Um leitor despreparado
pode pegar What is Gnosticism? esperando
um texto introdutório ou um estudo definitivo da natureza e das origens do gnosticismo.
Esse livro, no entanto, escrito por uma das maiores eruditas em cristianismo
primitivo, não deve ser confundido com uma introdução. Em primeiro lugar, ele
nunca discorre sobre o que é gnosticismo. De uma maneira subversiva -tendo em
conta o título do livro- King afirma que “gnosticismo” existe somente como uma reificação,
um construto terminológico derivado basicamente de um discurso cristão
primitivo sobre ortodoxia e heresia que adquiriu uma existência independente.
“Meu propósito com esse livro,” explica King, “é demonstrar como o trabalho
acadêmico acerca do gnosticismo no século XX simultaneamente reescreveu,
elaborou e apartou-se desse discurso”. O livro supõe que os leitores terão no
mínimo familiaridade com as fontes convencionalmente descritas como gnósticas,
e também com termos contemporâneos em debate e figuras proeminentes. Esse “público ideal” de estudantes e pessoas
com mente aberta tem muito a ganhar da leitura do livro de King. Contudo,
leitores esporádicos irão provavelmente achar a tese de King -como o próprio
livro- muito sofisticada e demasiadamente esotérica no âmbito historiográfico.
Karen King lecionou na
Occidental College em Los Angeles antes de transferir-se para seu cargo atual
como professora de História do Cristianismo Antigo na Harvard University
Divinity School. Uma respeitada estudiosa do gnosticismo, o trabalho de King tem
se focado frequentemente em questões de gênero (2). What is Gnosticism? é o seu segundo livro lançado em 2003, ao lado
de sua nova tradução do Gospel of Mary (Santa
Rosa, CA: Polebridge, 2003). Aqui, King identifica o seu interesse primário
como “a formação da identidade cristã primitiva e a crítica das atuais
categorias acadêmicas de análise”. Este livro esteve em construção por pelo
menos vinte anos: tivemos a oportunidade de provar a sua argúcia crítica em uma
série de artigos sobre o tema do gnosticismo e formação de identidade que ela
apresentou a uma variedade de públicos acadêmicos desde 1993. Porque um livro
como o de King é apropriado? Os últimos cinquenta anos testemunharam uma série
de mudanças nos paradigmas da academia que exigiram a revisão e a rearticulação
da nossa disciplina. A primeira das mudanças historiográfica e hermenêutica que
King relata é o surgimento da Religionsgeschichtliche
Schule como distinta da
teologia em seu interesse, foco, cânone fixo, e o seu superssesionismo cristão
implícito. A segunda mudança foi iniciada pela descoberta dos arquivos
-contendo textos cristãos- de Nag Hammadi em 1945 no Egito, até então
desconhecidos. Porque antes de 1945 os estudiosos possuíam um número muito
limitado de fontes primárias que cristãos defensores das principais correntes
nomearam “gnósticas”, os tratados de Nag Hammadi tiveram um impacto profundo em
nossa compreensão do cristianismo primitivo como uma religião profusamente
diversa em doutrina e práxis. A terceira e mais recente mudança tem sido
a reavaliação da Escola da História das Religiões por acadêmicos pós-modernos e
pós-colonialistas, que levaram em conta a sua orientação colonialista e
orientalista explícita. Por essas três razões, o trabalho de gerações de
estudiosos do gnosticismo - foi construído sob um número limitado de fontes
primárias e os polêmicos escritos de alguns poucos heresiólogos cristãos –
precisavam ser reconsiderados. Na maioria dos casos, esse exame iria exigir uma
revisão substancial.
O escopo do livro de King
é ambicioso, mas é necessário que o seja. Ela reconhece que é impossível
abordar o problema conceitual e de definição do gnosticismo sem atacar o
problema conceitual e de definição de “heresia”, que aborda a questão do
discurso da ortodoxia no cristianismo. Ela destaca, “...uma discussão acerca do
discurso de ortodoxia e heresia precisa incluir polêmicas focadas nos pagãos e
judeus também”. King dedica o oitavo capítulo do livro a uma crítica e
avaliação do “discurso de ortodoxia e heresia” em fontes antigas, no trabalho
de estudiosos do começo do século XX, e em estudos mais contemporâneos. O livro
discorre sobre o processo de formação primitiva da identidade cristã como um
todo, com resultados convincentes e incisivos. É revigorante ler uma abordagem
que não marginaliza nem o judaísmo e nem o paganismo, ou que coloca o cristianismo
em relevo em relação a opções religiosas “insuficientes” no mundo antigo.
Em seu primeiro capítulo,
“Porque o gnosticismo é tão difícil de definir?” King descreve resumidamente
duas amplas abordagens acadêmicas acerca do gnosticismo, uma genealógica e
outra tipológica. A primeira abordagem localiza a origem e o desenvolvimento do
gnosticismo ao longo do tempo ao analisá-lo e compará-lo, por um lado, com as
religiões orientais, e por outro lado, com o “cristianismo” (isto é, a ortodoxia).
A segunda abordagem se desdobra a partir de análises fenomenológicas
principalmente de materiais literários para desenvolver um conjunto de termos,
características e tendências coerentes e definitivos. As duas abordagens -King
enfatiza- acabaram se extraviando consideravelmente; o mais significativo, a
descoberta dos textos de Nag Hammadi, rendeu análises genealógicas e
tipológicas na maioria das vezes irrelevantes. Foi central também o problema da
relação conturbada entre gnosticismo e cristianismo como um todo. King observa,
“o problema de definir o gnosticismo foi e continua sendo em primeiro lugar um
aspecto do projeto contínuo de definir e manter um cristianismo normativo”. Nas
palavras finais do capítulo, King esclarece a tarefa que está adiante na
continuação do livro:
“Meu propósito [...] é
considerar de que maneira o discurso de ortodoxia e heresia dos antigos
cristãos e suas polêmicas está entrelaçado com os estudos acadêmicos acerca do
gnosticismo no século XX com o intuito de demonstrar onde e como esse
envolvimento distorceu nossa análise dos textos antigos. Está em discussão não
apenas a capacidade de escrever uma história mais exata do cristianismo antigo
em todos os seus aspectos multiformes, mas também a nossa capacidade para engajar-se
na crítica da política antiga que versava sobre as diferenças religiosas ao
invés de reproduzir suas estratégias e resultados inadvertidamente.”
Na sequência, o capítulo
dois, “Gnosticismo como heresia”, está focado na “consolidação retórica” da
ampla variedade de opções religiosas disponíveis para os indivíduos no mundo
antigo em três grupos reconhecíveis, mutuamente exclusivos e facilmente
definidos: judeus, cristãos e pagãos. O que estava em questão, observa King,
era o discurso de diferença e igualdade que era crucial para a construção da
identidade cristã. Com o objetivo de excluir aqueles cristãos a quem os membros
de uma ortodoxia nascente se opunham, os membros desse grupo precisavam fazer
com que seus concorrentes parecessem estrangeiros; certas diferenças práticas e
doutrinais precisavam ser fabricadas, da mesma forma que diferenças reais precisavam
ser exageradas. Como parte da estratégia de distinção, as similaridades -fossem
entre cristãos e judeus, cristãos e pagãos, ou diferentes professores cristãos-
eram suprimidas ou maliciosamente distorcidas. Alguns cristãos foram tão
bem-sucedidos nessa tarefa, aponta King, que até agora os termos “heresia” e
“ortodoxia” implicam somente diferença, e não similaridade. Esses dois termos
são melhor entendidos como a consequência de um processo avaliativo que buscava
“articular o significado de si silenciando e excluindo outros membros do grupo
simultaneamente”. King recorre aos exemplos de Prescrição Contra os Hereges de Tertuliano e Contra as Heresias de Irineu em um conjunto de atitudes que ela
categoriza como “antissincretismo”. Esse discurso funcionou para definir e
defender limites e para contribuir à “narrativa central” do declínio cristão de
um período prístino até as divisões doutrinais do segundo século e nos períodos
sequentes.
Os capítulos três e
quatro são explicitamente historiográficos, à medida que King trabalha com figuras
importantes no pensamento religioso e movimentos relacionados do começo do
século XX. O capítulo três investiga Adolf Von Harnack, o capítulo quatro, o
início da Religionsgeschichtliche
Schule. Talvez seja esse o capítulo mais importante escrito por King
para os leitores modernos, aqui a autora fornece sínteses e análises
inteligentes e úteis acerca de trabalhos que são notoriamente impenetráveis e
normalmente encontrados apenas no idioma alemão original. Essa extensa investigação
da historiografia do início do século XX é central para que King prove a sua
tese: a academia moderna serviu apenas para reescrever um discurso de ortodoxia
e heresia estabelecido por certos cristãos dos séculos dois e três. King destaca
que, como teólogo e pesquisador, Harnack compreendia perfeitamente as múltiplas
formas do cristianismo antigo, mas como os seus antecessores, Irineu e
Tertuliano, ele empregou o termo “gnosticismo” como uma ferramenta retórica
para produzir uma visão normativa do cristianismo.
O capítulo cinco,
“gnosticismo reconsiderado”, é dedicado a uma discussão de Walter Bauer
-particularmente o seu estudo notório: Ortodoxia
e Heresia no Cristianismo Primitivo- e ao livro de Hans Jonas Gnosis und Spätantike Geist. King retrata
Bauer como um inovador, o primeiro a desenvolver um modelo alternativo da
historiografia cristã, longe da narrativa central do supersessionismo cristão. Jonas,
de maneira muito diferente, foi importante por sua redução tipológica do
gnosticismo em uma série de qualidades ou características. A sua obra Gnostic
experience of self and World definiu o gnosticismo como um movimento
religioso transhistórico caracterizado primeiramente pela experiência da
alienação existencial e abnegação do mundo. Portanto, Jonas propôs sete
qualidades do gnosticismo: gnose, caráter dinâmico (crise patomórfica),
caráter mitológico, dualismo, impiedade, artificialidade, e local histórico
único. King discute cada uma dessas qualidades por vez, apontando os seus
problemas e falhas. O capítulo termina com uma discussão do estudioso Carsten
Colpe, membro da Religionsgeschichtliche
Schule. Não está claro qual a ligação entre essas
três figuras, contudo, de uma maneira geral, a divisão desse capítulo -como em
todo o livro- parece mais arbitrária do que ordenada em uma única narrativa
central.
Os últimos três capítulos do
livro discutem estudos acadêmicos acerca do gnosticismo após a descoberta dos
textos de Nag Hammadi. Nesse capítulo, King discute as próprias fontes,
particularmente a maneira pela qual elas desafiam os sistemas de classificação
e caracterização estabelecidos por estudiosos de gerações anteriores. De fato,
King é sagaz ao destacar que até mesmo as tipologias gnósticas escritas após a
descoberta dos textos, tais como “setianismo” e “valentianismo” se apresentam
limitadas no intento de parecerem coerentes quando aplicadas à vasta
diversidade doutrinária que encontramos nos quarenta e seis textos de Nag
Hammadi. Como aponta King, “o problema com a variedade não é a própria
variedade; o problema é a tentativa de forçar objetos irregulares e multiformes
em formas quadradas com definições elementares”. Esses capítulos são
particularmente agradáveis porque eles se distanciam da historiografia das
fontes antigas; entretanto, é difícil avaliar como um leitor que não seja
versado nos textos de Nag Hammadi conseguiria acompanhar os resumos e os
argumentos de King.
Os leitores provavelmente
irão comparar What is Gnosticism? ao livro de Michael
Williams, Rethinking
"Gnosticism": Arguments for Dismantling a Dubious Category. O trabalho intrigante
de Williams -que rapidamente tornou-se uma leitura obrigatória para todos os
estudiosos sérios de gnosticismo antigo- argumenta em favor do abandono total
do termo “gnosticismo”, justificando que é melhor não imaginar que algo como o
“gnosticismo” ou a “a religião gnóstica” algum dia tenha existido. Ao invés,
Williams sugere que estejamos cientes dos diversos grupos e indivíduos que
originalmente englobavam o cristianismo antes de serem marginalizados por uma
ortodoxia emergente. É óbvio que Rethinking Gnosticism e What is
Gnosticism? foram escritos na mesma época e que King e Williams mantinham
diálogos constantes um com o outro. Eles dirigem-se um ao outro de maneira
cuidadosa e elegante nos prefácios dos seus livros: é evidente que o contato
entre ambos deu origem a uma relação de respeito e amizade e não de competição.
Ainda assim, considerando que Rethinking Gnosticism foi o primeiro a
aparecer, o problema para King é se What is Gnosticism? avança
suficientemente na abordagem que os dois estudiosos levam à frente, e se ela
consegue tratar do tema de uma maneira que complemente, ao invés de competir
com o livro de Williams. Como uma resposta parcial a essa questão, é importante
perceber que para todas as similaridades e teses virtualmente iguais, são dois
livros muito diferentes, porque os autores trabalham de maneira muito
diferente. Williams aplica categorias tipológicas previamente estabelecidas do
“gnosticismo” aos materiais antigos, destacando assim as suas insuficiências
para o entendimento dos materiais antigos em seus próprios termos. King
constrói cuidadosamente uma espécie de genealogia historiográfica e mantém seu foco
consistentemente nos estudos acadêmicos do último século, relatando a história
de como a reificação do “gnosticismo” aconteceu em meio aos interesses e
movimentos da vasta matriz social e intelectual do século XX. Os livros diferem
também em suas sugestões para trabalhos futuros. No lugar de “gnosticismo”,
Williams sugere que seja adotado, quando apropriado, o termo específico
“demiurgia bíblica”. Embora King aponte acertadamente os problemas com esse
termo: ele é difícil e desajeitado, e persiste nos mesmos processos de nomear e
categorizar, e por isso deve ser abandonado por completo. E ainda, ela dedica
mais tempo para criticar estudiosos e pesquisas acadêmicas do que resolver o
problema essencial proposto pelo livro. Há futuro para o estudo do gnosticismo sem “gnosticismo”? Ela
levanta essa questão em seu oitavo e último capítulo, mas conclui de maneira
reflexiva: “Não é tão importante eliminar o termo per se, mas reconhecer
e corrigir as formas pelas quais reescrever os discursos de ortodoxia e heresia
podem distorcer a nossa leitura e reconstrução de religiões antigas.”
Por fim, o leitor de What is Gnosticism? questiona-se
porque King trabalha de maneira persistente a genealogia historiográfica do
gnosticismo. O que está em discussão, mais precisamente? E qual o seu êxito em
transmitir isso? King afirma em princípio que irá reexaminar como o
estudo acadêmico do século XX acerca do gnosticismo reescreveu um discurso do
século dois, mas a maioria de seus exemplos detalhados (Harnack, Jonas,
Bousset, Reitzenstein, Bauer) encontra-se na primeira metade do século. O único
estudioso contemporâneo do gnosticismo discutido detalhadamente é Michael
Williams, deixando a impressão de que não há mais ninguém realizando pesquisas similares
à de King. Considerando o que o leitor é levado a concluir a respeito do
“estágio” no qual o debate se encontra, a autora deixa a impressão de que a sua
iniciativa é a única existente em defesa de uma nova hermenêutica. Isso não é
inteiramente verdadeiro, porque o trabalho de King não apresenta novos
materiais da mesma forma que apresenta, para um grande público, a abordagem
metodológica já bem estabelecida na academia entre especialistas nos textos de
Nag Hammadi e cristianismo primitivo. No entanto, é possível que King acredite
que há apenas alguns estudiosos que tomam essa abordagem como correta, e esse
livro evidentemente não é escrito para eles.
Enquanto esse livro derruba as estruturas sob
as quais se erigiram muitos estudos anteriores do gnosticismo, King não avança
no sentido de propor uma nova direção, embora o seu capítulo final e “Nota
sobre Metodologia” parecem sugerir que tal direção encontra-se na adoção de
estratégias de leitura pós-modernas e pós-coloniais. Seria esclarecedor e
estimulante ver exemplos dessa nova hermenêutica aplicada aos escritos de Nag
Hammadi de maneira individual ou em sua totalidade, e quanto a isso é possível afirmar
que há de fato artigos e monografias recentes a serem considerados, embora até
então ignorados. Pelo fato de que a autora não discorre sobre o trabalho de
estudiosos modernos do cristianismo primitivo que igualmente adotam o Neo-historicismo,
ela ignora as experiências anteriores colocando suas próprias convicções
metodológicas em grande destaque frente a um século de estudos acadêmicos
falhos. Ainda assim, certamente há espaço para o livro de King, considerando
que se trata do único estudo acadêmico completo no âmbito do gnosticismo. Os
leitores podem acompanhar o raciocínio de uma história escrita com maestria
acerca de uma disciplina acadêmica relativamente nova, agora enfrentando o
desafio da modernidade.
Notas:
2. 1 - N. do Tradutor: os estudos de Karen L. King nesse âmbito tratam-se de
revisões e novas interpretações do papel desempenhado pela mulher no
cristianismo antigo e em outras religiões da antiguidade e acerca da importância
e o papel do gênero nas sociedades antigas onde essas religiões floresceram.