por Aleksandr Dugin
A Escolha de Carlo Terracciano
Eu penso que Carlo Terraciano é um dos maiores geopolíticos europeus das décadas recentes. Eu estou convencido de que ele será reconhecido como um dos autores modernos clássicos dessa disciplina. Eu tive a oportunidade de conhecer Carlo Terracciano pessoalmente, e eu sempre admirei a retidão de sua posição ideológica em vida: a geopolítica era para ele uma escolha existencial; ele viveu sua vida em pleno acordo com seus princípios, demonstrando o impensável em nossos tempos, uma atitude pessoal romana, olímpica - a lealdade, a adesão total à causa, a plenitude moral completa sem consideração pelos efeitos das pressões da modernidade.
Carlo Terracciano foi um homem de ideias e um homem de ação, ao mesmo tempo. Em seu caso, a teoria e a prática se fundiram em algo indivisível. Qual era sua principal ideia e qual foi seu feito essencial?
O Nascimento da Geopolítica a partir da Espuma do Mar
Carlo Terracciano herdou a tradição geopolítica do continentalismo europeu. Em seus escritos (reunidos em uma série de artigos "Nel Fiume della Storia"), ele traça a gênese ideológica dessa escola. O imperialista britânico H. Mackinder foi o primeiro a articular a principal lei geopolítica - a oposição dualista entre a civilização do mar (talassocracia) e a civilização da terra (telurocracia). O próprio Mackinder foi um brilhante representante da talassocracia e garantiu a transferência da tradição da estratégia talassocrática, o procedimento de apercepção geopolítica da Grã-Bretanha aos Estados Unidos. Mackinder foi um dos fundadores da Escola de Londres de Economia, contribuiu para a emergência da "Chatham House", do Centro Real para Estudos Estratégicos, e inspirou o primeiro time da CFR (Conselho de Relações Exteriores), publicando em "Foreign Affairs" seus artigos tardios. Dele ao americano A. Mahan está uma linha reta de geopolítica atlantista, vindo do realismo americano (e algum "liberalismo muscular", transnacionalismo e globalismo) até Kissinger, Brzezinski, Rockefeller, por um lado, e os neocons do outro. A hegemonia planetária dos Estados Unidos e a ideia de talassocracia global com o Governo Mundial, tudo que deriva de uma visão planetária de Mackinder, levado aos seus limites lógicos. O mundo pode se tornar realmente global, somente quando o Poder do Mar definitivamente derrotar o Poder da Terra (ou vice-versa). Essa era a aposta da vida de Mackinder. E agora nós vemos que muitos de seus projetos foram realizados: ele insistia no desmantelamento da Rússia, na criação de um "cordão sanitário" na Europa Oriental, na necessidade de derrotar Alemanha e Rússia, e tudo isso de alguma forma está realizado ao fim do século XX, fornecendo assim as condições para a emergência de um mundo unipolar de da hegemonia global americana. Esse império talassocrático diante de nossos olhos, se tornando uma realidade.
Resposta Continental
Mas no primeiro quarto do século XX, o desafio conceitual de Mackinder foi aceito pelos geopolíticos que se posicionaram ao lado da telurocracia. Foi, primeiro, a escola alemã de Karl Haushofer, que começou a desenvolver uma geopolítica telurocrática básica, Geopolítica-2 (enquanto a geopolítica talassocrática anglo-saxã pode ser chamada "Geopolítica-1"). Desde então as bases foram lançadas para a tradição continentalista.
A escola de Haushofer ofereceu à Alemanha realizar sua natureza telurocrática e unificar a Europa sobre uma base continental; para realizar isso era necessário concluir uma aliança com a União Soviética e fortalecer a aliança com o Japão e assim destruir a talassocracia mundial - a aliança entre Inglaterra, EUA e França. A consolidação de todas as Potências Terrestres era o único jeito de se livrar das Potências Marítimas e sua tentação de organizar o espaço mundial segundo o modelo talassocrático. Essa concepção foi desenlvida pelo projeto de uma nova divisão do mundo com base nas Pan-Ideias - quatro áreas que deveriam ser integradas economicamente, politicamente e estrategicamente ao longo do meridiano - de Norte a Sul. Haushofer criou um grande baluarte conceitual da Geopolítica-2, dispondo assim a base para o continentalismo europeu em que a Alemanha era concebida como um centro de telurocracia europeia (o fato natural reconhecido pelo próprio Mackinder).
Após a derrota da Alemanha e das Potências do Eixo na Segunda Guerra Mundial a geopolítica telurocrática foi desacreditada por muito tempo e caminhou nas sombras. Autores americanos até mesmo sugeriram distinguir "geopolítica" anglo-saxã de "Geopolitik" alemã, identificando a primeira com "método plenamente aceitável de análise da ciência política no reino das relações internacionais" e a outra com "fantasias imperialistas". Em tais definições do que é "científico" e do que não é nós vemos apenas típicos padrões duplos ou propaganda política direta dos vencedores. As Potências Marítimas venceram as Potências Terrestres, e estabeleceram uma disciplina colonial - inclusive no campo científico, porque o conhecimento, como Michel Foucault demonstrou, é sinônimo de poder.
Não obstante, a escola continentalista de geopolítica telurocrática continuou a existir na Europa em condições marginais também após a Segunda Guerra Mundial. Os exemplos são as obras do general austríaco Jordis von Lohausen, o teórico belga e fundador da "Jovem Europa" pan-europeísta Jean Thiriart (que por acaso Carlo Terracciano encontrou pela primeira vez em Moscou em meu apartamento em 1992) e o proeminente filósofo francês Alain de Benoist. A principal característica dessa geopolítica continentalista é a visão do mundo vista desde um ponto de vista terrestre. Disso nós podemos facilmente deduzir o papel de cada jogador na "grande guerra dos continentes". Aqueles que estão no lado da Terra estão automaticamente contra o Mar, isto é, contra o mundo anglo-saxão, contra a dominação americana e contra o tipo ocidental de globalização (mundialismo).
O Testemunho Telurocrático de Carlo Terracciano
Carlo Terracciano foi um sucessor direto da tradição geopolítica continentalista, o teórico e praticante mais notável e consistente da Geopolítica-2. Sua obra é talvez o exemplo mais completo e consistente dessa tradição. Ele não somente continua reciclando a teoria pré-existente, mas aplica os princípios básicos da geopolítica telurocrática para analisar a situação atual no mundo. Ele não deixa uma sombra de dúvida em sua escolha pessoal: ele fala em nome do continente da Europa, da telurocracia. Nas condições da ocupação atlantista e da dominação talassocrática é um gesto viril de revolta espiritual e cognitiva. Assim Terracciano realiza um importante ato simbólico: ele constitui assim o pólo subjetivo, imbuído com a vontade e a mente, que cresce a partir do depósito de lixo da Europa pós-moderna, se tornando um projeto alternativo revolucionário de outra Europa. Essa Europa possível, mas não ainda realizada emerge - que seja somente na teoria - das ruínas da modernidade que chega ao fim. Terracciano é um tipo de testemunha geopolítica; em seus escritos e ações ele testemunha que a vitória do Mar não é absoluta e que na Europa ainda reside a rede resoluta de resistência geopolítica continentalista e que essa rede é plenamente consciente da natureza, propósito e do que está em jogo na grande guerra de continentes. Assim, Carlo Terracciano está salvando a geopolítica continental europeia tradicional, preparando assim o reinício teórico da Europa.
Terracciano como Eurasianista
Ademais, o momento decisivo na evolução das teorias de Carlo Terracciano foi seu encontro com a tradição geopolítica eurasianista reestabelecida na Rússia desde o final da década de 80. A escola geopolítica eurasianista russa moderna foi fundada no final da década de 80 como uma reflexão geopolítica pós-soviética sobre a visão de mundo de Mackinder, como um tipo de resposta ao desafio talassocrático. A lógica da construção da geopolítica eurasianista era bastante similar à gênese da geopolítica alemã a partir da escola de Haushofer. Mas no caso da Rússia, a simetria era ainda mais perfeita: Mackinder indicou como o principal inimigo das Potências Marítimas o Coração Continental, cujo controle garantia à talassocracia o domínio global. Os eurasianistas russos do final da década de 80 aceitaram o enquadramento principal do mapa geopolítico e concordaram em reconhecer a essência da história russa na telurocracia. A Rússia é o Coração Continental, assim a Geopolítica-2 é a causa russa. Assim foram dispostas as bases do neoeurasianismo moderno.
A geopolítica eurasiana russa se encontrou com o continentalismo europeu em 1992 - durante uma visita conjunta a Moscou de Carlo Terracciano e Jean Thiriart. Jean Thiriart foi o autor do conceito "Império Euro-Soviético de Vladivostok a Dublin" e Carlo Terraciano à época havia escrito sua obra programática "Na Espuma da História" ("Nel Fiume della Storia"). Desde então o continentalismo europeu e o eurasianismo russo se tornaram quase a mesma linha geopolítica. Algo similar foi descrito no projeto de Haushofer sobre o conceito continental de bloco geopolítico "Berlim-Moscou-Tóquio". A mesma ideia foi revivida no nível teórico no início da década de 90 na Rússia. O diálogo geopolítico eurorrusso começou então em Moscou e está continuando e crescendo até os dias atuais. Ao mesmo tempo, outros geopolíticos europeus, em particular, Alain de Benoist e Claudio Mutti visitaram Moscou, entrando na mesma direção de considerações geopolíticas. Na França, perspectivas bastante similares foram sustentadas por um excelente escritor tradicionalista Jean Parvulesco.
Carlo Terracciano desempenhou nessa amizade eurasiana o papel de liderança. Com energia apaixonada ele começou a desenvolver essa tendência eurasiana, convidando a unir todas as forças inconformistas anti-status quo no bloco continental telurocrático. Sua obra, embora tenha sido desenvolvida ao nível de uma elite intelectual e escolas geopolíticas, causou impacto considerável. Ideias importam, e qualquer ação política sempre começa com o projeto, programa, estratégia.
Islã e Telurocracia
A análise da situação atual levou Carlo Terracciano à conclusão de que muitos países islâmicos e a civilização islâmica como um todo deveria ser considerada como um aliado crucial na aliança telurocrática na luta comum contra a hegemonia americana e a globalização plutocrática. Assim, a importância do fator islâmico se tornou um componente crítico do neocontinentalismo moderno. Terracciano deveria ser considerado um de seus fundadores. O Islã é uma Potência telurocrática - essa foi a conclusão resoluta de Carlo Terracciano. Este se tornou daí em diante um tipo de axioma geopolítica para o eurasianismo contemporâneo.
Terracciano fez uma série de viagens e deu uma série de conferências nos países islâmicos - Irã, Síria, etc. promovendo em todo lugar a geopolítica continentalista eurasiana. Ideias e ações, como sempre no caso de Carlo Terracciano não diferem.
Nacional Comunismo
A formação de perspectivas geopolíticas tem sido acompanhada por Terracciano por mudanças políticas e ideológicas correspondentes. O apelo ao critério, conceitos e avaliação geopolíticas do significado crucial da telurocracia demandava a revisão das fundações políticas do patriotismo europeu clássico, que usualmente se referem à "Terceira Via" (anti-liberalismo e anti-comunismo), no espírito de Evola, Heidegger e Yockey. Se aceitamos a perspectiva das Potências Terrestres, a União Soviética se transformou imediatamente de um dos dois inimigos na Europa (junto com o Ocidente capitalista liberal, personificado nos EUA) a um aliado. Isso demandou uma revisão radical da "Terceira Via" e a transição a uma fusão entre europeísmo e sovietismo, o nacional-bolchevismo. Em meados da década de 80 passaram por uma revolução similar as opiniões do teórico principal da "Nova Direita" europeia Alain de Benoist. Diferente de muitos outros "nacional-revolucionários" Carlo Terracciano, sem hesitação, aceitava a direção ideológica nacional-comunista e se tornou um dos líderes do nacional-comunismo na Itália. O anti-sovietismo e o anti-comunismo (especialmente agora, após o fim da União Soviética) se tornaram obsoletos e servem como instrumentos nas mãos da talassocracia, de liberais e globalistas. Assim cada nacional-revolucionário europeu consistente deve acabar resolutamente com isso e cooperar ativamente com todas as forças esquerdistas, lutando contra a hegemonia americana e o capitalismo liberal, que incorporam a essência da talassocracia e da civilização do Mar. Essa transição à esquerda de Terracciano era a conclusão lógica de sua análise geopolítica, e ele deu os passos mais decisivos nessa direção se unindo assim à tradição de "Jovem Europa" (seguindo o exemplo de Claudio Mutti, amigo e colega de Carlo Terracciano), e se tornando um pioneiro de novas tendências nacional-comunistas e eurasianas na política moderna italiana e europeia. A essa posição política Carlo Terracciano consagrou todo um livro sob o expressivo nome de "Nacional-Comunismo".
A justiça social é o valor da sociedade tradicional. A hierarquia, baseada no princípio material, estratificação de classe, que se encontra na base do capitalismo é um mal absoluto e deve ser derrubada. A luta contra o liberalismo, o capitalismo e a oligarquia global em nome da liberdade, da justiça e da ordem social baseada na solidariedade e da ajuda mútua é a principal tarefa dos nacional-revolucionários. Nenhum compromisso pode ser tolerante com a burguesia e seus valores mercantilistas, materialistas e egoístas. O homem é um ser social. A Tradição é uma causa do ser coletivo, uma causa social. De modo a afirmar a sociedade tradicional e implementá-la em escala global, é necessário destruir a cosmópole capitalista fundada sobre a veneração incondicionada do "bezerro de ouro". E nesse caso as forças de esquerda lutando por justiça social, são aliados e amigos, bem como as forças de direita, defendendo valores tradicionais - tais como espírito, fé e fidelidade às próprias raízes (na verdade esses valores também são incompatíveis com o capitalismo e o espírito comercial).
Tradicionalismo e Geopolítica do Sagrado
Finalmente, o aspecto crucial do pensamento de Carlo Terracciano é associado com tradicionalismo e Tradição. O próprio Terracciano seguiu o caminho traçado por Julius Evola, se considerando como o portador das tradições espirituais do Ocidente, datando até as profundezas da antiguidade, ao neoplatonismo grecorromano. Ele foi respeitoso em um confronto com o Islã e o Hinduísmo, simpatizava com a Ortodoxia Grega e Russa, mas até o fim de seus dias ele se absteve de esclarecer suas opiniões religiosas em uma confissão concreta. Ele era um tradicionalista e um forte partidário dos antigos valores indo-europeus. Esses valores, em sua opinião, tinham que estar no centro da guerra santa que ele travou contra o mundo moderno.
A Tradição está ligada à Terra. A Modernidade está ligada ao Mar. Telurocracia significa Tradição, modernidade significa talassocracia. Assim a geopolítica de Terracciano obtém a dimensão sagrada. Não é somente um instrumento técnico para a análise política correta ou planejamento estratégico, mas uma ideologia, uma escolha espiritual, um chamado para uma batalha escatológica sagrada, Endkampf, nos demandando que mobilizemos todo nosso ser.
Ótimo Guerreiro
Carlo Terracciano nos dá um exemplo do que a vida de um geopolítico real deveria ser no domínio da ciência, da teoria, da existência, da ontologia, da escatologia. Essa é a mobilização total da alma, o pagamento total para as crenças por todo o conteúdo da vida heroica e trágica.
Hoje muitos reclamam de que não há mais lugar para atos e lutas heroicas, tudo está fadado a se perder desde o início, nada pode dar qualquer resultado empírico. Isso só é prova de fraqueza, covardia e ignobilidade. Se acreditamos em algo e nossa crença é suficientemente forte, nós sempre seremos capazes de mudar o mundo. Não há inimigo que possa ser imbatível para o espírito humano ardente. Carlo Terracciano nos dá um exemplo de um homem que até seu último suspiro defendeu suas crenças. Suas crenças são nossas crenças. Sua luta é nossa luta. E a luta daqueles que virão depois de nós.
Eu confesso não estar interessado em que tipo de homem foi Carlo Terracciano, ainda que seus amigos afirmem que ele era grande, gentil, honesto. Isso não importa. Isso é subjetivo. Objetivamente, ele foi um herói. O verdadeiro herói do continente, uma civilização da Terra, da Eurásia. E é muito mais importante. Somente a ideia importa. E outra coisa importa também - a vida humana lançada no fogo de uma grande crença e uma grande causa.
O provérbio tradicional japonês diz: não é bom aquele guerreiro que serve honestamente a um bom Estado; bom é o guerreiro que serve honestamente a qualquer Estado - incluindo o pior; e é esse serviço honesto que torna um mau Estado bom. Carlo Terracciano foi um verdadeiramente bom guerreiro. O guerreiro da Europa.