12/11/2014
Leonid Savin - O Nacionalismo do Donbass
por Leonid Savin
Traduzido por Raphael Camisão
Os eventos em andamento no sudeste da Ucrânia revelam um fenômeno extremamente importante. Ele não age somente como o indicador de um front da luta geopolítica entre o Ocidente e um agremiado da construção mundial multipolar, da ruptura no coração da própria natureza do Estado ucraniano (que, nos últimos tempos, intervém como satélite e cliente de Washington e de Bruxelas), do crescimento da consciência política dos cidadãos (no sentido que os cidadãos defendem seus direitos e liberdades com armas na mão ao invés de serem sujeitos a um Estado weberiano fraco e incapaz de protegê-los tanto da arbitrariedade de seus oponentes políticos quanto de continuar cumprindo suas obrigações sociais), mas, também, a manifestação de um novo nacionalismo, único em suas características e objetivos.
Muitos são os que têm o hábito de contemplar o nacionalismo de acordo com duas características fundamentais, uma baseada na cultura, compreendendo a língua (versão alemã), e, outra, na política (variante francesa). No entanto, o nacionalismo tem, no fundo, uma variedade muito maior de atributos, em qual entram a etnia, a solidariedade do grupo, as autorrepresentações e identificações. É exatamente de acordo com esta abordagem que examinamos os processos de desintegração do Estado ucraniano, desenvolvendo-se atualmente no Sudeste, e que nos identificamos como a expressão do nacionalismo do Donbass.
O caráter político do processo aparece de maneira suficientemente evidente a partir do momento que vemos claramente a noção de sujeito político se encarnar em Lugansk, Donetsk, Slaviansk, e numa série de outras cidades. Tal qualidade de sujeito político entrou em sua fase ativa de formação no período de conflito, como foi o caso na Abecásia e na Ossétia do Sul, em um momento em que, no contexto de aversão aguda da política extremamente chauvinista do presidente georgiano Gamsakhurdia, inflamaram-se os centros de resistência e reverberaram-se as declarações de independência da Geórgia.
Nas outras regiões do mundo, podemos observar semelhantes aspirações à construção do sujeito político. Estão ligadas ao fator étnico e conhecem as diversas vias de resolução. Agitam-se na Grã-Bretanha o nacionalismo irlandês e o escocês, e, na Espanha, o basco e o catalão. Os partidários da unificação e da criação de uma nação ucraniana unitária seguem, intencionalmente, em silêncio, apesar de serem exatamente os movimentos nacionalistas europeus que vêm em mente desde que se convocou a ideia de nação. Evidentemente, a Ucrânia estava fadada às diferentes formas de etnonacionalismo, ao menos se vista do ponto de vista da geografia política: em comparação aos outros países da Europa, esta antiga reública soviética é grande demais para ser uma massa uniforme, homogênea em termos de cultura nacional, histórica e prática sociopolítica. Fica claro que, à parte de um nacionalismo artificial, e, em grande parte, teórico dos supérfluos banderistas, existem na Ucrânia outras formas identitárias, do da Rutênia, a extremo-oeste, até a Sloboda, e, própria desta, do Império Russo a leste.
De acordo com a tipologia, o nacionalismo do Donbass pode ser definido como sendo de tipo misto. Por um lado, é situacional, isto é, dotado de uma especificidade construtivista, contra a qual se colidem os esquemas da Junta de Kiev. Mas, pelo outro, é primordial, isto é, dispõe-se de profundas raízes históricas, pelas quais convém clamar um conhecimento subjacente. A deficiência da política liberal à francesa dos oficiais de Kiev ao longo dos dez últimos anos fez com que o embrião do nacionalismo do Donbass pudesse crescer e se reforçar com todas suas variantes, todas enraizadas em uma única plataforma global. Se em seus tempos lhe tivesse sido introduzido o federalismo, seria possível que a Ucrânia tivesse fugido da situação atual. E no contexto de um nacionalismo, inclusivo, oficial a diferentes níveis, linguísticos e culturais, poderíamos ver algo semelhante ao que existe nos Estados Federados da Alemanha e os cantões suíços (tomamos tais variantes em consideração, levando em conta a aparição frequente do vetor e da escolha europeia da Ucrânia em nome de suas diferentes forças políticas ao longo dos quinze últimos anos). Mas não se fez isso.
Na medida que os aspectos primordiais se situam o mais frequentemente sobre a argumentação dos movimentos nacionalistas (e de libertação nacional), é necessário que se examine em detalhe todas as fases históricas que lhe são associadas a fim de propôr uma sucessão única de camadas, que podem incluir uma mitologia própria, como a memória histórica. Uma primeira fase diz respeito ao período proto-estatal, deixando de lado as especificidades da clara expressão de "Estado moderno", associadas à compreensão da soberania. Aqui são revelados fatores interessantes, tais como a presença dos alanos (sármatas e citas) na região do Baixo Don, e, mais acima, pela margem esquerda do Dniepr e ao norte do litor do Mar de Azov. Assim, ainda que a Crimeia esteja integrada à esfera do mundo helênico, o Donbass é parte da esfera cultural alano-sármata.
A segunda fase, relativa ao período das grandes migrações dos povos, experiencia a passagem de numerosos povos através do território que examinamos, assim como a instalação de alguns destes no território. Além dos eslavos, chegaram povos turcófonos, como pechenegues e cumanos, todos recebendo o nome de "chapéus negros". O próprio território foi dominado pelo Caganato dos Cazares, assim sendo integrado à Horda Dourada.
Ao longo da terceira fase, a região se tornou "terra nullius", em selvageria vazia de estrutura política clara, contígua à periferia das possessões de diferentes potências (Império Russo, Reino da Polônia, Canato da Crimeia e Império Otomano), onde os interesses rivais podiam provocar conflitos bélicos. É apropriado ressaltar a carta mandada de Ivã, o Terrível para o Cã da Crimeia, em que indica que os cossacos vivendo no território e importunando os tártaros não tinham ligação alguma com o império moscovita. Eram um povo livre. Mas não ficariam mais tanto tempo autônomos, já que os "grandes jogadores" conseguiriam controlar seus meios de comunicação terrestres, fluviais e marítimos, assim como constituíram zonas mediadoras destinadas a proteger a metrópole de quaisquer surpresas.
E assim foi criada a "Nova Rússia", quando, ao longo da guerra contra o Império Otomano, apropriou a região marginal do Mar Negro, assim como os distritos mais remotos. É de extrema importância observar que a região do Donbass foi influenciada pelo fator do cruzamento de culturas, estas sempre relacionadas por uma identidade cristã ortodoxa comum. Nos atuais distritos de Lugansk e Donetsk apareceu uma unidade militar e agrícola com o nome de "Eslaviano-Sérvia", e, igualmente, na época do avanço turco pelos Balcãs, emigrados da região dos sérvios, dos montenegrinos e dos valacos. Assim, uma outra unidade aparece no distrito de Kirovograd: a "Nova Sérvia". De fato, apareceu sobre o território de Slaviansk, ainda antes, um destacamento de guerreiros montenegrinos que se instalaram dentro das fortalezas de Tor (onde foi a localidade de Ostrozhets até 1637). Nós observamos no nome deste lugar uma conotação interessante. O cientista noruguês Thor Heyerdahl, grande viajante e explorador, ao tentar remontar as origens da mitologia escandinava, chegou à conclusão que a divindade suprema do panteão pagão, Odin, fora um personagem histórico, chefe de um povo, que remonta do Don inferior até o norte da Europa. Como sabemos, Odin contava em suas suítes com Thor, portador do trovão, e envolvido diretamente com guerra e práticas bélicas. Thor sacrifica seu braço a fim de que os deuses enganassem a astúcia do lobo Fenrir, encarnação do mal na mitologia escandinava.
A fase seguinte foi a unificação territorial e política pelo Império Russo, através da constituição da terra (mais tarde, "Oblast") do Exército de Don. Aqui se combinam os fatores religiosos e o cossaco. A maioria dos cossacos rejeitou as reformas do Patriarca Nikon e mantiveram para si a "velha fé". A esta fase se sucedeu o período da Revolução de Outubro, marcada pela tentativa da criação República Socialista Soviética de Donetsk-Krivoi Rog. No entanto, o território foi integrado à Ucrânia.
Em seguida vem a época da modernização stalinista, em que um fluxo de novas pessoas chegando contribuiu para o estabelecimento da indústria regional. Fica claro que o caráter trabalhador e as explorações heroicas dos mineiros e dos metalúrgicos, em oposição às figuras trabalhosas de marchantes e políticos (a criptoburguesia), exerceu igualmente uma influência no processo profundo de prisão de consciência identitária "do Donbass". Esta fasse se prolonga organicamente pelo período pós-soviético, em que se pode escutar da própria boca dos habitantes da região "somos do Donbass", mais que se evoca toda a noção de pertencimento ao território ucraniano em sua integridade.
O fator da indústria mineradora teve igualmente significância determinante na formação da visão própria de mundo dos habitantes do Donbass. O trabalho nas minas é perigoso. Frequentemente a morte é encontrada, por uma pessoa ou por um grupo. Uma percepção da morte e uma relação com ela, especialmente particulares, são desenvolvidas, estranhas aos habitantes da Polésia ou de Lwów. Os nacionalistas de Lwów preferem à morte a evasão em direção à "Europa das Luzes", ou a uma nova pátria, como o Canadá, ou a Chicago norte-americana. Assim fizeram seus predecessores depois que haviam decidido unir-se à luta da CIA contra a União Soviética. Em Donbass, seus resistentes hodiernos vivenciam um espírito elevado e apaixonado próprio dos habitantes da região.
Em 1991, ao chamado de Kravchuk, a intelligentsia (incluindo a diáspora) envolveu-se no processo de formação de um novo Estado ucraniano. A construção de um semblante extraordinário, tal a elaboração de um mito, narrando os grandes ancestrais, os "ucraniopitecos", os arianos. Era necessário fixar os fundamentos de uma primordialidade da ideologia ucraniana. Debruçava-se mais sobre o delírio intenso e as alucinações de espíritos doentes que sobre a investigação científica e um programa, isto para presidir o nascimento de novas elites estatais e a educação de um espírito patriótico. O nacionalismo banderista é, por natureza, exclusivo, e as contradições internas em relação ao nacionalismo ucraniano, dominante sobre outras ideologias do século XX, exerce uma função mais repulsiva que atrativa. Perante tais contradições dissimulam-se habitualmente os nacionalistas atuais em suas linhas, ainda que, em sua grande maioria, estejam longe de dispor dos conhecimentos teóricos de Dontsov, Lipa, Stetsko, Mikhnovski, e de outros apologistas do nacionalismo ucraniano.
Além disso, convém remarcar que a região do Donbass não foi submetida à expansão greco-católica que sofreu a Ucrânia Ocidental. Assim, é da Igreja Ortodoxa Russa do Patriarcado de Moscou que provém a posição dominante. Alguns poucos hereges, os filaretianos, que se dizem fiéis ao Patriarcado de Kiev, algumas extensões tardias do unismo e diferentes correntes protestantes não têm papel significante algum na formação do estado de espírito nos oblasts de Lugansk e Donetsk, onde seus adeptos e pregadores suscitam a aversão.
Resumidamente, observamos a aparição de um novo fenômeno, único e interessante: o nacionalismo do Donbass. Ao mesmo tempo, manifesta-se como forma intrínseca de um nacionalismo russo mais vasto, por sua estrutura ser obra dos mesmos fundamentos do nacionalismo russo, este exercendo uma função de cúpula, como uma ligação com a Rússia, particularmente com os distritos do Sul, historicamente ligados ao Donbass. Por fim, independentemente da questão da guerra que atualmente segue entre Don e Dniepr, é evidente que o nacionalismo do Donbass se integra organicamente com o mundo russo da Eurásia.
08/11/2014
Aleksandr Dugin - Quarto Estado: História e Significado da Classe Média
por Aleksandr Dugin
Ciência e Ideologia: Um Problema de Método
Nenhuma das palavras que usamos no curso de discussões e análises políticas e sociais é ideologicamente neutra. Fora da ideologia tais palavras perdem inteiramente seu sentido. E não é possível determinar nossas atitudes perante elas sem ambiguidade, já que o conteúdo de qualquer expressão é moldado pelo contexto e estruturas semânticas, um tipo de sistema operacional. Quando vivemos em uma sociedade com uma ideologia óbvia, mantida abertamente como ideologia dominante, as coisas são suficientemente claras.
A significância de palavras flui diretamente da matriz ideológica, que é incutida por meio da criação, educação e instrução e apoiada pelos aparatos ideológicos ativos do Estado. O Estado forma uma linguagem, define o significado do discurso e estabelece - geralmente através de meios repressivos, genericamente compreendidos - os limites e teor moral da coleção básica de conceitos e termos políticos e sociológicos.
Se vivêssemos em uma sociedade em que a ideologia comunista domina, conceitos como "burguesia", "fascismo", "capitalismo", "especulação", etc. adquirem não apenas conotações estritamente negativas, mas significados específicos, com os quais capitalistas, fascistas e especuladores descordariam categoricamente. A discordância concerne não apenas signos, mas a própria significância de palavras. A maneira pela qual um comunista vê um fascista, ou um fascista vê um capitalista, pode parecer para uma facção diferente pouco mais que uma caricatura ou distorção. E isso, é claro, funciona no sentido oposto: o fascismo parece natural para o fascismo, e o comunismo, absolutamente mau.
Para um capitalista, o comunismo e o fascismo são igualmente malignos. O capitalista geralmente não pensa em si mesmo como burguês. A especulação é para ele uma forma da realização de direitos econômicos naturais, e o sistema que ele defende é usualmente considerado por ele como uma sociedade "livre", uma sociedade "aberta". Nem a análise marxista da apropriação da mais-valia, nem a crítica fascista da rede de obrigações e pagamentos de juros e da oligarquia financeira internacional que usurpa o poder sobre povos e nações, jamais o convencem de qualquer coisa.
Ideologias são similares a religiões; daí Carl Schmitt falar em "teologia política". Cada um crê sacralizadoramente em seus próprios valores e ideais, e a crítica desses ou a apologia de valores alternativos normalmente não possui efeito (a não ser pelos poucos casos de conversão confessional, que ocorre na história da religião e na história das doutrinas políticas).
Consequentemente, antes de falarmos seriamente sobre um ou outro termo, é necessário determinar em que contexto ideológico vamos considerá-lo. Alguém certamente levantará uma objeção: a ciência deve assumir uma posição neutra. Isso é impossível. Nesse caso, a ciência pretenderia assumir o status de uma meta-ideologia, i.e., um tipo de "ideologia verdadeira", da qual todas as outras ideologias seriam formas relativas. Mas ninguém concordará com isso, ainda que inevitavelmente entre na cabeça de alguém reclamar tais ambições.
Na esfera religiosa, doutrinas sincréticas periodicamente emergem, reivindicando serem a expressão da "verdade absoluta" e que todas as outras religiões históricas são suas manifestações relativas. Mas como regra, tais tendências não desfrutam de grande popularidade, permanecendo propriedade de pequenos círculos e negadas pelas grandes confissões como "heresias".
A ciência, similarmente, não pode reivindicar o status de uma meta-ideologia e permanecer relevante. Mas ela difere da ideologia ordinária por três características:
* Ela reflete distintamente sobre as estruturas do paradigma ideológico que ela considera. (Pessoas comuns nem ao menos suspeitam que o que parece a elas ser sua "opinião pessoal" é um produto secundário ou mesmo terciário de um processamento ideológico, cujos mecanismos estão completamente ocultos para elas).
* No curso da análise do discurso ideológico, ela usa as técnicas da lógica clássica (as leis de Aristóteles e o princípio da razão suficiente de Leibniz).
* Ela é capaz de construir uma matriz comparativa das correspondências entre ideologias diversas, justapondo estruturas em suas fundações e estabelecendo simetrias e oposições entre discursos separados e seus elementos.
Assim, na consideração de qualquer conceito ou termo, é possível proceder de duas maneiras: ou interpretá-lo a partir da posição de uma ou outra ideologia, não penetrando em suas fundações e sem compará-la com outras interpretações (este é o nível da propaganda e da análise/jornalismo aplicados de baixa qualidade), ou lançar mão do método científico, o que não nos livra da adesão a uma ideologia, mas nos força a raciocinar, observando as três regras supramencionadas da abordagem científica (paradigma, lógica, comparação).
Nós propomos considerar o conceito da "classe média" precisamento nesse espírito científico.
Da Casta à Classe
O conceito da "classe média" é crucial para a ideologia capitalista liberal. ainda que ela tenha aparecido depois da teoria marxista da luta de classes e da doutrina comunista das duas classes antagônicas, burguesia e proletariado, o próprio significado do termo "classe média" possui uma história muito mais longa e tem suas raízes no período das revoluções burguesas e da ascensão do Terceiro Estado, que reivindicou a partir de então um monopólio nas esferas política e econômica.
Antes de considerar a "classe média", nos voltemos para o conceito de "classe" enquanto tal. Classe é um conceito da organização social da modernidade. Ordens e sistemas sócio-políticos antigos foram construídos sobre o princípio da casta. "Casta" deve ser compreendida como a doutrina de que a natureza interior de pessoas diferentes difere qualitativamente: há almas divinas e almas terrenas (ferais, demônicas). A casta reflete precisamente essa natureza da alma, que o homem não é capaz de mudar durante sua vida. A casta é fatal. A sociedade normal, segundo essa concepção, deve ser construída de forma que aqueles de uma natureza divina (a elite) estejam acima, e aqueles de uma natureza terrena (feral, demônica) permaneçam embaixo (as massas). É assim que o sistema indiano dos varnas é pensado, tais como os dos antigos hebreus, babilônios, egípcios e outras sociedades.
Essa teoria das castas foi substituída por uma teoria mais flexível dos estamentos. O estamento também propõe uma diferença nas naturezas das pessoas (a existência do superior e do inferior), mas aqui o fato do nascimento em um ou outro estamento não é considerado um fator final e natural na determinação do pertencimento a um certo status social. O estamento pode ser modificado se o representante de um estamento inferior realiza um grande feito, demonstra qualidades espirituais singulares, se torna um membro do sacerdócio, etc.
Aqui, associado ao princípio da casta, está o princípio da meritocracia, isto é, a recompensa pelos serviços. O princípio meritocrático se estende também aos descendentes daquele que realizou o feito (enobrecedor). A sociedade estamental foi predominante na civilização cristã até o fim da Idade Média. Na sociedade estamental, os estamentos superiores são o sacerdócio (clero) e os homens-de-armas (aristocracia), e a mais baixa é o Terceiro Estado de camponeses e artesãos. Precisamente da mesma maneira, em uma sociedade de castas, sacerdotes e guerreiros (brâmanes e ksatriyas) eram superiores, e os inferiores eram os camponeses, artesãos e comerciantes (vaishyas).
A modernidade se tornou a era da derrubada da sociedade estamental. As revoluções burguesas da Europa demandavam a substituição dos privilégios estamentais dos estamentos superiores (do clero e da aristocracia militar, a nobreza) em favor do Terceiro Estado. Mas os portadores dessa ideologia não eram os camponeses, que estavam conectados à sociedade tradicional pelo caráter específico do labor sazonal, pela identidade religiosa, etc., mas os burgueses e citadinos mais móveis. "Burguês" em si mesmo se forma da palavra alemã "Burg" significando "cidade". Assim, a modernidade deu prioridade precisamente ao burguês-citadino como unidade normativa.
As revoluções burguesas aboliram o poder da Igreja (clero) e da aristocracia (nobreza, dinastias) e promoveu o modelo da construção da sociedade com base na dominação do Terceiro Estado, representado pelos burgueses-citadinos. Isto é, essencialmente, o capitalismo. O capitalismo, em sua vitória, substitui as distinções estamentais, mas preserva as materiais. Assim, a noção de classe surge: classe significa um indicador da medida de desigualdade. A burguesia aboliu a desigualdade estamental, mas preserva a desigualdade material. Consequentemente, precisamente a sociedade burguesa capitalista da modernidade é uma sociedade de classes em sentido pleno. Previamente, na Idade Média, pertencer a um estamento era primariamente um atributo social. Na modernidade, toda a estratificação social foi reduzida ao atributo das riquezas materiais. A classe é assim um fenômeno da modernidade.
Guerra de Classes
O caráter classista da sociedade burguesa, porém, foi percebido mais distintivamente não pela ideologia da burguesia, mas por Marx. Ele elaborou sua doutrina revolucionária com base no conceito de classe. Em sua fundação estava a idéia de que a sociedade de classes e a desigualdade material característica dela, elevada ao mais alto critério, expõe a essência da natureza da sociedade, do homem e da história. Na imagem clássica de Marx, há sempre ricos e pobres, e os ricos ficam sempre mais ricos, e os pobres mais pobres. Consequentemente, há duas classes, burguesia e proletariado, e sua luta é o motor e significado da história.
Todo o marxismo é construído sobre essa idéia: quando falamos em classes, falamos de duas classes antagônicas, cuja diferença não é relativa, mas absoluta, já que cada uma incorpora em si mesma dois mundos irreconciliáveis: o mundo da Exploração e o mundo do Trabalho. Há duas classes: a classe do Trabalho (o proletariado) e a classe da Exploração (a burguesia). No sistema capitalista, a classe da Exploração domina. A classe do Trabalho deve se tornar consciente de si mesma, se erguer, e derrubar a classe dos Exploradores. Eles devem criar, primeiro, o Governo do Trabalho - socialismo. Então, após os últimos remanescentes da sociedade burguesa terem sido destruídos, a sociedade comunista aparecerá, agora plenamente sem classes. Segundo Marx, uma ausência de classes é possível apenas após a vitória do proletariado e a destruição radical da burguesa.
Para Marx, uma "classe média" simplesmente não pode existir. Esse conceito não possui semântica independente na ideologia marxista, já que tudo que está entre a burguesa e o proletariado (por exemplo, a pequena burguesia ou o campesinato próspero) se relaciona essencialmente ou à burguesia ou ao proletariado. Para marxista, a "classe média" é uma ficção. Ela não existe, e o próprio conceito não é nada além de um instrumento da propaganda ideológica dos capitalistas, tentando enganar o proletariado, prometendo uma integração futura à classe burguesa (o que, segundo Marx, não pode acontecer, já que a apropriação da mais-valia impede o enriquecimento do proletariado). Nós podemos tirar a seguinte conclusão: o termo "classe média" é uma ficção para marxistas, uma figura artificial da ideologia burguesa, trazida para ocultar a imagem real da sociedade e os processos que ocorrem nela. Ao mesmo tempo, os marxistas admitem o fato de que uma transição da sociedade estamental para a sociedade de classes e, consequentemente, concordam com a burguesia que uma sociedade de desigualdades materiais (sociedade de classes) é mais "progressista" que uma sociedade de desigualdade estamental; eles discordam da burguesia em que, para os comunistas, este não é o "fim da história", mas apenas o começo de uma luta revolucionária completa. Os liberais, por outro lado, insistem que a desigualdade material é inteiramente moral e justificada e mantém que a luta comunista por igualdade material é, por contraste, amoral e patológica. Para liberais, o "fim da história" começa quando todos se tornam "classe média". Para comunistas, ele começa quando o proletariado finalmente destrói a burguesa e constrói uma sociedade comunista de igualdade total.
A Classe Média dentro do Liberalismo
O conceito de uma classe média está implicitamente presente na ideologia liberal desde o começo. Dito isso, ele só recebe implementação plena no curso do estabelecimento da sociologia, que objetiva combinar muitas teses vanguardistas do marxismo (em particular, a centralidade do conceito de classe) e condições burguesas. A sociologia é assim uma forma híbrida: ideologicamente, ela está entre comunismo e liberalismo; metodologicamente, ela enfatiza uma abordagem científica, analítica. Nós podemos distinguir dois pólos na sociologia, o social (escola de Durkheim, as teorias de Sorokin, etc). e o liberal (Weber, as escolas de Chicago e a "austríaca" nos EUA, etc).
Em todo caso, o caráter específico do entendimento liberal da classe é a convicção de que, na sociedade burguesa padrão, há apenas uma classe, e todas as diferenças entre as profundidades e alturas são relativas e condicionais. Se, para Marx, há sempre duas classes, e elas existem em inimizade implacável, para liberais (Adam Smith, por exemplo) há sempre ultimamente uma classe - a burguesia. A burguesia nominalmente abraça a totalidade da sociedade capitalista. As camadas mais pobres dessa sociedade são, simplesmente, burgueses incompletos. Os mais ricos, por outro lado, são superburgueses. Mas a natureza social de todas as pessoas é qualitativamente idêntica: todos recebem oportunidades iniciais iguais, partindo das quais o burguês pode alcançar ou um certo nível de sucesso, ou falar em alcançá-lo e deslizar na direção do burguês incompleto.
Daí, Adam Smith assume como situação padrão a seguinte narrativa liberal clássica:
O padeiro contrata um trabalhador, que recentemente chegou à cidade em busca de trabalho. Após trabalhar como assistente para o proprietário, o trabalhador contratado aprende a fazer pão e observa a organização de processos de interação com fornecedores e clientes. Após algum tempo, o trabalhador contratado consegue crédito e abre uma padaria. Após primeiro trabalhar independentemente, ele eventualmente contrata um ajudante, que veio à cidade em busca de trabalho, e o ciclo se repete.
Nesse modelo vemos o seguinte: Não apenas a sociedade é pensada enquanto classe média, mas existe o que já é classe média e o que ainda não é classe média. Nessa imagem, o trabalhador contratado não forma um tipo peculiar, mas representa o burguês em potencial, enquanto que o padeiro é efetivamente burguês (ainda que mesmo ele, chegando à ruína, pode teoricamente estar na posição novamente do trabalhador contratado, o ainda não burguês).
Segundo Marx, a quantidade de riquezas em uma sociedade é fixa, e a presença de duas classes se baseia precisamente nisso: aqueles que possuem riquezas jamais as partilham com os pobres, já que a vida na sociedade capitalista é um jogo de soma zero. Para Smith, por outro lado, as riquezas crescem constantemente. Como resultado, os limites da classe média se expandem continuamente. O capitalismo se baseia na presunção do crescimento constante das riquezas para todos os membros da sociedade; idealmente, toda a humanidade deve se tornar classe média.
Ao mesmo tempo, há duas abordagens à classe média na ideologia liberal. A primeira corresponde aos liberais de esquerda: eles demandam que a superburguesia (os grandes capitalistas) partilhem conscientemente uma parte dos lucros com a classe média e a pequena burguesia, já que isso levará à estabilidade do sistema e a uma aceleração do crescimento global da classe média.
A segunda abordagem é característica de liberais de direita: eles levantam objeção ao fardo posto sobre a superburguesia pela taxação e projetos de bem-estar social; eles acreditam que estes contradizem o espírito da "livre iniciativa" e retardam a dinâmica do desenvolvimento do sistema capitalista, já que a superburguesia estimula o crescimento da burguesia média, que, por sua vez, impele a pequena burguesia e a ainda-não-burguesia.
Desse modo, o conceito de classe média se torna, para liberais de esquerda, um valor moral e um slogan ideológico (como em, "Precisamos construir uma classe média mais forte!"). Para liberais de direita, por outro lado, o crescimento da classe média é uma consequência natural do desenvolvimento do sistema capitalista e não demanda atenção especial ou elevação a um valor.
Classe como Estrato Social na Sociologia
Na sociologia, essa atitude ideológica básica do liberalismo em relação a primazia da classe média se manifesta na relativização do modelo de estratificação. A sociologia divide a sociedade em três classes: superior, média e inferior (a isso às vezes se acrescenta a subclasse dos marginais puros e desviados sociais). Essas classes não são idênticas à concepção marxista, nem aos conceitos de classe estritamente liberais (já que o liberalismo conhece apenas uma classe, a média, sendo as outras pensadas como suas variações). Essa divisão situa a dimensão dos indivíduos sobre quatro indicadores: suficiência material, nível de fama, posição na hierarquia administrativa e nível de educação. Com base em critérios estritamente qualitativos, qualquer pessoa pode ser encaixada a um dos três estratos sociais.
Aqui, o conceito de classe não possui um conteúdo ideológico direto, mas, via de regra, ele é aplicado à sociedade burguesa, na qual a sociologia enquanto ciência surgiu. Essas classes sociológicas, identificadas com estratos sociais, devem ser distinguidas das classes marxistas e das concepções liberais típicas sobre a classe média como classe universal e única.
Nesse caso, em um esquema burguês, a luta pelos direitos da subclasse ou pelo apoio à classe inferior (em sentido sociológico) pode ser pensado como uma continuação esquerdista da abordagem liberal: atenção para com a camada inferior da sociedade burguesa estipular a luta por facilitar sua integração na classe média, i.e., elevá-las ao nível da burguesia. Para liberais de direita, tal esforço é "amoral", já que contradiz o princípio central da liberdade social: iniciativa e competição honesta (o forte vence, o fraco perde, mas essas são as regras do jogo; todos devem buscar se tornarem fortes). A versão extrema do liberalismo de direita ou mesmo de extrema-direita é o "objetivismo" de Ayn Rand.
A Classe Média e o Nacionalismo
Há outro sistema ideológico da modernidade, que temos ainda que considerar - o nacionalismo. O nacionalismo é uma variação da ideologia burguesa, que insiste em que o horizonte padrão da sociedade burguesa não deve ser a humanidade (o "cosmopolitismo" e "globalismo" dos liberais clássicos) mas a sociedade enquanto definida pelas fronteiras de um Estado-Nação. A nação ou povo é tomado como unidade máxima de integração. O mercado é aberto dentro das fronteiras da nação. Mas no sistema internacional, a atividade econômica transita para o nível do Estado, não de atores privados. Daí emerge a legitimação de instrumentos como tarifas, o protecionismo, etc.
O nacionalismo pensa a classe média não abstratamente, mas concretamente, enquanto a classe média de uma dada formação nacional do Estado. O nacionalismo também, como o liberalismo, aceita uma figura padrão da sociedade, o burguês-citadino-cidadão, mas coloca a ênfase precisamente no cidadão, e mais que isso, no cidadão de um Estado nacional específico.
A "nação" enquanto formação política se torna sinônimo da sociedade burguesa. Para nacionalistas, fora dessa sociedade, existe apenas uma zona de risco social e nacional. A nação é pensada aqui como uma comunidade da classe média. E a tarefa consiste em integrar as camadas mais baixas à totalidade nacional, não raro com a ajuda de medidas de bem-estar social. É por isso que o nacionalismo pode possuir inúmeras características socialistas, ainda que a base ideológica aqui seja diferença: puxar os economicamente fracos ao nível da classe média é uma tarefa de integração nacional, não uma consequência de uma orientação na direção da justiça e da igualdade material. Nós vemos algo similar com liberais de esquerda, que consideram integrar a subclasse em na sociedade mais ampla como condição para a estabilidade do desenvolvimento do sistema capitalista.
O nacionalismo, via de regra, se relaciona negativamente às minorias nacionais e especialmente aos imigrantes. Isso está ligado ao fato de que aos olhos dos nacionalistas, esses elementos perturbam a homogeneidade da classe média nacional. Ademais, algumas minorias nacionais são culpadas por concentrar em suas mãos riqueza material excessiva, em outras palavras, aqueles que desafiam a classe média nacional "a partir de cima". Os sentimentos nacionalistas de injustiça são expressos no antagonismo em relação a "oligarcas" e, às vezes, como "antissemitismo econômico", um sentimento que não era estranho ao próprio Marx. Por sua vez, outros não-nacionais (usualmente imigrantes) são culpados pelo aumento nos números da camada inferior e da subclasse, cuja integração é complicada por diferenças nacionais. Uma variante do nacionalismo anti-imigração consiste na acusação de que a ampliação do trabalho barato retarda o processo de enriquecimento da população "nativa" e o crescimento "harmônico" (para os nacionalistas) da classe média.
O Problema da Classe Média na Rússia Contemporânea
Após realizar esses refinamentos metodológicos necessários, nós podemos finalmente levantar a questão: o que é a classe média para a Rússia? Quais são seus prospectos? Isso é importante para nós ou, ao contrário, discussões sobre ela são opcionais e secundárias?
É impossível responder a isso sem nos voltarmos para uma das três ideologias clássicas (incluindo as versões contidas em cada uma através das polaridades de esquerda e direita).
Se assumirmos a posição do liberalismo de direita, a resposta é essa: nós não devemos prestar atenção na classe média; a coisa mais importante é garantir a máxima liberdade econômica (isto é, a remoção completa do governo da economia, impostos próximos de zero, etc.) e tudo vai se ajeitar por conta própria. Liberais de direita e globalistas consistentes são convictos de que o crescimento da classe média na Rússia não é o objetivo; ele é uma consequência da integração da nação na economia global, a abertura de mercados internos para competição externa e o desmonte imediato de um Estado autoritário.
Se tomarmos a posição do liberalismo de esquerda, então nossa atitude muda substancialmente. A ampliação da classe média é a primeira tarefa para nossa sociedade, já que o estabelecimento bem sucedido do capitalismo na Rússia depende precisamente disso, bem como sua integração na comunidade internacional. Uma classe média pequena e fraca facilita a degradação da sociedade em "lumpens" e "oligarcas" e ajuda indiretamente as tendências antiliberais nacionalistas e socialistas a capturar as mentes da população. A injustiça e desigualdade sociais, o volume da subclasse, e o lento crescimento da classe média demandam atenção especial e a execução de políticas objetivamente direcionadas, já que o destino do capitalismo na Rússia está em jogo. Novamente, a luta pela classe média é um slogan para liberais de esquerda. E eles são os que mais gostariam de focar nesse tópico, já que ele é o núcleo de suas posições ideológicas.
Se formos marxistas contemporâneos por inércia ou escolha consciente, então qualquer menção de uma classe média deve evocar nossa ira, já que essa é a plataforma ideológica dos inimigos jurados do comunismo - os burgueses liberais. Para comunistas, o seguinte é o correto: quanto mais estreita a classe média, mais agudas as contradições sociais e mais agudo o imperativo da luta de classes do proletariado contra a burguesia. Assim, o comunista percebe uma grande camada social inferior e uma subclasse contra o pano de fundo de oligarcas prósperos como a imagem social ideal. Para comunistas, a classe média é uma mentira, um mal, e sua ausência ou subdesenvolvimento é uma chance e janela de oportunidade para a revolução. Se algum "comunista" pensa de outra forma, então ele não é comunista, mas um revisionista e comprometido com a burguesia.
Se formos nacionalistas, então a classe média adquire para nós uma dimensão adicional. Ela é pensada como o esqueleto da sociedade nacional em oposição à "subclasse imigrante" e à "oligarquia apátrida". Essa é a noção peculiar da classe média no esquema nacionalista. E os contornos dessa concepção da classe média são dirigidos contra os oligarcas (a classe superior) e os imigrantes (a classe inferior e subclasse); a classe média em si é considerada como a classe nacional, i.e. como a classe russa, que inclui empreendedores russos, proprietários russos, a burguesia russa, etc.
É impossível falar de classe média enquanto tal, sem aderir (conscientemente ou não) a uma posição ideológica. Mas já que na Rússia, segundo a constituição, não há ideologia estatal, teoricamente podemos interpretar a classe média da forma que quisermos. O fato de que esse conceito se tornou o centro de discussões atesta para o fato de que na Rússia contemporânea, pela inércia das décadas de 90 e da primeira década do novo milênio, um paradigma liberal prevalece. Na ausência de uma ideologia estatal, os liberais não obstante almejam impor sobre nós seu paradigma como dominante.
Vamos conduzir um experimento mental: uma discussão sobre classe média está ocorrendo em uma plataforma socialmente significativa, por exemplo em um dos principais canais de televisão da Rússia. Representantes de todas as ideologias possíveis da modernidade participam: liberais russos, comunistas russos e nacionalistas russos.
O primeiro, um liberal russo, diria:
"O crescimento da classe média e a elevação do nível de riqueza para os cidadãos da Rússia é a principal tarefa de nossa sociedade e governo".
O segundo, um comunista russo:
"A privatização ilegal na década de 90 colocou a propriedade nacional nas mãos de oligarcas; olhem como nosso povo vive nas províncias em pobreza e em guetos!"
O terceiro, um nacionalista russo:
"Imigrantes ilegais estão roubando empregos dos russos, e eles são todos liderados por oligarcas judeus e caucásicos. Isso é uma catástrofe para a classe média russa!"
Apesar do fato de que a audiência pode gostar de todas as três posições, o júri e os "especialistas respeitáveis" irão, indubitavelmente, dar a vitória aos liberais. Pois ultimamente, nós ainda nos encontramos na condição da ditadura ideológica do liberalismo. Isso aconteceria à despeito do fato de que a sociedade, reconhecendo o discurso liberal, plenamente e persistentemente negue sua supremacia e direito. (Em contraste, para a elite política, os dogmas liberais permanecem sagrados e inabaláveis).
A partir disso, nós podemos tirar uma conclusão: a classe média e a discussão sobre ela refletem a ordem ideológica dos liberais em meio a elite política e econômica da Rússia. Se nós não partilhamos dos axiomas liberais, então podemos não considerar esse tópico de forma alguma, ou então oferecer uma interpretação (marxista, nacionalista, etc.) que os liberais rejeitarão vigorosamente.
A Quarta Teoria Política: Para Além da Classe
Em conclusão, podemos conduzir uma análise da classe média no contexto da Quarta Teoria Política. Essa teoria é construída sobre o imperativo da superação da modernidade e de todas as três ideologias políticas nessa ordem (a ordem possui máxima importância): (1) liberalismo, (2) comunismo, (3) nacionalismo (fascismo). O sujeito dessa teoria, em sua versão simples, é o conceito de "Narod", aproximadamente, "Volk" ou "Povo", mas não no sentido de "massas".
Em sua versão complexa, o sujeito dessa teoria é a categoria heideggeriana do Dasein. Podemos dizer, como aproximação, que o Narod deve ser pensado existencialmente, como a presença viva, orgânica, histórica dos russos em uma paisagem espacial qualitativa, na vastidão da Grande Rússia. Mas se o sujeito é o Narod e não o indivíduo (como no liberalismo), nem duas classes antagônicas (como no marxismo), e não a nação política (como no nacionalismo), então todos os elementos obrigatórios da imagem moderna do mundo mudam. Não há mais materialismo, economicismo, reconhecimento da universalidade fatídica das revoluções burguesas, tempo linear, civilização ocidental como padrão universal, secularismo, direitos humanos, sociedade civil, democracia, mercado, ou quaisquer outros axiomas da modernidade. A Quarta Teoria Política propõe soluções e horizontes sabidamente excluídos pelo liberalismo, pelo comunismo e pelo nacionalismo. (Mais sobre isso é encontrado no meu livro A Quarta Teoria Política e meu novo livro O Quarto Caminho).
Como um todo, a Quarta Teoria Política, quando aplicada ao problema da classe média diz o seguinte:
A transição da casta para o estamento e do estamento para a classe não é uma lei universal. Esse processo pode ocorrer como o fez na Europa Ocidental moderna, ou pode deixar de ocorrer ou ocorrer apenas parcialmente, como acontece hoje em sociedades não-ocidentais. Daí, o próprio conceito de classe como aplicado à sociedade possui aplicabilidade limitada. Classe e classes podem ser identificadas nas sociedades euro-ocidentais modernas, mas elas poderem substituir a desigualdade das almas e naturezas humanas não é algo óbvio. As próprias sociedades ocidentais estão confiantes de que as classes o fazem. Mas uma abordagem existencial a essa problemática pode pôr isso em questão.
A questão mais importante é como o humano se relaciona com a morte. Há aqueles que podem encará-la de frente, e aqueles que sempre tem suas costas voltadas para ela. Mas as origens da hierarquia social, a distinção fundamental entre as pessoas e a superioridade de alguns em relação a outros consiste precisamente nisso. Condições materiais não são decisivas aqui. A interpretação hegeliana de Mestre e Escravo é baseada nesse critério. Hegel pensa que o Mestre é aquele que desafia a morte, que sai para encontrá-la. Agindo dessa maneira, ele não adquire imortalidade, mas ele adquire um Escravo, um que corre da morte, carecendo da coragem para olhá-la no olho. O Mestre governa nas sociedades em que a morte está no centro das atenções. O Escravo adquire direitos políticos apenas onde a morte é posta entre parênteses e removida para a periferia. Enquanto a morte permanecer no campo de visão da sociedade, estamos lidando com o governo pelos sábios e heróicos, filósofos e guerreiros. Isso é uma sociedade de castas ou estamental. Mas não uma sociedade de classes. Onde a classe começa, a vida termina, e as estratégias alienadas da reificação, objetificação e mediação prevalecem.
Daí, a Quarta Teoria Política pensa que a construção da sociedade com base no critério de propriedade é uma patologia. O destino do homem e do Narod é história e geografia - mas de modo algum economia, mercado ou competição.
A Quarta Teoria Política rejeita a classe como conceito e nega sua relevância para a criação de um sistema político baseado na compreensão existencial do Narod. Mais ainda ela rejeita o conceito da "classe média", que reflete a própria essência da abordagem classista. A classe média, como a pessoa média, é uma figura social situada no ponto de máxima ilusão social, no epicentro do adormecimento. O representante da classe média corresponde à figura heideggeriana do das Man, o portador generalizado do "senso comum", que não está sujeito a verificação ou exame. (Das Man é normalmente traduzido ao inglês como 'the They', no sentido de 'Dizem que fulano de tal vencerá as eleições esse ano...). Das Man é a maior das ilusões.
A pessoa média, mediana não é de forma alguma a mesma coisa que uma pessoa normal. "Norma" é um sinônimo para "ideal", aquilo a que se deve almejar, que se deve tornar. A pessoa média é uma pessoa no menor grau, o mais não-individual dos indivíduos, a mais nula e estéril qualidade. A pessoa média não é uma pessoa de forma alguma; ele é uma paródia de uma pessoa. Ele é o "Último Homem" de Nietzsche. E ele é profundamente anormal, já que para uma pessoa normal, é natural experimentar o horror, pensar na morte, experimentar agudamente a finitude do ser, pôr em questão - às vezes de forma tragicamente insolúvel - o mundo externo, a sociedade e as relações para com o outro.
A classe média não pensa; ela consome. Ela não vive; ela busca segurança e conforto. Ela não morre, ela explode como um pneu de carro (ela emite seu espírito, como Baudrillard escreveu em Troca Simbólica e Morte). A classe média é a mais estúpida, submissa, previsível, covarde e patética de todas as classes. Ela está igualmente longe dos elementos abrasadores da pobreza e do veneno pervertido da riqueza incalculável, que está ainda mais perto do inferno que a pobreza extrema. A classe média não possui fundação ontológica para existir, e se ela existe, então tão somente lá embaixo, abaixo do reino dos reis-filósofos e heróis guerreiros. Ela é o Terceiro Estado, imaginando sobre si mesmo que ele é a única coisa que existe. Essa é uma pretensão desnecessária. A modernidade e o capitalismo (no sentido da universalidade da classe média) não são nada mais que uma aberração temporária. O tempo desse equívoco histórico está chegando ao fim.
Assim, hoje, quando a agonia desse pior dos arranjos sociais possíveis ainda continua, você deve olhar para além do capitalismo. Ao mesmo tempo, devemos valorizar e tomar interesse tanto no que o precedeu, a Idade Média, e no que virá após ele e que devemos criar - uma Nova Idade Média.
01/11/2014
Aleksandr Dugin - O Terceiro Totalitarismo
por Aleksandr Dugin
(Crítica desde a posição da Quarta Teoria Política)
Nas ciências políticas, o conceito de totalitarismo está subentendido nas ideologias comunista e fascista, que abertamente proclamam a superioridade da totalidade (classe e sociedade no comunismo e socialismo; Estado, no fascismo; raça no nacional-socialismo) sobre o privado (indivíduo).
Eles se opõem à ideologia liberal, a qual situa, ao contrário, o privado (indivíduo) sobre a totalidade (como se essa totalidade não pudesse ser compreendida enquanto tal). O liberalismo assim combate o totalitarismo em geral, incluindo o do comunismo e o do fascismo. Mas, ao fazê-lo, o próprio termo "totalitarismo" revela sua conexão com a ideologia liberal - e nem comunistas nem fascistas concordariam com o termo. Assim, todos os que usam a palava "totalitarismo" são liberais, independentemente de sua consciência sobre isso.
À primeira vista, a imagem é perfeitamente clara e não deixa lugar para ambiguidades - o comunismo é o primeiro totalitarismo, o fascismo é o segundo. E o liberalismo é sua antítese, enquanto tal negando a totalidade e situando o privado acima dela. Se pararmos aqui, reconheceremos que a era moderna desenvolveu apenas duas ideologias totalitárias - comunismo e fascismo, com suas variações e nuances. Mas o liberalismo, como teoria política que apareceu antes das outras duas e sobreviveu a elas, não poderia ser chamado de totalitarismo. Daí, a expressão "terceiro totalitarismo", que sugere uma ampliação da nomenclatura das ideologias totalitárias, para incluir o liberalismo, não fazer sentido.
Porém, o tema do "terceiro totalitarismo" pode bem surgir no contexto da sociologia francesa clássica (escola de Durkheim) e da filosofia pós-moderna. A sociologia de Durkheim mantém que os conteúdos da consciência individual são formados inteiramente sobre as bases da consciência coletiva. Em outras palavras, a natureza totalitária de qualquer sociedade, incluindo uma sociedade individualista e liberal, não pode ser cancelada. Assim, o próprio fato de declarar o indivíduo como o valor mais alto e a medida das coisas (liberalismo) é uma projeção da sociedade, que é, uma forma de influência totalitária e indução ideológica. O indivíduo é um conceito social - sem sociedade, o ser humano sozinho não sabe se ele é ou não um indivíduo, e se o individualismo é ou não o mais alto valor. O indivíduo aprende que ele é um indivíduo, uma pessoa privada, apenas em uma sociedade em que a ideologia liberal domina e realiza a função do ambiente em operação. Portanto, aquilo que nega a realidade social e afirma a individual também possui em si mesmo uma natureza social. Consequentemente, o liberalismo é uma ideologia totalitária que insiste, por métodos clássicos de propaganda totalitária, que o indivíduo é a instância suprema.
Este é o início de uma crítica sociológica da sociedade burguesa, não uma social, mas uma desde uma perspectiva sociológica, ainda que normalmente na França e no Ocidente socialismo e sociologia tenham se aproximado quase ao ponto da identificação total (por exemplo, ao modo de Pierre Bourdieu). Nesse sentido, o caráter totalitário do liberalismo é provado cientificamente e o termo "terceiro totalitarismo" adquire lógica e coerência, ao invés de ser um paradoxo assombroso. A partir de então, uma série de conceitos sociológicos, tais como "a multidão solitária (la foule solitaire - David Riesman) e outros.
A sociedade liberal, se opondo às sociedades de massa do socialismo e fascismo, se tornou ela própria uma sociedade massificada, padronizada e estereotipada. Quanto mais o homem aspira ser extraordinário no contexto do paradigma liberal, mais ele se torna similar a todos os outros. O que o liberalismo traz consigo mesmo é precisamente a estereotipação e uniformização do mundo, destruindo a diversidade e diferenciação.
Por outro lado, há a filosofia pós-moderna. No espírito da busca pela imanência radical - característica à modernidade - os pós-modernistas levantam a questão da figura do indivíduo. Segundo sua visão, o indivíduo é um sinônimo para o totalitarismo, mas transposto ao nível micro. O indivíduo é um micrototalitarismo que projeta um aparato de supressão sobre o qual o totalitarismo normal é construído nos níveis individualista e subindividualista. Em um espírito freudiano, os pós-modernistas, explicando a razão como instrumento para supressão, deslocamento e também projeção, a identificam com o Estado totalitário, que reprime a liberdade dos cidadãos impondo sobre eles sua própria perspectiva. O indivíduo é então um conceito, uma projeção da obliteração e violência de uma sociedade totalitária em seus níveis mais baixos. Os desejos e a força criativa do indivíduo são constantemente obliterados. Acima de tudo, os pós-modernistas fazem a comparação com o totalitarismo social - fascismo e comunismo - apenas por causa da estrutura hierárquica estrita do indivíduo racional. Assim, o conceito de totalitarismo liberal como um "terceiro totalitarismo" adquire sentido pleno e se situa em um fundamento legítimo.
Assim, o liberalismo é uma ideologia totalitária e violenta, um meio para a repressão política direta e indireta, para a pressão educacional e para a propaganda feroz, proclamando ser não-totalitária, ocultando sua própria natureza. Este é um fato científico. O terceiro totalitarismo é inteiramente coerente com toda a perspectiva de seu conceito político.
A Quarta Teoria Política aceita completamente essa noção, uma vez que ela permite perceber a imagem completa que unifica as três teorias políticas clássicas da modernidade - a) liberalismo; b) comunismo, e c) nacionalismo (fascismo). Todas elas são totalitárias, ainda que de forma distinta. Precisamente em outro contexto, a QTP revela o caráter racista de todas as três teorias: o racismo biológico dos nazistas, o racismo de classe de Marx (progressismo e evolucionismo universais) e o racismo colonial e cultural-civilizacional dos liberais (que era explícito até meados do século XXI e se tornou subliminar depois - ver "A Concepção Eurocêntrica da Política Mundial" de John Hobson). A QTP rejeita todos os tipos de totalitarismo - comunista, fascista e liberal. O terceiro totalitarismo hoje é o mais perigoso, já que ele é o dominante. Lutando contra ele é uma tarefa fundamental.
A QTP propõe uma compreensão nova tanto do todo como de suas partes, fora das três ideologias políticas da modernidade. Essa compreensão pode ser chamada de um Mit-sein existencial. Mas nessa compreensão existencial da presença (Dasein), não há átomo (partes, indivíduo), nem soma de indivíduos (totalitarismo). Na QTP, "ser com" significa existir, constituir uma presença - uma presença viva em face da morte. Nós somos juntos apenas quando nos deparamos com nossa própria morte. A morte é sempre profundamente pessoal e, simultaneamente, há algo de comum, algo que afeta a cada um de nós. Assim, é necessário falar não sobre totalitarismo (uma concepção mecânica conectando partes e todo), mas sobre um holismo existencial orgânico. E seu nome é Povo. Dasein existiert völklich. Em clara oposição a um "terceiro totalitarismo". Por um Ser-para-a-morte. Mit-sein. Nós somos o Povo.
10/10/2014
Thomas Bertonneau - A Crítica de Evola à Modernidade
por Thomas Bertonneau
Contra o Niilismo: A Crítica "Tradicionalista" de Julius Evola à Modernidade
Com tipos como Oswald Spengler, cujo Declínio ele traduziu para uma audiência italiana, e José Ortega y Gasset, Julius Evola (1898-1974) se destaca como um dos críticos notavelmente incisivos da modernidade de meados do século XX. Como Spengler e Ortega, Evola se via como um devedor formativo de Friedrich Nietzsche, mas mais forçosamente que Spengler ou Ortega, Evola via as limitações - contradições e inconsistências - no pensamento de Nietzsche.
Evola diferia de Spengler e Ortega de outra maneira: como certos outros Homens da Direita durante as mesmas décadas, ele se envolveu profundamente em questões místicas e ocultas, criando uma reputação durante a última parte de sua vida como um especialista em tais tópicos como religiosidade oriental, alquimia, e uma vasta gama de doutrinas esotéricas. Hermann Keyserling vem à mente também, como tendo dirigido seus interesses a essas questões. Não obstante, Keyserling, que conhecia a obra de Evola, evitava Evola, tal como Spengler havia evitado Keyserling. Isso teria sido em parte porque o envolvimento oculista de Evola chocava Keyserling como mais indiscreto e profundo do que o seu e em parte porque Evola parecia, no início da década de 30, ser simpático ao fascismo e ao nacional-socialismo, enquanto Keyserling, como Spengler, via estes como inequivocamente sinais da decadência difusa de seu tempo e os criticava desde os primórdios.
Ainda que as proclividades transitórias de Evola justificassem as apreensões de Keyserling, um rápido e crescente desgosto mútuo pôs uma distância real entre Evola e as ditaduras. Tivesse ele sabido disso, Keyserling poderia ter se aproximado de Evola. À época em que a guerra teve início, o barão havia explicitamente repudiado princípios ditatoriais. Evola, que tinha sua própria teoria da raça, expressava uma particular repulsa pela política racial nazista e pela imitação dela por Mussolini na Itália após 1938.
Evola não obstante cria dificuldades para aqueles de temperamento conservador que poderiam apreciar sua crítica da modernidade. Ele desconsiderava o cristianismo, pelo menos em sua forma moderna, como uma religião social; e como suas contrapartes da esquerda, ele desprezava a burguesia e seus valores, tanto que pelo menos um de seus biógrafos o comparou, de forma alguma sem plausibilidade, a tipos frakfurtianos como Herbert Marcuse e Theodor W. Adorno. Porém a irascibilidade geral de Evola pertence a sua atratividade. Assim, em um artigo de 1929, Bolchevismo ed Americanismo, Evola condena com igual fervor o comunismo moscovita e a democracia financeira americana, como representante, ambas, a mecanização e desumanização da vida. Diferentemente dos marxistas - e diferentemente dos fascistas e nacional-socialistas - Evola via a única esperança para a civilização ocidental como estando em um renascimento do que ele gostava de colocar em letra maiúscula, por um lado, como Tradição e, por outro lado, como Transcendência; ele assim rejeitava todo materialismo e instrumentalismo como reduções cruas da realidade para mentes brutas e, assim também, como sintomas de uma decadência prevalecente e de modo geral repugnante.
I. O especialista em Evola H.T. Hansen expõe os detalhes dos seus envolvimentos políticos, criando uma defesa exculpante generosa, no artigo que serve como introdução à tradução para inglês de Gli Uomini e le Rovine. Eu encaminho leitores a esse artigo e à própria Autodifesa de Evola, que o mesmo volume oferece como apêndice ao texto principal, caso estejam interessados nos detalhes. A análise de Evola da modernidade me interessa no que segue mais do que suas afinidades políticas na Itália no início de sua maturidade. O desprezo apaixonado de Evola pela vulgaridade de coisas como a democracia (aquele fetiche do mundo moderno), "a questão social", e a economia - que, como E. Christian Kopff aponta em um artigo recente na revista virtual Alternative Right, ele considerava "demônica" - pertence a sua convicção absoluta de que o Ocidente tem estado preso em uma crise descendente de niilismo desde o século XVIII pelo menos. A desintegração do Sacro Império Romano nas guerras de faccionalismo religioso pressagiava a desintegração da sabedoria coerente na guerra do Iluminismo contra a fé. A era do Estado-Nação, como Evola a vê, desconstruiu o princípio de que a autoridade política deriva de uma fonte transcendente. Evola admirava o que ele chamava de guibelinismo do Império ainda que ele o defendesse contra seus detratores modernos sem nostalgia. Não se pode nunca voltar para trás; deve-se lidar com as condições, tais quais elas existem agora.
Evola parecia ter concebido Gli Uomini et le Rovine, seu título já comentando sobre as condições atuais, e Cavalcare la Tigre (1961) como uma introdução dupla a sua obra-prima, Rivolta Contra il Mondo Moderno (1934).
Em Gli Uomine et le Rovine, Evola avalia a crise contemporânea, a "doença" e "a desordem de nossa era", paradoxalmente: o totalitarismo, uma tendência sinistra plenamente instigada pelo conformismo amplamente difundido, é, em efeito, um tipo de caso tal que o máximo de coerção ilegítima existe em uma sociedade simultaneamente com a máxima ilegalidade desenfreada; enquanto a proliferação de bugigangas técnicas brilhosas, em cuja fascinação as massas creem participar no progresso, coexiste com uma decadência dos refinamentos sociais e éticos da civilização medieval em várias ressurgências de primitivismo degradante. Pode-se pensar na maneira em que a internet está ligada à pornografia e à jogatina. No esquema de Evola, a Reforma, a ascensão da ciência, e a Revolução Industrial marcam fases da queda, não da subida, na história das formas sócio-políticas viáveis. Para Evola, a exaltação moderna do instrumental, do prático, e do material é equivalente não apenas a uma rejeição petulante de cada "dimensão superior de vida" mas também a um abraço perverso da "disformidade espiritual".
Assim a degradação da pessoa, um termo que Evola usa de maneira especial, pertence a um regime que alcança o controle, inteiramente em prol do controle, ao encorajar os mais baixos impulsos apetitivos daquela criatura útil, porém desesperada, o mero indivíduo numérico. Evola aqui se vale francamente da categoria de Ortega do homem-massa, cuja única qualidade consiste em sua quantidade sobrepujante inevitável.
Evola identifica a fonte aproximada dessas tendências na "subversão introduzida na Europa pelas revoluções de 1789 e 1848" ainda que uma análise poderia traçar ambas explosões a fases e eventos anteriores. Em igualdade, o fetiche central da subversão revolucionária, Evola vê um fenômeno nem natural, nem apropriadamente cultural que sugere a aversão profundamente enraizada de uma consciência supostamente liberada em relação à estrutura efetiva, graduada, da realidade. Em particular, como Evola ressalta, a humanidade contemporânea separou a si mesma inteiramente do único contexto que poderia esclarecer o valor do homem para ele e integrá-lo em uma vida significativa: aquela harmonia de "soberania, autoridade e legitimidade" pela qual "todo Estado verdadeiro" alcança "transcendência de seu próprio princípio". Mais platonista que cristão - talvez de certo modo, como eu sugeri, anticristão - Evola insiste em que o significado de um regime consiste exclusivamente em sua corporificação de "uma ordem superior", por meio da qual exclusivamente seu "poder" deriva. Um regime tradicional, sendo essencialmente hierárquico, assim jamais adotará a face da democracia; de fato, seus aristocratas sempre governarão por "absolutidade", no sentido de que sua condução da ordem, seu "Imperium", sempre tomará direção de sua participação espiritual na mesma "aeterna auctoritas" que doa inteligibilidade ao cosmo físico.
As classes sociais do regime tradicional reconhecem a autoridade incorporada nos seus governantes por seus sinais externos de dignidade e justiça próprios de pessoas reais. A democracia representa o princípio oposto a isso (na medida em que, isto é, seja possível dizer que ele representa algum princípio); a democracia é dissoluta; ela liquefaz todas as estruturas alcançadas e toda subordinação a valores em sua abolição das diferenças autênticas.
É possível notar que suave eco do que Evola reconheceria como ordem genuína informa uma fase até mesmo tão tardia da modernidade quanto a da fundação da América, com suas referências a um "Criador". Não obstante, a afirmação de Evola de que o regime e seus governantes devem tornar manifesta uma ordem transcendente - cósmica, divina e paternal - está tão distante a definição prevalecente de existência que até mesmo a maioria daqueles que se dizem conservadores devem olhar para ela em incompreensão muda. A prática moderna inverteu grosseiramente a visão tradicional de ordem, se orientando para baixo na direção do ctônico, do animista e do maternal. A democracia, para Evola, pertence com sua mediocrização infantilizante da vida, assim como a noção vazia e obsessiva, como ele vê, de individualidade. Aqui também a mentalidade dominante deve recuar - como poderia alguém não defender o indivíduo? Não é a santidade do indivíduo a base indispensável da sociedade anglo-saxã? Não é a Carta de Direitos um conjunto de garantias para o indivíduo?
Mas Evola distingue rigorosamente o indivíduo da pessoa, valorizando o segundo. "A pessoa", Evola escreve, "é um indivíduo que é diferenciado por suas qualidades, imbuído de sua própria face, sua própria natureza, e uma série de atributos que o tornam quem ele é o distinguem de todos os outros". Por distinção, "o indivíduo pode ser concebido apenas como uma unidade atômica...uma mera ficção de uma abstração". Pessoas, sendo efetivamente individuadas, possuem categoria de "pares" na companhia diferenciada, na "vontade de igualdade", por contraste, Evola vê apenas a "vontade do que não tem forma".
Evola também insiste em distinguir o "Estado orgânico" do "Estado totalitário", ligando o primeiro à individuação dentro de uma hierarquia funcional (para pessoas) e o segundo à vacuidade da democracia: "Um Estado é orgânico quando possui um centro, e esse centro é uma idéia que molda os vários domínios da vida de maneira eficaz; ele é orgânico quando ignora a divisão e autonomização do particular e quando, por virtude do sistema de participação hierárquica, cada parte dentro de sua relativa autonomia realiza sua própria função e desfruta de uma conexão íntima com o todo". Evola escreve que, "no totalitarismo nos usualmente encontramos uma tendência à uniformidade e intolerância por qualquer autonomia e qualquer grau de liberdade, por qualquer corpo intermediário entre o centro e a periferia, entre o topo e o fundo da pirâmide social". Em uma sociedade em que a Tradição governa, o "axioma...é de que os valores supremos...não estão sujeitos a mudar e devir". Em uma sociedade liberal em que a democracia governa (que será indistinguível de uma ditadura), "não há princípios, sistemas, e normas com valores independentes do período em que assumiram uma forma histórica, com base em fatores contingentes e irracionais".
Evola se recusa a recuar das duas fases de um duro julgamento: Primeiro que "o início da desintegração das estruturas sóciopolíticas tradicionais, ou pelo menos do que restava delas na Europa, ocorreu através do liberalismo", que é o precursor direto da revolução; e segundo que "a essência do liberalismo é o individualismo". Porque a noção de igualdade não passa de "puro absurdo" e constitui um "absurdo lógico", qualquer implementação da igualdade envolverá necessariamente uma destruição daquilo que, existinto realmente e efetivamente, ofende o sentimento democrático. Assim para Evola a democracia em si é niilismo.
II. Onde Gli Uomini et le Rovine assume a tarefa de descrever nossa situação catastrófica, Cavalcare la Tigre prescreve como uma pessoa genuinamente individuada pode se comportar em um ambiente culturalmente devastado e moralmente degenerado. Cavalcare la Tigre não obstante também analisa os tópicos que fascinam Evola, geralmente o grande espetáculo da civilização em decadência e particularmente as formas exteriores da corrupção dominante. O leitor as encontra, então, em Cavalcare la Tigre, capítulos devotados a "Os Disfarces do Niilismo Europeu", "O Colapso do Existencialismo", "Cobrindo a Natureza - Fenomenologia", "A Dissolução da Arte Moderna", e "Segunda Religiosidade", entre muitos outros. Em relação à situação de meados do século XX Evola incentiva seus leitores a não confundirem a desintegração visível atual do mundo burguês pelo cataclismo primário em cuja paisagem destruída eles vivem: "Socialmente, politicamente e culturalmente, o que desaba hoje é o sistema que assumiu forma após a revolução do Terceiro Estado e a primeira revolução industrial ainda que houvesse não raro misturado alguns remanescentes de uma ordem mais antiga, drenada de sua vitalidade original". Evola permanece diligentemente leal àquela "ordem mais antiga", na ressurreição de cuja vitalidade o bem-estar de pessoas em um mundo hostil está implicado.
Niilismo, na discussão de Evola sobre ele, sabe como se ocultar e dissimular, como sorrir, suavizar e bajular. A habilidade de revelar os esconderijos do niilismo e penetrar suas máscaras assim desempenha um papel fundamental na autonomia continuada da pessoa individuada ou "aristocrata do espírito". Evola toma o bordão de Nietzsche da "Morte de Deus" como utilmente designando uma específica "fratura de um caráter ontológico" que aflige a cena contemporânea. Através dessa "fratura", Evola escreve, "a vida humana perde qualquer referência real de transcendência", e em seu rastro os inúmeros "duplos e substitutos" do "Deus que está morto" ascendem à proeminência. Assim, "quando o nível do sagrado se perde", só fórmulas vazias - ideologias - persistem, como o "imperativo categórico" proposto por Kant ou o "racionalismo ético" (como Evola o chama) promulgado por Mill e seus seguidores Rastejando por trás da cortina dessas e outras construções, Evola vê "niilismo já visível". Por exemplo, o niilismo avança no "herói romântico: o homem que se sente sozinho face a indiferença divina" e que "reivindica para si direitos excepcionais ao que é proibido".
Após o romantismo, o espírito da negação aparece sob o rótulo de "o absurdo", com seu axioma da ausência universal de significado e sua dramatis personae da "juventude perdida", "rebeldes sem causa". Hollywood e a cultura comercial continuamente reinventam esses tipos limitados.
Com uma referência ao artigo recente de Kopff, eu mencionei mais cedo como Evola caracteriza a teoria econômica moderna como "demônica". Evola aplica esse rótulo irrespectivamente de se a teoria sob escrutínio defende uma visão enraizada em Karl Marx ou em Adam Smith porque ambos representam o niilismo mascarado. Um conceito racional de riqueza se torna uma teoria "demônica" quando a idéia de dinheiro e sua relação a bens, primeiro, se reduz a algo inteiramente abstrato e, depois, se infla até que seja o besteirol central e dominante de um regime. Não importa se a ideologia dominante é o socialismo ou o capitalismo: "O erro e ilusão são os mesmos", nomeadamente que o "desejo material" são a causa de toda "miséria existencial" e que a abundância geram felicidade e legalidade. Em uma afirmação chocante, cuja importância quase nenhum político atuante atualmente poderia compreender, Evola oferece que, "a verdade da questão é que o significado da existência pode ser tão carente em um grupo [rico ou pobre] como no outro, e que não há correlação entre miséria material e espiritual". Evola ressalta que toda a política moderna tende ao "messianismo socioeconômico".
Segundo Evola, virtualmente toda filosofia moderna e do século XX é evasão ou enganação. Os capítulos de Cavalcare la Tigre sobre Edmund Husserl, Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre - para não mencionar Nietzsche - expõe a perspectiva de que esses pensadores, também, participam no processo de redução da realidade a nada. Nietzsche, no comentário de Evola, participa na redução de Transcendência à imanência: "Uma vez que os ídolos caíram, bem e mal foram ultrapassados, junto a todos os substitutos de Deus, e essa névoa foi retirada dos próprios olhos, nada resta para Nietzsche a não ser 'esse mundo', vida, o corpo". O Übermensch é o substituto de Nietzsche para a Transcendência. Evola categoriza o Übermensch, uma futuridade afastada que supostamente justifica a ação agora, não é "muito diferente da ideologia marxista-comunista", com sua imagem sinuosa da Humanidade Socialista. A Vontade e o Poder de Nietzsche seriam meros disfarces da "ausência de forma". Husserl parece a Evola também como desviado, se engajando no velho projeto de Salvar as Aparências pela desrealização das aparências ainda mais e assim cortando a consciência de seu contato tanto com a natureza como com a Transcendência. Quanto a Heidegger, como Evola vê as coisas, o filósofo do Dasein falhou em ir além de Nietzsche e como ele seu precursor teria reduzido a vida à imanência desesperada. A doutrina de Heidegger seria "uma projeção de homem moderna em crise, ao invés do homem moderno além da crise".
O niilismo pode se disfarçar como espiritualidade e religião. Assim o que Evola chama de "naturalismo moderno" e "o ideal animal" é associado ao que ele chama, pegando emprestado o termo de Spengler, de "segunda religiosidade". Os rótulos "naturalismo moderno" e "o ideal animal" se referem à idéia de "retorno à natureza" que a história dos conceitos traça a uma codificação original em Jean-Jacques Rousseau. "O estado natural do homem jamais existiu", escreve Evola, porque "no início o homem estava situado em um estado supranatural do qual ele agora caiu". Uma descida desindividuadora ao seio da Mãe Terra permanece impossível por definição para pessoas culturalmente maduras. Assim, "cada retorno à natureza é um fenômeno regressivo, incluindo qualquer protesto em nome de direitos instintivos, do inconsciente, da carne, da vida desimpedida pelo intelecto, e daí em diante". Os movimentos neoctônicos familiares à cena moderna pertencem à "segunda religiosidade". Como a "segunda religiosidade" do mundo antigo, a do mundo moderno é afeminada, matriarcal e anti-intelectual; ela é também plenamente anti-espiritual. A "segunda religiosidade" permeia a vida moderna em "formas esporádicas de espiritualidade e misticismo, mesmo em irrupções do supersensível". Porém, tais "sintomas" definitivamente "não indicam uma reascensão" a qualquer coisa genuinamente metafísica.
Evola morreu antes que ambientalismo encontrasse seu pseudo-evangelho na histeria do "aquecimento global", antes que o feminismo organizado começasse sua emasculação sistemática de instituições ocidentais, e antes que essas tendências se concentrassem em charlatães como o "teórico de Gaia" James Lovelock e o ex-senador Albert "Nós-somos-o-inimigo" Gore. Os leitores podem tomar Evola como previdente quando ele escreve que, "nada é mais indicativo do nível de neoespiritualismo do que o material humano da maioria daqueles que o cultivam". Evola nota que, a mistificação e superstição estão constantemente imiscuídas no neoespiritualismo, outro de cujos traços, especialmente nos países anglo-saxões, é a elevada porcentagem de mulheres (mulheres que são derrotadas, marginalizadas ou velhas demais)". Em uma metáfora, Evola compara essas manifestações de "escapismo, alienação e compensação confusa" à "fluorescência que aparece quando corpos se decompõem".
III. Pode parecer haver uma contradição insuperável quando, em minha introdução, eu escrevi que Hermann Keyserling havia desprezado Evola porque o envolvimento de Evola em idéias ocultas se situavam em um excesso desconfortável em relação ao do próprio Keyserling; enquanto, ao fim da seção anterior eu relatei sobre a hostilidade crítica de Evola ao "misticismo" e à "superstição", usando seus próprios termos de Cavalcare la Tigre. Não há contradição real. A idéia de Evola de Transcendência não está tão distante de idéias similares na obra de Giambattista Vico, Oswald Spengler, Arnold Toynbee, Eric Voegelin e Richard Weaver. Evola, cuja educação literária era grande, sabe dos textos antigos que a sequência de experiência visionária intensa - seguida pela propagação viril de uma ordem essencialmente religiosa - se encontra no início de todas as sociedades e civilizações complexas conhecidas. A semelhança de fundações míticas ou proféticas sugere que todas elas correspondiam a uma fonte singular ainda que não seja possível dizer, em linguagem racional moderna, que fonte era essa.
Seja a Dike de Homero cuja origem é Zeus, o "Eu sou o que sou" hebreu, o Dao do Reino do Meio, ou a visão beatífica em Platão, Agostinho e Dante - o efeito formativo da experiência é estabelecer uma hierarquia nocional de estruturas, orientada ao que está "acima" do mundo humano, que, enquanto anunciando a si mesmo como Ser eterno, assume forma física através da atividade humana criativa no mundo atual. Visões fundantes organizam pessoas anagogicamente. Este é um fato histórico. Mesmo Spengler, um cético, escreve, em Der Untergang des Abendlandes (Vol.I), que, "uma Cultura nasce quando uma grande alma desperta da proto-espiritualidade...e se destaca, uma forma a partir do informe". Toynbee, católico heterodoxo, escrevendo em Civilization on Trial (1948), reconhece o cristianismo como uma visão de vida que "emergiu do labor espiritual que foi consequência da desintegração da civilização greco-romana" e que prognosticou a forma de uma civilização sucessora em meio às ruínas da antiga. Quanto a Voegelin, em Israel and Civilization (1956), ele escreve: "A simbolização cosmológica não é nem uma teoria, nem uma alegoria. Ela é a expressão mítica da participação, experimentada como real, da ordem da sociedade no ser divino que também ordena o cosmo".
Evola, ainda que excêntrico, pode não obstante reivindicar companhia nos testemunhos convergentes de inúmeras lendas e sagas da antiguidade e do medievo. A grande obra de Evola, Revolta Contra o Mundo Moderno, torna explícitas as bases filológicas e antropológicas de suas convicções sobre a Tradição. Evola divide Revolta em duas partes: Primeiro, uma descrição compreensiva das estruturas e pressuposições daquelas sociedades históricas que incorporam a Tradição; Segundo, uma "genealogia" da decadência moderna. Na Parte Um de Revolta, Evola se firma fortemente em James G. Frazer, Franz Cumont, Georges Dumézil, Fustel de Coulanges e outros estudiosos que, sem preconceito, tentaram compreender costumes e instituições primitivos e arcaicos, enquanto tal, de dentro para fora. Evola admira sociedades históricas e antigas pela virilidade de suas estruturas - realeza, aristocracia, sacerdócio, guerreiro, trabalhador, e servo - que, em sua perspectiva, permitia que as pessoas se integrassem em um arranjo significativo e vivificante com os outros, incluindo seus superiores, com um mínimo de fricção. Cada estamento na hierarquia tinha seus privilégios, mas cada estamento também tinha suas obrigações para com os estamentos abaixo, assim como cada tinha seus deveres perante a totalidade.
Evola morreu antes que ambientalismo encontrasse seu pseudo-evangelho na histeria do "aquecimento global", antes que o feminismo organizado começasse sua emasculação sistemática de instituições ocidentais, e antes que essas tendências se concentrassem em charlatães como o "teórico de Gaia" James Lovelock e o ex-senador Albert "Nós-somos-o-inimigo" Gore. Os leitores podem tomar Evola como previdente quando ele escreve que, "nada é mais indicativo do nível de neoespiritualismo do que o material humano da maioria daqueles que o cultivam". Evola nota que, a mistificação e superstição estão constantemente imiscuídas no neoespiritualismo, outro de cujos traços, especialmente nos países anglo-saxões, é a elevada porcentagem de mulheres (mulheres que são derrotadas, marginalizadas ou velhas demais)". Em uma metáfora, Evola compara essas manifestações de "escapismo, alienação e compensação confusa" à "fluorescência que aparece quando corpos se decompõem".
III. Pode parecer haver uma contradição insuperável quando, em minha introdução, eu escrevi que Hermann Keyserling havia desprezado Evola porque o envolvimento de Evola em idéias ocultas se situavam em um excesso desconfortável em relação ao do próprio Keyserling; enquanto, ao fim da seção anterior eu relatei sobre a hostilidade crítica de Evola ao "misticismo" e à "superstição", usando seus próprios termos de Cavalcare la Tigre. Não há contradição real. A idéia de Evola de Transcendência não está tão distante de idéias similares na obra de Giambattista Vico, Oswald Spengler, Arnold Toynbee, Eric Voegelin e Richard Weaver. Evola, cuja educação literária era grande, sabe dos textos antigos que a sequência de experiência visionária intensa - seguida pela propagação viril de uma ordem essencialmente religiosa - se encontra no início de todas as sociedades e civilizações complexas conhecidas. A semelhança de fundações míticas ou proféticas sugere que todas elas correspondiam a uma fonte singular ainda que não seja possível dizer, em linguagem racional moderna, que fonte era essa.
Seja a Dike de Homero cuja origem é Zeus, o "Eu sou o que sou" hebreu, o Dao do Reino do Meio, ou a visão beatífica em Platão, Agostinho e Dante - o efeito formativo da experiência é estabelecer uma hierarquia nocional de estruturas, orientada ao que está "acima" do mundo humano, que, enquanto anunciando a si mesmo como Ser eterno, assume forma física através da atividade humana criativa no mundo atual. Visões fundantes organizam pessoas anagogicamente. Este é um fato histórico. Mesmo Spengler, um cético, escreve, em Der Untergang des Abendlandes (Vol.I), que, "uma Cultura nasce quando uma grande alma desperta da proto-espiritualidade...e se destaca, uma forma a partir do informe". Toynbee, católico heterodoxo, escrevendo em Civilization on Trial (1948), reconhece o cristianismo como uma visão de vida que "emergiu do labor espiritual que foi consequência da desintegração da civilização greco-romana" e que prognosticou a forma de uma civilização sucessora em meio às ruínas da antiga. Quanto a Voegelin, em Israel and Civilization (1956), ele escreve: "A simbolização cosmológica não é nem uma teoria, nem uma alegoria. Ela é a expressão mítica da participação, experimentada como real, da ordem da sociedade no ser divino que também ordena o cosmo".
Evola, ainda que excêntrico, pode não obstante reivindicar companhia nos testemunhos convergentes de inúmeras lendas e sagas da antiguidade e do medievo. A grande obra de Evola, Revolta Contra o Mundo Moderno, torna explícitas as bases filológicas e antropológicas de suas convicções sobre a Tradição. Evola divide Revolta em duas partes: Primeiro, uma descrição compreensiva das estruturas e pressuposições daquelas sociedades históricas que incorporam a Tradição; Segundo, uma "genealogia" da decadência moderna. Na Parte Um de Revolta, Evola se firma fortemente em James G. Frazer, Franz Cumont, Georges Dumézil, Fustel de Coulanges e outros estudiosos que, sem preconceito, tentaram compreender costumes e instituições primitivos e arcaicos, enquanto tal, de dentro para fora. Evola admira sociedades históricas e antigas pela virilidade de suas estruturas - realeza, aristocracia, sacerdócio, guerreiro, trabalhador, e servo - que, em sua perspectiva, permitia que as pessoas se integrassem em um arranjo significativo e vivificante com os outros, incluindo seus superiores, com um mínimo de fricção. Cada estamento na hierarquia tinha seus privilégios, mas cada estamento também tinha suas obrigações para com os estamentos abaixo, assim como cada tinha seus deveres perante a totalidade.
As pessoas modernas veem nas hierarquias sociais, e tais instituições como castas e guildas, algo arbitrário e limitador, mas Evola insiste que os estamentos e vocações tradicionais permitiam uma seleção de talentos e potenciais e que eles permitiam que as pessoas, por meio do aprendizado e da iniciação, realizassem seu progresso pessoal em um contexto bem definido. O Evola também ressalta que, especialmente na sociedade medieval, certas instituições atravessam estamentos, de modo que um homem cujo ofício seja, digamos, sapateiro, poderia como membro de uma ou outra ordem laica, alcançar reconhecimento social por sua atividade para além daquela pela qual ele ganharia seu pão. Hans Sachs, no Meistersinger de Richard Wagner, é por ofício um sapateiro, mas seus pares o celebram como um artista-adepto do Stabreim e do Minnelied. A Igreja, também, atravessava estamentos e oferecia avenidas de mobilidade. Por implicação constante, Evola sugere que, na medida em que a felicidade nos concerna, as pessoas tem sido mais felizes em sociedades tradicionais do que são, apesar dos confortos materiais, na sociedade moderna. Evola é consciente, como o era Nietzsche, de que a dissolução das forças exacerba o ressentimento e que as pessoas modernas são mais ressentidas do que suas predecessoras.
Evola chega até mesmo a defender as atitudes de Aristóteles e do Velho Testamento em relação a escravidão, atitudes que ocasionam ressentimento no comentário moderno: "Deixemos de lado o fato de que os europeus reintroduziram e mantiveram a escravidão até o século XIX em suas colônias ultramarinas em formas odiosas dificilmente encontráveis no mundo antigo; o que deveria ser enfatizado é que se já houve alguma civilização de escravos em larga escala, aquela em que vivemos é ela". As pessoas modernas portam a insígnia de sua "dignidade" ciumentamente. Porém "nenhuma civilização tradicional jamais viu tamanhas massas de pessoas condenadas a realizar trabalhos automáticos, impessoais e vazios". É o caso ainda que, "no sistema escravocrata contemporâneo as contrapartes de figuras como senhores ou déspotas esclarecidos não podem ser encontrados", mas tão somente "as estruturas absurdas de uma sociedade mais ou menos coletivizada". Faz-se necessário dizer que isso não significa defender a escravidão? Mais exatamente é uma condenação do paroquialismo e santimoniosidade de liberais e democratas, e um ataque ao tédio espiritualmente destrutivo das funções burocráticas em que a sociedade liberal-democrática se baseia.
No mesmo parágrafo de onde eu tirei as linhas pretéritas, Evola menciona os campos de trabalho soviéticos, que atestam para ele o mal inerente na "sujeição física e moral do homem aos objetivos da coletivização".
Como qualquer admirador da cavalaria deve, Evola deplora o feminismo e o empoderamento feminino, ambos pertencendo, em sua perspectiva, à tendência do indivíduo puramente quantitativo, com seu egocentrismo infantilizado. "Um estilo de vida prático e superficial de um tipo masculino", Evola escreve, "perverteu a natureza da mulher e a lançou no mesmo abismo masculino de trabalho, lucro, atividade frenética e política". Segue daí que, "a mulher moderna em desejar estar por conta própria destruiu a si mesma", porque "a 'personalidade' pela qual ela tanto desejava está matando toda semelhança de personalidade feminina nela". Mas Evola não poupa ninguém: "Não devemos esquecer que o homem é o maior responsável pela decadência feminina... em uma sociedade governada por homens de verdade, a mulher jamais teria desejado ou mesmo seria capaz de tomar o caminho que ela segue hoje". Como Kopff escreve: "Evola rejeitou o Projeto Iluminista em absoluto, e tinha pouca utilidade para o Renascimento e para a Reforma. Para Evola aqueles realmente opostos ao regime de esquerda, a verdadeira Direita, não teriam embaraço em se descreverem como reacionários e contrarrevolucionários".
IV - A Parte Dois de Revolta Contra o Mundo Moderno traça o pedigree da atual crise niilista fornecendo uma "visão de pássaro da história". Naturalmente, Evola se recusa a seguir a historiografia padrão, desconsiderando sua pressuposição mais básica - nomeadamente que as sociedades humanas originais eram primitivas e que a civilização é um estágio tardio no desenvolvimento social da humanidade. Evola similarmente rejeita a idéia darwiniana relacionada de que entidades complexas evoluem a partir de entidades primitivas. Em ambas instâncias ele vê coisas da forma inversa, não por egocentrismo ranzinza, mas ao contrário como ele escreve, porque a própria Tradição, perante a qual ele se curva, vê as coisas de forma inversa. Ele toma a sério, por exemplo, as cinco fases da humanidade do poeta arcaico Hesíodo do poema didático Trabalhos e Dias; ele toma a sério o conto de Atlântida de Platão dos diálogos Timaeus e Crito, e ele admite como respeitáveis regimes ou sociedades que a variedade do mito e da literatura localizam em uma era antediluviana. No esquema hesiodico, os primeiros homens foram aqueles da Raça de Ouro, após o que vieram os da Raça de Prata, de Bronze, a Heróica e a de Ferro. Hesíodo famosamente jura que ele desejava não pertencer à degenerada Raça de Ferro, tão maligna e desprezível como era. No conto de Atlântida de Platão, os atlantes originais são semideuses, que vivem em um estado moralmente e tecnicamente perfeito; mas seus descendentes se tornam grosseiros, materialistas e degenerados.
Antes de se desconsiderar esse esquema como uma instância de credulidade irremediável, deve-se cuidadosamente notar duas coisas. A primeira é que diferentemente dos ideólogos que ele critica, que situam sua Justiça Social ou sua Raça Mestra no futuro indefinido, Evola situa o regime-modelo irreproduzível em um passado irrecuperável, do qual não pode justificar qualquer agenda modificadora da realidade; ela só pode servir como medida remota para pessoas conscienciosas que buscam padrões distintos do contemporâneo. O segundo é que Evola pensa por hábito em termos mitopoéticos, como o fizeram Platão e Giambattista Vico; e é por símbolos e metáforas que ele derrota a pseudo-cognição mecanística-literalística que ele deplora. Como Platão e Vico - e como P.D. Ouspenski, que também entretinha a idéia de ciclos de civilização e destruição, e que certamente não era um fantasista - Evola aconselharia as pessoas honestas a começarem sua contemplação da realização humana de uma posição de humildade ao invés de arrogância. Eu noto que essa postura, central para o ethos de Evola, o livra da acusação de gnosticismo. Apesar das muitas referências de Evola a conhecimento esotérico, ele nunca qualifica tal conhecimento como milagrosamente ou singularmente garantido a ele. Ele afirma que o retirou dos mitos, sagas e folclore pelo estudo diligente.
Pode-se também notar que nos últimos cinquenta anos a arqueologia aprofundou gradativamente as cronologias de associações humanas complexas e de realização material; e que no mesmo período a outrora desacreditada idéia de uma linguagem humana primordial a partir da qual todas as outras descenderiam reapareceu, muito respeitavelmente, nas hipóteses "nostratica" e "mundial". Por que, se poderia perguntar, desde que a teoria da gênese africana permaneça formalmente inquestionável, alguém deveria levantar objeção à teoria evoliana de uma etnogênese extremo-nórdica ou hiperbórea, formalmente falando? A teoria da Tradição Primordial Hiperbórea explica a difusão cultural tão adequadamente quanto a teoria dominante; cuja preferência é uma questão de um preconceito santificado. De fato, uma formação "boreal" primeira da alta cultura não torna de forma alguma impossível um aparecimento equatorial anterior do homo sapiens, considerado sob uma categoria puramente biológica. Como Evola aponta, muitos povos sulinos situam seus ancestrais culturais em uma pátria nórdica. É claro, o principal interesse na segunda parte de Revolta está no diagnóstico da corrupção moderna.
Qual é a história de Evola sobre essa corrupção? Em um primeiro colapso remoto em "a regressão das castas", como Evola chama o processo degenerativo de longo prazo, "a realeza do sangue substituiu a realeza do espírito", e essa alteração corresponde a uma insurgência da "Civilização da Mãe" sobre o "Patriciado" original. Muito depois - no período medieval tardio - "um segundo colapso ocorreu conforme as aristocracias começaram a cair e as monarquias a tremer em suas fundações", quando "através das revoluções e constituições elas se tornaram instituições inúteis sujeitas à 'vontade da nação'." Depois vem o colapso de uma consciência nacional já estreitada ao coletivismo indiferenciado paradoxal da sociedade burguesa de meros indivíduos, onde a igualdade é o shibboleth tirânico e a conformidade absoluta o modo. Depois, a partir do coletivismo incipiente da sociedade burguesa, vem "a revolta proletária contra o capitalismo", em que Evola discerne "uma redução do horizonte e valor ao plano da matéria, da máquina e do reino da quantidade". O fenômeno é um nadir, inteiramente "sub-humano". Assim, "nos líderes da revolução bolchevique é possível detectar uma coerência ideológica impiedosa".
Como seu artigo "Bolschevismus ed Americanismus" deve levar alguém a supor, Evola nunca poupa os EUA: "A América também, na maneira essencial pela qual ela vê a vida e o mundo, criou uma 'civilização' que representa a contradição exata da tradição européia antiga". Em palavras reminiscentes da dicção de Spengler, Evola descreve os EUA como "uma grandeza sem alma de natureza puramente tecnológica e coletiva, carecendo de qualquer fundamento de transcendência". Enquanto "o comunismo soviético professa oficialmente o ateísmo", Evola ressalta, e enquanto "a América não chega a tanto"; não obstante, "sem percebê-lo, e não raro acreditando no contrário, ela avança no mesmo caminho em que nada resta de significado religioso". Segundo Evola, "a grande maioria dos americanos poderia representar uma refutação em grande escala do princípio cartesiano...eles 'não pensam e existem'." Evola liga o anti-intelectualismo americano com a proliferação nos EUA do "idiotismo feminista", que viaja em paralelo com "a degradação materialista e prática do homem".
Em sua conclusão, a Revolta de Evola prevê uma nova "idade das trevas", para a qual seu termo preferido é Kali Yuga. A América assimilará o impulso cruzado do comunismo soviético e começará a tentar universalizar seus pseudo-valores destrutivos através da agressão imperialista; o Imperium será uma calamidade de vida curta levando a uma ruína global. Quando Evola fala assim em 1934, fica difícil desconsiderá-lo.
O que se deve fazer então com um autor previdente, cuja cultura e educação permanecem indubitáveis, que não obstante fornece sua análise social e política, por mais mordaz que seja, no contexto de uma história alternativa, cujos detalhes poderiam se assemelhar aos contornos de uma história de Lord Dunsany e Clark Ashton Smith? Eu estou fortemente tentado a responder minha própria pergunta dessa maneira: Que talvez devamos começar reavaliando Dunsany e Smith, especialmente Smith, cujos contos de resquícios civilizacionais decadentes - semi-arruinados, erotizados, sucumbindo a apetites momentâneos com abandono fatalista - falam com intuição poderosa sobre nossas circunstâncias atuais. Eu não quero dizer, porém, que Evola é apenas metaforicamente verdadeiro, como se sua obra, como a de Smith, fosse mera ficção. Eu quero dizer que Evola é verdadeiramente verdadeiro, na ordem de um dos "Mitos Verdadeiros" de Platão, não importa o quanto de sua verdade nos desconcerte.
Evola chega até mesmo a defender as atitudes de Aristóteles e do Velho Testamento em relação a escravidão, atitudes que ocasionam ressentimento no comentário moderno: "Deixemos de lado o fato de que os europeus reintroduziram e mantiveram a escravidão até o século XIX em suas colônias ultramarinas em formas odiosas dificilmente encontráveis no mundo antigo; o que deveria ser enfatizado é que se já houve alguma civilização de escravos em larga escala, aquela em que vivemos é ela". As pessoas modernas portam a insígnia de sua "dignidade" ciumentamente. Porém "nenhuma civilização tradicional jamais viu tamanhas massas de pessoas condenadas a realizar trabalhos automáticos, impessoais e vazios". É o caso ainda que, "no sistema escravocrata contemporâneo as contrapartes de figuras como senhores ou déspotas esclarecidos não podem ser encontrados", mas tão somente "as estruturas absurdas de uma sociedade mais ou menos coletivizada". Faz-se necessário dizer que isso não significa defender a escravidão? Mais exatamente é uma condenação do paroquialismo e santimoniosidade de liberais e democratas, e um ataque ao tédio espiritualmente destrutivo das funções burocráticas em que a sociedade liberal-democrática se baseia.
No mesmo parágrafo de onde eu tirei as linhas pretéritas, Evola menciona os campos de trabalho soviéticos, que atestam para ele o mal inerente na "sujeição física e moral do homem aos objetivos da coletivização".
Como qualquer admirador da cavalaria deve, Evola deplora o feminismo e o empoderamento feminino, ambos pertencendo, em sua perspectiva, à tendência do indivíduo puramente quantitativo, com seu egocentrismo infantilizado. "Um estilo de vida prático e superficial de um tipo masculino", Evola escreve, "perverteu a natureza da mulher e a lançou no mesmo abismo masculino de trabalho, lucro, atividade frenética e política". Segue daí que, "a mulher moderna em desejar estar por conta própria destruiu a si mesma", porque "a 'personalidade' pela qual ela tanto desejava está matando toda semelhança de personalidade feminina nela". Mas Evola não poupa ninguém: "Não devemos esquecer que o homem é o maior responsável pela decadência feminina... em uma sociedade governada por homens de verdade, a mulher jamais teria desejado ou mesmo seria capaz de tomar o caminho que ela segue hoje". Como Kopff escreve: "Evola rejeitou o Projeto Iluminista em absoluto, e tinha pouca utilidade para o Renascimento e para a Reforma. Para Evola aqueles realmente opostos ao regime de esquerda, a verdadeira Direita, não teriam embaraço em se descreverem como reacionários e contrarrevolucionários".
IV - A Parte Dois de Revolta Contra o Mundo Moderno traça o pedigree da atual crise niilista fornecendo uma "visão de pássaro da história". Naturalmente, Evola se recusa a seguir a historiografia padrão, desconsiderando sua pressuposição mais básica - nomeadamente que as sociedades humanas originais eram primitivas e que a civilização é um estágio tardio no desenvolvimento social da humanidade. Evola similarmente rejeita a idéia darwiniana relacionada de que entidades complexas evoluem a partir de entidades primitivas. Em ambas instâncias ele vê coisas da forma inversa, não por egocentrismo ranzinza, mas ao contrário como ele escreve, porque a própria Tradição, perante a qual ele se curva, vê as coisas de forma inversa. Ele toma a sério, por exemplo, as cinco fases da humanidade do poeta arcaico Hesíodo do poema didático Trabalhos e Dias; ele toma a sério o conto de Atlântida de Platão dos diálogos Timaeus e Crito, e ele admite como respeitáveis regimes ou sociedades que a variedade do mito e da literatura localizam em uma era antediluviana. No esquema hesiodico, os primeiros homens foram aqueles da Raça de Ouro, após o que vieram os da Raça de Prata, de Bronze, a Heróica e a de Ferro. Hesíodo famosamente jura que ele desejava não pertencer à degenerada Raça de Ferro, tão maligna e desprezível como era. No conto de Atlântida de Platão, os atlantes originais são semideuses, que vivem em um estado moralmente e tecnicamente perfeito; mas seus descendentes se tornam grosseiros, materialistas e degenerados.
Antes de se desconsiderar esse esquema como uma instância de credulidade irremediável, deve-se cuidadosamente notar duas coisas. A primeira é que diferentemente dos ideólogos que ele critica, que situam sua Justiça Social ou sua Raça Mestra no futuro indefinido, Evola situa o regime-modelo irreproduzível em um passado irrecuperável, do qual não pode justificar qualquer agenda modificadora da realidade; ela só pode servir como medida remota para pessoas conscienciosas que buscam padrões distintos do contemporâneo. O segundo é que Evola pensa por hábito em termos mitopoéticos, como o fizeram Platão e Giambattista Vico; e é por símbolos e metáforas que ele derrota a pseudo-cognição mecanística-literalística que ele deplora. Como Platão e Vico - e como P.D. Ouspenski, que também entretinha a idéia de ciclos de civilização e destruição, e que certamente não era um fantasista - Evola aconselharia as pessoas honestas a começarem sua contemplação da realização humana de uma posição de humildade ao invés de arrogância. Eu noto que essa postura, central para o ethos de Evola, o livra da acusação de gnosticismo. Apesar das muitas referências de Evola a conhecimento esotérico, ele nunca qualifica tal conhecimento como milagrosamente ou singularmente garantido a ele. Ele afirma que o retirou dos mitos, sagas e folclore pelo estudo diligente.
Pode-se também notar que nos últimos cinquenta anos a arqueologia aprofundou gradativamente as cronologias de associações humanas complexas e de realização material; e que no mesmo período a outrora desacreditada idéia de uma linguagem humana primordial a partir da qual todas as outras descenderiam reapareceu, muito respeitavelmente, nas hipóteses "nostratica" e "mundial". Por que, se poderia perguntar, desde que a teoria da gênese africana permaneça formalmente inquestionável, alguém deveria levantar objeção à teoria evoliana de uma etnogênese extremo-nórdica ou hiperbórea, formalmente falando? A teoria da Tradição Primordial Hiperbórea explica a difusão cultural tão adequadamente quanto a teoria dominante; cuja preferência é uma questão de um preconceito santificado. De fato, uma formação "boreal" primeira da alta cultura não torna de forma alguma impossível um aparecimento equatorial anterior do homo sapiens, considerado sob uma categoria puramente biológica. Como Evola aponta, muitos povos sulinos situam seus ancestrais culturais em uma pátria nórdica. É claro, o principal interesse na segunda parte de Revolta está no diagnóstico da corrupção moderna.
Qual é a história de Evola sobre essa corrupção? Em um primeiro colapso remoto em "a regressão das castas", como Evola chama o processo degenerativo de longo prazo, "a realeza do sangue substituiu a realeza do espírito", e essa alteração corresponde a uma insurgência da "Civilização da Mãe" sobre o "Patriciado" original. Muito depois - no período medieval tardio - "um segundo colapso ocorreu conforme as aristocracias começaram a cair e as monarquias a tremer em suas fundações", quando "através das revoluções e constituições elas se tornaram instituições inúteis sujeitas à 'vontade da nação'." Depois vem o colapso de uma consciência nacional já estreitada ao coletivismo indiferenciado paradoxal da sociedade burguesa de meros indivíduos, onde a igualdade é o shibboleth tirânico e a conformidade absoluta o modo. Depois, a partir do coletivismo incipiente da sociedade burguesa, vem "a revolta proletária contra o capitalismo", em que Evola discerne "uma redução do horizonte e valor ao plano da matéria, da máquina e do reino da quantidade". O fenômeno é um nadir, inteiramente "sub-humano". Assim, "nos líderes da revolução bolchevique é possível detectar uma coerência ideológica impiedosa".
Como seu artigo "Bolschevismus ed Americanismus" deve levar alguém a supor, Evola nunca poupa os EUA: "A América também, na maneira essencial pela qual ela vê a vida e o mundo, criou uma 'civilização' que representa a contradição exata da tradição européia antiga". Em palavras reminiscentes da dicção de Spengler, Evola descreve os EUA como "uma grandeza sem alma de natureza puramente tecnológica e coletiva, carecendo de qualquer fundamento de transcendência". Enquanto "o comunismo soviético professa oficialmente o ateísmo", Evola ressalta, e enquanto "a América não chega a tanto"; não obstante, "sem percebê-lo, e não raro acreditando no contrário, ela avança no mesmo caminho em que nada resta de significado religioso". Segundo Evola, "a grande maioria dos americanos poderia representar uma refutação em grande escala do princípio cartesiano...eles 'não pensam e existem'." Evola liga o anti-intelectualismo americano com a proliferação nos EUA do "idiotismo feminista", que viaja em paralelo com "a degradação materialista e prática do homem".
Em sua conclusão, a Revolta de Evola prevê uma nova "idade das trevas", para a qual seu termo preferido é Kali Yuga. A América assimilará o impulso cruzado do comunismo soviético e começará a tentar universalizar seus pseudo-valores destrutivos através da agressão imperialista; o Imperium será uma calamidade de vida curta levando a uma ruína global. Quando Evola fala assim em 1934, fica difícil desconsiderá-lo.
O que se deve fazer então com um autor previdente, cuja cultura e educação permanecem indubitáveis, que não obstante fornece sua análise social e política, por mais mordaz que seja, no contexto de uma história alternativa, cujos detalhes poderiam se assemelhar aos contornos de uma história de Lord Dunsany e Clark Ashton Smith? Eu estou fortemente tentado a responder minha própria pergunta dessa maneira: Que talvez devamos começar reavaliando Dunsany e Smith, especialmente Smith, cujos contos de resquícios civilizacionais decadentes - semi-arruinados, erotizados, sucumbindo a apetites momentâneos com abandono fatalista - falam com intuição poderosa sobre nossas circunstâncias atuais. Eu não quero dizer, porém, que Evola é apenas metaforicamente verdadeiro, como se sua obra, como a de Smith, fosse mera ficção. Eu quero dizer que Evola é verdadeiramente verdadeiro, na ordem de um dos "Mitos Verdadeiros" de Platão, não importa o quanto de sua verdade nos desconcerte.