por Aleksandr Dugin
1 - O valor do Islã
No mundo atual, o Islã é a religião mundial que resiste mais ativamente às forças da globalização. Isso faz com que o fator islâmico seja de suma importância para a frente do tradicionalismo. Nessa guerra com o Islã, os EUA e o ideólogo do "Fim da História" Francis Fukuyama, inclusive trataram de introduzir o termo "islamofascismo" para desacreditar a fé. Enquanto império, os EUA tendem a designar o Islã como o novo inimigo número um. Agora é quase uma posição oficial dos EUA, enquanto que com Bush era meramente algo formal. E por conseguinte, o Islã deveria ser tratado como um campo de batalha prioritário contra o imperialismo norte-americano, o mundo moderno e pós-moderno e a globalização. Isso determina o valor e a importância do Islã.
2 - O Islã é diverso
Considerar o Islã como algo unificado e coerente, como algo homogêneo, é uma ilusão ou um "conceito vazio". Este conceito se encontra em três casos: nas massas ignorantes (que se equivocam praticamente sempre, já que o tópico é incompatível com a verdade); na propaganda dos centros mundiais de poder (que o utilizam com fins políticos específicos); na boca dos supostos teóricos do "Islã puro" (salafistas, wahhabis, etc), às vezes chamado convencionalmente "fundamentalismo islâmico", "integrismo". Os dois primeiros casos são claros. O terceiro caso é uma inovação aperfeiçoada tendente a tomar o lugar do Islã existente (o Islã tradicional) como confissão religiosa, com o pretexto de um "retorno às raízes". Algo similar é levado a cabo pelos protestantes, propondo voltar ao "verdadeiro" cristianismo das origens, mas criando algo completamente novo que pouco tem a ver com o cristianismo. O "Islã puro" está próximo disso.
3 - Temos que analisar o Islã fora dos "mitos", tal e como é, em sua diversidade.
Isso deveria lançar luz sobre os aspectos teológicos, históricos, geopolíticos, étnicos de cada uma de suas escolas. Essa é uma tarefa gigantesca, sem a qual não podemos falar a sério sobre o Islã. A principal linha divisória se encontra entre os sunitas e os xiitas.
4 - Os xiitas
É evidente que a minoria xiita é um tema completamente distinto - metafísica, geopolítica e etnicamente. Em geral, o xiismo (e todos os ramos duodecimanos e septanarios heterodoxos, e especialmente o sufismo ishraq e iraniano) é muito similar ao tradicionalismo. Não possui dimensão universalista e permite grandes diferenças. Particularmente importante é seu sentido messiânico (o Mahdi), porque dessa maneira é mais fácil encontrar um terreno comum com a compreensão tradicionalista da natureza do mundo moderno e pós-moderno como é o "descobrimento do Ovo Cósmico" desde o exterior e como uma "grande paródia".
5 - Os sunitas: Islã tradicional e salafismo
A maioria sunita pode se dividir em vários fatores: permitindo o sufismo e não permitindo o wahhabismo (ao estilo do wahhabismo hanbalita propriamente dito).
6 - At-tasawwuf
Aquelas escolas sunitas que são tolerantes com o esoterismo e que tem, assim, uma dimensão na qual construir uma relação com o enfoque tradicionalista. O mundo mesmo do sufismo é muito vasto. Muitas tarîqah disputam entre si. Algumas acabam fazendo proselitismo e se unindo à Nova Era. Outras estão fechadas e quase se convertem em seitas étnicas folclóricas. As mais interessantes seguem o At-tassawwuf, que estão enraizadas em suas tradições, são ortodoxas, mas possuem uma perspectiva ampla sobre a realidade do mundo moderno, em seus aspectos sociológicos, geopolíticos, axiológicos e econômicos. Essas são poucas, mas são extremamente importantes. O entorno do At-tassawwuf é vasto como um todo. Um texto de orientação seria manifestamente necessário, ressaltando os valores radicais e incompatíveis da tarîqah com a modernidade e a pós-modernidade, assim como descrevendo a estratégia de comportamento geral (sem entrar em detalhes) de um sufi para o "fim do mundo". Os requisitos prévios para isso são numerosos. Mas tal material ou seu autor estão ausentes.
7 - O Islã Tradicional como um todo
Não há guia intelectual para os "últimos dias" no contexto do Islã Tradicional usual. Isso é compreensível, já que ele não apresenta qualquer unidade conceitual. O Islã Tradicional está presente, representa a grande maioria dos muçulmanos modernos, mas não existe uma orientação escatológica geral para a Ummah global. Tudo o que se encontra depois da prova inicial, é uma seita: o salafismo. Isso não surpreende: a escatologia se concentra nas seitas, e os salafistas, em geral, presumem ser a Ummah. Não obstante, o sentido escatológico, anti-global, anti-americano, anti-moderno e anti-pós-moderno está bastante desenvolvido entre os muçulmanos. Seria desejável ver aparecer uma publicação periódica que poderia se chamar "Islã Tradicional", e que serviria de plataforma para apresentar as posições das variedades particulares de comunidades islâmicas.
8 - Salafismo e o projeto salafista global
O salafismo, o "Islã Puro" está na frente da luta política no setor muçulmano do mundo moderno. Isso é um fato e não se pode negar. Aqui é onde encontramos a estratégia mais clara e simples, o pensamento global, os fins bem definidos: o estabelecimento do Estado islâmico mundial, a imposição da Sharia, a organização da sociedade segundo os princípios islâmicos em escala global, a doutrina da "casa da guerra" (Dar al-Harb) ali onde não existe uma "casa do Islã" (Dar al-Islam), etc. É óbvio que nesse programa há coisas aceitáveis e coisas inaceitáveis para o tradicionalismo. Aceitável é a luta contra o inimigo comum; inaceitável como um todo, porém, dada a alternativa proposta. De fato, este "projeto islâmico" pode ser chamado mais precisamente de "projeto salafista". Sua metafísica não é neutra, ela é construída sobre o rechaço do esotérico e do tradicionalismo, que são definidos aqui como o shirk, um desvio do "Islã puro". As raízes do conflito remontam aos mutazilitas e os opositores dos filósofos e dos sufistas. O "projeto salafista" é radicalmente anti-xiita, anti-sufi, e anti-tradicional. E isso não é uma característica distintiva dos salafistas individualmente, senão a metafísica obrigatória de todo esse movimento. Essa ambiguidade se reflete geopoliticamente nas estreitas relações entre o salafismo (em particular, Bin Laden e Al Qaeda), Brzezinski e a CIA durante a guerra do Afeganistão, no fato de que os americanos tem sempre o serviço dos salafistas, dando a eles a possibilidade de interferir nos assuntos soberanos dos países que tentam resistir aos EUA (Iraque, Síria, Líbia, mais o salafismo anti-russo no norte do Cáucaso), mas por outra parte também são salafistas os que encontramos ativos na anti-globalização atacando forças americanas. Essa ambiguidade deveria ser conceitualizada dando-se voltas constantemente para favorecer esse diálogo, para explicar todos os aspectos do conflito. Na batalha global contra o Dajjal - qual é o papel do salafismo? Deixamos essa pergunta aberta.
9 - O Islã na rússia
Posição, papel e lugar do Islã na Rússia. Devemos examinar as posições escatológicas e tradicionalistas. Para isso devemos aplicar seriamente todas as teses prévias à situação russa. O Islã é parte do espaço russo e ali se desenvolveu ao longo de séculos. Mas a Rússia não se tornou entrincheirada nas posições ocidentais, globalização, liberalismo, pós-modernismo. A posição das autoridades é evasiva e pode ser interpretada de diferentes manerias. As forças do Dajjal são fáceis de se especular aqui. Apontando para o aspecto liberal e globalista da Rússia eles jogam contra os muçulmanos com isso, mas ao mesmo tempo designam os muçulmanos russos - como "migrantes", "imigrantes", etc. É uma estratégia para debilitar o inimigo potencial do Ocidente. Temos que trabalhar para opôr a eles uma aliançar escatológica dos muçulmanos e dos cristãos ortodoxos (em toda a Rússia) contra os EUA, o liberalismo ocidental e a modernização. Este é o ponto de contato mais sólido com um Islã tradicional russo; não é todavia um fato, mas teoricamente é a direção correta para este diálogo. No campo intelectual, inclusive ainda mais pelas semelhanças neoplatônicas. E ao nível externo isso nos leva a uma oposição conjunta ao Ocidente, ao liberalismo e à pós-modernidade. Mas aqui o Islã tradicional é usualmente passivo e limitado a fórmulas diplomáticas ao invés de propôr uma estratégia comum. Os aspectos "modernistas" pró-ocidentais e liberais do poder russo, a corrupção e a decadência da sociedade, das tradições e dos costumes, nos horrorizam a nós e aos muçulmanos, devemos lutar contra esses problemas com eles, lutar lado a lado e não uns contra os outros. Os principais problemas surgem com o salafismo. Desempenha o papel de "espantalho" para desacreditar o Islã como um todo, e seus projetos radicais exacerbam o conflito entre os muçulmanos de tendência escatológica e as forças de tendência similar de outras religiões, ou simplesmente opositoras instintivas da globalização. Não há espaço aqui para um diálogo significativo e estimulante.
10 - Resumo
O Islã e a tradição. O Islã está diretamente conectado à Tradição. É um fato indiscutível. E este fato deve ser reconhecido pelos tradicionalistas. O Islã está ativo e é favorável ao retorno a uma sociedade tradicional. Isso deve ser apoiado. Mas o Islã não representa sozinho a Tradição. A Tradição pode ser não-islâmica. Se os muçulmanos aceitarem isso e aceitarem os termos da multipolaridade, então um diálogo ativo e uma cooperação estreita, inclusive no âmbito militar, devem ser alentados para fazer oposição ao mundo pós-moderno e ao Anticristo. Se nos confrontamos a uma versão protestante contemporânea inovadora e comprometida com o universalismo e o exclusivismo, sob a máscara da defesa do "Islã puro", será necessário fazer um esforço prudente e sério para desatar este nó geopolítico e metafísico, para encaminhar a situação de uma maneira ou outra. A islamofobia é um mal, mas também pode ser um mal a atividade em favor da "islamização" que se apresenta sob a bandeira do "Islã puro". Cada um deveria seguir sua tradição. Se não o conseguimos, então a culpa deve ser posta sobre nós, não sobre a Tradição. A um nível puramente individual a escolha é possível, mas ver russos se converterem em massa ao Islã me repugna, porque buscam o poder fora de si mesmos e de sua tradição e são portanto enfermos, débeis e covardes.