A Era de São Patrício
No quinto período da era dos Gaels, os irlandeses realçaram a era de São Patrício, que cristianizou a Irlanda no século V. Antes dele, a crônica falava do bispo Palladius, que veio à Irlanda em 431, enviado por Roma, mas sua imagem foi tradicionalmente fundida à de São Patrício.
Os celtas não consideraram a cristianização como uma mudança identitária radical e revolucionária, dado que a peculiaridade da cristandade irlandesa e da Igreja dos celtas, de modo geral, comparada a muitas outras sociedades europeias, não era estritamente oposta ao mito pré-cristão local, mas o incluía leve e suavemente em sua cultura espiritual. Assim, muitos druidas e personagens mitológicos foram cristianizados, e os santos e discípulos cristãos tornaram-se uma nova versão dos druidas. A cristandade irlandesa é um exemplo único da integração harmônica de tradições pré-cristãs à nova religião.
São Patrício foi um católico britânico que se tornou a principal figura da extensão do cristianismo. Junto com São Columba e Santa Brígida, ele é um dos santos padroeiros da Irlanda e o fundador da Igreja Irlandesa. Às vezes São Patrício é chamado de “o apóstolo da Irlanda”. Quando era jovem, piratas irlandeses o sequestraram, então ele teve de passar muitos anos na Irlanda. Ao retornar à Britânia, tornou-se um padre e voltou à Irlanda como missionário. De acordo com a velha tradição, São Germano de Auxerre consagrou-o bispo.
São Patrício, à época, era um estranho para a sociedade irlandesa, uma vez que era bretão, promovia uma nova religião, e se recusava a se integrar à sociedade contemporânea. Seus sermões atraíam muitas pessoas, incluindo pessoas nobres e ricas. Ele estava consagrando padres, construindo igrejas, e expandindo o cristianismo ardorosamente. Para o povo irlandês, a criação de conventos de freiras era incomum, mas São Patrício foi capaz de cristianizar muitas (por vezes muito influentes) mulheres; os hagiógrafos notaram a popularidade de seu sermão de Cristo entre as mulheres. Ao mesmo tempo, seus oponentes eram os druidas, que consideravam a nova religião como uma ameaça à sua fé.
Guyonvarc’h e Le Roux justamente apontaram que:
"Antes da chegada de São Patrício, a Irlanda era pagã, mas depois tornou-se cristã: a evangelização, não importando os detalhes, foi a proeza de um grande missionário. É evidente que este mistério não é explicado somente pela personalidade do fundador da Irlanda cristã e histórica, que foi uma das maiores figuras míticas dos últimos anos da Irlanda pré-cristã".
São Patrício fundou o centro da missão da igreja no norte da Irlanda (Ulster) em Armagh; um local que era sagrado para os gaélicos, onde a deusa Macha havia sido consagrada (ela dava o nome a tal lugar: “a altura de Macha”, Ard Mhacha). Junto com duas outras deusas, Badb e Morrígan (Anand), ela foi incluída na tríade das antigas deusas célticas (Morrigan). As três deusas eram responsáveis pela soberania, guerras, mortes, e eventos trágicos (má sorte, desastres) da Segunda Função Indo-Europeia, com uma ênfase no lado negativo.
Armagh tornou-se a cátedra arquiepiscopal para todo o cristianismo céltico, influenciando paróquias, dioceses e monastérios.
Guyoncarc’h e Le Roux afirmaram que com seu sermão de cristandade, São Patrício conseguiu evitar um severo confronto entre novas e antigas religiões.
No século VIII, São Patrício, como disse seu principal hagiógrafo Muirchu, veio a Tara e primeiramente cristianizou o Rei Laoghaire, suas filhas, seus guerreiros, e seus druidas. Os hagiógrafos escreveram que isso ocorreu em 432 d.C. Muitos anos depois, toda a Irlanda foi cristianizada sem confrontações e mártires.
Parece mais uma lenda do que história, já que o rei pediu pelo milagre da cristianização, e São Patrício obedeceu. Ele fez Cú Chulainn aparecer em seu carro de guerra. Ele louvou a felicidade extasiante do Céu e alertou sobre os tormentos do Inferno. São Patrício então revisou todas as leis irlandesas para trazê-las ao encontro do cristianismo. Os Filis perderam seu direito a ler e utilizar seus feitiços pagãos mais perigosos, e os sacrifícios dos druidas foram banidos.
Comparada a outras nações, a cristianização irlandesa foi leve e suave e, na verdade, como Guyonvarc’h e Le Roux observam, se São Patrício e outros pregadores cristãos (especialmente São Columba) não tivessem defendido sua nova verdade espiritualmente, eles não teriam logrado uma campanha tão eficiente.
Durante sua missão apostólica, Patrício mostrou-se um combatente ativo pelo cristianismo, e para uma convicção mais eficiente ele matou, queimou, amaldiçoou, e derrotou seus adversários com magia mais poderosa que seus feitiços. Era consideravelmente normal, como seu druida era Cristo, e ele é mais poderoso que os demais. As disputas de Patrício e Columba com os druidas foram mais mágicas do que teológicas. Um druida de Tara fez com que nevasse aos montes, mas era incapaz de derreter a neve. O outro produziu repentinamente uma escuridão impenetrável. E Patrício fez o sol retornar com uma palavra. Em uma das lendas mitológicas cristãs, um santo veio para lutar com Aengus, o filho de Dagda.
Toda a estrutura da cristandade celta está cheia de similaridades com antigas tradições. Assim, o principal e mais antigo festival céltico, Samhain, quando se abriram as ‘portas’ para o Outro Mundo (sídhe), possibilitou-se que diferentes milagres o levassem ao Halloween, dando a ele um contexto simbólico especial.
O famoso trevo de três folhas, que, de acordo com a lenda, era usado por São Patrício para explanar os dogmas da Trindade, costumavam ser um símbolo druida que representava a tríade da deusa da guerra.
A cristandade irlandesa tornou-se o centro do desenvolvimento espiritual não
somente para a Britânia, mas também para a Europa Ocidental, e a vida monástica irlandesa era uma das mais notáveis e místicas na Europa. E é bastante simbólico que o primeiro filósofo medieval francês Johannes Scot Eriugena tenha sido um irlandês.
As histórias medievais da Távola Redonda, Rei Arthur, e o Santo Graal eram a combinação das antigas lendas sagradas celtas e tradições cristãs.
É significativo que o povo irlandês tenha se mantido fiel ao catolicismo em sua forma irlandesa, rejeitando o puritanismo, assim como o anglicanismo em todos os períodos de sua história. Esta identidade católico-irlandesa deveria ser considerada dentro do contexto de uma síntese profunda dado que sua complexidade difere das tradições católicas da Espanha, de Portugal, da Itália, da Áustria, da Alemanha, da Polônia e da França.
Tuan mac Cairill, Fintan mac Bóchra e Cisnes Cristianizados
Como um exemplo do catolicismo celta, podemos citar a história de Tuan mac Cairill. Ele unificou as diferentes camadas da sacralidade irlandesa: do tempo e do espaço.
Um dos maiores seguidores de São Patrício foi Finnian de Moville (495 d.C. — 589 d.C), que atravessou a Irlanda em suas viagens espalhando o cristianismo. Certo dia ele conheceu um homem que era reconhecido como o maior na história da Irlanda. Era o padre com quem Finnian conversava após ambos terem reunido a missa dominical. Ele se apresentou como: “Eu sou o homem de Ulster. Eu sou Tuan, filho de Cairell, filho de Muredach Redneck, e estas são as terras hereditárias de meu pai. Sou de fato Tuan, o filho de Starn, o filho de Sera, que foi irmão de Partholon, este foi meu nome de outrora a princípio”. Isto significa que o herói deveria ter cerca de 2000 anos de idade no momento da história, uma vez que o período de Partholon foi o primeiro na história da Irlanda. Então, ele disse que viveu 100 anos como um homem na era de Partholon, 20 anos — como um javali selvagem no Período Nemediano, 80 anos — como um cervo no período Fir, 100 anos — como um gavião-preto na era de Tuatha Dé Danann, 100 anos — como um salmão debaixo d’água, e então 100 anos como um homem e conheceu Finnian. Portanto, ele se recordava de todos os eventos históricos, por tê-los testemunhado.
Tuan explica seu último renascimento de salmão a homem:
"Certa vez, no entanto, quando Deus, meu auxílio, julgou que era a hora, e quando as bestas me perseguiam, e cada pescador em cada piscina me conhecia, o pescador de Cairell, o rei daquela terra, capturou-me e levou-me com ele à mulher de Cairell, que tinha um desejo por peixe. De fato, eu me lembro; o homem me pôs em uma grelha e me assou. E a rainha me desejou e me comeu ela própria, de modo que eu estava em seu ventre. Novamente, eu me recordo do momento em que estava em seu ventre, e o que cada um dizia a ela na casa, e o que era feito na Irlanda durante aquele tempo. Também me recordo de quando a fala chegou a mim, como chega a qualquer homem, e eu sabia tudo o que ocorria na Irlanda, eu era um vidente; e um nome foi-me atribuído — a saber, Tuan, filho de Cairell. Logo a seguir veio Patrício com a fé para a Irlanda. Ali, eu já estava em idade avançada; e fui batizado, e sozinho acreditava no Rei de todas as coisas com seus elementos".
Essa história é uma entre muitas que mostra a relação entre os cristãos irlandeses na direção da tradição pré-cristã. É significativo que São Finnian trate Tuan como um senior, e que o diálogo entre eles se dá como o diálogo entre dois druidas: um (Finnian) pergunta ao outro (Tuan).
A história de Tuan mac Cairill é similar à do bardo Taliesin, recontando seus nascimentos e transformações através da história humana. Tuan mac Cairill é a versão irlandesa da essência imortal, transformando de um estado ao outro, mudando de corpo e tempo, porém mantendo a semântica da história da nação. Essa conexão interna à estrutura sagrada, incluindo todas as mudanças temporais: passado, presente e futuro, neste sentido, é o paradigma da cultura dos druidas, baseada não somente nas memórias dos eventos, mas na compreensão da lógica geral de eventos nacionais. A invariabilidade desse eixo compõe as condições para a continuidade da identidade cultural: Tuan mac Cairill é o nome de alguém que faz de um irlandês um irlandês, assim como Taliesin é alguém que faz de um galês um galês. O contexto cristão dessa lenda é crucial, na verdade, sendo um salmão, um javali selvagem, um gavião, um cervo, e um ser humano; a criatura finalmente se torna um anacoreta, um monge, reunindo uma missa dominical com seguidores de São Patrício. Não se trata apenas de uma adaptação do dasein irlandês na tradição cristã; é um estabelecimento estrito de proporção que define a relação entre a nova religião, sob total aceitação de seus dogmas, e a antiga — o elemento semântico seguinte, superior.
Guyonvarc’h e Le Roux prestam atenção ao simbolismo de criaturas, em que Tuan mac Cairill se transformou, e as associam com o período relevante da história da Irlanda.
Na era de Partholón — Tuan mac Cairill é um humano (Druida);
Na era de Nemedia — um cervo;
Na era dos Fir Bolg — um javali selvagem;
Na era dos Tuatha Dé Danann — um gavião;
Na era dos Gaels — um salmão;
Na era de São Patrício — um monge, um padre.
Portanto, existe um ciclo completo indo além do ser humano (da visão sagrada do padre) e retornando ao mesmo estado, mas numa forma atualizada do cristão. Tal transformação possui um caráter escatológico: o objetivo da metamorfose humana se torna uma incarnação humana na era de São Patrício, a cristianização e a salvação.
Outra personagem bastante similar é Fintan mac Bóchra, por vezes referido como marido de Cessair, a primeira mulher a navegar para a Irlanda. Na história do Manor de Tara, ele diz que testemunhou a inundação sofrida por sua mulher e todos os outros primeiros colonos, a que ele sobreviveu transformando-se em um salmão. Mais tarde, ele foi uma águia e um gavião, e então um homem e conselheiro de diferentes reis da Irlanda de muitas gerações (de Partholón a Mil). Particularmente, ele participou em Cath Maige Tuired. Apenas um gavião solitário havia vivido tanto quanto ele, que Fintan mac Bóchra mais tarde conheceu e com quem costumava conversar sobre suas memórias. Fintan e o gavião decidiram deixar o mundo dos homens no século V após a cristianização da Irlanda, ambos sendo verdadeiros e fiéis cristãos.
Outra história interessante é parte do ciclo mitológico. É sobre três filhos e uma filha (Aodh e os gêmeos, Fiachra e Conn, Finnguala) do Rei Lir, que viviam na era de Tuatha Dé Danann e eram pessoas daquela geração. Três filhos e uma filha, nascidos a Rei Lir por Aoibh, sua primeira esposa que era bela e amigável. Porém, quando a mãe morreu, o rei casou-se com Ayofe, irmã daquela, que via com maus olhos os seus sobrinhos e sobrinha pela beleza e pelo amor que tinham um pelo outro e por seu pai. Ela foi incapaz de matá-las, mas usou sua magia para transformar as crianças em quatro cisnes brancos, prometendo trazê-las de volta ao normal quando a Rainha do Sul e o Rei do Norte se casassem e quando o monge os abençoasse. Ayofe foi para todo o sempre transformada em um demônio raivoso dos ares pelo rei. Por trezentos anos os cisnes viveram no mesmo lago, trezentos anos no mar entre a Irlanda e a Escócia, e trezentos anos rondando a ilha de Inis Gluaire. Os cisnes possuíam a voz mais bela do mundo, e os irlandeses admiraram suas canções por muitos séculos.
Nesse momento, São Patrício veio à Irlanda, e assim, os primeiros monges apareceram. Um monge de Inis Gluaire, adepto de São Patrício, chamado MacCaomhog, trouxe os cisnes para dentro da igreja. Os cisnes gostavam de ouvir as missas e o relógio da igreja. Ele os amarrou uns aos outros com correntes de prata, mas essas correntes não eram para eles um fardo.
Quando as correntes de prata foram quebradas (de acordo com uma versão, logo após o rei deixar o santuário com os cisnes, o sino da igreja toca, libertando-os do feitiço, e com outra —a rainha queria os cisnes para si própria, ordenando então a seu marido Lairgean que atacasse o monastério e os apanhasse), os cisnes tornaram-se homens velhos (dado que tinham mais de 900 anos de idade), e pediram a MacCaomhog que os batizasse, morrendo logo depois. Foram todos enterrados juntos.