ele conseguiu dissuadir o rei Ajātasattu de atacar os vajjianos. Além disso, mesmo quando a própria existência de sua pátria estava em jogo, ele não mobilizou os membros da sangha como soldados-monge para defender seu país, nem usou a força para ampliar o poder e os terrenos da própria sangha (como foi feito mais tarde no Japão medieval)". [2]

No entanto, Victoria reconhece que, no início da tradição Mahayana, a violência poderia ser religiosamente sancionada, o que ele afirma ser uma racionalização monástica a serviço de monarcas pró-budistas, e que tal violência tem sido um aspecto recorrente na história budista. O Sutra Nirvana do primeiro século comandou “proteger o verdadeiro Dharma [ensinamento de Buda] pegando em espadas e outras armas.” De passagem, parece que os gregos antigos convertidos ao budismo de Gandhara tiveram, como monges e reis, um certo papel na moldura e difusão do Mahayana.

Pode-se ver facilmente como uma crença na irrealidade transitória do mundo poderia levar a uma atitude não-sentimental em relação à vida. Um texto do século VII (budista chinês) de Chan, o Tratado da Contemplação Absoluta, argumentou que matar é ético se alguém reconhece que a vítima é apenas vazia e semelhante a um sonho. [4] Um milênio depois, o mestre zen Takuan Sōhō, do século XVII, escreveu que:

"A espada erguida não tem vontade própria, ela pertence toda ao vazio. É como um relâmpago. O homem que está prestes a ser abatido é também do vazio, tal como o homem que empunha a espada. Nenhum deles é possuidor de uma mente que tenha alguma substancialidade. Como cada um deles é vazio e não tem 'mente', o atacante não é um homem, a espada em suas mãos não é uma espada, e o 'eu' que está prestes a ser derrubado é como a cisão do brisa da primavera no clarão de um relâmpago" [5].

Os samurais parecem ter tido pouca dificuldade em reconciliar sua religião zen com seu ethos guerreiro.

No século XX, os japoneses da época imperial desenvolveram o zen do soldado como um ethos espiritual particular compatível com sua nação e Estado. Ele foi defendido em particular pelo tenente-coronel Sugimoto Gorō (1900-1937), que morreu em batalha na China, e foi honrado pelas ordens zen como um "deus militar" (gunshin).

Eis aqui algumas passagens dos escritos e dizeres de Sugimoto:

"O zen que eu pratico... é o zen do soldado. A razão pela qual o zen é importante para soldados é que todos os japoneses, especialmente os soldados, devem viver no espírito da unidade entre soberano e súditos, eliminando seu ego e se livrando de seu eu. É exatamente o despertar para o nada do zen que é o espírito fundamental da unidade entre soberano e súditos. Pela minha prática do zen eu sou capaz de me livrar de meu ego. Ao facilitar a realização disso, o zen se torna, enquanto tal, o autêntico espírito do Exército Imperial"



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"O imperador é idêntico à Grande Deusa [Solar] Amaterasu. Ele é o único e supremo Deus do universo, o supremo soberano do universo. Todos os vários componentes [de um país] incluindo coisas como suas leis e constituição, sua religião, ética, educação, arte, etc. são meios expedientes através dos quais promover a unidade com o imperador. Isto é, a maior missão desses componentes é promover uma consciência da não-existência do eu e da natureza absoluta do imperador. Por causa da não-existência do eu tudo no universo é manifestação do imperador...incluindo até o trinado de um inseto na sebe, ou a gentil brisa da primavera..."



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"Se você quiser penetrar no sentido verdadeiro do 'Grande Dever', a primeira coisa que você deve fazer é abraçar os ensinamentos do zen e descartar o apego a si mesmo". 



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"Guerra é educação moral não só para o indivíduo mas para o mundo inteiro. Ela consiste na extinção da busca por si mesmo e na destruição da autopreservação. Somente aqueles sem qualquer apego por si próprios são capazes de reverenciar o imperador de forma absoluta". 



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"Vida e morte são idênticas...Guerreiros que sacrificarem suas vidas pelo imperador não morrerão, mas viverão eternamente. De fato, eles deveriam ser chamados deuses e budas para os quais não há vida ou morte...Onde há lealdade absoluta não há vida ou morte. Onde há vida e morte não há lealdade absoluta. Quando uma pessoa fala de sua opinião sobre a vida e a morte, essa pessoa ainda não se tornou pura de coração. Ela ainda não abandonou o corpo e a mente. Na lealdade pura não há vida ou morte. Simplesmente viva a lealdade pura!".



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"No budismo, especialmente na seita zen, há referências repetidas à identidade entre corpo e mente. De modo a perceber a identidade dos dois é necessário passar por um treinamento com toda a sua força e independentemente dos sacrifícios. Ademais, a essência da unidade entre corpo e mente deve ser encontrada na ausência de ego. O Japão é um país onde o Soberano e o povo são idênticos. Quando súditos imperiais se fundem com a Augusta Mente [do imperador], seu semblante original brilha. A essência da unidade entre soberano e povo é a ausência de ego".


Há quase uma qualidade "nacionalista pagã" na sublimação do eu do zen do soldado em uma nação misticamente assertiva unida ao redor de um monarca divino.


Após sua morte em batalha, Sugimoto foi homenageado como herói nacional por Yamazaki Ekijū, chefe da escola zen Rinzai. Isso não é surpreendente, dado que o zen de Yamazaki era firmemente nacional e autosacrificial. Ele disse: “O budismo japonês deve estar centrado no imperador; porque se não fosse, não teria lugar no Japão, não seria um budismo vivo. Até mesmo o budismo deve estar de acordo com a estrutura nacional do Japão. O mesmo vale para os ensinamentos de Sakyamuni [Buda].” Ele afirmavam que os japoneses haviam cultivado a abnegação de forma tão intensa que“para os japoneses não há tal coisa como sacrifício”. [6]

Yamazaki descreveu a morte de Sugimoto dessa forma:

"Um fragmento de granada atingiu-o no ombro esquerdo. Ele parecia ter caído, mas depois se levantou novamente. Embora ele estivesse de pé, não se podia ouvir seus comandos. Ele não era mais capaz de dar ordens com aquela voz rouca dele. . . . No entanto, ele ainda estava de pé, segurando sua espada em uma mão como um adereço. Ambas as pernas estavam levemente flexionadas e ele estava virado na direção leste [em direção ao palácio imperial]. Parecia que ele havia saudado, embora sua mão estivesse agora abaixada até o nível de sua boca. O sangue que fluía de sua boca cobria seu relógio.

No passado, considerava-se como a verdadeira aparência de um sacerdote zen morrer enquanto fazendo zazen [meditação sentada]. Aqueles que eram completamente e plenamente iluminados, no entanto. . . poderiam morrer calmamente em pé. . . . A razão pela qual isso era possível era devido ao poder do samādhi [concentração].

Até o último segundo, Sugimoto era um homem cuja fala e ações estavam em sintonia uma com a outra.

Quando ele saudou e encarou o leste, não há dúvida de que ele também gritou: 'Que Sua Majestade, o imperador, viva por 10.000 anos!' [Tennō-heika Banzai]. É por esta razão que o seu foi o final radiante de um soldado imperial. Não apenas isso, mas sua excelente aparência deve ser um modelo para as gerações futuras de alguém que viveu no zen". [7]

Para Yamazaki, Sugimoto “demonstrou a ação que deriva da unidade do zen e da espada [zenken ichinyo]”. Além disso, “por meio da consciência que Sugimoto alcançou ao tornar-se um com a morte, não havia nada que ele não pudesse alcançar”[8]

Sócrates supostamente disse que toda filosofia é uma preparação para a morte. Por essa definição, não há dúvida de que o zen é uma filosofia autêntica. O líder do Soto Zen, Ishihara Shummyō, disse:

"O mestre zen Takuan ensinou que, em essência, Zen e Bushidō eram um só. . . . Eu acredito que se alguém é chamado para morrer, não deve ser nem um pouco agitado. Pelo contrário, deve-se estar em um reino onde algo chamado “a si mesmo” não se intromete nem um pouco. Tal reino não é diferente daquele derivado da prática do Zen". [9]

Esse sentimento está perfeitamente de acordo com a atitude antiga da filosofia ocidental em relação à morte, de Sócrates a Marco Aurélio.

Não sei dizer se Mahatma Gandhi estava certo ao afirmar que todas as formas de violência são imorais. No entanto, observo que, em qualquer caso, a grande maioria da humanidade não abjura a violência. Para a maioria, então, o autossacrifício marcial do zen do soldado não pode ser ruim em si mesmo, mas simplesmente depende da moralidade da causa a qual ele serve. Tampouco posso dizer se Friedrich Nietzsche estava certo ao afirmar que o ideal ascético é inerentemente emasculante e é necessário um modo de vida dionisíaco mais primitivo, espontâneo. No entanto, teríamos que admitir que as práticas ascéticas parecem ter sido centrais para a proeza marcial de combatentes tão diversos quanto os antigos espartanos, os monges-guerreiros cristãos medievais e os japoneses imperiais. Sem dúvida, indivíduos diferentes florescerão e melhor atualizarão seu potencial seguindo um ethos mais ascético ou mais "bárbaro", dependendo de seu temperamento.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os americanos exigiram que o imperador japonês renunciasse às suas pretensões de divindade. Isso pode ter sido compreensível a partir de uma perspectiva racionalista e materialista liberal, que via essas alegações como não apenas evidentemente falsas e até mesmo enganosas, mas também como tendo fornecido parte da base do militarismo japonês e da agressão internacional. Mas havia também um preço a ser pago: o desencantamento do Japão, a redução daquela nação de uma família mística com um destino especial para uma mera população de consumidores. A vida humana, sem dúvida, sofre e se empobrece da falta de um senso de propósito maior. Eu não vou aborrecê-los, citando os vários estudos psicológicos sugerindo isso. Cada um que, com um pouco de sensibilidade, olha para o próprio coração, sabe que é verdade.

Eu não aceito que nada exista além deste mundo transitório e que, portanto, nada em um sentido final exista. Mesmo quando o Himalaia for moído em pó, a humanidade seja extinta e o próprio universo seja dilacerado, algumas coisas, posso sentir, sempre permanecerão e serão eternas: os princípios da razão e o anseio pela vida. A vida humana individual, em toda a sua arbitrariedade e brevidade, parece ter significado apenas se essa existência puder ser verdadeiramente reconhecida e vivida como parte de um todo maior. Essa era evidentemente uma das ambições do zen do soldado.

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[1] Brian Zaizen Victoria, “A Buddhological Critique of ‘Soldier-Zen’ in Wartime Japan,” in Michael Jerryson & Mark Juergensmeyer (eds.), Buddhist Warfare (Oxford: Oxford University Press, 2010), pp. 105-30.

[2] Ibid., p. 126.

[3]Mahayana, or the “Great Vehicle,” refers to the great branch of Buddhism largely coterminous with the East Asian nations. It is often contrasted with Theravada Buddhism, which is often criticized by Mahayana Buddhists as aiming for a “nirvana” which means non-existence or oblivion.

[4] Ibid., p. 123.

[5] Ibid., p. 118.

[6] Ibid., p. 111.

[7] Ibid., p. 115.

[8] Ibid., p. 114.

[9] Ibid., p. 119.