por Julius Evola
A superação de si, ademais de ser objeto de ritos, vincula-se a uma renovada e heroica sensação do mundo e da vida, não como um abstrato conceito da mente, mas sim como algo que vibra no ritmo do próprio sangue. É a sensação do mundo como potência, a sensação do mundo como ato de sacrifício. Trata-se de uma grande liberdade, tendo a ação como única lei. Por toda parte achamos seres feitos de força e, simultaneamente, uma respiração cósmica, um sentido da altura, uma aeridade.
A ação é liberada. É liberada em si mesma, purificada da febre mental, apartada de ódio e de berros. Estas verdades devem penetrar o ânimo: não há aonde ir, não há nada o que pedir, nada que esperar, nada que temer. O mundo é livre: fins e razões, evolução, destino e providência, tudo isso é neblina, é uma coisa inventada por seres que não sabiam ainda caminhar por si mesmos e precisavam de andadores e de pontos de apoio. Agora, serás deixado a ti mesmo. E deves chegar a sentir-se um centro de forças, até conhecer a ação que não se determina mais por este ou por aquele objeto, senão por si mesma. É aqui que não serás mais movido; uma vez desapegado de tudo, então te moverás. Ao redor de ti, os objetos cessarão de ser objetos para ti, converter-se-ão em objetos de ação. Girando ao redor de coisas que não existem mais, os impulsos de uma vida irracional finalmente se extinguirão, e também cairá o sentido do esforço, da mania de correr, de fazer se chegar primeiro na ação, a seriedade dolorosa e a necessidade, o sentimento trágico e o vínculo titânico; enfim, cairá a grande enfermidade: o sentido humano da vida. Sobrevirá, então, uma calma superior. Justamente dela poderá voltar a brotar a ação, uma ação pura e purificadora, é a ação pronta em qualquer momento e em qualquer lugar para assumir qualquer direção, ação lábil, inapreensível, que continuamente se reafirma mais além de si mesma, livre com respeito a si mesma, superior ao vencer e ao perder, ao êxito e ao fracasso, ao egoísmo e ao altruísmo, à felicidade como à desventura, a ação solta do vínculo, solta de identificação, solta do apego.
Em uma tal ação poderá se achar a purificação, posto que por ela o indivíduo não se conta mais e posto que ela te conduz mais além, seja do conhecimento abstrato, como do ímpeto irracional das forças inferiores. Já não mais espectros de conceitos e de ideias, de “valores”, senão visão sem signo, que tem por único e direto objeto a realidade. Ademais, teremos justamente a ação, redespertada como uma coisa Elemental, simples e inatenuada. Uma potência de mando e uma potência de obediência; uma, tão absoluta como a outra, a ser aperfeiçoada até o modo que é requerido pelas evocações e as identificações, assim como por aqueles instantâneos e imateriais encontros de presenças, nos quais uns poderão ascender e desaparecer, poderosos e invisíveis, e os outros precipitar em abismos incorpóreos.
Mas, a tal respeito, ainda na mesma vida comum deve seguir-se uma disciplina apta para fazer pôr de relevo a inutilidade de todo sentimentalismo e de qualquer implicação afetiva. Em seu lugar encontra-se a visão lúcida e o ato adequado. Assim como no cirurgião, em lugar da compaixão e da piedade, é a intervenção o que resolve. Assim como no guerreiro ou no desportista, em lugar do medo, da agitação irracional ante o perigo, o que vale é a pronta determinação de tudo o que se acha na própria capacidade de ação. Piedade, medo, esperança, impaciência, ansiedade: são todos decaimentos do ânimo que vão alimentar poderes ocultos e vampíricos de negação. Toma a compaixão como exemplo: não remove nada do mal alheio, senão que faz com que o mesmo turbe tua alma. Se, ao contrário, atuas, assume a pessoa do outro e comunica tua força. Do contrário, desprenda-te. O mesmo com o ódio: odiar degrada. Se tu queres, se a justiça o quer em ti, abate, arranca, sem que teu ânimo se altere. Ademais, odiando, decais. O ódio altera, impede controlar a influência do adversário, e mais, te abre a essa mesma influência, a qual, do contrário, podes conhecer e paralisar se, em vez, permaneceres sem reação. Seja para o “bem” seja para o “mal”, deve matar a “paixão” quem quer a ciência e a potência do Bem e do Mal. Há que saber se dar com o ato puro, com um dom absoluto, não na voluptuosidade da simpatia ou da piedade. Há que saber golpear sem ódio. “Eu sou nos fortes a força carente de desejo e de paixão – balam balavatâm asmi kâmarâgavivarjitam – dizendo ele de si mesmo, uma figura divina indicou aquela força e aquela pureza, sobre a qual nada pode, ante a qual a própria lei da ação e reação não encontra mais apoio”(Bhagavad-gita). Apenas a febre, a força obscura do instinto, do apetite e da aversão apartem desta centralidade, também o supremo entre os deuses nos arruína.
Desapego, silêncio, solidão, isso prepara a liberação da visão da vida e do mundo.
Distância entre os seres. Não se reconhecer nos outros, não se sentir nem superior, nem igual e nem inferior a eles. No mundo daqui debaixo os seres estão sós, sem lei, sem salvação, sem escusa, vestidos só com sua força ou com sua debilidade: cumes, pedras, areia. Esta é a primeira liberação da visão da vida. Vencer a contaminação fraternalizadora, a necessidade de amar e de sentirem-se amados, de sentirem-se juntos, de sentirem-se iguais e mancomunados. Purifica-te de tudo isso. A partir de um determinado ponto, não mais pelo sangue, não mais por afetos, não mais pela pátria, não mais por um destino humano poderás ainda sentir-se unido a alguém. Tão só poderás sentir-se unido a alguém que esteja na tua mesma via, a que não é a via dos homens, a que não tem referência com a via dos homens.
E dirigindo o olhar às coisas, busca compreender a voz do inanimado. “Como são belas estas livres forças ainda não manchadas de espírito!” (Nietzsche). Não digas “não ainda”, mas sim “não mais” manchadas de espírito, e como espírito aqui compreende o irreal, tudo o que o homem com seus sentimentos, seus pensamentos, seus medos e suas esperanças projetou na natureza para convertê-la em íntima, para fazê-la falar em sua mesma língua. Deixa isso e busca justamente compreender a mensagem das coisas, ali onde elas aparecem como estranhas desnudas e mudas; ali onde elas não tem uma alma, posto que são uma coisa maior do que a alma. Este é o primeiro passo para libertação da visão de mundo. Sobre o plano da magia conhecerás o mundo voltado ao estado livre, intensivo e essencial, um estado no qual a natureza já não é natureza, nem o espírito “espírito”, no qual não existem nem coisas, nem homens, nem hipóstases de “deuses”, senão poderes, e a vida é uma epopeia heroica em todo instante, feita de símbolos, de iluminações, de mandos, de ações rituais e de sacrifícios.
Neste mundo não há mais um “aqui”, nem um “além”, não há apego, tudo é infinitamente igual e infinitamente diferente e a ação brota por si mesma, pura, oculta. E o Vento, o Sopro – o Sopro do Grande Verde Hermético – chega ao todo no sentido de um sacrifício, de uma oferenda, de um rito luminoso e maravilhoso, entre zonas de uma atividade calma, como o repouso mais profundo de uma imobilidade intensa, como o torvelinho mais veemente.
Aquilo que é “humano” dissipa-se aqui como um recordo obscuro de miséria e como o espectro de um largo íncubo. Surge o Anjo, o Antigo Frio: imobilidade e lentidões vertiginosas vão resolver qualquer tensão, e este é justamente o limiar, esta a transfiguração, e mais além disso, o mundo do eterno.